Amar ao outro como a si mesmo Ronaldo Monte de Almeida Quando Freud propõe a mônada fechada em si mesma como um protótipo do psiquismo originário, ele está deixando o seu pensamento ser enganado pela evolução do seu objeto. Seria mais convincente supor nas origens um ente totalmente aberto ao corpo do outro, somente depois vindo a formar um envelope decorrente das experiências de satisfação que permitiriam diferenciar um “dentro” e um “fora”. Esta abertura originária é justificada pelo estremo estado de desamparo originário que deixa a cria humana totalmente a mercê do outro e da qualidade dos seus cuidados. O que pretendemos com este trabalho é esboçar um percurso da constituição do eu, propondo que um outro originário acompanha todo este percurso, até o encontro de um objeto de amor totalmente marcado pela alteridade, mesmo que ainda guarde traços dos antigos objetos da libido. O narcisismo originário deve ser visto como uma prótese para obturar o estado extremamente doloroso da situação originária de desamparo. O que existe na origem, é um ser desamparado e um outro que, bem ou mal, virá em seu socorro. Antes do narcisismo, temos um ser totalmente a mercê de suas necessidades, dependente de um outro que faça por ele as ações específicas que lhe garantam a sobrevivência. Sem este outro, o ser não vinga. Sem esse outro, por outro lado, o ser não receberia uma carga erótica em sua carne. O que existe, portanto, é uma sexualidade em desordem implantada pelo outro em vários lugares de um corpo ainda despedaçado. Talvez seja essa mesma carga erótica que o despedaça. Falar de um auto-erotismo como tempo originário seria, portanto, uma imprecisão, pois o estado de indiferenciação do eu não permitiria situar ainda este erotismo num tempo auto. O tempo mítico é um tempo a dois, como se fossem um. Para que se considere o auto-erotismo como um estado inicial da libido, é preciso pensar o sujeito já em processo de separação do outro. Algo como um dentro e um fora já precisa estar identificado, sendo traçada uma linha tênue que instaure uma diferenciação progressiva entre um eu e um outro. É este espaço minimamente diferenciado, que progressivamente irá comportar as pulsões auto-eróticas. Mas é preciso ressaltar que, antes deste auto-erotismo, estas pulsões eram oriundas de um outro. Implantadas no interior do sujeito como objetos enigmáticos. Objetos-fonte da pulsão. Será para se defender do ataque pulsional que será erguida a fronteira limítrofe do eu, isolando as fontes do ataque pulsional fora das fronteiras do eu. Do lado de dentro desta linha limítrofe, só serão admitidos representantes pulsionais já domesticados, postos a serviço da permanência dessa unidade egóica. Qual seria, portanto a famosa nova ação psíquica que, adicionada ao auto-erotismo, provocaria a constituição do narcisismo? Para que as pulsões auto-eróticas já existam, é necessário que tenha havido um movimento de implantação das zonas erógenas com o recurso do apoio nas ações de autoconservação. É necessário, portanto, a presença de um outro para que se implante o auto-erotismo. O auto-erotismo já não pode ser considerado como o primeiro tempo. A sua implantação se dá através da identificação primária com um objeto obscuro que é devorado e incorporado. O canibalismo consiste em se alimentar desse outro e deixar que esse outro se transformar no corpo erotizado que aos poucos abrigará o narcisismo. É necessário, portanto, que o outro já esteja lá, para que se processe a nova ação psíquica que, adicionada ao auto-erotismo, provoque a constituição do narcisismo. Chegamos aos poucos dentro de nós mesmos. No seu texto sobre o narcisismo de 1914, ao tratar da relação entre narcisismo e autoerotismo, Freud faz nos convida a supor que “uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo. O ego tem de ser desenvolvido.” Afirma, contudo, que as pulsões autoeróticas já se encontram no indivíduo desde o início. É necessário que uma nova ação psíquica seja adicionada ao auto-erotismo para provocar o narcisismo. (p. 93). Percorremos toda a metapsicologia para encontrar, no seu artigo final sobre Luto e melancolia, uma indicação desta nova ação psíquica necessária ao desenvolvimento do ego e o estabelecimento do narcisismo: a identificação, “uma etapa preliminar da escolha objetal, que é a primeira forma – e uma forma expressa de maneira ambivalente – pela qual o ego escolhe um objeto. O ego deseja incorporar a si esse objeto, e, em conformidade com a fase oral ou canibalista do desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja fazer isso devorando-o.” (FREUD, 1917 [1915] P. 282). 