O Paradoxo da Dupla Excepcionalidade: Capacidade Acima da Média e o Transtorno de
Déficit de Atenção e Hiperatividade
Carlos Eduardo PAULINO1
INTRODUÇÃO
Existem crianças com necessidades especiais. Entretanto, o
universo de crianças normais que são transformadas em
doentes, por uma visão de mundo medicalizada, da sociedade
em geral e da instituição escola, em particular, é tão grande
que tem nos impedido de identificar e atender adequadamente
as crianças que realmente precisam de uma atenção
especializada, seja em termos educacionais, seja em termos de
saúde. O processo de patologização é duplamente perverso:
rotula de doentes crianças normais e, por outro lado, ocupa
com tal intensidade os espaços, de discursos, propostas,
atendimentos e até preocupações, que desaloja desses espaços
àquelas crianças que deveriam ser os seus legítimos ocupantes.
Expropriadas de seu lugar, permanecem à margem das ações
concretas das políticas públicas (Collares & Moysés, 1996, p.
7).
A capacidade acima da média e o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
(TDAH) são temas atuais que interferem no ambiente escolar, principalmente, quando suas
características não são devidamente conhecidas e reconhecidas, trazendo prejuízos que podem
afetar o aluno no seu desempenho cognitivo, emocional e social – na escola, na família e com
seus pares (Germani, 2006). Pesquisadores buscam entender as pessoas com necessidades
educacionais especiais que exibem processos diferenciados em seu desenvolvimento, tais como
dificuldades emocionais e comportamentais, problemas de saúde mental, dislexia, discalculia,
síndrome de Asperger, entre outras condições não compatíveis com pessoas Dotadas e
Talentosas. Nesse grupo, fazem parte os Dotados e Talentosos com Transtorno de Déficit de
Atenção/Hiperatividade (Reis & McCoach, 2000).
1
Mestrando em Educação do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia e Ciências de
Marília – UNESP Marília/SP – Psicopedagogo Institucional e Clínico e Especialista em Saúde Mental e
Atenção Psicossocial. [email protected]
O surgimento do TDAH como patologia é recente, porém, mesmo não existindo um
consenso em relação à sua nomenclatura e sua etiologia, muitas crianças são diagnosticadas com
o transtorno. O diagnóstico do TDAH é realizado principalmente de acordo com os critérios
estabelecidos pelos sistemas classificatórios do DSM-IV e CID-10, e embora exista uma vasta
literatura que associa fatores neurobiológicos para a explicação etiológica do transtorno, o
diagnóstico é principalmente clínico, pois
Apesar de inúmeros relatos de alterações eletroencefalogrática,
neurofuncionais e de neuroimagem, tais testes e exames
laboratoriais não possuem valor preditivo, (tanto positivo como
negativo) suficientemente alto para recomendar seu uso no
ambiente clínico, sendo reservados para ambiente de pesquisa
ou casos excepcionais (Mattos et al., 2006, p.57).
É importante ressaltar que mesmo a utilização de tais sistemas classificatórios não é
suficientemente conclusiva com relação à definição do número mínimo de sintomas presentes
para que seja feito o diagnóstico de TDAH. Enquanto o DSM-IV aponta a necessidade da
presença de seis sintomas de desatenção e/ou hiperatividade/impulsividade, no CID-10 são
necessários seis sintomas de desatenção, três de hiperatividade e um de impulsividade para que
o diagnóstico possa ser realizado. Esta variedade pode ser responsável pela diferença do número
de diagnósticos encontrados na população, uma vez que aponta a existência de uma nãouniformidade nos critérios diagnósticos.
Associado a isso é necessário que os sintomas apareçam frequentemente para ser
considerados positivos, porém, não existe uma operacionalização para a definição de
“frequentemente” nos sistemas classificatórios. Portanto, “dependendo de onde o clínico colocar
o ponto de corte para definir o sintoma como freqüente, ele terá mais ou menos indivíduos
incluídos na categoria diagnóstica”. (Rohde, Eurípedes, Benetti, Gallois, Kieling, 2004, p. 104).
