UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
JANAINA LISBOA LOPES FREIRE
A TRANSMUTAÇÃO DE O QUINZE - DE TEXTO LITERÁRIO EM TEXTO
FÍLMICO
FORTALEZA - CEARÁ
2013
1
JANAINA LISBOA LOPES FREIRE
A TRANSMUTAÇÃO DE O QUINZE DE TEXTO LITERÁRIO EM TEXTO FÍLMICO
Monografia apresentada ao curso de
Especialização em Formação de Tradutores
do Centro de Humanidades da Universidade
Estadual do Ceará, como requisito parcial
para a obtenção do título de Especialista em
Tradução.
Orientadora: Profª. Dr ª. Claudia Regina
Rodrigues Calado.
FORTALEZA - CEARÁ
2013
2
3
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Biblioteca Central CENTRO DE HUMANIDADES
Bibliotecário Responsável – Dóris Day Eliano França – CRB-3/726
F866t
Freire, Janaina Lisboa Lopes.
A transmutação de O quinze: de texto literário em texto fílmico. /
Janaina Lisboa Lopes Freire. – 2013.
CD-ROM. 74f. ; (algumas color.) : 4 ¾ pol.
“CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho
acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7
mm)”.
Monografia (especialização) – Universidade Estadual do
Ceará, Centro de Humanidades, Curso de Especialização em
Formação de Tradutores do POSLA da Uece, Fortaleza, 2013.
Orientação: Profa. Dra. Claudia Regina Rodrigues Calado.
1. O Quinze. 2. Rachel de Queiroz. 3. Jurandir Oliveira. 4.
Estudos da tradução 5. Adaptação fílmica I. Título.
CDD: 418.02
4
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço à minha mãe, pelo carinho, apoio, disposição, por acreditar
em mim e me incentivar a oferecer o melhor que posso, sempre.
À minha família, essencial em minha vida, por toda afeição e torcida.
Aos colegas do Curso de Especialização em Tradução, pelas colaborações e
reflexões sobre Tradução, Cinema e Literatura,
Ao João Neto, Rodrigo Pessoa e Ticiana Teixeira, que além de colegas de classe se
tornaram sócios da agência Dínamo Tradução e Soluções Linguísticas. Em especial
ao sócio, amigo e parceiro de jornada acadêmica, Onias Lopes
Aos amigos, que sempre me apoiaram e acreditaram que sou capaz.
Aos professores e a minha orientadora, a Profa. Dra. Claudia Regina Rodrigues
Calado, pela sabedoria e disponibilidade durante a realização desse estudo
5
RESUMO
O Quinze, lançado em âmbito nacional em 1930, é o romance de estreia de Rachel
de Queiroz que relata sobre ano de uma grande seca que assolou o Nordeste
brasileiro. Este texto literário foi traduzido em texto fílmico, por Jurandir Oliveira, em
2004 com título homônimo, mesmo ano que o romance teve sua 78ª edição. Nesse
assunto, trata-se a pesquisa cujo objetivo é fazer uma análise de natureza descritiva
sobre a transmutação desse texto literário em texto fílmico. Aqui, é enfatizado o
caráter independente do texto de partida em relação texto de chegada, é ressaltada
a importância das diferenças entre a linguagem fílmica e literária, e são sublinhadas
as circunstâncias sócio-históricas no contexto das respectivas textualizações e há a
tentativa de justificar algumas diferenças entre a obra de partida e a de chegada. A
base teórica desta pesquisa é fundamentada nos Estudos da Tradução, nos críticos
da obra Rachel de Queiroz, nas entrevistas feitas com Jurandir Oliveira e
especialistas de adaptação fílmica da literatura. A partir do cruzamento de
referenciais teóricos no campo da tradução e da adaptação fílmica, a pesquisa faz
uma abordagem descritiva que consiste na leitura profunda dos textos literário e
fílmico. Para tal, foi realizado um fichamento do livro e uma decupagem do filme em
que os seguintes caracteres foram destacados: espaço, tempo, Conceição, Vicente,
Dona Inácia, Chico Bento, Cordulina e Mocinha; e suas as construções em ambos
os textos foram analisadas. Verificou-se que Jurandir Oliveira recria no longametragem a simplicidade com que a temática da seca sertaneja é tratada no
romance. Concluiu-se que, apesar do roteiro ter passado pelas observações da
autora do romance, o autor do filme textualiza na tecnologia da linguagem
cinematográfica a mudança de atitude de alguns personagens, readequando,
inclusive, os (anti-)heróis da narrativa.
Palavras-chave: O Quinze; Rachel de Queiroz; Jurandir Oliveira; Estudos da
Tradução, Adaptação Fílmica.
6
ABSTRACT
The Great Drought, published in Brazil in 1930, is the first novel by Rachel de
Queiroz. In Portuguese, the novel is entitled The Fifteenth, which is the year of a
great drought that occurred in the Brazilian Northeast. In 2004, this novel was
translated into film by Jurandir Oliveira. In this sense, the research which the goal is
to make an analysis of descriptive-analytical nature of the transmutation of this
literary text into filmic text emerges. We emphasize, here, the independent nature of
the source text in relation to the target one. We stress the importance of the
differences between the filmic and literary language, and we outline the
circumstances of the socio-historical context of the both texts. The theory of this
research is grounded on Translation Studies, critics of the work of Rachel de
Queiroz, interviews conceded by Jurandir Oliveira and specialists in filmic adaptation
of literature. From the intersection of theoretical frameworks in the field of translation
and film adaptation, we have done a descriptive approach research that consists in
deep reading of literary texts and film. To this end, we conducted a book cataloging
and movie decoupage where the following characters were highlighted: space, time,
Conceição, Vicente, Dona Inácia, Chico Bento, Cordulina and Mocinha, and we
analyzed the construction of the characters in both texts. It was found that Jurandir
Oliveira recreates the simplicity with which the theme of the dry hinterland is treated
in the novel. We also concluded that, despite of the fact that the script went through
the observations of the author of the novel herself, the author of the film textualizes in
the language of film technology the change in attitude of some characters, including
the reorganization of importance of the leading characters.
Keywords: The Great Drought; Rachel de Queiroz; Jurandir Oliveira; Translation
Studies, film adaptatio
7
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 - PRÓLOGO
31
FIGURA 2 - LUA SEM LAGOA
32
FIGURA 3 - “JÁ VI INVERNO COMEÇAR ATÉ EM ABRIL”
33
FIGURA 4 - QUERMESSE
35
FIGURA 5 - A FAMÍLIA DE CHICO BENTO PARTE
37
FIGURA 6 - VICENTE A CAVALO NO PEDRÊS
39
FIGURA 7 - PAISAGEM VISTA DO TREM
40
FIGURA 8 - FACHADA LOGRADOURO
41
FIGURA 9 - HORA DA CEIA
41
FIGURA 10 - CASA DE TAIPA
42
FIGURA 11 - CASA DE FORTALEZA
43
FIGURA 12 - CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
44
FIGURA 13 - CONCEIÇÃO
49
FIGURA 14 - PÔR-DO-SOL
49
FIGURA 15 - A CHEGADA DAS CHUVAS
50
FIGURA 16 - DONA INÁCIA (OU MÃE NÁCIA)
52
FIGURA 17 - TAPETE VERDE ESPERANÇA
53
FIGURA 18 - CORDULINA
54
FIGURA 19 - CORDULINA PADECE
55
FIGURA 20 - MOCINHA
57
FIGURA 21 - VICENTE
61
FIGURA 22 - SONHO DE VICENTE - ZEFINHA
61
8
FIGURA 23 - SONHO DE VICENTE – MARIINHA
62
FIGURA 24 - SONHO DE VICENTE – CONCEIÇÃO
62
FIGURA 25 - COMADRES EM SANTO ANTÔNIO
63
FIGURA 26 - CHICO BENTO
65
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Sumário
1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................................11
2. METODOLOGIA E CORPUS ........................................................................................................13
2.1. NATUREZA DA PESQUISA ..................................................................................................13
2.2. PROCEDIMENTOS ADOTADOS .........................................................................................13
2.3 CORPUS ....................................................................................................................................14
3. DE 146 PÁGINAS PARA 14.400 FRAMES ................................................................................15
3.1 TRADUÇÃO: A DIFERENÇA COMO EQUIVALÊNCIA ......................................................15
3.2. O FILME COMO TRADUÇÃO DO LIVRO ...........................................................................18
4. LIVRO E PELÍCULA, AS TEXTUALIZAÇÕES DE O QUINZE ................................................23
4.1. A AUTORA E O TRADUTOR ................................................................................................23
4.1. 1. RACHEL DE QUEIROZ, OU RITA DE QUELUZ .......................................................23
4.1.2. JURANDIR (FERREIRA DE) OLIVEIRA ......................................................................24
4.2. PÁGINAS E FRAMES .............................................................................................................25
4.2.1. O QUINZE, O ROMANCE ...............................................................................................26
4.2.2 . O QUINZE, O FILME ......................................................................................................27
5. O ROMANCE O QUINZE E A SUA TRADUÇÃO AUDIOVISUAL ..........................................30
5.1. O TEMPO E O ESPAÇO ........................................................................................................30
5.1.1. O TEMPO ..........................................................................................................................31
5.1.2. O ESPAÇO FÍSICO..........................................................................................................38
5.3. PERSONAGENS PRINCIPAIS..............................................................................................44
5.3.1 CONCEIÇÃO, A (ANTI-)HEROÍNA ................................................................................44
5.3.2 DONA INÁCIA, A TRADIÇÃO .........................................................................................51
5.3.3 CORDULINA, A SUBMISSA ............................................................................................53
5.3.4 MOCINHA E O SEXO .......................................................................................................55
4.3.5 VICENTE, O VAQUEIRO QUE FICA .............................................................................58
5.3.6 CHICO BENTO, O VAQUEIRO QUE PARTE...............................................................64
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................67
7. BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA ..............................................................................................71
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1. INTRODUÇÃO
O Quinze é o livro de estreia e, também, um dos romances mais
populares da primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, a
tradutora, jornalista e escritora, Rachel de Queiroz. O romance que foi escrito em
1929 e publicado pela primeira vez em âmbito nacional em 1930, tem como título o
ano 1915, período em que uma grande seca acometeu o Nordeste brasileiro. Nas
páginas de sua obra, a autora descreve o aspecto físico regional da época (o sol
escaldante, a miséria, a fome, a sede, e a morte) e o turbilhão de sentimentos que
florescem nas pessoas (a amargura, o desespero, a indignação, a esperança, o
amor, a compaixão e a fé) durante a experiência desse fenômeno.
Como obra literária, O Quinze permite que, através de outras
manifestações artísticas, existam variadas interpretações e diferentes maneiras de
redescobrir o valor da literatura. E foi o que Jurandir Oliveira fez, 74 anos depois do
lançamento do romance, ao transmutar as palavras de Rachel de Queiroz em
imagem e som, criando uma obra cinematográfica homônima.
Na obra fílmica, O Quinze, Jurandir Oliveira teve o papel de roteirista,
diretor e ator. Ele interpretou Chico Bento, um dos personagens principais. Antes
que a transmutação de 26 capítulos de romance em 107 minutos de filme chegasse
ao público, existiram três tentativas de transformar o romance em filme; ao chegar às
mãos de Jurandir Oliveira, o roteiro teve cinco versões que passaram pela
supervisão da própria Rachel de Queiroz.
Segundo Naremore (2000), o que geralmente ocorre quando há a
transmutação de um texto literário canônico em texto fílmico é a leitura comparativa
e, muitas vezes, depreciativa, onde é questionada a “fidelidade” da obra de chegada
em relação à obra de partida, ou seja, se o texto fílmico respeita ou não a “essência”
do texto literário.
Stam (In NAREMORE, 2000) chama atenção para o fato de que além do
texto de partida, existem outras características na transmutação de um texto literário
em texto fílmico que devem ser apreciadas antes de se fazer uma avaliação sobre o
filme. Tais características são: as peculiaridades existentes entre as linguagens
literárias
e
audiovisuais,
o
contexto
sociocultural
da
textualização
e
da
retextualização, e a liberdade de autoria distinta dos promotores do texto de partida
e do texto de chegada.
A transmutação de um livro em filme é conhecida usualmente como adaptação. Mas,
11
Stam (In NAREMORE, 2000), um especialista em adaptação fílmica, afirma que este
é um tropo inadequado e o termo mais apropriado para o procedimento é tradução.
De acordo com o autor, a transmutação da linguagem literária para a
cinematográfica possui as perdas e os ganhos típicos da tradução de uma
interlinguística, Roman Jakobson (1995) foi o primeiro teórico dos Estudos de
Tradução a alcunhar de tradução o processo de transmutação. Mais especificamente
de Tradução Intersemiótica.
O objetivo desta pesquisa é analisar a tradução de O Quinze, do texto
literário para texto fílmico, sob o viés das correntes de estudos da adaptação fílmica
e da tradução, através da compreensão do processo de transmutação da literatura
em filme como processo tradutório sob a perspectiva dos Estudos Descritivos da
tradução; da observação do contexto sociocultural presente na criação das
respectivas obras; e da averiguação das escolhas feitas pelo autor do texto de
chegada, verificando quando houve opção pela proximidade ou pela independência
do texto de chegada em relação ao texto de partida; se houve a preferência pela
independência, por que isso aconteceu? É importante destacar que não é objetivo
desta pesquisa avaliar a hierarquização do valor da obra de arte literária sobre
cinematográfica, tampouco hierarquizar o valor da autora do texto de partida sobre o
autor do texto de chegada.
Esta pesquisa está divida em três seções. A primeira traz a abordagem
dos Estudos de Adaptação Fílmica e dos Estudos de Tradução. A segunda faz uma
avaliação sobre a contextualização sociocultural dos autores (Rachel de Queiroz e
Jurandir Oliveira) e dos textos (literário e fílmico). A terceira e última seção contém a
análise propriamente dita, as similaridades e as divergências entre O Quinze texto
literário (QUEIROZ, 2004) e O Quinze texto fílmico (OLIVEIRA, 2004), e as
considerações sobre as transformações.
A metodologia utilizada e corpus analisado na realização desse estudo
encontram-se explanados no tópico a seguir.
12
2. METODOLOGIA E CORPUS
2.1. NATUREZA DA PESQUISA
Esta pesquisa foi desenvolvida no intuito de analisar o processo tradutório
da transmutação do texto literário O Quinze (QUEIROZ, 2004) no texto fílmico O
Quinze (OLIVEIRA, 2004). Ela é, portanto, uma pesquisa de natureza analíticodescritiva.
2.2. PROCEDIMENTOS ADOTADOS
O embasamento da compreensão da transmutação de O Quinze romance em O Quinze - filme como tradução, foi realizado através de uma pesquisa
bibliográfica que envolveu, principalmente, estudos sobre Adaptação Fílmica e
Teorias da Tradução. No âmbito dos estudos sobre Adaptação Fílmica, os autores
abordados foram: Andrew (In NAREMORE, 2000), Bazin (In NAREMORE, 2000),
Naremore (2000), Ray (In NAREMORE, 2000) e Stam (2005). Na área de Teorias da
Tradução, abordamos alguns autores que abrangem os estudos descritivos da
tradução, processo tradutório e público-alvo. Dentre estes, foram destacados:
Amorin (2005), Ávila (2008), Costa (2005), Eco (2007), Lefevere (1992), Nida (1993)
e Toury (1995).
A avaliação do processo tradutório foi feita com base em um estudo sobre
a autora do texto de partida, Rachel de Queiroz, e do autor do texto de chegada,
Jurandir Oliveira, no contexto de criação de suas obras. Os dados foram recolhidos
através do autor Franseschi (2002), de entrevistas, blogs e websites que trazem
colunas sobre cinema e literatura. Alguns desses sites foram os das revistas
Veja,Isto É, Época e dos jornais O Povo e Diário do Nordeste.
A descrição sobre o público-alvo do romance e do filme foi feita através
do estudo do contexto artístico literário e fílmico na época do lançamento das obras
respectivas. Os autores abordados aqui foram Almeida (1999), Arêas (2002),
Queiroz (1998) e Leal (1982).
