O OPINIÃO Moral do referendo Marcelo Correa Antonio Delfim Netto Professor Emérito da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA-USP). Ex-ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento. A resposta dos eleitores gregos – um apertado Não – na consulta popular do dia 5 de julho deste ano de 2015 não deve ser entendida como manifestação de apoio à irresponsabilidade fiscal. Nem comemorada como a vitória da “antiausteridade”, mas simplesmente de repúdio ao equivocado excesso de austeridade exigido como preliminar do crescimento e não construída simultaneamente com ele. Talvez o maior e duradouro efeito do histórico referendo que empoderou o governo grego seja de ordem moral. O mundo se informou melhor sobre a origem das graves crises financeiras que se espalharam depois de 2008. Elas somaram a insopitável busca de lucro dos credores ao irresponsável comportamento dos devedores, produzindo uma desarticulação na economia mundial só experimentada nos anos 30 do século passado. A crise de 2007-09 também teve origem em causas que não são as que se encontram nas flutuações cíclicas do capitalismo. Numa larga medida são muito parecidas com as que geraram a de 1929, que nos EUA o governo Roosevelt combateu com profundas intervenções na economia (o “New Deal”). Uma delas foi a resposta do Congresso que, sob estímulo do Executivo, aprovou o Glass-Steagal Act, de 1933. Os bancos comerciais foram proibidos de financiar investimentos e ficaram limitados à recepção de depósitos e a empréstimos de curto prazo. Aos bancos de investimento foram reservadas as negociações com as ações e bônus, formas típicas de financiamentos de longo prazo. Quais os motivos? O mais importante foi a descoberta de que muitos banqueiros poderosos – que operavam simultaneamente o curto (comercial) e o longo (investimento) prazos, aproveitando-se de informações internas (“insider trading”) – tinham desenvolvido comportamentos eticamente condenáveis. No fim do dia, eles teriam produzido ou, pelo menos, agravado, a depressão. Quem não estiver convencido deve ler o famoso Relatório Pécora que resultou do inquérito feito pelo Congresso Americano. Ele revelou os riscos para a estabilidade econômica que estavam escondidos na expansão de um sistema financeiro absolutamente desregulado, o mesmo que se recriou a partir de 2000. Um eficiente e competitivo sistema financeiro é elemento essencial para mobilização das poupanças que financiam o investimento, alma do crescimento econômico. Até os anos 80 do século passado, as restrições impostas pelo Act de 1933 não eliminaram a repetição dos “ciclos de negócios” ínsitos na organização econômica das sociedades por meio dos “mercados” e não impediram um crescimento razoável. Entre 1950 e 1990, a economia dos Estados Unidos da América (EUA) revelou oito “ciclos de negócios”. Num período de 160 trimestres, houve retração em 25 deles, seguidos de retorno à normalidade num tempo um pouco menor (20), com uma queda média de Produto Interno Bruto (PIB) em cada episódio, da ordem de 2,2%. A depressão de 2007-09, que se seguiu à “grande moderação” que o mundo viveu por 17 anos a partir de 1990, assumiu características claramente diferentes delas: começou no 4º trimestre de 2007, foi considerada encerrada no 2º trimestre de 2009 e consumiu 4,3% do PIB. O problema é que hoje, 26 trimestres depois de ter passado por seu ponto mínimo, ainda não assistimos a uma recuperação convincente. E ninguém sabe como vai terminar o enorme esforço fiscal e monetário feito para enfrentá-la. Se a crise de 2007-09 tem a mesma origem que a de 1929, é preciso perguntar: Como isso foi possível? A resposta é que nos anos 90 do século passado, o sistema financeiro começou a libertar-se da regulação imposta nos anos 1930, alegando que ela prejudicava o desenvolvimento econômico. Com apoio no Congresso dos Estados Unidos e suporte “científico” inventado ad hoc por uma tribo de economistas cujos membros enganam-se e divertem-se mutuamente com o conforto do “mercado perfeito” (até na moralidade!) tiveram sucesso. E muito lucrativo... Assistiu-se, assim, em 1999, à revogação final do Glass-Steagal Act, de 1933. Em menos de 10 anos, o novo sistema financeiro – outra vez completamente desregulado – voltou ao local do crime. Promoveu, ou pelo menos ajudou a promover, a maior crise econômica da economia real dos últimos 75 anos. A verdade é que se produziu uma desorganização que se manifesta na redução da capacidade política e do produto potencial de todas as sociedades, consequências da continuidade do absoluto domínio das finanças sobre a produção de bens e serviços, que até agora os governos foram incapazes de corrigir. RUMOS – 12 – Julho/Agosto 2015