Na tentativa de sistematização desta definição, o autor sugere que o sintoma deve ocorrer mais
vezes do que não ocorrer nas situações pesquisadas.
A comorbidade é outro aspecto frequentemente relacionado ao TDAH, sendo apontado
um alto índice, em torno de 70% (Rohde et al., 2004) de presença de outros diagnósticos
associados ao transtorno, como os de humor, de ansiedade, de aprendizagem, por exemplo. Este
índice de comorbidade também pode ser considerado responsável pelo aumento na utilização de
intervenção terapêutica medicamentosa para os diagnósticos de TDAH.
O cenário aponta para os riscos da banalização e generalização do diagnóstico do
Déficit de Atenção e Hiperatividade, associado à prescrição medicamentosa como a principal
ferramenta terapêutica para estes casos, que a despeito de todos os aspectos apontados acima,
tem sido cada vez mais utilizada. Esta relação entre diagnóstico e efeito terapêutico
medicamentoso tem sido o principal responsável pelo aumento dos diagnósticos, gerando o
“efeito rebote”, no qual
(...) há uma ampliação da categoria com inclusão de novos
sinais e sintomas, o que faz com que novas pessoas se
reconheçam e se identifiquem com os comportamentos que
caracterizam o transtorno. Isso produz o aumento da demanda
por tratamento e, consequentemente, aumento do consumo da
Ritalina, e aumento do interesse popular pelo assunto. Essa
alteração no repertório de conduta dos indivíduos que passam a
guiar seus comportamentos pela crença de que são indivíduos
portadores de uma patologia, faz com que um maior número de
indivíduos seja diagnosticado, o que tem contribuído para o
aparecimento do “adulto com TDAH”. Isso torna toda a
população candidata potencial a ser portadora do transtorno.
(Ortega, Barros, Caliman, Itaborahy, Junqueira, Ferreira, 2010,
p. 507).
Portanto, o aumento no número de diagnósticos de TDAH tem sido responsável pela
vertiginosa produção do medicamento a base de metilfenidato, medicamento mais usado para o
tratamento de crianças diagnosticadas com TDAH. Pesquisas apontam que a produção desta
medicação cresceu, entre 1993 e 2003, 400%. Nos Estados Unidos, a produção deste fármaco
cresceu mais de 800% entre 1990 e 2000 (Moysés & Collares, 2010).
Estudos nacionais e internacionais que utilizam os critérios do DSM-IV tendem a
encontrar prevalências deste transtorno ao redor de 3 a 6% em crianças em idade escolar, com
destaque para os do sexo feminino sobre o sexo masculino, variando de quatro meninos para
uma menina a nove meninos para uma menina (Benczik, 2000). No entanto, o consumo do
metilfenidato teve um aumento de 600% de 1990 a 1995. Em 1995 o número de crianças
diagnosticas e que utilizavam a medicação já era de 10 a 12%, com idade entre 6 e 14 anos. Em
2007, o número de pessoas medicadas com metilfenidato, era de 6.000.000 de pessoas, dentre
estas, 4.750.000 eram crianças e sua maioria, 3.800.000, eram meninos (Moysés & Collares,
2010).
Já no Brasil, o segundo maior consumidor do fármaco para o tratamento de TDAH, o
aumento do seu consumo também tem sido significativo, em 2000 foram vendidas 71.000
caixas e 739.000 em 2004 (aumento de 940%) e em 2008, foram vendidas 1.147.000 caixas
(Moyses & Collares, 2010). Se levarmos em consideração que a principal característica do
Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade é a dificuldade de concentração e atenção em
atividades cotidianas, é mister apontar que tais características assumem uma grande importância
no contexto educacional, responsável por um substancial número de encaminhamentos de
crianças que apresentam tais características para serviços de saúde mental infantil. A presença
destes sinais em um grande número de crianças gera uma série de dificuldades para a instituição
escolar tanto com relação ao contato e condução das atividades e do comportamento das
mesmas, no entanto, apesar dessa constatação, há esforços isolados, entre os pesquisadores da
área da educação, no sentido de evitar a patologização dos comportamentos hiperativos,
tentando entender o TDAH como um tipo de funcionamento cerebral diferente, tirando-o do
estigma de doença, sendo explicado com características específicas que possuem pontos
positivos e negativos (Silva, 2003).