A análise do texto literário e sua tradução foi feita a partir do destaque dos
seguintes elementos: o tempo, o espaço e os seis personagens principais
13
(Conceição, Dona Inácia, Cordulina, Mocinha, Vicente e Chico Bento). No romance
de Rachel de Queiroz foi realizado o método de fichamento, onde foram
sobressaltadas as descrições do tempo, das paisagens e dos personagens e os
diálogos que os identificam. No filme de Jurandir Oliveira foi realizado o método de
decupagem, ou seja, um procedimento que permite a observação detalhada na
sequência de planos, tais como observação da disposição dos atores, do cenário, da
movimentação e os planos de câmera, da representação dos personagens e da
trilha sonora. Uma vez reunidas, as fichas e as imagens do filme, comparamos os
materiais, identificando as eventuais transformações do texto de partida tais como
amplificações, reduções, adições, eliminações, mudanças de fala e atualizações.
2.3 CORPUS
O corpus da presente pesquisa é formado pela 78ª edição do romance
regionalista O Quinze (2004) de Raquel de Queiroz e sua transmutação em texto
fílmico, a película classificada como drama, O Quinze (2004) de Jurandir Oliveira.
A seguir, encontra-se a discussão bibliográfica sobre a transmutação da
linguagem escrita para a linguagem audiovisual de acordo com autores especialistas
em Adaptação Fílmica e Teorias da Tradução.
14
3. DE 146 PÁGINAS PARA 14.400 FRAMES1
Este seção aborda a transmutação do texto literário em texto fílmico como
forma de tradução. Assim, ela é dividida em dois momentos. No primeiro, os Estudos
de Tradução são expostos para conceituar o que é tradução, explanar o processo de
transmutação interlinguística, expor os tipos de equivalência tradutória e a definir o
que é público-alvo. Na segunda parte, os estudos de Adaptação Fílmica são
apresentados, e, sob o viés desses especialistas, são feitas breves considerações
acerca da transmutação da linguagem literária para a linguagem fílmica.
3.1 TRADUÇÃO: A DIFERENÇA COMO EQUIVALÊNCIA
Embora a atividade tradutória seja muito antiga, ainda há grande
controvérsia sobre: o que é tradução, como se deve traduzir e, até, se algo é ou não
traduzível2.
Ainda não existe nenhuma teoria unificada da tradução no sentido técnico
de um conjunto coerente de proposições gerais usadas como princípios
para explicar uma classe de fenômenos, mas existem algumas “teorias” no
sentido lato de “um conjunto de princípios úteis para compreender a
natureza da tradução ou para estabelecer critérios de avaliação de um texto
traduzido (Nida, 1993, p. 155).
Zingatelli (In ECO, 2005) afirma que traduzir significa verter, transportar
uma língua para outra, dar o equivalente de um texto, de uma locução ou de uma
palavra. Segundo Eco (2005), o problema da tradutologia é exatamente o que
significa esse “dar o equivalente”.
Ávila (2008) diz que, quando se trata de obras literárias, é recorrente a
preferência do autor traduzido sobre o tradutor. A autora alega que apesar da
declaração ser generalizada, ela tem alguma base pragmática, pois existem fatores
como o orçamento de um bom tradutor, o tempo disponível para que a tradução seja
1
Por trás de toda ação do movimento que é vista em qualque video, existe um artifício que
transforma as imagens paradas em animadas. A ilusão que o cérebro iterpreta como movimento é
feita ao exibir vários quadros concecutivos em um curto período de tempo. Durante muito tempo, a
indústria cinematográfica utiliza o formato de 24 quadros por Segundo como satisfatória.
2
Na concepção de Benjamin, a traduzibilidade não significa que exista similitude entre o texto de
partida e sua tradução. Ao enunciar a traduzibilidade de um texto interlinguística, não estamos
falando de identidade, nem que haveria uma relação especular entre o original e sua tradução: “de
fato, essa relação é tanto mais íntima quanto nada mais significa para o próprio original”. (BENJAMIN,
2001, p. 193).
15
realizada, e a capacidade do tradutor, o que ela afirma como sendo a especialidade
de autores (de escrever) e de tradutores (de traduzir) apenas um gênero textual
particular, como por exemplo: prosa, poesia, música, técnico,...
Ainda de acordo com a autora, a concepção que se tem de tradutor como
simples transpositor de significados, e de tradução como transporte sem
contaminação da passagem de um texto interlinguística, faz parte da logocêntrica
abordagem estruturalista, ou seja, a abordagem sobre a qual se construiu a ideia
tradicional de fidelidade com relação à tradução.
Costa (2005) afirma que todo texto é, de alguma forma, dependente de
outro texto, mas o texto traduzido depende mais intrinsecamente de um texto
específico, do texto de partida. Ao escrever, o autor tem menos amarras para
organizar o seu conjunto de palavras de acordo com as suas intenções. O tradutor,
em contrapartida, opera sob condições restritas. O texto de partida limita o texto de
chegada, pois ele deve ter um alto grau de semelhança com o seu correspondente.
Nos estudos de tradução, essa semelhança é chamada de equivalência.
Os tipos de equivalência foram denominadas por Nida (1993) de formal e
dinâmica. Segundo o autor, a equivalência formal tem o foco de sua atenção voltado
para a mensagem do texto de partida, tanto em termos de forma quanto de
conteúdo. O texto de chegada é constantemente comparado com o original para
determinar o seu grau de exatidão. Já na equivalência dinâmica, o objetivo do texto
de chegada é certificar-se de que a relação entre o receptor e a mensagem é a
mesma relação que existia entre a mensagem original e seu leitor.
Eco (2005) diz que o tradutor precisa ter “informação enciclopédica”, ou
seja, sua própria visão de mundo, e não deve estar atento apenas aos elementos
linguísticos do texto, mas aos do contexto também. O autor afirma ainda que o
desafio da tradução consiste em traduzir significados, para fazer com que a tradução
tenha, em sua nova língua a mesma relação que o texto de partida teve com seu
público-alvo. Toury (apud AMORIN, 2003) propôs os Estudos Descritivos da
Tradução, teoria cujo objetivo é desvendar a maneira pela qual as traduções se
moldam para satisfazer os objetivos do público para o qual a tradução é destinada.
Segundo o autor (apud COSTA, 2005), a equivalência tradutória ocorre quando o
texto na língua de partida e o texto na língua meta são relacionáveis às mesmas
propriedades relevantes. Para ele, a situação de produção e recepção na qual o
16
tradutor e o seu trabalho estão inseridos são os pontos-chave da tradução.
Outro teórico dos Estudos Descritivos, Lefevere (1992), afirma que a
literatura é constituída tanto pelos textos quanto por quem faz as leituras, escrituras,
reescrituras, e tudo aquilo que pronuncia e determina os saberes que possibilitam a
manifestação literária como produto cultural. Para o autor, a tradução é um processo
por meio do qual se transforma o texto de partida tornando-o aceitável do ponto de
vista da poética vigente em torno do autor e da obra traduzida.
Ele sugere que os profissionais que produzem a tradução são
responsáveis pela recepção geral e pela sobrevivência de obras literárias. Ainda de
acordo com este autor, a tradução cultiva transformações que são direcionadas,
mesmo
inconscientemente,
por
interesses
que
podem
redimensionar
as
manifestações literárias da cultura de partida ou da cultura do público-alvo.
Mais adiante, o autor remete que a atitude do tradutor em relação a esses
elementos é influenciada pelo status da obra a ser traduzida, a autoimagem da
cultura para a qual a tradução do texto é concretizada, os tipos de texto que são
aceitos na cultura em questão, o público-alvo e as manifestações culturais com as
quais o público-alvo esteja acostumado, ou seja, predisposto a aceitar.
Os Estudos Descritivos de Lefevere (1992) e Toury (1995) mudaram o
foco da análise da tradução. Antes o foco era apenas no texto de partida, mas eles
abrangeram a perspectiva para a cultura de chegada. Mas, embora tenham
reconhecido a relevância das necessidades do público-alvo de acordo com fatores
externos como cultura de chegada e mercado, ampliando, assim, a concepção de
fidelidade e, também, tenham percebido a tradução como processo histórico, político
e ideológico, Lefevere (1992) e Toury (1995) restringiram seus estudos à tradução
interlinguística.
Jakobson (1995) é o autor que amplia este conceito ao apontar três
formas distintas de interpretar os signos verbais, ou seja, três maneiras de traduzir:
1) A Tradução Intralingual ou reformulação (“rewording”) consiste na
interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma
língua.
2) A Tradução Interlingual ou tradução propriamente dita consiste na
Interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua.
3) A Tradução Intersemiótica (ou transmutação) consiste na interpretação
dos signos verbais por meio de sistemas de signos não
verbais.(JAKOBSON, 1995., p. 64-65).
Considerar como parâmetro da linguagem o fato de ela ser composta de
17
fonemas e morfemas é restringi-la unicamente às manifestações verbais. A
Tradução Intersemiótica, por sua vez, nos incita a repensar os conceitos de
linguagem e tradução. Assim, Sob o viés do conceito de Tradução Intersemiótica de
Jakobson (1995), o filme de Jurandir Oliveira (2004) é concebido como tradução do
romance de Rachel de Queiroz (2004). Na presente análise, destaca-se a
necessidade de conhecer o público-alvo, a cultura de chegada e o mercado
(TOURY, 1995 e LEFEVERE, 1992). São, também, abordados os conceitos de
informação enciclopédica (ECO, 2007), equivalências formal e dinâmica (NIDA,
1993).
A seguir, temos a biografia de Rachel de Queiroz e de Jurandir Oliveira,
traçando a cronologia de acontecimentos na época em que a autora e o tradutor
fizeram a escritura e a tradução de O Quinze. E, temos, também, um breve
mapeamento sobre os gêneros literário e cinematográfico nas ocasiões das
respectivas textualizações da obra.
3.2. O FILME COMO TRADUÇÃO DO LIVRO
Segundo Ray (In NAREMORE, 2000) atualmente, cerca de metade dos
filmes comerciais é baseada em literatura, dando origem às adaptações fílmicas. O
autor destaca que as leituras comparativas depreciativas ocorrem, especialmente,
quando o espectador conhece e aprecia o texto de partida. Isto faz com o que o
espectador traga ao texto fílmico expectativas baseadas na sua própria leitura,
reduzindo o potencial significativo da película como obra independente, ignorando as
particularidades entre as linguagens, as dinâmicas de produção de cada meio,
estabelecendo de antemão o clichê “prefiro o livro ao filme”.
Ray (In NAREMORE, 2000) afirma que para saber o porquê do
relacionamento entre filme e literatura surtir esse efeito, precisa-se analisar os
fatores que influenciaram o desenvolvimento desta relação. Segundo Stam (2005),
alguns desses fatores estão, literalmente, estampados na tela do cinema e nas
páginas dos livros, enquanto outros não estão tão superexpostos. Com relação aos
mais evidentes, Stam (2005) comenta que: 1) algumas traduções fílmicas falham em
constatar o que é subjetivamente apreciado em determinados textos literários; 2)
certas transmutações em textos fílmicos são, simplesmente, melhores do que
18
outras; 3) devido à mudança do meio literário para o meio cinematográfico, alguns
textos de chegada perdem as particularidades que se sobressaem em seus textos
de partida.
Segundo
Bazin
(In
NAREMORE,
2000),
existem
filmes
que,
simplesmente, “usurpam o título do livro” e apresentam uma tradução fílmica de má
qualidade. O autor (In NAREMORE, 2000) usa como justificativa o desequilíbrio de
orçamento e de produção entre as duas obras artísticas. Enquanto o romance, na
maioria das vezes, é escrito por uma só pessoa, o filme é uma obra coletiva e, para
ser feito, ele precisa de roteirista, diretores, atores, cenógrafos, operadores de
câmeras,... e, quanto mais pessoas e maior empenho físico necessário, mais caro e
difícil de ser administrado é o trabalho3.
Dentre as razões invisíveis para a oposição à transmutação de uma obra
literária para as telas, Stam (2005) cita aquelas que abrangem o cinema e a
literatura em uma esfera mais ampla. As razões mencionadas por este autor são: a
hierarquização artística, a suposta rivalidade entre as mídias, o mito da facilidade, a
vulgarização e o parasitismo.
A hierarquização artística é a afirmação de que quanto mais antiga a arte,
mais solidificada e respeitada ela é. Ou seja, como mídia mais recente, o cinema
ainda busca a consolidação como manifestação artística, enquanto a literatura já
está solidificada como tal.
A suposta rivalidade entre as mídias é outro motivo para a resistência à
transmutação de textos literários em textos fílmicos. Existe diversidade entre os
autores: há aqueles que resistem às mídias audiovisuais e optam por estilos de
escrita que são restritos à mídia literária, explorando-a em toda sua abrangência; e
há aqueles que se adaptam à era visual e optam por estilos que não fiquem restritos
às páginas, mas que possam também ir para as telas.
O mito da facilidade (STAM, 2005) é a justificativa de que ao transformar
um romance em filme, a mensagem é amenizada e sintetizada 4para que ela seja
mais bem assimilada pelas massas, ou, até mesmo, para que no texto fílmico haja a
exposição de uma mensagem que ficava subentendida nas entrelinhas do texto
3
Nesse âmbito, Ray (In Naremore, 2000, p. 42) diz que apesar de ser comparado com a literatura, o
cinema tem muito mais em comum com a arquitetura.
4
Bazin (NAREMORE, 2000, p. 19) afirma que o museu também apresenta um sintetismo, uma
facilitação para o acesso a cultura, pois junta diferentes obras, de diferentes lugares e contextos e as
coloca em um só lugar, mas nem por isso ele é criticado como o cinema.
19
literário.
A vulgarização é a contraposição entre a origem aristocrática da literatura
e a procedência popularesca do cinema. Desde seu nascimento, e por um longo
tempo, a literatura era um deleite reservado a poucos, pois o poder da leitura era
exclusivo das classes mais nobres. O cinema, por outro lado, nasceu em feiras e
festivais para entreter as classes menos abastadas. Segundo Bazin (apud
NAREMORE, 2000), esta questão fundamenta-se na compreensão decorrida da
estética kantiana da intangibilidade da obra de arte consistindo na inviolabilidade da
especificidade estética da obra literária pela retextualização fílmica.
O parasitismo, segundo Stam (2005), é a afirmativa de que a retextualização para o
cinema é parasita da literatura. Ray (In NAREMORE, 2000) contrapõe-se afirmando
que isto não é parasitismo, é apropriação. O autor também advoga que a narrativa
cinematográfica apropria-se da narrativa escrita; esta, por sua vez, se apropria da
narrativa oral; a narrativa televisiva apropria-se da narrativa fílmica e assim por
diante.
Grande parte dos leitores lamenta que, no afã de ganhar mercado, o
cinema apele para literatura e termine por produzir uma “adaptação infiel”. Segundo
Stam (In NAREMORE, 2000), isso ocorre, pois, quando o filme falha em capturar
elementos estéticos ou temáticos fundamentais à narrativa, perde o que é chamado
de “essência” ou “espírito” do livro. Ou seja, aquilo que fazia com que o leitor, em
sua experiência particular, se aproximasse da obra literária. Sobre essa, questão
Stam (2005) esclarece5:
Lemos um romance através de nossos desejos, utopias e esperanças
Introjetadas, e, enquanto lemos, fantasiamos nossa própria mise-en-scène
do romance nos nossos palcos particulares mentais. Quando somos
confrontados com a fantasia de outra pessoa [...], sentimos a perda de
nossa própria relação fantasmática com o romance. Assim, a adaptação em
6
si torna-se uma espécie de “objeto ruim” ) (STAM, 2000, p. 54-55).
Segundo Andrew (In NAREMORE, 2000), a questão da fidelidade,
amparada por alguns acadêmicos e críticos literários, provoca uma série de análises
voltadas para a investigação da ”letra” ou/e “essência do texto literário”.
5
Todas as traduções são de nossa autoria.
We read a novel through our introjected desires, hopes, and utopias, and as we read we fashion our
own imaginary mise-em-scène of the novel on the private stages of our minds. When we are
confronted with someone else’s phantasy (…), we feel the loss of our own phantasmatic relation to the
novel, with the result that the adaptation itself becomes a kind of “bad object”. (STAM In NAREMORE,
2000, pp. 54-55).
6
20
Convencionalmente, a fidelidade de adaptação é tratada em relação a
“letra” ou ao “espírito” do texto (...). A letra parece estar ao alcance do
cinema, por poder ser emulada de maneira mecânica. Ela inclui aspectos da
ficção geralmente elaborados em qualquer roteiro cinematográfico: os
personagens e suas inter-relações, as informações geográficas,
sociológicas e culturais que dão o contexto da ficção (...). O esqueleto do
original pode, de certa forma, se tornar o esqueleto do filme.