2 No artigo sobre As pulsões e seus destinos, mesmo afirmando que o ego é originalmente auto-erótico, não necessitando, portanto, do mundo externo, Freud afirma que ele adquire objetos desse mundo através das experiências sofridas pelas pulsões de autopreservação. Ora, uma vez que o indivíduo não pode, por si só, garantir a sua sobrevivência, é preciso supor, desde aí, um outro indivíduo que se ofereça como objeto dessa classe de pulsões. É preciso concebe-las, portanto, como pertencentes a um território comum ao infante e este outro que o sustenta. No estado inicial de desamparo, o indivíduo está aberto a um meio de objetos indiferenciados. O indivíduo é indiferente para o meio externo. O meio externo, por sua vez, lhe é indiferente. Ainda mais, não há diferença entre indivíduo e meio externo. Abandonado a esse meio hostil das necessidades, o indivíduo é todo dor e sofrimento. Como sabemos desde o Projeto, a dor não tem objeto. O objeto captado pelo indivíduo é aquele que faz cessar a dor. Na medida em que os objetos oferecidos ao ego constituem fontes de prazer, ele os introjeta, tornando-os parte de si mesmo. Por outro lado, nos diz Freud, o ego expele qualquer coisa dentro de si que cause desprazer. Precursor da constituição do ego, o narcisismo primário se caracteriza por um rudimento de separação entre um dentro e um fora, um eu e um outro; momento crucial de constituição, em que tudo que é bom é incorporado ao eu e tudo que é mal, desprazeroso, é expulso para o lado de fora do limite egóico. Temos, portanto, que o momento de constituição do eu é também o momento de constituição de uma alteridade sobre a qual projetamos tudo o que não queremos para nós, construindo para sempre uma imagem do estranho, do terrificante, do responsável por todo o mal que possa nos ocorrer. Embora não tenha nunca se detido sobre o tema, Freud algumas vezes ao longo da sua obra nos fala sobre o narcisismo das pequenas diferenças. Por mais que possam nos parecer engraçadas as desavenças entre brasileiros e argentinos, flamenguistas e vascaínos, pessoenses e campinenses, quero lembrar que o que Freud caracteriza como pequenas são as diferenças. O narcisismo é sempre enorme. Não existe o pequeno narcisismo. É por isso que essas pequenas diferenças muitas vezes são causadoras dos desastres mais terríveis, desde o assassinato de um vizinho por conta de uma árvore cortada, até o extermínio de milhares de indivíduos pertencentes a uma determinada seita ou etnia. 3 Creio que esteja nesta satanização do outro (do estranho, do estrangeiro), sobre o qual jogamos tudo aquilo que não aceitamos de mal em nós mesmos, a principal razão para os conflitos da humanidade, em todos os tempos. Judeus, ciganos, negros, mulheres, católicos, budistas ou mulçumanos, são vítimas fáceis de qualquer tipo de fundamentalismo. Pela sua própria condição de diferente, por menor que seja essa diferença, qualquer um desses grupos tem a facilidade de atrair sobre si a fúria dos grupos que, por qualquer motivo, sintam falta de uma idade de ouro à qual miticamente desejam regressar. A partir da superação dos imperativos morais do ideal do eu, o sujeito deve construir uma ética que leva em conta os objetos externos ao ego para a realização das metas estabelecidas por essa instância ideal. Para tanto, uma qualidade não-natural será requerida ao sujeito humano: a construção de um vínculo amoroso que o afaste cada vez mais de sua posição narcísica primitiva. Este é o desafio lançado a cada ser humano na construção da sua humanidade: amar ao outro como a si mesmo, única forma de sobreviver em meio aos objetos hostis que provocam o mal-estar em que estamos imersos. Bibliografia Freud, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914) In Edição Standard Brasileira das obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud ________ Os instintos e suas vicissitudes (1915) In Edição Standard Brasileira das obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago, Rio de Janeiro, 1974. Imago, Rio de Janeiro, 1974. (Vol. XIV) _________ Luto e melancolia (1917 [1915]). In Edição Standard Brasileira das obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago, Rio de Janeiro, 1974. 4