Porém, ao invés de se refletir a respeito da implicação do contexto social e mesmo da
instituição escolar na produção de tais comportamentos, a saída encontrada recai,
recorrentemente sobre a criança e sua família, responsabilizadas individualmente pelas
dificuldades apresentadas.
A fim de identificar quais fatores eram considerados importantes na determinação do
aprender ou não aprender no ambiente escolar, Collares e Moysés (2010) realizaram uma
pesquisa, com professores e diretores de escolas municipais de Campinas/SP. Os resultados
mostraram de forma unânime que o fracasso escolar, segundo esses profissionais, é motivado
por questões relacionadas à criança e à sua família. Com relação a fatores internos à instituição
escolar, todos os diretores referiram somente problemas centrados na figura do professor.
Também foram significativos os baixos índices relativos a problemas na escola, apenas 7,5%
dos professores apontaram algum problema no sistema de ensino.
Percebe-se com estes resultados que, aspectos relacionados ao ambiente escolar
(problemas na escola, fatores internos à instituição) não são considerados como um dos agentes
causadores do não-aprender. Há uma tendência a biologização da vida e, consequentemente,
uma patologização de tudo que foge a norma, não havendo espaços para uma problematização
do ensino-aprendizagem da atualidade, bem como, um ambiente escolar que respeite a
diversidade humana e suas diferentes formas de conhecimento.
Como é predominante a visão de que o indivíduo é responsável pelos comportamentos
indesejáveis, não há um olhar atento para a capacidade acima da média. Esta temática também
apresenta divergências e falta de consenso a respeito do conceito e da terminologia, mas os
estudos sobre o assunto existem desde a antiguidade. Mesmo integrante da Educação Inclusiva,
pouco tem sido feito para o atendimento especializado às crianças com capacidade acima da
média. Em decorrência da falta de consenso para a compreensão dessas temáticas, não é raro
encontrarmos erros de diagnóstico (Perry, 1998, Winner, 1998, Lawler, 2000), em que os
comportamentos que uma criança apresenta são atribuídos ao TDAH, quando, na verdade,
poderiam ser causados/relacionados por alguma outra condição ou característica, como por
exemplo, um funcionamento intelectual superior. Para Leroux e Levitt-Perlman (2000), os
profissionais encarregados da identificação e dos diagnósticos têm grande responsabilidade
nessa tarefa de distinguir entre estudantes que são Dotados e Talentosos e estudantes com
TDAH. Devido a essa diversidade de concepções e falta de clareza com relação a essas
temáticas, Almeida e Capellini (2005) ressaltam que “o ambiente escolar pode favorecer ou
dificultar a integração do aluno Dotado e Talentoso. Sua capacidade pode contribuir para seus
estudos ou mesmo pode levar ao tédio, aborrecimento ou rebeldia capazes de provocar baixo
desempenho” (p. 62).
Muitos comportamentos vistos em crianças Dotadas e Talentosas podem ser percebidas
pelos profissionais, principalmente em sala de aula, como um problema. No entanto, estas
características podem ser causadas por diversos fatores, tanto internos, como por exemplo, o
estado emocional da criança, imaturidade e o processo de desenvolvimento, e externos, como o
ambiente em que a criança esta inserida, tanto familiar, escolar e social.