Mais difícil é a fidelidade ao espírito, ao tom, aos valores, ao imagético e ao
ritmo do original, uma vez que achar os equivalentes estilísticos de um filme
de aspectos intangíveis é o oposto do processo mecânico. (ANDREW In
7
NAREMORE, 2000, p.31
Em contrapartida a esse ponto de vista redutivo da transmutação, Stam
(2005) afirma que ao mudar de mídia, muda-se mecanicamente a narrativa. Bazin
(In NAREMORE, 2000) alerta para não confundir estilo de prosa com idiossincrasias
gramaticais. Andrew (In NAREMORE, 2000) diz que uma noção mais ampla do
processo de transmutação tem muito em comum com a Teoria da Interpretação, já
que em um sentido maior, transmutar um texto literário em texto fílmico é apropriarse do livro e, com interpretações particulares, transformá-lo em filme.
Naremore (2000) afirma que cineastas que usam obras literárias
canônicas como texto de partida, podem produzir filmes de maneira literal ou mudálos radicalmente. O autor distingue esses diretores como autores e auteurs.8 Os
autores são aqueles que têm o texto de partida como significador, se preocupando
em passar a maior parte possível dos elementos textuais para as telas, enquanto os
auteurs são aqueles que apenas se referem ao texto de partida, apresentando sua
interpretação pessoal da obra.
O autor ainda indica que, ao criticar as interpretações particulares da
transmutação de um livro em filme, deve-se ter uma visão extratextual atenta ao
momento histórico-cultural no qual as obras são produzidas. Conforme o autor, as
características extratextuais suscetíveis à análise são: a ideologia predominante, o
7
Fidelity of adaptation In conventionally treated In relation to the “letter” and to the “spirit” of a text
(…). The letter would appear to be within the reach of the cinema, for it can be emulated In
mechanical fashion. It includes aspects of fiction generally elaborated In any film script: the characters
and their Interrelation, the geographical, sociological, and cultural Information providing the fiction’s
context. (…) The skeleton of the original can, more or less thoroughly, become the skeleton of a film.
More difficult is the fidelity to the spirit, to the original’s tone, values, imagery and rhythm, since finding
stylistic equivalents In film for intangibles aspects is the opposite of a mechanical process” (ANDREW
In NAREMORE, 2000, p. 31).
8
Auteur significa uma pessoa que está na origem de algo novo, que é o criador, que desenvolveu,
realizado; iniciador, inventor; pessoa que fez uma ação, que atribuiu a responsabilidade por um ato
impróprio ou nocivo; instigador, agente; Criador de uma obra educativa, literária, artística, etc.
Profissão pessoa para gravação, homem ou mulher de letras, escritor.Trabalho ou conjunto de obras
de um escritor. Fonte: http://o-que-significa.com/auteur-fr/ . Acessado em: 11/10/2012.
21
sistema de divulgação e de produção, os elementos narrativos, a linguagem da
mídia, a atuação dos atores, o orçamento disponível e como estes operam na
indústria cinematográfica. Nesta abordagem, a comparação exclusiva com o texto de
partida deixa de ser foco de julgamento, e o filme passa a ser admirado como um
novo texto cujos elementos devam ser compreendidos em seu novo contexto.
A transmutação de um texto literário em texto fílmico é avaliada aqui de
acordo com a abordagem sugerida por NAREMORE (2000), para quem o resultado
da transmutação fílmica é uma obra independente, crítica e reatualizadora dos
significados do texto de partida. Assim, o que é contemplado não é a hierarquização
entre a literatura e o cinema, e sim uma análise sobre o que foi ampliado, reduzido,
omitido, adicionado e/ou subtraído na transmutação.
Esse tipo de abordagem nos atenta para questões como ideologia
predominante, sistema de divulgação e de produção, elementos narrativos,
linguagem específica do cinema, atuação dos atores e orçamento disponível para a
produção da obra cinematográfica. E, mais adiante, atribui criatividade e liberdade
ao traduzir a linguagem literária para a linguagem fílmica, aspecto que será discutido
mais amplamente no tópico seguinte sob a perspectiva dos Estudos de Tradução.
22
4. LIVRO E PELÍCULA, AS TEXTUALIZAÇÕES DE O QUINZE
Esta seção explora a contextualização de O Quinze como obra literária e
como obra cinematográfica. Assim, ela está dividida em duas partes: na primeira,
são abordados os contextos dos autores, Rachel de Queiroz e de Jurandir Oliveira;
na segunda, são abordados os contextos literário e cinematográfico de quando as
obras foram produzidas.
4.1. A AUTORA E O TRADUTOR
Abrangemos, aqui, a biografia de Rachel de Queiroz e de Jurandir
Oliveira, traçando a cronologia de acontecimentos na época em que a autora e o
tradutor fizeram suas respectivas escrituras de O Quinze.
4.1. 1. RACHEL DE QUEIROZ, OU RITA DE QUELUZ
VEJA: Como é a vida de escritora?
RACHEL DE QUEIROZ: Se for levar essa vida a sério, é bastante chata.
Mas vivo nela toda satisfeita. Não vou a conferências nem a festas literárias.
Gosto mesmo é de cozinhar e de assistir a futebol e boxe. Fico até tarde da
9
noite para assistir a uma luta do Mike Tyson .
Rachel de Queiroz nasceu em 17 de dezembro de 1910, em Fortaleza.
Desde pequena, a filha de Clotilde Franklin Queiroz e Daniel de Queiroz começou a
receber uma intensa formação cultural (FRANCESCHI, 2002). Seu pai largou a
carreira jurídica para ser professor e se encarregou de ensiná-la.
Em julho de 1917, a família se muda para o Rio de Janeiro para escapar
dos horrores da seca que daria nome ao primeiro romance da escritora. Em
novembro do mesmo ano, a família parte outra vez com destino a Belém do Pará,
onde residem por dois anos. Depois, retornam ao Ceará, primeiramente para
Guaramiranga, em seguida, e novamente, para Quixadá. Queiroz volta para
Fortaleza onde é matriculada, como estudante interna, no curso normal no Colégio
Imaculada Conceição. Aos 15 anos, é graduada professora e, por se considerar
9
Entrevista de Rachel de Queiroz para a revista VEJA em 1996, disponível em:
http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/entrevista/arquivo-entrevista-com-a-centenaria-rachel-dequeiroz/. Acessado em: 11/10/2012.
23
autodidata, encerra sua formação acadêmica.
Ela, então, retorna à fazenda dos pais, onde é orientada por sua mãe a
dedicar-se inteiramente à leitura. O hábito constante a estimula a produzir os
primeiros escritos. Aos 16 anos de idade, sob o pseudônimo Rita de Queluz, envia
ao jornal O Ceará uma carta, ironizando o concurso "Rainha dos Estudantes”, que
acaba sendo publicada. Diante do sucesso desta carta, o diretor do jornal e amigo
de seu pai, Júlio Ibiapina, convida-a para colaborar com o veículo.
Eu nasci numa casa de intelectuais, onde todo mundo lia muito. E por isso,
naturalmente, eu comecei a ler também. [...] Quando comecei a escrever
em jornal, aos 16 anos de idade, eu já tinha uma enorme familiaridade com
o universo da literatura. [...] Em casa, todo mundo lia e opinava; eu não era
a exceção que por acaso tinha brotado no jardim, (QUEIROZ, 2002 apud
FRANCESCHI, 2002, p. 22).
Aos dezenove anos de idade, Rachel de Queiroz seguia ordens médicas
de repouso por suspeita de tuberculose no sítio do Pici, perto de Fortaleza. E, ao
relembrar as histórias e a experiência vivida por familiares na seca de 1915, a
enferma dá a luz a seu primeiro romance, já assumindo seu próprio nome.
Uma congestão pulmonar e a suspeita de tuberculoso obrigam Rachel de
Queiroz a submeter-se a um rígido tratamento. “Tinha hora para tudo”,
lembra a escritora. Foi nessa época que decidiu escrever “um livro sobre a
seca” – O Quinze. Enquanto todos dormiam, deitava-se de bruços e, à luz
de lampião, escrevia a lápis, num caderno, o seu romance. (FRANCESCHI,
2002, p.11).
Ela mostra seus escritos aos seus pais, que decidem "emprestar" o
dinheiro para que em agosto de 1928, o livro inédito seja publicado com uma tiragem
de mil exemplares (FRANCESCHI, 2002).
4.1.2. JURANDIR (FERREIRA DE) OLIVEIRA10
“Onde é que vou me meter? Sou um cara que é neto e filho de pedreiro.
11
Mas, como sou meio maluco...”
O terceiro de 11 filhos, Jurandir Ferreira de Oliveira, nasceu em
Catingueira, vilarejo do sertão da Paraíba. O diretor de cinema, ator, cenógrafo,
10
Ainda é muito escassa a literatura disponível sobre Jurandir Oliveira, assim, toda Informação que
reunimos aqui, foi uma coletânea das entrevistas disponíveis nos lInks fornecidos nos sites de
referência.
11
Citação retirada da entrevista de Jurandir Oliveira feita pelo site Terra, disponível em:
http://www.terra.com.br/istoegente/270/reportagens/jurandir_oliveira.htm. Acessado em: 11/10/2012.
24
roteirista e diretor de arte é neto e filho de pedreiros e afirma que, apesar de ter
épocas em que só se alimentava uma vez por dia, não chegou a passar fome.
Aos doze anos de idade, teve seu primeiro momento como ator. Ele
precisou adotar o nome do irmão de catorze anos, Josafá, para que tivesse a idade
mínima necessária para trabalhar na emergência de um programa de auxílio a
famílias castigadas pela seca. Ele afirma que esta experiência com a seca viria a ser
importante para sua estreia na direção de longas-metragens, que seria a
transmutação de O Quinze, de Rachel de Queiroz, em texto fílmico.
Oliveira só começou a frequentar a escola aos 15 anos, quando a família
se mudou para Patos, uma cidade maior na mesorregião do Sertão Paraibano, há
307 km de João Pessoa. Lá, ele teve oportunidade de ir ao cinema e assistir a O
Bárbaro e a Gueixa (1958) de John Huston, com John Wayne. Foi nessa época que
Oliveira declarou ter ficado fascinado pela atuação.
Primeiro, mudou-se para São Paulo e, posteriormente, para o Rio de
Janeiro, onde passou a frequentar a Escola de Teatro Martins Penna. Sua relação
com a atuação em cinema começou em 1978 com o filme A Queda, de Ruy Guerra,
no qual interpretou o personagem Pedro.
O tradutor conheceu Rachel de Queiroz em 1997, quando interpretou o
cabo Lucas em uma montagem de A Beata Maria Egito, peça assinada por Rachel
de Queiroz. Desse encontro nasceu uma amizade que rendeu dois outros trabalhos:
o documentário de média-metragem dirigido por Oliveira, Rachel de Queiroz – Vida
& Obra, e, posteriormente, desenvolveu o processo de roteirização, direção e
atuação no drama delonga-metragem O Quinze. Sobre a última experiência, Oliveira
fala:
Dormia das duas da madrugada até às quatro, cinco. Consegui uma rede,
porque nela eu descanso melhor. Fiquei com muito medo pensava: onde é
que vou me meter? Sou um cara que é neto e filho de pedreiro. Mas, como
12
sou meio maluco...
4.2. PÁGINAS E FRAMES
Incluímos nesta seção um breve mapeamento sobre o contexto dos
gêneros literário e cinematográfico, em que buscamos compreender mais sobre o
12
Citação retirada da entrevista de Jurandir Oliveira feita pelo site Terra, disponível em:
http://www.terra.com.br/istoegente/270/reportagens/jurandir_oliveira.htm. Acessado em: 11/10/2012.
25
público-alvo na época da publicação em que as obras literária e cinematográfica
foram lançadas.
4.2.1. O QUINZE, O ROMANCE
O primeiro romance de Rachel de Queiroz, O Quinze, é batizado em
referência ao ano da seca que assolava o Nordeste brasileiro durante o século XX.
Este não foi o primeiro romance a abordar este fator climático ou a região, tampouco
o único. Na verdade, é chamado de “Ciclo dos romances das secas” o movimento
que incorpora as obras literárias que tiveram como cenário o Nordeste do Brasil
durante longos períodos de estiagem, e cujos personagens principais são os
cangaceiros, os retirantes e os beatos (ALMEIDA, 1999).
Segundo Almeida (1999) o ciclo dos romances das secas teve início em
1876 com o romance O sertanejo, de José de Alencar, e durou até os primeiros dez
anos do século XX. Outros livros desse ciclo assinados por autores nordestinos
foram: O cabeleira (1876) e Matuto (1878) de Franklin Távora; Dona Guidinha do
Poço (1892), de Manuel de Oliveira Paiva; A Fome (1890), Os Brilhantes (1895) e O
Paroara (1899), de Rodolfo Teófilo; A Normalista (1893), de Adolfo Caminha; O rei
dos Jagunços (1899), de Manuel Benício; Luzia-Homem (1903), de Domingos
Olímpio; Os cangaceiros (1914), de Carlos Dias Fernandes; e Aves de Arribação
(1914), de Antônio Sales. Fora da região, a publicação de Os Sertões (1902), do
fluminense Euclides da Cunha, influenciou muito para que este tipo de literatura
ganhasse grande notoriedade em âmbito nacional.
Em 1928, com o lançamento de A bagaceira, de José Américo de
Almeida, tem início um movimento literário marcado, principalmente, pelo tom de
denúncia feito às injustiças, aos preconceitos sociais e aos desmandos políticos.
Este movimento literário é denominado geração de 30 a 45. O primeiro romance de
Rachel de Queiroz, O Quinze, faz parte desta geração. Outros romances
importantes que também fazem parte são: São Bernardo, de Graciliano Ramos,
(1934), Bangüê, de José Lins do Rego, (1935), Mar Morto, de Jorge Amado, (1937)
Capitães da Areia, de Jorge Amado, (1938) e Vidas Secas, de Graciliano Ramos,
(1938).
Não só pelo fato de ser mulher, e jovem, que Rachel de Queiroz
26
revolucionaria o mundo literário brasileiro na época do lançamento do seu primeiro
romance. Segundo Arêas (2002), ela também rompeu com as tradições literárias
vigentes pelo próprio modo de narrar:
Sempre senti que às minhas historias faltava essa coisa básica do romance
que é o enredo. Um sistema compacto de narrativa, tal um rio no seu curso.
Comigo é como uma paisagem de lagoas: poça de água aqui, poça de água
ali, tudo salteado, descombinado, sem continuidade – e mormente sem a
força de corrente que o rio tem. Água parada. (ÂREAS apud FRANCESCHI,
2002, p. 97).
Em O Quinze, Rachel de Queiroz criou 21 personagens, que no decorrer
de 26 capítulos (sem títulos, apenas números) se entrecruzam (ou não). A autora
utilizou uma linguagem simples, fácil e coloquial para narrar, em terceira pessoa, a
história que se dividia em dois núcleos principais. Um é o aristocrático e o outro é o
de família de retirantes. Essa divisão em núcleo pode ter sido feita para que
pudéssemos saber sobre a experiência dessa grande seca em duas perspectivas
socioeconômicas distintas.
Quanto ao público-alvo da obra, Rachel de Queiroz declara que nos
jornais cearenses as críticas publicadas foram reticentes, pois não estavam
acostumados como uma escritora, acreditando, inclusive, que quem escrevia era um
homem sob um pseudônimo feminino. O livro que, em 1930, recebeu o Prêmio da
Fundação Graça, só foi reconhecido em Fortaleza depois de ter tido grande
repercussão no Rio de Janeiro, então capital do país, e em São Paulo.
O Quinze foi publicado em agosto de 1930. Não fez grande sucesso quando
saiu em Fortaleza. Escreveram até um artigo falando que o livro era
impresso em papel inferior. Outro sujeito escreveu afirmando que o livro não
era meu, mas do meu ilustre pai, Daniel de Queiroz. Isso tudo me deixava
muito ressabiada. Morava então no Ceará o jornalista carioca Renato Viana,
que me deu os endereços das pessoas no Rio de janeiro, uma lista de
jornalistas e críticos para os quais eu devia mandar o livrinho. O mestre
Antônio Sales, que adorou o livro, também me deu outra lista. Então me
chegou uma carta do meu amigo Hyder Corrêa Lima, que morava no Rio,
convivia com Nazareth Prado e a roda de Graça Aranha. Hyder mostrava na
carta o maior alvoroço e contava o entusiasmo de Graça Aranha por O
Quinze. Depois veio uma carta autografada do próprio Graça, realmente
muito entusiasmado. Em seguida começaram a chegar a críticas, de
augusto Frederico Schmidt (no Novidades Literárias), do escritor Artur Mota,
em São Paulo; foram pipocando notas e artigos, tudo muito amimador. No
Ceara, não. Não me lembro de nenhuma repercussão. Depois, quando a
coisa virou, é que o livro começou a pagar por lá. (QUEIROZ, 1998, p.31).
