Cancun a Miami: os mais
recentes desafios para a
integração hemisférica
Análise
Segurança
Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira
15 de outubro de 2003
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De Cancun a Miami: os mais recentes
desafios para a integração hemisférica
Análise
Segurança
Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira
15 de outubro de 2003
As conseqüências da reunião da OMC ocorrida em Cancun, em setembro último, não
ficaram confinadas ao âmbito desta organização. As posições dos países na reunião, em
especial a do Brasil, e suas repercussões na relação Brasil-EUA terão como possível
conseqüência consideráveis impasses na próxima reunião de ministros em torno da
ALCA, a ocorrer em Miami, no mês de novembro.
D
entro de pouco mais de um mês,
acontecerá a Reunião Ministerial
de Miami - 8o encontro de
ministros
para
supervisão
e
gerenciamento das negociações em torno
da pretendida Área de Livre Comércio
das Américas (ALCA). Dado que o prazo
para encerramento das negociações,
confirmado reiteradamente pelo governo
brasileiro nos últimos dias, é janeiro de
2005, são grandes e crescentes as
expectativas dos mais diversos setores da
sociedade brasileira com relação ao
encontro.
Faz-se necessário notar, entretanto, que
não é apenas o curto espaço de tempo
entre a reunião de Miami e a data definida
para entrada em vigor do acordo que se
coloca como elemento responsável pelo
aumento de tais expectativas. Outros
eventos, tanto internos quanto externos,
têm sua parcela de contribuição para esse
processo – como, por exemplo, a
divergência entre as opiniões expressadas
por diferentes ministros brasileiros, já
publicamente “retratada”, e as eleições
presidenciais norte-americanas de 2004.
No entanto, nenhum fato recente tem
papel mais definitivo nele que a 5a
Reunião Ministerial da Organização
Mundial do Comércio (OMC), ocorrida
em Cancun em setembro último, e suas
posteriores repercussões no Brasil e nos
EUA - co-presidentes das negociações da
ALCA desde novembro de 2002 até seu
encerramento.
Apesar da convergência de interesses
entre as delegações brasileira e norteamericana no que se refere à manutenção
da data de encerramento de negociações e
entrada em vigor do acordo, divergências
claramente evidenciadas em Cancun, bem
como em subseqüentes depoimentos de
representantes
de
ambos
países,
mostraram-se como vetores de força
considerável que seguem em direção
oposta e, inegavelmente, ameaçam o
prazo consensualmente pretendido. Além
disto, a firmeza de posição de ambos
países com relação ao ocorrido em Cancun
veio agravar essa situação.
Em 22 de setembro, logo após o fim da
reunião de Cancun, o representante dos
EUA para o comércio, Roberto Zoellick,
fez por deixar bem claras tanto essa
firmeza quanto a crítica norte-americana à
posição do Brasil à frente do G-22 na
reunião da OMC. Em seu polêmico artigo
publicado pelo Financial Times, Zoellick
tacha esse grupo de “países que não
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farão” (won´t-do countries), em oposição
aos que chama “países que podem fazer”
(can-do countries) – aqueles que estariam
efetivamente perseguindo a liberalização
comercial.
O fato é que, no referido artigo, o que
Zoellick divulga em última instância é
uma ameaça aos tais “países que não
farão”. Em seu parágrafo final, o
representante afirma que “enquanto os
membros da OMC ponderam sobre o
futuro, os EUA não esperarão: vamos nos
mover em direção ao livre comércio com
países que podem fazer”. Ou seja, caso os
países do G-22 mantenham-se firmes em
sua posição, acordos preferenciais que os
excluam serão firmados pelos EUA com
outros parceiros.
Certamente esta afirmativa foi bem
recebida pelos setores empresariais norteamericanos engajados em lobbies internos
pelo protecionismo, já que acordos
preferenciais que passem ao largo do
sistema multilateral de comércio podem
evitar e/ou adiar concessões, ou mesmo
lhes permitir a transferência de suas
operações para países com fatores de
produção mais baratos dentro das zonas
preferenciais.
Por
outro
lado,
externamente – e especialmente no Brasil
– tal afirmativa não foi tão bem recebida
assim.