O aluno, portanto, frequentemente acaba sendo visto como uma criança-problema ou
hiperativa e, não é raro o encaminhado para outros profissionais para que seja feito um
diagnóstico especializado. Webb (2001), Alencar e Fleith (2005) destacam que muitas crianças
Dotadas e Talentosas estão sendo encaminhadas por professores e mal-diagnosticadas por
psicólogos, psiquiatras, pediatras e outros profissionais de saúde. Os diagnósticos mais comuns
são: Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH), Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC),
Transtornos do Humor, dentre outros.
Ourofino (2005) conduziu um estudo para diferenciar as características de crianças
Dotadas e Talentosas de crianças com TDAH, e ficou evidente nos resultados que o primeiro
grupo tem desempenho significativamente superior nas inteligências, autoconceito e na
criatividade.
Winner (1998) aponta que é possível que um aluno dotado seja mais freqüentemente
diagnosticado erroneamente do que uma criança não dotada, porque é muito comum estas
crianças ficarem entediadas e inquietas num ambiente não estimulador e desafiador.
Segundo Negrine, Camargo e Hosda (2009) ambos os grupos (crianças com capacidade
elevada e crianças com TDAH) apresentam altos níveis de atividade. A agitação pode ser
percebida em crianças com capacidade elevada quando estão muito curiosas com assuntos de
seus interesses. Segundo as autoras,
outro aspecto que chama a atenção quando se trata destes dois
grupos é a atenção em relação ao que está desenvolvendo.
Normalmente as pessoas com altas habilidades/superdotação
possuem grande capacidade de concentração e atenção,
principalmente em suas áreas de interesse, e esta é uma
característica de destaque, pois consegue manter uma dedicação
por um tempo maior em algo que lhe esteja interessando.
Contudo, se não orientado e estimulado adequadamente, este
sujeito pode perder a atenção pelo trabalho em sala de aula, e
dedicar-se para a realização dos seus objetivos de forma
individual, sem preocupação com as solicitações do professor.
Desse modo, o fato de estar presente em sala de aula deixa de
ser algo instigante e realizador, mas somente o cumprimento de
regras (Negrine, Camargo & Hosda, 2009, p. 4402).
O ambiente escolar, desta forma, pode ofuscar, por exemplo, o florescimento do
pensamento criativo, pois a escola visa a reprodução do conhecimento e não a produção, dessa
forma a disciplina e a cópia são mais valorizadas que a criatividade, a pesquisa e iniciativa,
podando o desenvolvimento das potencialidades, o que sobrecarrega, sobretudo, os alunos
Dotados e Talentosos, dessa forma reprimindo suas capacidades, gerando na maioria das vezes
desinteresse e indisciplina, o que leva os professores e colegas a taxarem esse aluno como
“problema”, com o possível diagnóstico errado, levando a patologização e consequente
medicalização.
Rech e Freitas (2004) apontam que quando a criança Dotada e Talentosa não consegue
instituir uma relação positiva com seus colegas, assim como com o educador, ela pode
desenvolver mecanismos de defesa para minimizar os efeitos dessas relações conturbadas. O
subaproveitamento é um desses mecanismos de defesa, que podem surgir em dois casos
distintos: como forma de a criança “camuflar” a sua alta capacidade para ser aceita pelo grupo
de pares; ou ainda quando um ambiente escolar não desafiante pode levá-la a desinteressar-se
pelos estudos.
Esses erros ocorrem, muitas vezes, pelo fato dos critérios de identificação serem
fundamentados, geralmente, nas ciências médica e pedagógica sem se considerar os sinais de
capacidade elevada, ou seja, resultam de uma ausência de conhecimento entre os profissionais
sobre os conceitos de Dotação e Talento, bem como suas características sociais e emocionais
(Webb & Latimer, 1993; Cramond, 1994; Baum & Olenchck, 2002).
Cramond (1994), Baum e Olenchack (2002) ressaltam também que alguns sinais
observados como sintomas de TDAH podem ser características de capacidade elevada e estas
características existem devido aos traços de intensidade e superexcitabilidade que marcam o
comportamento assincrônico do dotado.