4.2.2 . O QUINZE, O FILME
27
Letícia Menescal (afilhada de Rachel de Queiroz e produtora) pediu para
Jurandir Oliveira roteirizar o segundo romance de Rachel de Queiroz, João Miguel.
Mas, ao saber desta intenção, a autora interveio e disse que ele roteirizasse o seu
primeiro livro, O Quinze, pois já haviam existido três tentativas sem sucesso de
transmutação cinematográfica desse romance13.
O Quinze, até então, só possuía tentativas de tradução sem sucesso, o
mesmo não ocorreu com outros romances nordestinos pertences à geração de 30 a
45. Alguns exemplos destas transmutações são: Vidas Secas (1963) de Nelson
Pereira dos Santos, baseado no romance homônimo de Graciliano Ramos (1938); e
Menino de Engenho, (1965) de Walter Lima Júnior, baseado na obra de José Lins do
Rego (1932).
Além da obra literária O Quinze como texto base, das transtextualizações
fílmicas como apoio, e do suporte da produtora, Letícia Menescal, Jurandir Oliveira
contou, também, com a ajuda da própria autora do texto base enquanto ele escrevia
o roteiro. Oliveira relata ter tido muita dificuldade em traduzir a obra literária, até que
Rachel de Queiroz o incentivou a colocar-se na obra, visto que sua origem é muito
parecida com a dos personagens:
Foi muito difícil fazer a adaptação. Cada vez que eu lia o romance, mais eu
ficava preocupado com o roteiro porque eu não queria fugir daquela
realidade. Eu queria ser fiel à obra da Rachel, devido a sua importância. À
primeira vista é um livrinho de 157 páginas, pequeno, mas é um livrinho
muito grande e importante. E é muito difícil ser fiel a uma obra porque você
começa a imaginar imagens que, na forma escrita são de um jeito e quando
você a pensa para o cinema ela será de outro bem diferente. A única forma
que encontrei para tentar aproximar esses dois tipos de imagem foi através
de um documentário. Comecei a trabalhar dessa maneira, imaginando um
misto de ficção com documentário e usando também minhas memórias,
coisas que vivi e presenciei no sertão da Paraíba. Claro que com permissão
da Rachel, que autorizou que eu trouxesse para o roteiro minas
lembranças. Rachel era filha de um juiz, conhecia bem toda aquela vida e
eu era filho de um pedreiro, agricultor do sertão, que conhecia tão bem
quanto ela aquela realidade. Algumas coisas daquele sertão, da vivência,
da dureza, eu já tinha passado. Ela era uma mulher muito Inteligente que
tinha uma ótima percepção. Ela me deu liberdade para me colocar no
roteiro de O Quinze. Apesar de cansativo, foi prazeroso, pois coloquei
termos e situações que eram segundo a minha visão e a minha experiência
14
de sertão .
Para a produção da obra cinematográfica, o orçamento de O Quinze
13
Entrevista disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=uiTcXaQ-hUM . Acessado em:
07/03/2013.
14
OLIVEIRA,
Jurandir,
na
entrevista
disponível
em:
http://www.diversaocerta.com.br/v5/?dInamico/8//510 . Acessado em: 11/10/2012.
28
contou com contribuições do SESC Mineiro de Grussai, da Prefeitura de São João
da Barra e da ONU, levantando R$ 1.200.000,00, orçamento modesto para a
empresa cinematográfica.
Quanto à recepção, O Quinze ganhou as seguintes premiações: o Kikito
de Ouro de Melhor Edição, no Festival de Gramado de 2004; Melhor Ator (Jurandir
Oliveira), Melhor Atriz (Sônia Lira), Prêmio Especial Longa-Metragem de Crítica e de
Melhor Produção em Longa-Metragem - Associação dos Produtores e Cineastas do
Norte e Nordeste, no XIV Cine Ceará; e os prêmios de Melhor Diretor, Melhor Som e
Melhor Edição, no Festicine Goiânia de 2005. Na próxima e última seção desse
trabalho, traremos a análise das textualizações literária e cinematográfica.
29
5. O ROMANCE O QUINZE E A SUA TRADUÇÃO AUDIOVISUAL
Esta seção tem por objetivo discutir as estratégias utilizadas por Jurandir
Oliveira para transmutar o romance O Quinze de Rachel de Queiroz em texto fílmico.
Esta análise está dividida em duas partes: na primeira, encontra-se a decomposição
dos aspectos tempo e espaço presentes nas obras; na segunda, temos a análise
das características físicas e subjetivas das seis personagens principais: Conceição,
Dona Inácia, Cordulina, Mocinha, Vicente e Chico Bento. Em ambas as partes,
procura-se destacar as semelhanças e as especificidades de cada obra,
identificando as eventuais transformações do texto de partida tais como alterações,
amplificações, reduções, adições, omissões, eliminações, mudanças de fala e
atualizações.
Haverá, também, a tentativa de justificar tais mudanças de acordo com as
perspectivas de: Naremore (2000) sobre ideologia predominante, sistema de
divulgação e de produção, elementos narrativos, linguagem específica do cinema,
atuação dos atores e orçamento disponível; Nida (1993) sobre o conceito de
equivalência dinâmica; e Lefevere (1992) sobre o que remete ao redimensionamento
da obra, ao status da obra a ser traduzida, a autoimagem da cultura para a qual a
tradução do texto é concretizada, o público-alvo e as manifestações culturais com as
quais o público-alvo esteja predisposto a aceitar.
5.1. O TEMPO E O ESPAÇO
Segundo Andrew (In NAREMORE, 2000) através do levantamento de
registros históricos, fotografias, informações geográficas, sociológicas e culturais, o
cenário descrito na literatura, pode, de certa forma, ser traduzido em linguagem
audiovisual.
No texto literário e na sua tradução homônima em texto fílmico, o tempo e
o espaço são características imprescindíveis. No caso de O Quinze, há a presença
desses elementos já no título. O que veremos a seguir é como Rachel de Queiroz
construiu as palavras que arquitetaram o imagético desse espaço e desta época, e
como Jurandir Oliveira as traduziu em frames.
30
5.1.1. O TEMPO
Apesar do ano de 1915 (aspecto temporal) ser um elemento tão marcante
a ponto de batizar a obra, Queiroz (2004) não justifica o título de seu romance. Por
sua vez, Oliveira (2004) faz duas adições logo no início do filme. Primeiramente,
afirma que o filme é baseado no romance homônimo de Rachel de Queiroz. Em
seguida, expõe o porquê de a obra ser chamada O Quinze.
FIGURA - 1 PRÓLOGO
O romance foi lançado apenas quinze anos depois da seca, na região
onde o advento, que teve repercussão nacional, ocorreu. Essa seca também foi
temática recorrente de dois movimentos literários: os romances do ciclo das secas e
a a Geração de 30 a 45. Logo, a autora debutante não viu a necessidade de tal
explicação. Já Oliveira lançou sua obra 89 anos após a seca de 1915, desse modo,
pode ter achado necessária a contextualização do cenário para o público-alvo
nacional e internacional.15
Rachel de Queiroz fez a marcação do ano dessa grande seca através dos
15
O título do romance foi traduzido para o inglês como The great Drought , sem referência direta ao
ano de 1915 no título. O filme também possui o título The great Drought em inglês e possui legenda
nessa língua.
31
calendários católico e letivo. Como dito anteriormente, a narrativa é divida em dois
cernes principais, assim, analisaremos como decorreu o ano da seca para o grupo
de fazendeiros abastados e para os retirantes.
A narrativa do romance se inicia nos primeiros meses do ano, em
Logradouro, com Dona Inácia fazendo orações para que chovesse, e, ao sair do
quarto, foi indagada pela neta Conceição:
- E nem chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por você
fazer tanta novena...
Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes:
- tenho fé em São José que ainda chove! Tem-se visto inverno começar
até em abril.
(QUEIROZ, 2004, p.11) .
No filme, há outra alteração: ao invés de começar com as orações de
Dona Inácia, já em sua primeira imagem, aparece, em plano aberto, a lua solitária no
céu, sem nuvens e sem estrelas, marcando a falta de chuvas. Essa alteração talvez
tenha ocorrido para que houvesse o posicionamento do telespectador sobre o
aspecto visual da sequidão da região.
FIGURA 2 – LUA SEM LAGOA
A primeira contextualização temporal no filme, ocorre na varanda, quando
Dona Inácia vai ao encontro de sua neta, Conceição, que está deitada na rede
lendo, e fala para ela: “Tenho fé, tenho fé no divino São José e na Nossa Senhora
da Aparecida que ainda chove. Afinal, já vi inverno começar até em abril”.
32
FIGURA 3 - “JÁ VI INVERNO COMEÇAR ATÉ EM ABRIL”
Outro indicativo que ainda são os primeiros meses do ano, é que, tanto no
livro como no filme, ao fazer uma visita para buscar carrapaticida, Vicente fica
surpreso ao ver que Conceição continua em Logradouro, visto que ela, por ser
professora, deveria ter voltado ao trabalho, pois o ano letivo teria supostamente
iniciado.
- Ainda aqui? Eu já fazia você na cidade! Ela explicava:
- Pedi licença de um mês, para ver se Mãe Nácia, quando se desenganar
do inverno, vai comigo.
(QUEIROZ, 2004, p.18).
Os próximos meses a serem citados no romance são setembro, outubro e
novembro. Esses três meses foram citados devido ao calor e a fé:
Setembro já se acabara com seu rude calor e sua aflita miséria; e outubro
chegou, com São Francisco e sua procissão sem fim, composta quase toda
de retirantes, que arrastavam as pernas descarnadas, os ventres imensos,
os farrapos imundos, atrás do pálio rico do bispo, e da longa teoria de frades
a entoarem em belas vozes a canção em louvor do santo:
Cheio de amor, cheio de
amor! As chagas trazes
Do Redentor!
E no andor, hirto, com as mãos laivadas de roxo, os pés chagados
aparecendo sob o burel, São Francisco passeou por toda a cidade, com os
olhos de louça fitos no céu, sem parecer cuidar da infinita miséria que o
cercava e implorava sua graça, sem nem ao menos ensaiar um gesto de
bênção, porque suas mãos, onde os pregos de Nosso Senhor deixaram a
marca, ocupavam-se em segurar um crucifixo preto e um grande ramo de
rosas. E novembro entrou, mais seco e mais miserável, afiando mais fina,
talvez por ser o mês de finados, a imensa foice da morte. (QUEIROZ, 2004,
p.129).
33
Dezembro é o mês em que as chuvas retornam, e Rachel de Queiroz
(2004) aludiu a ele da seguinte maneira:
Enfim caiu a primeira chuva de dezembro. Dona Inácia, agarrada ao rosário,
de mãos postas, suplicava a todos os santos que aquilo fosse “um bom
começo”. Conceição, comovida, pálida, de lábios apertados, a testa
encostada ao vidro da janela, acompanhava a queda da água no
calçamento empoeirado, o lento gotejar das biqueiras e de um jacaré da
casa defronte, que deixava escorrer pequenos riachos por entre os dentes
de zinco. Na solenidade do momento, ninguém se movia nem falava. Só a
Maria, a preta velha da cozinha, irrompeu pelo corredor, acocorou-se a um
canto e engulhando lágrimas e mastigando rezas, resmungava: - O inverno!
Senhor São José, o inverno! Benza a Deus! (QUEIROZ, 2004, p.139).
Apesar de o filme ter um prólogo que posiciona o ano da seca, não houve
marcação da passagem desse tempo. Jurandir Oliveira não utilizou legendas,
calendários no cenário, narração em off, diálogos ou qualquer coisa que situasse o
telespectador sobre o decorrer dos meses. Com relação a este fato, temos a
afirmação de Lefevere (1992) de que a tradução pode ser redimensionada, e um dos
fatores para tal são as manifestações culturais com as quais o público-alvo esteja
acostumado. A narrativa literária é mais lenta e detalhada que a narrativa
cinematográfica, e talvez, o detalhamento minucioso da passagem dos meses
tornasse a narrativa cinematográfica entediante.
Percebe-se, também, no filme, uma urgência maior no andamento da
narrativa do que no livro. Por exemplo, através da seguinte passagem, levando em
consideração o ofício de Conceição (as aulas retornariam em fevereiro), concluímos
que passou-se mais de um mês até o retorno de Dona Inácia a Logradouro:
Desde as primeiras chuvas, Dona Inácia iniciou seus preparativos de
viagem. Desejava ir embora o mais depressa possível. (...) E numa
madrugada de terça-feira, chuvosa, escura, a moça acompanhou ao trem a
avó, que não cessava de dizer:
- Minha filhinha eu vou ter tanta saudade de você! Por que não vai comigo?
As aulas só reabrem no dia 15”
(QUEIROZ, 2004, p.145).
Já no filme, parece ser na mesma semana que as chuvas retornam, pois
Dona Inácia fala: “Amanhã mesmo irei até estação saber notícias de Logradouro. Se
estiver chovendo por lá, volto logo!”. Na cena seguinte, Dona Inácia parte de trem.
Outra mudança na velocidade da narrativa da tradução é a respeito do
desfecho dos personagens do núcleo de fazendeiros abastados. Sobre o transcorrer
do tempo para este epílogo, Queiroz (2004, p.153) expõe: “Um ano... dois anos...
três anos...”. E podemos notar que era o mês de dezembro pelo seguinte trecho:
Já fazia tempo que não havia, em Quixadá, quermesse de Natal tão
34
animada. O povo se apinhava na avenida, o dinheiro circulava alegremente,
as lâmpadas de carbureto espargiam sobre o burburinho focos de luz muito
branca, que tornava baça e triste a cara afilada da lua crescente.
(QUEIROZ, 2004, p. 153-154).
No texto fílmico ocorreram duas alterações: 1) o tempo foi mais curto, na
tela aparece escrito “Dois anos depois”; 2) Pelos fogos de artifício e pelas bandeiras
de São João, podemos presumir que a quermesse comemorada é a das festas
juninas.
FIGURA 4 - QUERMESSE
Naremore (2000) afirma que certas traduções fílmicas de obras literárias
fazem algumas mudanças de acordo com a ideologia predominante da época, logo,
pode-se presumir que foi feita esta mudança devido ao relacionamento da ideia de
festas juninas como algo típico da região Nordeste.
Tanto no romance quanto no filme, a saga da família de Chico Bento começa
quando o sobrinho de Dona Maroca (a patroa de Chico Bento e dona da fazenda
Aroeiras), através de uma carta, dá o prazo de estadia até o dia de São José 16a
Chico Bento e sua família:
16
São José é considerado padroeiro do povo cearense, e, de acordo com a cultura popular
nordestina, o seu dia (19 de março) juntamente com o dia de Santa Luzia (festejada no dia 13 de
dezembro) e São Sebastião (20 de janeiro), devem ser celebrados por meio de orações, missas,
novenas e festas, pois eles são a trilogia dos santos que intercedem junto a Deus para mandar chuva.
Disponível em: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1116775. Acessado em:
11/10/2012
35
Minha tia resolveu que não chovendo até o dia de São José, você abra as
porteiras e solte o gado. É melhor sofrer logo o prejuízo do que andar
gastando dinheiro à toa em rama e caroço, pra não ter resultado Você pode
tomar um rumo ou, se quiser, fique nas Aroeiras, mas sem serviço da
fazenda. Sem mais, do compadre amigo.... (QUEIROZ, 2004, p.25).
Sabe-se que, no romance, Chico Bento passou mais tempo que o prazo
estabelecido pela patroa para decidir a partida, pois quando ele foi trocar algumas
cabeças de gado a fim de ter algum dinheiro para a viagem, ele vai ao encontro de
seu amigo e compadre, Vicente, e tem o seguinte diálogo:
- Então sempre é verdade que você vai-se embora? O caboclo alongou
tristemente a voz lamentosa:
- Inhor sim... A dona mandou soltar o gado... Hoje mesmo abri as porteiras...
- E, pelo o que ouvi dizer, você ainda esperou uma semana... Hoje é 25...
- Me esperantei que inda chovesse depois do São José... Mas qual!
(QUEIROZ, 2004, p.28).
No filme, Vicente e Chico Bento dialogam sobre a partida, mas não
comentam da espera, dando a impressão de que ele e a sua família partirão no
próprio dia de São José.