Ainda que, no artigo, a ameaça de Zoellick
tenha dito respeito, expressamente, ao
âmbito da OMC, não resta dúvida de que
ela se refere não só ao sistema multilateral
de comércio, disciplinado por esta
organização, mas também a acordos
regionais da ordem da pretendida ALCA.
Neste sentido, ameaçar aqueles que
chama de “países que não farão” dizendo
que, se mantiverem sua posição, os EUA
partirão para acordos que os excluam
atinge diretamente ao Brasil e ao Mercosul
em seus interesses na integração
hemisférica.
Desde a 3a Reunião de Ministros para a
ALCA, em 1997, são parte da base da
agenda de negociações os preceitos de que
a ALCA pode e deve coexistir com
acordos bilaterais e sub-regionais mais
amplos e profundos, e, ao mesmo, tempo,
ser compatível com os acordos firmados
no âmbito da OMC. Então, ainda que
esses preceitos vão ao encontro dos
interesses brasileiros no fortalecimento e
tratamento primordial do Mercosul - tão
claros desde a posse do governo Lula -,
diante da ameaça de Zoellick fica claro
que eles deixam, também, margem para
alguns efeitos perversos.
Se acordos e negociações levados a cabo
na OMC devem ser compatíveis com
negociações internacionais em outros
âmbitos, pode-se concluir que uma
ameaça expressa de movimento em
direção a acordos bilaterais e subregionais em detrimento das negociações
multilaterais resguardadas pela OMC é
também “compatível com”, senão “igual
a”, uma ameaça de mesma direção em
detrimento da ALCA. E, como afirmado e
reiterado recentemente pelo ministro das
Relações Exteriores brasileiro, Celso
Amorim, “o Brasil é a favor da ALCA” e,
portanto, pretende que as negociações
conduzam a uma efetiva área de livre
comércio hemisférica.
Não bastando tudo isso, ainda persiste a já
antiga questão de que a ALCA a que o
Brasil é a favor não é a mesma ALCA
pretendida pelos EUA. Assim, além da
ameaça que paira sobre as relações
comerciais entre os dois países desde
Cancun, há um antagonismo fundamental
entre as posições de suas delegações.
Enquanto
os
EUA
pretendem
implementar um acordo hemisférico de
livre comércio que não discipline questões
agrícolas e de antidumping, delegando à
OMC essa responsabilidade, o Brasil
defende um acordo que as inclua. Com
isso, a postura brasileira - esclarecida mais
uma vez pelo embaixador Luís Felipe
Macedo Soares por ocasião da XV Reunião
do Comitê de Negociações Comerciais
(CNC) da ALCA, em Porto de Espanha,
entre 29 de setembro e 3 de outubro - tem
sido pela inclusão de tais questões nas
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discussões da ALCA e transferência para a
OMC
de
outras,
como
compras
governamentais,
investimentos,
propriedade intelectual, serviços e
competição.
Neste sentido, o que implica esvaziamento
da discussão da ALCA do ponto de vista
da delegação brasileira significa inclusão
de questões realmente substantivas do
ponto de vista da norte-americana, e viceversa. Diante disto, o que temos,
novamente, são vetores de força
considerável e direção oposta – ou seja,
vetores que podem se anular, invalidando
o projeto de integração hemisférica e
frustrando os interesses de ambos países
em sua efetivação em 2005.
Referência
Artigo de Zoellick no Financial Times:
www.ustr.gov/speech-test/zoellick
Documentos apresentados na XV Reunião
do CNC em Porto de Espanha:
http://www.ftaaalca.org/WhatsNew/2003/infoOct_p.a
sp
Tais posições de fato já eram conhecidas.
O que, depois de Cancun, pode ser visto
como novo no quadro da discussão da
ALCA é o caráter explícito da ameaça
norte-americana de que, caso o Brasil
mantenha com firmeza sua posição no
comércio internacional - em defesa de que
não se negocie acordos que não incluam
concessões nos setores em que é
competitivo, como feito na reunião da
OMC -, será isolado por seu pretenso
grande parceiro do Norte na integração
hemisférica. Aliás, como ficou também
claro em documento apresentado na XV
Reunião do CNC em Porto de Espanha,
será isolado por seu pretenso grande
parceiro do Norte e por todos os estados
que o seguem em sua posição com relação
a ALCA - quais sejam Canadá, México,
Panamá, Peru, Colômbia, Venezuela e
países centro-americanos.
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