Ourofino (2005) aponta que há dificuldade em diferenciar características de Dotação e
TDAH e, reconhecer a coexistência dessas condições, o que caracteriza a dupla
excepcionalidade, que significa a co-existência da Dotação e do TDAH.
Crianças
Talentosas
com
TDAH
têm
comportamentos
específicos, tais como mascarar suas dificuldades acadêmicas,
disfarçar sua baixa auto-estima, apresentar atrasos e assincronia
no desenvolvimento global, que as colocam em situação de
risco social e de problemas emocionais. Elas precisam ser
precocemente identificadas para receberem intervenção precisa
e individualizada (Ourofino & Fleith, 2005, p. 166).
O professor tem papel fundamental em todo esse contexto. É dele que, na maioria das
vezes, parte a primeira “sinalização” dessas crianças. Se os temas são ainda confusos e se não há
uma apropriação desses conceitos por parte dos professores, torna-se difícil que os mesmos
consigam sinalizar esses alunos corretamente e, pior, conseguir distingui-los.
A literatura aponta para características que podem ser observadas para distinguir os três
grupos, como no trabalho de Fleith e Alencar (2007), os Dotados e Talentosos (habilidade geral
acima da média, motivação e envolvimento com a tarefa, atenção concentrada, fluência verbal,
autoconceito positivo), TDAH (habilidade geral média, desatenção e impulsividade, atenção
difusa, fala contínua, autoconceito negativo) e Dotados e Talentosos – TDAH (habilidade geral
acima de média, inquietação motora e psíquica, grande esforço para manter a atenção, oscila
entre momentos de atenção concentrada e difusa, fala contínua, autoconceito oscilante,
dificuldades para lidar com a auto-imagem).
Pensando em verificar como se dá esse processo de sinalização dessas crianças,
empreendemos uma pesquisa, no segundo semestre de 2010, composta por uma amostra não
probabilística, com 77 professores dos quartos e/ou quintos anos da rede municipal de Assis/SP,
tentando buscar os seus conhecimentos a cerca das crianças com capacidade acima da média,
com TDAH e da dupla excepcionalidade.
Indagados aos participantes se sabem diferenciar uma criança com capacidade acima da
média de uma criança com TDAH, 20.8% dos docentes disseram saber diferenciar claramente
uma criança com TDAH de uma criança com Dotação e Talento, 59.7% disseram saber apenas
superficialmente diferenciá-las e 19.5% disseram não saber.
Entre os que sabem superficialmente diferenciar um aluno com capacidade acima da
média de um com TDAH (n = 45), 46.7% não possuem certeza sobre a dupla excepcionalidade.
Já entre aqueles que acreditam que ambos sejam mais visíveis em sala de aula (n = 38), uma
porcentagem igual a 47.4% disse acreditar na dupla excepcionalidade e a mesma porcentagem
disse não ter certeza sobre. Além disso, dentre aqueles que não sabem diferenciar, o aluno mais
visível seria aquele com TDAH.
Dentre aqueles que disseram possuir alunos com TDAH, a maioria alegou saber
“superficialmente” diferenciar esses alunos (TDAH de Dotação). O mesmo ocorreu para aqueles
que disseram possuir alunos Dotados e Talentosos. Para os docentes que disseram saber
diferenciar apenas superficialmente a dupla excepcionalidade (n = 45), 57.8% disse que ambos
são mais visíveis em sala de aula.
Isso pode explicar o fato dos respondentes terem assinalado algumas características
presentes na dupla excepcionalidade, como exclusiva (ou majoritariamente) de alunos com
TDAH. São elas: alto nível de energia (52.6%); distração, tédio, desinteresse nas aulas (47.9%),
muitas vezes seu desempenho é considerado baixo e/ou com falta de motivação (72.7%),
dificuldade de seguir regras e regulamento – desafio e autoridade (64.5%), impulsividade
(68.4%), necessitam de mais estímulos dos professores (61.8%) e impaciente (53.9%). Em todas
essas questões a porcentagem de respondentes, para alunos com capacidade acima da média,
não atingiu os 12.0%.