No romance, o grupo de retirantes era formado por dois animais (RompeTrilho, o cachorro, e uma burra de carga) e por oito pessoas: Chico Bento, Cordulina,
Mocinha, Pedro, Josias, Duquinha e outros dois filhos (cujos nomes não foram
citados no romance), como vemos no trecho a seguir:
Mas foi em vão que Chico Bento contou ao homem das passagens a sua
necessidade de se transportar a Fortaleza com a família. Só ele, a mulher, a
cunhada e cinco filhos pequenos. O homem não atendia. (QUEIROZ, 2004,
p.34).
No filme, há outra redução: só viajavam sete pessoas e os dois animais,
um dos filhos sem nome não foi incluído. Esta diminuição talvez tenha ocorrido pela
falta de elenco competente disponível, uma vez que Oliveira mencionou em uma
entrevista17 que os garotos que interpretaram os filhos de Chico Bento e Cordulina
eram garotos da própria região do Quixadá.
17
Disponível em: http://www.diversaocerta.com.br/v5/?dinamico/8//510 . Acessado em: 11/10/2012
36
FIGURA 5 - A FAMÍLIA DE CHICO BENTO PARTE
Queiroz (2004) não fala ao certo sobre quanto durou a caminhada de
Chico Bento e sua família de Aroeiras (perto de Quixadá) até Fortaleza 18, mas
podemos acompanhar o decorrer da saga pelas noites em que a família arrancha,
pela fome que se agrava, pelos membros que o grupo vai perdendo durante o
percurso e pelas posses que vão sendo trocadas por pouca comida.
Assim, outra alteração é percebida, ela está na representação do cansaço
e da fome do grupo no percorrer da caminhada. Enquanto no romance de Rachel de
Queiroz os personagens são descritos como ficando mais magros e mais queimados
pelo sol da caminhada, no filme, o castigo da caminhada é notado pelas roupas que
vão ficando remendadas, pela sujeira dos personagens e pelo som da lamúria da
reclamação de cansaço e de fome. Supõe-se que a alteração feita aqui é por uma
questão de tempo e orçamento disponíveis para fazer o filme, e não por uma
adaptação ao novo meio e/ou época.
Também não se sabe ao certo quantos dias Chico Bento, Cordulina e o
único filho que permaneceu com eles (no filme há redução, apenas um dos sem
nome está com eles, no romance são dois) ficaram no Campo de Concentração.
Mas, a partida deles para São Paulo acontece dois dias após Conceição ter
conseguido as passagens no vapor.
18
De Quixadá até Fortaleza, através da CE-060, são 187 km. A CE-060 tambem é chamada de
estrada do algodão, pois, em meados dos anos 1800, era a estrada pela qual transportava-se
algodão para a cidade de Fortaleza.
37
- Você já sabe, Sinhá Aninha, que nós vamos todos para São Paulo?
- Meu Deus! E quando?
(...)
- Quando, Chico?
- Depois de amanhã. (QUEIROZ, 2004, p. 117).
No filme, mais uma vez, esse tempo é omitido. O motivo dessa omissão
talvez seja porque não há a personagem Sinhá Aninha.
5.1.2. O ESPAÇO FÍSICO
A trama de O Quinze ocorre em dois cenários principais: o sertanejo, que
abrange a região do Quixadá, e o urbano, situado na cidade de Fortaleza. Na região
do Quixadá localizam-se as fazendas de Logradouro (de Dona Inácia), Aroeiras (da
patroa de Chico Bento) e do Major (pai de Vicente). Em Fortaleza, temos a casa de
Conceição e Campo de Concentração19.
O longa-metragem recriou os cenários utilizando as seguintes locações: a
região de Quixadá, onde foram filmadas as cenas do sertão; Campos dos
Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, onde foram rodadas as sequências do
trem; e Grussaí, no município de São João da Barra, também no estado do Rio de
Janeiro, onde estão localizados os casarões.
A representação desses espaços físicos e da caatinga 20 é muito
importante, pois situa o receptor sobre o que ocorreu no Nordeste brasileiro em
1915. Também, a maior parte da narrativa gira ao redor da relação dos personagens
principais com estes espaços e com fator climático que os acomete. É a luta pela
resistência nestes espaços ou a busca pela sobrevivência fora deles que fez com
que os personagens destas obras desestruturassem suas vidas.
19
A professora Kênia Sousa Rios, do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará
(UFC), conta que Campo de Concentração é o espaço cujo objetivo era poupar as elites da capital
cearense do incômodo convívio com retirantes sem trabalho, famintos e doentes, que para lá iam em
busca de meios de sobrevivência sempre que a estiagem se prolongava. Segundo a professora, o
sanitarista Rodolfo Teófilo (1853-1932), grande cronista da seca, relatou que em 1877 cerca de 110
mil sertanejos deixaram a própria casa com a esperança de vida em Fortaleza. Pelo menos 400,
porém, eram encontrados mortos todo dia nas ruas da cidade. Um deles foi construído em Fortaleza
em 1915, ano marcado por longa estiagem, mencionado no romance O Quinze, de Rachel de
Queiroz. Disponível em: http://www.fatoexpresso.com.br/2011/03/16/campos-de-concentracao-noceara-mais-crueis-que-a-seca/ Acessado em: 11/10/2012
20
A caatinga é uma formação vegetal onde as árvores têm poucas folhas, e a vegetação é composta
de: cactos, espinheiros, pereira, faveleira, baraúna, asoeiro, angico, queixabeira e oiticuo. Típica de
regiões com baixo índice de chuvas e presença de solo seco, ela está presente nas regiões extremo
norte de Minas Gerais e sul dos estados do Maranhão e Piauí, além da região do semiárido
nordestino. Disponível em: http://www.suapesquisa.com/geografia/vegetacao/caatinga.htm Acessado
em: 11/10/2012
38
Uma das descrições de Rachel de Queiroz sobre como era a caatinga na
época, está no trecho a seguir:
Novamente a cavalo no pedrês, Vicente marchava através da estrada
vermelha e pedregosa, orlada pela galharia negra da caatinga morta. Os
cascos dos animais pareciam tirar fogo dos seixos do caminho. Lagartixas
davam carreirinhas intermitentes por cima das folhas secas no chão que
estacavam como papel queimado. O céu, transparente que doía, vibrava,
tremendo feito uma gaze repuxada. Vicente sentia por toda parte uma
impressão ressequida de calor e aspereza. Verde, na monotonia cinzenta
da paisagem, só algum juazeiro ainda escapou à devastação da rama. Mas
em geral as pobres árvores apareciam lamentáveis, mostrando os cotos dos
galhos como membros amputados e a casca toda raspada em grandes
zonas brancas. E o chão, que em outro tempo a sombra cobria , era uma
confusão desolada de galhos secos, cuja agressividade ainda mais se
acentuava pelos espinhos. (QUEIROZ, 2004, p.17-18).
Para tentar capturar estas paisagens, Jurandir Oliveira e sua equipe
poderiam ter utilizado um plano detalhe
21
para destacar a tensão dos personagens
ou as particularidades como lagartixas, típicas da caatinga, correndo; a sonoplastia é
um bom recurso cinematográfico para reproduzir o som de papel queimado quando
se passa pelas folhas, remetendo ao calor. Contudo, houve uma omissão dos
detalhes; este momento foi captado em grande plano geral22, mostrando, de uma
vez só, a vegetação e Vicente cavalgando em seu cavalo pela estrada de terra. Tal
omissão pode ser compreendida por questões orçamentárias.
Figura 6 - Vicente a cavalo no Pedrês
21
Segundo Nogueira (2010), o plano detalhe é fundamental para a condução da narrativa visual. Ele
é o responsável por tornar evidente este ou aquele objeto em cena. É neste momento também que o
espectador está à mercê do produtor de vídeo, que mostra os detalhes daquilo que lhe convém e
oculta qualquer traço de informação que possa causar uma impressão diferente daquilo que é
pretendido.
22
Segundo Nogueira (2010) grande plano geral (GPG) é o plano mais aberto ou abrangente. Sua
principal característica vem de sua função: passar ao espectador referência geográfica. As imagens
de uma praia, montanha ou deserto, captadas em longas distâncias são bons exemplos de GPG.
39
Outro exemplo de descrição da paisagem se dá quando Vicente voltava
de Fortaleza para Quixadá, e via pela janela do trem a paisagem querida e familiar
de sua terra:
A luz lhes dava gradações estranhas, desde o cinzento metálico, em um
azul cor de céu, e o outro azul de violeta pálido, até ao negro do lodo que
escorria em grandes listas, sumindo-se nas anfractuosidades, num
alinhamento amontoado. Mas o trem ia-se aproximando, perfurando,
penetrando, e à medida que avançava, as montanhas cerradas se
afastavam, como se abrissem o passo ao monstro resfolegante que
chegava. (QUEIROZ, 2004, p.97-98).
No momento desse retorno, o filme não apresenta as pedras
características de Quixadá, lembrando que era possível fazê-lo, visto que a região
fazia parte das locações onde o filme foi rodado. O que foi apresentado, mais uma
vez, foi apenas a vegetação de galharia seca (FIGURA 6). Como demonstrado,
essas mudanças não ocorreram porque o texto cinematográfico não teria condições
técnicas de fazer a tradução dessas imagens do texto fílmico, tampouco devido ao
novo público-alvo, uma vez que o filme também situa o receptor no tempo e no
espaço, mas, talvez, devido ao orçamento relativamente baixo para produções
cinematográficas de longa-metragem, não se teve a disponibilidade desses recursos,
ou pelas escolhas do diretor.
Figura 7 - Paisagem vista do trem
Logradouro é um dos casarões principais do romance, ele pertence a
Dona Inácia e é onde Conceição passa as férias. Sua fachada é descrita da seguinte
maneira: “Quando o rapaz deu de frente com a casa de Logradouro toda branca,
40
trepada num alto vermelho e nu” (QUEIROZ, 2004, p.18); “as redes brancas,
armadas das colunas à parede, com varandas pendentes, ofereciam o seu
aconchego macio” (QUEIROZ, 2004, p.19).
FIGURA 8 - FACHADA LOGRADOURO
Prosseguindo com a narrativa, a autora descreve os espaços internos
(QUEIROZ, 2004, p.11): “na grande mesa de jantar onde se esticava, engomada,
uma toalha de xadrez vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador bordado,
anunciavam a ceia".
FIGURA 9 - HORA DA CEIA
41
Apesar da representação cinematográfica de Logradouro ter sido datada
de 2004, e não em Quixadá, mas em Grussaí, o cenário do filme mostrou bastantes
semelhanças com a fazenda descrita no romance. Com exceção do quarto da neta,
que no romance é descrito como “o quarto que ficava no final do corredor, com uma
janela, uma cama de casal e com tinha uma instante com uns cem livros no máximo”
(QUEIROZ, 2004, p.12), mas é omitido no filme, pelo que se acredita ter sido uma
questão de orçamento.
Apesar da representação cinematográfica de Logradouro ter sido datada
de 2004, e não em Quixadá, mas em Grussaí, o cenário do filme mostrou bastantes
semelhanças com a fazenda descrita no romance. Com exceção do quarto da neta,
que no romance é descrito como “o quarto que ficava no final do corredor, com uma
janela, uma cama de casal e com tinha uma instante com uns cem livros no máximo”
(QUEIROZ, 2004, p.12), mas é omitido no filme, pelo que se acredita ter sido uma
questão de orçamento.
A casa de taipa23, morada de Chico Bento e sua família, é descrita da
seguinte forma no romance: “a velha casa de taipa negrejava ao sol o telhado de
jirau. Na latada, coberta de folhas secas, o cachorro cochilava ao calor do
mormaço”. (QUEIROZ, 2004, p.25).
FIGURA 10 - CASA DE TAIPA
23
A Taipa em Pau-a-Pique’ é um processo milenar de construção. Os portugueses trouxeram-na para
o Brasil, quando só havia as ocas dos índios, e a difundiram de norte a sul do país. Tornou-se assim
uma das manifestações mais tradicionais de nossa arquitetura. A técnica usada para construção de
uma casa de taipa é o barro armado com madeira. Consiste numa estrutura de ripas de madeira ou
bambu, formando um gradeamento, cujos vazios são preenchidos com barro amassado. Disponível
em: http://www.csaarquitetura.com.br/index3.htm. Acessado em: 11/10/2012
42
A casa de Fortaleza é o local no qual Conceição morava e Dona Inácia
ficou hospedada para se refugiar da ressequida Logradouro. Sobre esta residência,
Queiroz (2004, p.64) fala: “Na casinha amarela de três portas, na Rua de São
Bernardo, bem perto da igreja, dona Inácia, do postigo, já a esperava.” Talvez, pela
falta de locação similar e pela representação desta casa não ser primordial para o
entendimento da narrativa, houve uma alteração e esta residência é representada no
filme como sendo branca de portas e janelas azuis:
FIGURA 11 - CASA DE FORTALEZA
Outro espaço físico muito importante na narrativa é o Campo de
Concentração, local onde os refugiados da seca de origem pobre eram alojados ao
chegarem na cidade Fortaleza. Este local é representado no romance com estas
palavras:
Até a miséria tem fantasia e criara ali os gêneros de habitação mais
bizarros. Uns, debaixo dum cajueiro, estirados no chão, quase nus,
conversavam. Outros absolutamente ao tempo, apenas com a vaga de
proteção de uma parede de latas velhas, rodeavam um tocador de viola, um
cego, que cantava melopeia cansada e triste. (QUEIROZ, 2004, p. 63).
No longa-metragem, vemos a representação de algumas poucas
árvores, figurantes magros e de aparência sofrida carregando o que parecem ser
os poucos pertences dos retirantes, tentando se alojar em algum lugar da área.
43
FIGURA 12 - CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
5.3. PERSONAGENS PRINCIPAIS
Em seguida, encontra-se a breve apresentação de seis dos personagens
mais marcantes: Conceição, Dona Inácia, Cordulina, Mocinha, Vicente e Chico
Bento. Mostraremos como eles estão descritos no romance e a análise das
estratégias de transmutação.
5.3.1 CONCEIÇÃO, A (ANTI-)HEROÍNA
Conceição é a moça culta e citadina. Mora em Fortaleza e costuma
passar suas férias em Logradouro, onde foi criada pela avó.
Todos os anos, nas férias da escola, Conceição vinha passar uns meses
com a avó (que a criara desde que lhe morrera a mãe), no Logradouro, a
velha fazenda da família, perto do Quixadá. (QUEIROZ, 2004, p.13)
No romance, ela é a personagem central, a heroína. Ela é a moça que
desobedece às normas e aos preconceitos enraizados na sociedade da época e não
aceita a predestinação ao casamento:
Conceição tinha vinte e dois anos e não falava em casar. As suas poucas
tentativas de namoro tinham-se ido embora com dezoito anos e o tempo de
normalista; dizia alegremente que nascera solteirona. (QUEIROZ, 2004,
p.13).
Mãe Nácia, quando a gente renuncia a certas obrigações, casa, filhos,
família, tem que arranjar outras coisas com que se preocupe... Senão a vida
fica vazia demais... (QUEIROZ, 2004, p.131).
44
- Ora o amor!... Essa história de amor absoluto e incoerente, é muito difícil
de achar... Eu, pelo menos nunca o vi... O que vejo, por aí é um instinto de
aproximação muito obscuro e tímido, a que a gente obedece conforme as
conveniências...Aliás, não falo por mim...Que eu nem esse instinto...tenho a
certeza de que nasci para viver só...(QUEIROZ, 2004, p.156).
Tão pouco se dedicava apenas aos trabalhos domésticos; é professora e,
com a devassidão do flagelo climático, tornou-se voluntária no Campo de
Concentração para trabalhar em prol das vítimas da seca:
Saia de casa às dez horas e findava a aula às duas. Da escola ia para o
Campo de Concentração, auxiliar na entrega dos socorros E só chegava de
tardinha, fatigada, com os olhos doloridos de tanta miséria vista, contando
cenas tristes que também empanavam de água os óculos da avó.
(QUEIROZ, 2004, p.77).
Outra característica que se sobressai na personalidade de Conceição é a
sua intelectualidade cultivada através de leituras e expressada através de suas
opiniões:
Foi à estante. Procurou, bocejando, um livro. Escolheu uns quatro ou cinco,
que pôs na mesa, junto ao farol.
Aqueles livros - uns cem, no máximo - eram velhos companheiros que ela
escolheu ao acaso, par lhes saborear um pedaço aqui, outro além , no
decorrer da noite.
Deitou-se vestida, desapertando a roupa para estar à vontade.
Pegou no primeiro livro que a mão alcançou, fez um monte de travesseiros
ao canto da cama, perto da luz, e , fincando cotovelos nele , abriu à toa o
volume.
(...)
E ao repô-los na mesa, lastimava-se:
-Está muito pobre esta estante! Já sei quase tudo decorado! (QUEIROZ,
2004, p.12).
Chegará até a se arriscar em leituras socialistas, e justamente dessas
leituras é que lhe saíam as piores das tais ideias, estranhas e absurdas à
avó.
Acostumada a pensar por si, a viver isolada, criara para seu uso ideias e
preconceitos próprios, às vezes largos, às vezes ousados, e que pecavam
principalmente pela excessiva marca de casa. (QUEIROZ, 2004, p.14).
- Isso não é romance, Mãe Nácia. Você não tá vendo? É um livro sério, de
estudo...
- De que trata? Você sabe que não entendo francês...
Conceição, ante aquela ouvinte inesperada, tentou fazer uma síntese do
tema da obra, procurando ingenuamente encaminha a avó para suas tais
ideias:
- Trata da questão feminina, da situação da mulher na sociedade, dos
direitos maternais, do problema...
Dona Inácia juntou as mãos, aflita:
E minha filha, para que uma moça precisa saber disso? Você quererá ser
doutora, dar para escrever livros?
Novamente o riso da moça soou:
- Qual o quê, Mãe Nácia! Leio para aprender, para me documentar...
(QUEIROZ, 2004, p.131).
45
Foi sua inteligência e suas ideias fora do comum que cativaram o
vaqueiro Vicente, o primo por quem a afeição é mútua:
Havia de ser quase um sonho ter, por toda a vida aquela carinhosa
inteligência a acompanhava. (QUEIROZ, 2004, p.49).
Só pouco a pouco foi verificando que a prima o fitava com grandes olhos de
admiração e carinho; considerava-o, decerto, um ente novo e à parte; mas à
parte como um animal superior e forte. (QUEIROZ, 2004, p.48).
Mais importante do que a suspeita do relacionamento do primo com uma
empregada dele é, sobretudo, em benefício de sua independência e intelectualidade
que Conceição renuncia à possibilidade de casamento e ao seu amor por seu
Vicente:
Foi então que se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera o
Machado... nem nada do que ela lia. (...) Pensou que, mesmo encanto
poderoso que a sadia fortaleza dele exercia nela, não preencheria a
tremenda largura que os separava. Já agora, o caso de Zefinha lhe parecia
mesquinho e sem importância. Qualquer coisa maior se cavava entre os
dois. (QUEIROZ, 2004, p.84-86).
Embora Conceição não tenha aceitado o papel social de esposa e de
dona de casa, ela tinha o sonho de ser mãe e abraçou essa função ao adotar o filho
de Chico Bento e seu afilhado:
- Chico, a comadre Conceição, hoje, cansou de me pedir o Duquinha. Anda
com um destino de criar uma criança. E se é de ficar com qualquer um,
arranjado por aí, mais vale ficar com este, que é afilhado...
- E o que você disse?
- Que por mim não tinha dúvida. Dependia do pai
(...)
- Que foi que você resolveu Chico?
Sem se voltar, fixando ainda a estrelinha moribunda, ele concordou:
- É... Dê... Se é da gente deixar morrer, pra entregar aos urubus, antes
botar na mãos da madrinha, que ao menos faz o enterro...
Numa das vezes em que foi buscar as sobras de comida que Dona Inácia
lhe guardava, Cordulina levou o Duca, com a camisinha lavada, escanchado
ao quadril, tão triste e tão magro que não tinha para onde descarnar mais, e
petrificadas as feições numa careta de choro, parado e sem voz.
Conceição, vendo-a entrar, gritou alegremente:
- Foi de vez comadre? Agora não leva mais! (QUEIROZ, 2004, p. 107-109).
Conceição toda se desvelava em exageros de maternidade.
E a ao, vendo o cuidado dela e o carinho com que cercava a criança, dizia
às vezes:
- Ah, menina! Quando acaba, você diz que não é boa pra casar! (QUEIROZ,
2004, p. 112).
Outro atributo que se destaca em Conceição é que, apesar dela ter a
nobreza de trabalhar como voluntária no Campo de Concentração por ter compaixão
46
pelas vítimas da seca e ser maternal a ponto de adotar Duquinha, ela também
demonstra aspereza.
Conceição atravessava muito depressa o Campo de Concentração. às
vezes uma voz atalhava:
- Dona, uma esmolinha...
Ela tirava um níquel da bolsa e passava adiante, em passo ligeiro, fugindo
da promiscuidade e do mau cheiro do acampamento. Que custo atravessar
aquele atravancamento de gente imunda, de latas velhas, e trapos sujos!
(QUEIROZ, 2004, p.61).
Conceição é dona de suas opiniões e se mostra voluntariosa até nas
conversas com sua avó e mãe de criação, figura por quem ela tem imenso respeito:
- A Chiquinha me contou também uma coisa engraçada... engraçada, não,
tola...diz que estão falando muito do Vicente com a Josefa do Zé Bernardo...
A avó levantou os olhos:
- Eu já tinha ouvido dizer... tolice de rapaz!
A moça exaltou-se, torcendo nervosamente os cabelos num coque no alto
da cabeça:
- Tolice não senhora! Então Mãe Nácia, acha uma tolice um moço branco
andar se juntando com negras?
Dona Inácia sorriu, conciliadora:
- Mas, minha filha, isso acontece com todos... Homem branco, no sertão –
sempre saem essas histórias... Além disso, não é uma negra, é uma
caboclinha clara...
- Pois eu acho uma falta de vergonha! E o Vicente, todo santinho, é pior que
os outros! A gente é morrendo e aprendendo!
(...)
- Minha filha, a vida é mesmo assim... Desde que o mundo é mundo... Eu
até acho os homens de hoje melhores.
- Pois eu não! Morro e não me acostumo! É lá direito! Olhe, Mãe Nácia, eu
podia gostar de uma pessoa como gostasse, sabendo de uma história
assim, não tinha santo que desse jeito. (QUEIROZ, 2004, p.66-67).
Conceição é a heroína de O Quinze. Sobre a construção de heróis da
literatura, Silva (1983) afirma:
Em dados contextos socioculturais, o escritor cria os seus heróis na
aceitação perfeita daqueles códigos culturais, éticos e ideológicos,
dominantes numa determinada época histórica e numa determinada
sociedade. Ou pelo contrário, transgride os códigos prevalentes numa dada
sociedade aparecendo como um indivíduo em ruptura e conflito com tais
paradigmas, valorizando o que a norma social rejeita e reprime, assumindo
o estatuto de anti-herói quando perspectivado e julgado segundo a ótica dos
códigos sociais maioritariamente prevalecentes. (SILVA, 1983, p.700).
De acordo com Silva (1983), Conceição é então, na verdade, uma anti-heroína, pois
tanto na data do título do livro (1915) quanto no ano em que ele foi publicado em
âmbito nacional (1930), as heroínas dos romances retratavam o modelo de
feminilidade pungente da época, ou seja, elas eram plácidas, virginais, inocentes e
decorosas.
47
A seguir, as características físicas de Conceição: morena, esguia, cabelos
e olhos escuros e dentes claros, como é destacado nos seguintes trechos do
romance: “-Mas você não é moreno como Conceição. Branco leva sol, fica corado;
preto fica cinzento...” (QUEIROZ, 2004, p.19), “Nesse instante, morena e esguia, uma
mão se insinuou por baixo do postigo, procurando o ferrolho.” (QUEIROZ, 2004, p.79)
e “Sentada na espreguiçadeira da sala, Conceição lia com olhos escuros
intensamente absorvidos na brochura de capa berrante.” (QUEIROZ, 2004, p.130).
O pequeno estendeu a mão para o reclame de dentifrício com que a
Conceição marcava o livro. Na gravura, uma moça ria, mostrando os dentes
alvíssimos.
Gravemente Duquinha a fitou, num esforço de compreensão. Depois, riu-se
parecendo reconhecer alguém na figura:
-Ah! A Badinha! Óia a Badinha! (QUEIROZ, 2004, p.132, 133).
No filme, os olhos e cabelos escuros, a pele morena, dentes claros e o corpo
esbelto dos 22 anos de Conceição são representados pela atriz Karina Barum:
FIGURA 13 - CONCEIÇÃO
No
filme,
há
um
crescimento
de
dois
personagens
que
estão
intrinsecamente ligados à Conceição, e o crescimento deles implica na redução da
personalidade opinativa dela.
A Conceição do texto fílmico também recusa o casamento em oposição aos
valores pungentes da época, mas ela não argumenta essa convicção quando
indagada. Há, inclusive, uma passagem que não existe no romance em que ela está
deitada na rede lendo quando sua avó, que está fazendo uma renda, fala: “Não
compreendo como uma moça bonita como você fica enfiada nesses livros o dia
inteiro. Se pelo menos fosse romance de amor... Mulher que não casa fica no
48
caritó24”. Em resposta, Conceição olha complacentemente para avó e fala “Tá vendo o
tamanho da renda, Mão Nácia? Quando cheguei de Fortaleza ainda tava recém
começando”.
Na verdade, a Conceição do texto fílmico não argumenta muito, ela tem a
personalidade mais cândida. Enquanto no romance, além de ler constantemente, ela
expõe sobre o que aprende com os livros, no filme ela só aparece segurando livros,
sem emitir comentários sobre o que leu;,
Outra alteração no caráter da professora é que na obra de Rachel de
Queiroz (2004), o romance entre Conceição e Vicente é praticamente platônico, eles
nunca trocaram um beijo, ele a respeita por ser mais inteligente do que as demais
mulheres que ele conhece, e ela o respeita por seu trabalho árduo na fazenda, mas
eles nunca declaram os sentimentos que nutriam um pelo outro. No filme, a atração é
mais nítida, a professora muda sempre que encontra com o vaqueiro, se tornando
mais meiga ou sensual.
Para dar maior visão do possível relacionamento, há uma cena, que não é
descrita no romance, na qual eles saem de braços dados para admirar o pôr do sol.
FIGURA 14 – PÔR-DO-SOL
O problema que impede a realização do romance entre Conceição e
24
Caritó é a pequena prateleira no alto da parede, ou nicho nas casas de taipa, onde as mulheres
escondem fora do alcance das crianças, o carretel de linha, o pente, o pedaçõ de fumo, o cachimbo.
Vitalina, conforme a popularizou a cantiga, é a solteirona, a môça-velha que se enfeita - bota pó e tira
pó - mas não encontra marido. E assim, a vitalina que ficou no caritó é como quem diz que ficou na
prateleira,
sem
uso,
esquecida,
guardada
intacta.
Disponível
em:
http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/19091959/190959_7.htm . Acessado em: 11/10/2012
49
Vicente na obra de Queiroz (2004) é a superioridade intelectual da moça citadina
sobre o rapaz sertanejo.
E seduzia-o mais que tudo a novidade, o gosto de desconhecido que lhe
traria a conquista de Conceição, sempre considerada superior no meio das
outras, e que se destacava entre elas como um lustro de seda dentro de um
confuso montão de trapos de chita. (QUEIROZ, 2004, p.49).
Na obra de Jurandir Oliveira (2004), não vemos essa diferença, Vicente
parece respeitar apenas a beleza da prima e não sua inteligência, e o primo respeita a
beleza de outras moças, também. Na tradução de Oliveira transparece a volúpia do
vaqueiro como sendo o único motivo do distanciamento de Conceição para com o
primo e ele não parece tão chateado com relação à frieza que ela desenvolveu a
respeito dele.
O instinto maternal que Conceição apresenta no romance é aumentado no
filme. Além de continuar a cena em que ela se agacha para tentar alimentar
Duquinha, quando as chuvas chegam, Conceição pega o afilhado no colo, vai para
onde sua avó está, e o mostra a chuva com todo seu carinho e alegria, instruindo-o:
FIGURA 15 - A CHEGADA DAS CHUVAS
“É o inverno, Duquinha! É o inverno!”. No romance, a madrinha está só,
quieta e pálida e o afilhado não é mencionado durante este momento.
A Conceição de Oliveira (2004) é mais doce, mais maternal, menos
preconceituosa e menos opinativa que a Conceição de Queiroz (2004). Os motivos
50
para tais alterações sejam, talvez, porque o tradutor quis trazer às telas uma mocinha
e não uma anti-heroína, uma releitura para que a personagem central agradasse o
público de uma maneira mais geral.
5.3.2 DONA INÁCIA, A TRADIÇÃO
Dona Inácia é a avó que Conceição tem como mãe, pois foi quem a criou
depois que a mãe verdadeira morreu. Ela é muito religiosa:
Depois de se benzer e de beijar duas vezes a medalhinha de São José,
Dona Inácia concluiu:
”Dignai-vos ouvir nossas súplicas, ó castíssimo esposo da Virgem Maria, e
alcançai o que rogamos. Amém.”
Vendo a avó sair do quarto do santuário, Conceição, que, fazia as tranças
sentada numa rede ao canto da sala, interpelou-a:
- E nem chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por você
fazer tanta novena...
Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes:
- Tenho fé em São José que ainda chove! Tem-se visto inverno começar até
em abril. (QUEIROZ, 2004, p.11).
Muito apegada à sua terra, não teria saído dela, mesmo com a seca
assolando, se sua neta não tivesse insistido copiosamente:
Conceição passou-lhe a mão pelo ombro, ralhando carinhosa:
- Que é isso, Mãe Nácia, ainda chorando? Pois achou pouco toda a noite,a
despedida, a visita à tia Idalina, a viagem na cadeirinha? Os olhos ainda não
cansaram?
O lenço branco, feito uma bola, agitado pela mão tremente da velha,
continuava a friccionar os olhos lacrimosos:
- Deixar tudo assim, morrendo de fome e de seca! Fazia vinte e cinco anos
que eu não saía do Logradouro, a não ser para o Quixadá...
Conceição mal acreditava ter conseguido convencer a avó da necessidade
daquela viagem.
Dona Inácia se apegara a tudo que a pudesse reter no sertão, rabujou,
zangou-se, gritou que faria como quisesse, que não iria, não iria, não iria.
Mas haveria de ficar sozinha na fazenda, durante todo o horror da seca, sem
um filho, sem uma filha, sem ninguém?
Conceição empregou a meiguice, a súplica, o que pôde. Lembrou até a
perspectiva alarmante de um assalto, ali,... naquele fim de mundo, quando a
miséria da seca enlouquecesse as criaturas...
A velha, embora meio vencida, ainda invocou o pretexto de precisar ficar
dirigindo o trato do gado. Suas vacas, seus garrotinhos, careciam dela!
(QUEIROZ, 2004, p.38).
Logo, desde o retorno das chuvas, Dona Inácia anseia voltar a Logradouro
assim que possível:
Desde as primeiras chuvas, dona Inácia iniciou seus preparativos de viagem.
Desejava ir embora o mais depressa possível. Enfim! Voltava ao Logradouro,
ao seu alpendre, à sua almofada, à sua queijaria! (QUEIROZ, 2004, p.144).
Apesar de dar ouvidos à neta, a ponto de concordar em sair de Logradouro,
51
ela não aprova as ideias liberais da moça:
Dona Inácia tomou o volume das mãos da neta e olhou o título:
- E esses livros prestam pra moça ler, Conceição? No meu tempo, moça só
lia romance que o padre mandava... (QUEIROZ, 2004, p.131).
Especialmente quando o assunto é casamento: “Ouvindo isso, a avó
encolhia os ombros e sentenciava que mulher que não casa é um aleijão...”
(QUEIROZ, 2004, p.14).
Sobre suas descrições físicas, sabe-se apenas que ela é uma senhora de
cabelos brancos: “A cabeça branca a pouco e pouco se encostou no dorso de pano
da espreguiçadeira, num sono sossegado”. (QUEIROZ, 2004, p. 77).
Em O Quinze de Jurandir Oliveira (2004), Dona Inácia é interpretada por
Maria Fernanda.
FIGURA 16 - DONA INÁCIA (OU MÃE NÁCIA)
Os aspectos psicológicos de Dona Inácia de Jurandir Oliveira (2004) são
muito similares aos de Dona Inácia de Rachel Queiroz, com exceção de que a Dona
Inácia do filme parece ser mais decidida que a do romance. No filme, por exemplo, é
ela quem decide mandar o gado para Baturité. E, ao retornar a Logradouro e ver o
tapete verde esperança que lhe espera, ela adiciona a seguinte fala que não há no
romance: “Minha gente, de hoje em diante nós vamos recomeçar tudo de
novo”(Oliveira, 2004).