Dificuldades de relacionamento com colegas da mesma idade que não compartilham
dos mesmos interesses seria menos comum para alunos com TDAH (17.6%) e mais evidente
para aqueles com capacidade acima da média (37.8%) ou a ambos (44.6%).
Os docentes “não enxergam” os alunos Dotados e Talentosos como os mais verbais e
falantes (8.3%), característica, que para eles, seria de alunos com TDAH (63.9%). Os
entrevistados ficaram divididos a respeito do tipo de aluno que apresentaria problemas de
conduta, especialmente durante a realização de tarefas pouco desafiadoras sendo que 41.9%,
31.1% e 27.0% atribuíram, respectivamente para alunos com TDAH, com capacidade acima da
média e a ambos. Bem como para aqueles que demonstram tédio em relação às atividades
curriculares regulares, 32.0%, 34.7% e 33.3% respectivamente.
Apesar da maioria dos professores apontar reconhecer apenas superficialmente alunos
com TDAH e com Dotação e Talento, notamos que algumas características (ou atributos)
negativas ou que resultam em dificuldades para o professor em sala de aula, são atribuídas
exclusivamente àqueles alunos considerados com TDAH, tais como: alto nível de energia,
distração, tédio, desinteresse nas aulas, muitas vezes seu desempenho é considerado baixo e/ou
falta de motivação, dificuldade de seguir regras e regulamento – desafio e autoridade,
impulsividade, necessitam de mais estímulos dos professores.
Para os participantes da pesquisa, características como: motivação e persistência para
adquirir e ampliar seus conhecimentos sobre áreas de seu interesse (84.0%), criatividade,
imaginação e originalidade (67.1%), organização, planejamento (95.9%), mais críticos com os
outros e consigo próprio (80.8%), independência, autonomia e iniciativa (76.0%) e interessados
e perguntadores (78.4%), são majoritariamente de alunos com capacidade acima da média. Este
dado corrobora os conceitos apresentados pelos professores para a Dotação e Talento, como
sendo bons alunos e com uma visão mitificada sobre os mesmos. Winner (1998) lembra que
mitos e mal entendidos “podem ser identificados em qualquer área de estudo, e o tópico da
Dotação não é exceção” (p.14), assim a autora, e outros estudiosos, como Almeida e Capellini
(2005) apontam a existência de diversos mitos, o qual permeiam tanto o intelectual e o
emocional do Dotado e Talentoso. Estes mitos fundamentam visões deturpadas das pessoas
dotadas e, infelizmente, podem comprometer o desenvolvimento desta capacidade.
Outro exemplo pode ser visto em características como dificuldades de relacionamento,
mais verbais e mais visíveis em sala de aula que foram considerados pelos professores como
características apenas de TDAH, dado que parece contraditório ao índice de professores que
acreditam na dupla excepcionalidade. Ou seja, apesar de 45,3% dos docentes apontarem a dupla
excepcionalidade, suas características são atribuídas exclusivamente aos alunos com TDAH.
Os resultados contribuem para a percepção do desconhecimento, por parte dos
professores, das características apresentadas por alunos com TDAH e Dotação e Talento, aliada
a uma valoração diferenciada para ambos. Aliado aos mitos existentes sobre a Dotação e
Talento, muitas características desviantes da norma, não são vistas como presentes no aluno
com capacidade acima da média, o que não é real, já que a criança com capacidade acima da
média é uma criança como qualquer outra, e como já exposto, seus comportamentos são
causados/relacionados tanto por fatores internos quanto externos.