52
Figura 17 - Tapete verde esperança
Esta alteração de personalidade talvez tenha ocorrido para contrabalancear
o caráter da Conceição (OLIVEIRA, 2004) mais delicada que a do romance; ou para
retratar a atitude destemida da força da mulher viúva e idosa que mora no sertão e
cuida da fazenda sozinha.
5.3.3 CORDULINA, A SUBMISSA
Cordulina é a esposa do vaqueiro pobre, Chico Bento, ao lado de quem,
mesmo a contragosto, ela e a família devem caminhar, pois seu destino está atrelado
ao destino do marido.
Cordulina ouvia, e abria o coração àquela esperança; mas correndo os olhos
pelas paredes de taipa, pelo canto onde a redinha remendada o filho
pequenino dormia, novamente sentiu um aperto de saudade, e lastimou-se:
- Mas, Chico, eu tenho tanta pena da minha barraquinha! Onde é que a gente
vai viver, por esse mundão de meu Deus? (QUEIROZ, 2004, p. 31-32).
Sua dependência se agravou ainda mais durante a caminhada, após o
trauma de perder dois filhos: Josias, que comeu mandioca crua, e Pedro, que
desapareceu, partindo, talvez, com boieiros da cachaça: “Cordulina já o esperava
meio inquieta. Desde que o Josias morrera e o Pedrinho fugira, vivia cheia desses
terrores de morte e abandono”(QUEIROZ, 2004, p.107).
A caminhada da região de Quixadá até Fortaleza e a perda de dois filhos
fizeram com que a Cordulina de Queiroz (2004) padecesse não só psicologicamente,
53
mas também fisicamente:
Chico Bento olhou dolorosamente a mulher. O cabelo, em falripas sujas,
como que gasto, acabado, caía, por cima do rosto, envesgando os olhos,
roçando a boca. A pele, empretecida como uma casca, pregueava nos braços
e nos peitos, que o casaco e camisa rasgada descobriam. A saia roída se
apertava na cintura em dobras sórdidas; e se enrolava nos ossos das pernas,
como um pano posto a enxugar se enrolado nas estacas da cerca.
Num súbito contraste, a memória do vaqueiro confusamente começou a
recordar a Cordulina do tempo do casamento. Viu-a de branco, gorda e
alegre, com um ramo de cravos no cabelo oleado e argolas de ouro nas
orelhas...
Depois sua pobre cabeça dolorida entrou a tresvariar; a vista turbou-se como
ideias; confundiu as duas imagens, a real e a evocada, e seus olhos
visionaram uma Cordulina fantástica, magra como a morte, coberta de
grandes panos brancos, pendendo-lhe das orelhas duas argolas de ouro, que
cresciam, cresciam, até atingir o tamanho do sol. (p. 69-70).
A Cordulina de Oliveira (2004) é representada por Soia Lira, que foi
premiada como Melhor Atriz no XIV Cine Ceará.
FIGURA 18 – CORDULINA
Não há mudanças perceptíveis na personagem Cordulina (OLIVEIRA,
2004). Houve uma alteração em retratar o sofrimento mental e físico de Cordulina: sua
simbólica queda ante a cruz. Essa alteração talvez tenha sido utilizada pela falta de
tempo de produção ou orçamento para maquiagem que demonstrasse esse desgaste,
ou por escolha do diretor.
54
FIGURA 19 - CORDULINA PADECE
5.3.4 MOCINHA E O SEXO
No romance de Rachel de Queiroz (2004), indo no caminho oposto da
virtuosa Conceição, temos a personagem Mocinha, irmã de Cordulina, que também
parte na migração para Fortaleza. A autora descreve-a no início da saga como uma
jovem esnobe e vaidosa: “Mocinha, de vestido engomado, também levava sua trouxa
debaixo do braço e na mão, os chinelos vermelhos de ir à missa” (QUEIROZ, 2004,
p.40).
Mas no decorrer da narrativa, devido ao cansaço, o ar altivo desaparece:
Os três dias de caminhada iam humanizando Mocinha. O vestido,
amarrotado, sujo, já não parecia toilette de missa. As chinelas baianas
dormiam no fundo da trouxa, sem mais saracoteios nos dedos da dona. E até
levava escanchado ao quadril o Duquinha, o caçula, que, assombrado com a
burra, chorava e não queria ir na cangalha.
Chico Bento troçava:
- Hein, minha Comadre! Botou o luxo de banda (QUEIROZ, 2004, p.43).
E por causa da fome, vai perdendo seu orgulho: “Faminta, a meninada
avançou; e até Mocinha, sempre mais ou menos calada e indiferente, estendeu a mão
com avidez”. (QUEIROZ, 2004, p.52)
Ela é a primeira da família de retirantes a abandonar a caminhada:
De manhã cedo, Mocinha foi ao Castro, ver se arranjava algum serviço, uma
lavagem de roupa, qualquer coisa que lhe desse para ganhar uns vinténs. (...)
Mocinha chegou animada, a bem dizer risonha:
- Tem lá uma mulher que carece de uma moça móde ajudar na cozinha e
vender na Estação. (QUEIROZ, 2004, p.53-54).
55
Em Castro, Mocinha fica deslumbrada, mas não com o trabalho, e sim com
a atenção masculina e, em especial, com o ir e vir da Estação de trem. Sua falta de
atenção para com o trabalho faz com que Dona Eugênia, sua patroa em Castro, a
demita:
Mocinha deixou a velha Eugenia num domingo ao meio-dia, depois do trem
misto que vinha de baixo; já na rua, com a trouxa na mão, ainda ouvia a
descompostura. (QUEIROZ, 2004, p.74).
Depois de ser demitida por Dona Eugênia, Mocinha consegue emprego
como babá na casa de um bodegueiro:
Com algum custo conseguiu ficar na casa dum bodegueiro da praça para
servir como ama.
Mas seu ímã era a Estação.
Mal um trem apitava, ela corria à calçada, e ficava fitando o formigamento de
gente cheia de nostalgia e de gula, como se estivesse com visgo nos olhos...
(QUEIROZ, 2004, p.-75).
Não sabemos ao certo o que acarretou o fato, mas, quando Dona Inácia
está voltando para Logradouro, encontra Mocinha e fica subtendido que ela tornou-se
prostituta:
- A benção, madrin’ Nácia!
Na plataforma da Estação, uma rapariga magra, suja, esfarrapada – um dos
eternos fantasmas da seca, apertava ao colo um embrulho que vagia e
choramingava baixinho. Dona Inácia não a reconheceu:
- Quem é você?
A rapariga agarrou-se à borda do carro e gemeu tristemente:
- Pois madrin’ Nácia não me conhece! Eu sou a Mocinha, cunhada do Chico
Bento, das Aroeiras... (QUEIROZ, 2004, p.147).
A velha insistia:
- Pense bem, Mocinha. Cuide em viver séria, volte para a sua terra. Tenho
tanta pena de ver uma afilhada minha feita mulher da vida!. (QUEIROZ, 2004,
p.148).
A Mocinha esnobe, paqueradora e vaidosa de Rachel de Queiroz (2004)
vai ser traduzida por Jurandir Oliveira (2004) como uma garota doce, solícita, que é
atraída por trens devido à sua inocência e não por ter uma personalidade atrevida. O
símbolo desta mudança pode estar na substituição do par de chinelos de missa
vermelhos por um xale de flores.
56
FIGURA 20 - MOCINHA
No filme, depois de demitida por Dona Eugênia por demonstrar-se
acessível à simpatia masculina, ela tenta comprar uma passagem para Baturité, mas
um trabalhador da Estação, que ficava observando-a, ofereceu passagem grátis e
colocou-a no vagão de bagagens, onde ele a estupra. No filme, não há o encontro
entre Dona Inácia e Mocinha; no romance, fica subentendido que ela tornou-se
prostituta, então, não se sabe o desfecho de Mocinha.
Acredita-se que esta alteração de personalidade tenha ocorrido para que o
novo público-alvo tenha mais empatia pela personagem, para demonstrar outras
fatalidades, além da fome e da morte, que podem ocorrer em tempo de seca, que
foram omitidas no filme, mas foram comentadas no romance durante a conversa de
Vicente e Dona Inácia quando aquele visitou a tia em Fortaleza.
- Contar o quê? História da seca? Diz que um negro lá pras bandas de
Morada Nova matou um menino, salgou e ficou comendo os pedaços aos
poucos. (...)
Vicente contava agora a história de uma mulher conhecida que endoidecera, quando viu os filhos
morrendo à falta de comida. (QUEIROZ, 2004, pg. 81).
Há também o episódio (também omitido no filme) no qual uma retirante,
que carrega uma criança doente no colo, pede comida a Dona Inácia, na casa da Rua
São Bernardo, e, depois de comer, pede para Dona Inácia olhar o menino enquanto
57
ela vai chamar a mãe dele. Dona Inácia se espanta ao saber que a criança enferma
não é o filho da retirante, e esta explica que a mãe dele empresta-o para que ela
consiga mais esmola, e o menino moribundo morre na sala de Dona Inácia.
(QUEIROZ, 2004, p. 135-139).
4.3.5 VICENTE, O VAQUEIRO QUE FICA
Vicente é filho do Major, um fazendeiro rico. Seus irmãos são Lourdinha (a
mais velha das mulheres), Alice e Paulo (o caçula que é advogado). O Vicente de
Rachel de Queiroz (2004) é o vaqueiro-fazendeiro que vive em pé de igualdade com
seus trabalhadores desde que tinha 15 anos:
Todo o dia a cavalo, trabalhando, alegre e dedicado, Vicente sempre fora
assim, amigo do mato, do sertão, de tudo o que era inculto e rude. Sempre o
conhecera querendo ser vaqueiro como o caboclo desambicioso, apesar do
desgosto que com que com isso sentia a gente dele. (QUEIROZ, 2004, p.21).
Sua rudeza era constantemente rebaixada ao letramento do filho caçula,
Paulo. Mas desde que Paulo casara, passou a dar as costas para sua família, assim,
passaram a reconhecer a fidelidade de Vicente. A admiração cresceu ainda mais
durante o ano de 1915, pelo trabalho sobre-humano que o vaqueiro empregava para
que a fazenda resistisse à seca.
A mãe dele, que sentada no sofá apreciava a dança, vendo-o, enxergou
apenas o contraste deprimente da rudeza do filho com o pracianismo dos
outros, de cabelo empomadado, calças de vinco elegante e camisa fina por
baixo da blusa caseira. (...) A pobre senhora sentiu os olhos cheios de
lágrimas e ficou chorando pelo filho tão bonito, tão forte, que não se
envergonhava da diferença do irmão doutor e teimava em não querer “ ser
gente”...
Passados porém alguns anos, já agora a velha senhora se conformava em
não fazer de Vicente um doutor, e trazia-o ciumentamente pra perto de si, e
mimava-o a tal ponto que fazia as irmãs protestarem:
- Credo! Para mamãe, o Cente é mais mimoso que até mesmo o caçula!
(QUEIROZ, 2004, p.22).
Devido às comparações com o irmão, ele, a princípio, tinha vergonha da
prima Conceição que também era citadina e estudada. Mas, o carinho com que a
professora lhe tratava, e a admiração que ela sentia por ele, fez com que esse
sentimento de vergonha se transformasse em afeição.
Só Conceição, com o brilho de sua graça, alumiava e floria com um encanto
novo a rudeza de sua vida...
De começo, o intimidara. Supôs que o visse com o mesmo olhar de
superioridade meio compassiva usado pelo irmão, quando falava em sua
existência de citadino blasé, e aludia as suas preocupações intelectuais. E no
seu orgulho áspero, como uma porta hostil que se fecha, fechou-se a
qualquer intimidade com a prima, doendo-lhe que ela também o julgasse
incapaz de uma sensação delicada, de um mais alto interesse nesta vida, que
58
não fosse vaquejar ou nadar. (QUEIROZ, 2004 ,p.48).
Por vezes, Vicente pensava em abandonar a vida difícil da fazenda e trilhar
seu próprio caminho junto à prima. Contudo, não tinha coragem de abandonar os pais
que já eram idosos.
No entanto, agora, Conceição estava bem longe. Separava-os a agressiva
miséria de um ano de seca; era preciso lutar tanto, e tanto esperar para ter
qualquer coisa de estável a lhe oferecer! Teve um súbito desejo de emigrar,
de fugir, de viver numa terra melhor, onde a vida fosse mais fácil e os desejos
não custassem sangue.
Mas logo lhe veio a lembrança dos pais, tão velhinhos, que tudo esperavam
dele (...). (QUEIROZ, 2004, p. 49).
Então, ele pensava em ficar com Conceição e trazê-la para o sertão. Mas
ao visitá-la em Fortaleza, encontra a prima fria e distante, o que o deixa
profundamente magoado:
Vicente a ouvia, com o pensamento distante, desagradando-lhe aquele tom
indiferente e didático em que a moça se exprimia.
Gravemente, baixando a cabeça em afirmativa, a avó sublinhava os dizeres
da neta.
E ele foi descobrindo uma Conceição desconhecida e afastada, tão diferente
dele próprio, que, parecia, nunca coisa nenhuma os aproximara. Em vão
procurou naquela moça grave e entendida do mundo, a doce namorada que
dantes pasmava com a sua força, que risonhamente escutava os seus
galanteios, debruçada à janela da casa grande, cheirando o botão de rosa
que ele lhe trouxera.
Quando saiu, ia debaixo dum sentimento de desgosto, vago, mas opressivo.
Por que estava Conceição tão longínqua e distraída?...E ao fim da visita,
quando ela falava sobre o efeito da seca na vida da cidade, pareceu-lhe até
pedante...Tinha na voz e nos modos uma espécie de esperteza espevitada,
características de todas as normalista que conhecia...(p.83-84).
No regresso de Fortaleza, Vicente conhece Mariinha Garcia, moça com
quem suas irmãs querem que ele tenha um relacionamento amoroso. Ao saber das
intenções das irmãs, Vicente conversa com Lourdinha, sua irmã caçula, e expõe seus
sentimentos, relatando a mágoa que Conceição causou e que fez com que ele
desistisse não só da ideia de casar com ela, mas de casar-se com qualquer pessoa:
Fitando-o pensativamente, lamentou no irmão uma dessas penas de amor,
igual às que exaltam os heróis dos seus romances, e viu nele um "grande
industrial" ou um galã de Esrich... Os olhos absortos de Vicente pareciam
traduzir tanta saudade, tanta mágoa! É tão triste a gente "tecer um sonho",
para o ver depois embaraçado ou desfeito! (QUEIROZ, 2004, p.144).
Sobre a descrição das características físicas do vaqueiro Vicente, sabemos
que ele é moreno claro, queimado do sol, jovem, forte e cheio de saúde:
59
Mal começou a dança, entrou Vicente, encourado, vermelho, com o guardapeito encarnado desenhando-lhe o busto forte e as longas perneiras
ajustadas ao relevo poderoso das suas pernas. À Conceição, pareceu que
uma rajada de saúde e de força invadia subitamente a sala, purificando-a do
falsere agudo do gramofone, das reviravoltas estilizadas dos dançarinos.
(QUEIROZ, 2004, p.21).
O homem forte do sertão, de beleza sadia e agreste, tostado de sol,
respirando energia e saúde (QUEIROZ, 2004, p. 46).
No filme, ele é interpretado por Juan Alba.
FIGURA 21 - VICENTE
O Vicente, de Oliveira (2004), apresenta tenacidade, ânimo para o trabalho,
charme, beleza. Ele aparece quase sempre trajando o uniforme de vaqueiro, como se
fosse o herói da seca. Outros elementos dramáticos e simbólicos que fortalecem a
presença de Vicente nas telas são: 1) a acentuação da sensualidade de Conceição,
Mariinha Garcia e Zefinha quando o veem; 2) o paralelismo de suas cenas com as
imagens de Chico Bento, com o provável intuito de servir de contraponto - as
tragédias que Chico Bento passa em sua saga são intercaladas com as virtudes e
atos honrosos praticados por Vicente; 3) a exclusão do irmão caçula da família do
Major, fazendo com que parecesse que Vicente sempre tinha sido motivo de orgulho.
Na tradução de Jurandir Oliveira (2004) não fica claro o porquê de Vicente
ter se distanciado de Conceição, já que ele não questionou o comportamento dela e
60
nem comentou sobre o ocorrido com suas irmãs. Ele, simplesmente, parece
entusiasmado por ter conhecido Mariinha Garcia.
Antes de se decepcionar com a recepção da prima ao visitá-la em
Fortaleza, quando está sozinho, o Vicente do romance pensa em Conceição, e
chega, inclusive, a sonhar com ela:
Quando, mais tarde, Vicente dormia, teve um sonho esquisito:
Conceição, caída por terra, se debatia gemendo.