Apontamos se tal desconhecimento sobre as características dos alunos Dotados e
Talentosos que são semelhantes aos dos alunos ditos com TDAH, não poderia acarretar na
invisibilidade destes alunos, bem como em erros de diagnóstico e conseqüentemente, na
medicalização dos mesmos. A medicalização desta criança pode impedir o desenvolvimento de
sua capacidade, já que o mecanismo de ação do metilfenidato é o mesmo da cocaína - um
poderoso estimulante que aumenta a atenção e produtividade – e assim:
(...) essas substâncias aumentam o nível de dopamina no
cérebro, pelo bloqueio de sua recaptação nas sinapses. (...) A
dopamina é o neurotransmissor responsável pela sensação de
prazer. Como conseqüência desse aumento artificial, o cérebro
torna-se dessensibilizado a situações comuns da vida que
provocam prazer, como alimentos, emoções, interações sociais,
afetos, o que leva à busca do prazer artificial provocado pela
droga (Moysés & Collares, 2010, p. 97).
Como conseqüência deste desconhecimento e aumento de medicalização das crianças, o
aluno com capacidade acima da média, se não percebido como tal, provavelmente não será
atendido em suas necessidades educacionais e terá seu desempenho prejudicado.
Estes resultados corroboram com outros estudos desenvolvidos, Baum e Olenchack
(2002) que demonstram a existência de uma falta de conhecimento sobre as características de
crianças com capacidade elevada, pode levar muitos alunos com capacidade elevada, os quais
demonstram comportamentos e características que podem ser indicativos de mais de um
diagnóstico, a serem inadequadamente diagnosticados e rotulados. Continuam dizendo que,
muitas vezes, este erro diagnóstico pode contribuir para o fracasso do aluno para ser bem
sucedido no ambiente escolar.
Este fato aponta para a necessidade de investimento em educação continuada e de maior
conhecimento científico, portanto, menos desmistificada e valorativa com relação à criança e,
principalmente às características consideradas como patológicas neste universo. Alencar (2007)
lembra que apesar de existir um reconhecimento sobre a importância do desenvolvimento destes
alunos, há uma formação incompleta ou inadequada de grande parte dos professores quanto as
estratégias e procedimentos para lidar com estes alunos. Winner (1998) também assinala o fato
de que isto se deve a falta de clareza com a qual diversas categorias de problemas de
aprendizagem são definidas.
Considerando tais divergências e falta de consenso tanto com relação ao diagnóstico e
tratamento do TDAH como o de Dotação e Talento, apontamos para a necessidade de um
movimento reflexivo no sentido de buscar outras formas de ver e significar tais crianças no
contexto escolar. Verificamos que as características atribuídas ao TDAH prevalecem no
contexto escolar, e de certa forma, exacerba tais características nas crianças em detrimento de
outras. Portanto, prevalece a visão patológica sobre a criança e a família, contribuindo para o
aumento de patologização e medicalização desta população.
Outro ponto a ser questionado inclui a dupla excepcionalidade, que acentua as
dificuldades apontadas com relação ao diagnóstico de TDAH, que pode ser considerado um
paradoxo, pois reúne num mesmo termo, a utilização de dois conceitos não consensuais e
questionáveis quanto à conceituação. A pesquisa apresentada aponta que, do ponto de vista dos
professores, a criança sinalizada com características atribuída ao TDAH destaca-se no contexto
escolar e com isso, encobre outras características como as da Dotação e Talento, por exemplo.
Estamos diante de um cenário escolar que privilegia o diagnóstico e a patologização da
infância e que facilmente pode desconsiderar a importância e o papel do ambiente (escolar,
social e cultural) na constituição subjetiva das crianças. Aliás, considerar características infantis
como patologia pode significar desconsiderar o caráter do desenvolvimento de características da
infância, atribuindo tão somente o significado patológico a sinais que poderiam refletir
dificuldades e provavelmente, o resultado da constituição subjetiva diante de um contexto social
que possui características específicas na atualidade.
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O Paradoxo da Dupla Excepcionalidade: Capacidade