Ele tentava erguê-la, mas verificava que a moça pesava como o MeninoDeus de São Cristóvão...
E, largando-a subitamente:
- É melhor deixar você aqui, porque tenho que ir embora para São Paulo...
(QUEIROZ, 2004, p.51).
O Vicente do filme não pensa somente em Conceição. Na verdade, ele
parece confuso sobre qual mulher ele deseja. Ele corteja a prima Conceição,
responde aos flertes de Mariinha Garcia e lança olhares para Zefinha. Tanto que, ao
retornar de Fortaleza para sua fazenda, Vicente sonha que recebe a visita das três
moças: Zefinha, Mariinha Garcia e Conceição.
FIGURA 22 - SONHO DE VICENTE – ZEFINHA
61
FIGURA 23 - SONHO DE VICENTE – MARIINHA GARCIA
FIGURA 24 - SONHO DE VICENTE – CONCEIÇÃO
Três anos após a seca, o Vicente, de Queiroz (2004), reencontra a prima
nas comemorações natalinas, e enquanto Vicente e o dentista conversam, Conceição
observa a felicidade de Lourdinha, que agora está casada com o irmão de Mariinha
Garcia:
A seu lado, o moço dentista disse qualquer coisa. Despertando de sua
cisma, Conceição voltou-se:
- O senhor falou?
- Perguntei qual era o motivo de sua abstração...
- Estava pensando que Lourdinha é muito feliz.
- Mas, dona Conceição, a senhora só não tem felicidade igual porque não
quer...
- Quem lhe disse?
- Oh! Tiro minhas conclusões... por mim e pelos outros...
- Mas se eu nunca encontrei ninguém que valesse a pena! (QUEIROZ,
2004, p.155).
Ao ouvir estas palavras, Vicente parte cavalgando, desaparecendo na
62
escuridão da noite sozinho.
No filme (2004), o reencontro ocorre dois anos após o término da seca,
durante a quermesse de Festas Juninas. O diálogo entre Conceição e o Dentista é
similar, mas há a adição do encontro da irmã caçula de Vicente, Alice, com Mariinha
Garcia (FIGURA 26), que, como se estivesse convidando-a para ser madrinha de seu
casamento25, fala: "São João me pediu e São Pedro confirmou que você fosse minha
comadre que Santo Antônio mandou". Deixando a dúvida se Vicente está solteiro ou
tendo um relacionamento com Mariinha.
FIGURA 25 - COMADRES EM SANTO ANTÔNIO
Acredita-se que as alterações na personalidade de Vicente (mostrando-se
mais galanteador), suas aparições constantes encouraçado, trajando a armadura do
sertão, a dúvida se ele terminou ou não celibato e as intercalações de cenas desse
personagem com as de Chico Bento tenham ocorrido para dar um ao personagem um
caráter mais viril de herói do sertão, aquele que fica e luta contra a má sorte, seja
mais heroico que a moça de 23 anos que renuncia ao casamento por conta da
liberdade intelectual.
25
Segundo Rangel (2008), até meados do século XX, a maioria da população de todas as regiões do
Brasil vivia no campo, e as relações familiares eram complementadas pela instituição do compadrio,
que servia para integrar outras pessoas à família, estreitando assim os laços entre vizinhos e entre
patrões e empregados. Nas festas de São João, formavam-se duplas nas quais os laços de comadre/
compadre ou padrinho/madrinha eram feitos, onde era comum versos como os ditos por Mariinha
Garcia serem recitados, indicando que uma estaria entrando na família da outra.
63
5.3.6 CHICO BENTO, O VAQUEIRO QUE PARTE
Chico Bento representa o sertanejo pobre que trabalha cuidando do
rebanho dos outros e é obrigado a partir em busca de sobrevivência. A respeito desse
personagem, sabemos que ele e Vicente são compadres e vizinhos, e fazem o oposto
do que ocorre com o fazendeiro rico e o fazendeiro pobre quando a seca de 1915
devasta.
Vicente fica para lutar ferrenhamente por seu gado e suas terras, Chico
Bento, sem condições de continuar na terra, pois foi destituído de trabalho, é obrigado
a abandonar o seu lugar de origem, com sua família.
Na busca pela sobrevivência, ele parte esperançoso em conseguir
emprego na extração de borracha nos seringais da região Norte, levando consigo a
esposa (Cordulina), a cunhada (Cunhada), cinco filhos (Joias, Pedro, Manoel, dois
cujos nomes não são mencionados), um cachorro (Limpa-Trilho) e uma burra:
Agora, ao Chico Bento, como único recurso, só restava arribar.
Sem legumes, sem serviço, sem meios de nenhuma espécie, não havia ficar
morrendo de fome, enquanto a seca durasse.
Depois, o mundo é grande e no Amazonas sempre há borracha...
(QUEIROZ, 2004, p.31).
Durante sua jornada, ele é acometido por extremo cansaço, sede e fome.
Mas Chico Bento continua com seus princípios morais e de solidariedade, isto fica
evidente quando ele encontra outros retirantes em situação de total miséria:
A generosidade matuta que vem da massa de sangue, e florescia no
altruísmo singelo do vaqueiro, não se perturbou:
- Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não haverá de deixar esses desgraçados
roerem osso podre... (QUEIROZ, 2004, p.45).
Chico Bento reflete sobre a conduta do homem que, diante de todas as
adversidades, inclusive as dores ocasionadas pela morte de um filho e
desaparecimento de outro, não perde a sua dignidade, a compostura, nem a vontade
de trabalhar:
Chico Bento estendeu o olhar faminto para a lata onde o leite subia, branco e
fofo como capucho...
E a mão servil, acostumada à sujeição no trabalho, estendeu-se
maquinalmente num pedido... mas a língua ainda orgulhosa endureceu na
boca e não articulou a palavra humilhante.
A vergonha da atitude nova o cobriu todo; o gesto esboçado se retraiu,
passadas nervosas o afastaram.
Sentiu a cara ardendo e um engasgo angustioso na garganta. (QUEIROZ,
2004, p.54).
64
Por isso, acreditamos que além da morte de Josias e do desaparecimento
de Pedro, a situação de maior desespero, para ele, foi quando matou por engano
uma cabra que tinha dono para aliviar a fome e foi repreendido na frente de seu filho
mais velho pelo dono da cabra, que só lhes deu as vísceras para comerem:
Caindo de joelhos, com os olhos vermelhos e cheios de lagrimas que lhe
escorriam pela face áspera, suplicou, de mãos juntas:
- Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne, um
taquinho ao menos, que dê para fazer um caldo para a mulher mais os
meninos! Foi pra eles que eu matei! Já caíram com a fome...
- Não dou nada! Ladrão! Sem-vergonha! Cabra sem-vergonha! (QUEIROZ,
2004, p.72).
Ao chegar em Fortaleza, ele encontra trabalho no Tauapé para provir
algum alimento para sua família. Mas quando este trabalho fica escasso, ele tem que
colocar em prática o plano de partir do Nordeste com o que restou de sua família.
Apesar de, a princípio, ter tido o sonho de extrair seringa na Amazônia, ao conversar
com sua comadre Conceição, desiste da ideia de ir para o Norte e para o Maranhão e
parte para São Paulo de navio, com Cordulina e com os dois filhos que lhe restaram.
Os seguintes trechos descrevem sua aparência física: “de indolência
desajeitada” (QUEIROZ, 2004, p. 14), “vulto curvado e corcunda” (QUEIROZ, 2004, p.
15), “andar arrastado e trôpego” (QUEIROZ, 2004, p. 63).
No filme O Quinze (OLIVEIRA, 2004), Chico Bento é interpretado pelo
próprio diretor e roteirista, Jurandir Oliveira.
FIGURA 26 - CHICO BENTO
65
Fora o andar trôpego e a postura encurvada que faz com que ele tenha a
aparência de um ponto de interrogação, não há muitas diferenças físicas entre o
Chico Bento de Rachel de Queiroz (2004) e o de Jurandir Oliveira (2004).
Para destacar o sofrimento do retirante, desde o início da narrativa fílmica,
ele é destituído de seu uniforme de couro; e suas cenas de rudeza, sofrimento e
miséria são contrapostas com as cenas de obstinação, entusiasmo pelo o trabalho,
simpatia, beleza e virilidade de Vicente.
66
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O intuito desse estudo foi o de investigar como O Quinze, a obra literária
de Rachel de Queiroz, foi traduzida para o cinema por Jurandir Oliveira, observando
a importância do contexto na criação da obra, averiguando a liberdade que o tradutor
tomou com relação a ser próximo ou não do texto de partida, identificando as
estratégias de tradução escolhidas pelo tradutor.
Sobre a autora e o tradutor, compreendemos que nenhum deles vivenciou
o flagelo da seca do ano de 1915. A autora era muito jovem e encontrava-se
morando no Rio de Janeiro na época da seca. As informações que ela tinha sobre
este ano foram-lhe repassadas a partir dos textos orais. Apesar de Jurandir Oliveira
não ter vivenciado este ano, pois ele não era sequer nascido, sua origem é parecida
com a dos personagens retirantes. Assim, Rachel de Queiroz pediu para que ele, ao
escrever o roteiro, se colocasse na história, que pusesse o ponto de vista dele.
Ambos, a autora e o tradutor, possuem familiaridade com as mídias de
suas respectivas obras: a literatura e o cinema. Rachel de Queiroz nasceu e cresceu
em uma família de intelectuais onde, desde cedo, a leitura e a escritura lhe foram
incentivadas. Jurandir Oliveira veio de uma família mais pobre, mas desde cedo se
interessou pelo mundo cinematográfico, primeiramente como espectador e, depois,
como cenógrafo, ator e diretor.
Ávila (2008) diz que, ao analisar uma tradução, devemos levar em
consideração o tempo e o orçamento que o tradutor teve disponível para realizar a
tarefa. Enquanto a publicação de Rachel de Queiroz foi realizada depois de um ano
da finalização do livro, Jurandir Oliveira levou oito anos para concluir o filme.
Sobre o orçamento, não se sabe a exatidão do valor necessário para que
Rachel de Queiroz publicasse o romance. Mas como o dinheiro foi fornecido pelos
seus pais, sabe-se que, mesmo quando feita a correção monetária, o valor foi
bastante inferior à quantia necessária para a produção de um filme. O filme teve um
orçamento bastante reduzido para os padrões cinematográficos, tendo custado R$
1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais), valor obtido devido ao apoio do
SESC Mineiro de Grussai, da Prefeitura de São João da Barra e da ONU.
Sobre o gênero de cada mídia, tanto o livro quanto o filme poderiam ter
textos paralelos como apoio. O Quinze romance poderia ter como apoio os
romances sobre o Ciclo das Secas e os romances da geração de 30 a 45. Já O
67
Quinze filme tinha as transmutações de algumas obras literárias da geração de 30 a
45 em textos fílmicos para, assim, analisar o que tinha funcionado, ou não, na
estética e na recepção deles.
Com relação ao público-alvo, apesar de nem a obra literária nem a
cinematográfica terem causado um frisson de público na época de seus
lançamentos, tanto o livro quanto o filme foram sucesso de crítica. A particularidade
é que o filme não causou a polêmica do livro, pois este último foi escrito por uma
menina de 19 anos, em 1929, época de predominância absoluta de escritores
masculinos.
As duas obras foram premiadas. O livro O Quinze ganhou o Prêmio da
Fundação Graça Aranha em 1930. O Quinze filme levou as seguintes premiações:
Kikito de Ouro de Melhor Edição, no Festival de Gramado de 2004; Melhor Ator
(Jurandir Oliveira), Melhor Atriz (Sônia Lira), Prêmio Especial Longa-Metragem de
Crítica e de Melhor Produção em Longa-Metragem - Associação dos Produtores e
Cineastas do Norte e Nordeste, no XIV Cine Ceará; Melhor Diretor, Melhor Som e
Melhor Edição, no Festicine Goiânia de 2005.
Com relação à tradução do texto literário para o texto fílmico, observamos
que a simplicidade com que a temática da seca sertaneja é tratada no romance
continua no longa-metragem. Quanto à representação do imaginário do espaço do
Nordeste devastado pela seca, em 1915, Oliveira optou por, antes de tudo,
contextualizar o espectador, criando um prólogo.
Contudo, uma vez contextualizada a época e a região, ele não deixou a
passagem dos meses desse ano tão marcados quanto Queiroz. Outras mudanças
que aparecerem com relação ao tempo, na tradução de Oliveira, estão atreladas ao
espaço temporal corrido para o desfecho da obra. Para Queiroz, este espaço foi de
três anos, enquanto para Oliveira, apenas dois. Oliveira teve mais urgência em dar o
desfecho para os personagens. Dona Inácia apressou sua volta para a fazenda, e o
reencontro final ocorreu em dois anos (no livro são três).
Tal urgência pode remeter à velocidade do texto fílmico em relação ao
texto literário e o costume do público-alvo do filme, que vive em uma época em que
as informações são dissipadas de maneira veloz. Outra alteração interessante sobre
o tempo é a festividade que está ocorrendo no momento do reencontro final. No
romance é Natal, no filme, são as Festas Juninas. Essa mudança ocorreu para a
contextualização do novo público-alvo, uma vez que as festas de julho são,
estereotipicamente, atreladas ao Nordeste.
68
Houve mudança de características em quatro dos seis personagens
destacados nas obras. Os personagens que sofreram mudanças significativas
foram: Conceição, Vicente, Dona Inácia e Mocinha. Conceição é o símbolo da antiheroína dos romances da época de 1930. Esta personagem apresenta-se, no livro,
como a intelectual, batalhadora e livre. Ela é descrita como uma mulher que vive
além de seu tempo. Já no filme, ela é mais dócil e plácida. Ela desiste do seu amor
pelo vaqueiro por ter escutado rumores dele com uma das empregadas de sua
fazenda, mas encontra a completitude ao adotar o afilhado e assumir o papel de
mãe. A alteração nas suas características de anti-heroína faz com que ela vire a
mocinha da nova narrativa. Na medida em que, na narrativa fílmica, Conceição se
torna mais doce e cativante, Dona Inácia é construída mais forte e decidida, a
mulher do sertão que, sozinha, toma conta de suas terras.
Mocinha também passou por mudanças significativas na tradução. No
romance, ela parece ser a cunhada orgulhosa que se destaca dos demais retirantes,
decide ficar em Castro e, encantada com o movimento e com os cortejos dos
homens do local, termina como prostituta. Já no filme, ela é doce e inocente, tanto
que é devido à essa ingenuidade que ela é estuprada por um trabalhador da
Estação, quando este diz que vai lhe deixar ir para Baturité de graça.
A alteração na personalidade de Mocinha é uma tentativa de chamar a
atenção do público-alvo para o fato de que não era apenas contra os adventos
naturais desta grande seca que as pessoas tinham que lutar, mas também contra a
natureza dos próprios seres humanos. No romance, estes episódios são destacados
quando Vicente visita Dona Inácia e a prima em Fortaleza,
contando-lhe os
horrores, e quando uma retirante pede esmolas para Dona Inácia, levando uma
criança moribunda “emprestada”, que falece na sala da casa de Fortaleza.
Na obra de Jurandir Oliveira, a redução na força da personalidade da
personagem Conceição, além de aumentar a força de Dona Inácia, torna Vicente o
herói. O romance apresenta Vicente como um homem celibatário que é atraído pela
inteligência cativante da prima, e quando esta se apresenta fria, isto faz com que ele
desista do amor. O filme traz à luz um Vicente mais viril, charmoso e forte. Vicente
(OLIVEIRA, 2004) é cortejado pelas personagens femininas, tem sonhos eróticos
com elas e, possivelmente, se envolve com a personagem Mariinha Garcia no final
da história.
Chico Bento (representado pelo próprio Jurandir Oliveira) é mais um
personagem que ajuda a construir a nova imagem do vaqueiro Vicente, visto que as
69
imagens de rudeza, sofrimento e dependência de Chico Bento são
contrapostas às cenas de obstinação, entusiasmo para o trabalho, simpatia, beleza e
virilidade de Vicente.
Jurandir Oliveira afirma ter procurado manter uma proximidade literal
entre as obras. Mas, apesar da mistificação ao redor de uma obra canônica literária
e da presença de uma autora consagrada, pode-se concluir que o tradutor, ao
retextualizar o romance em filme, recria. Ele faz alterações desde as mais sutis,
como mudanças de fala, até as alterações da personalidade de personagens
principais, criações de cenas e exclusão total de personagens secundários.
Esta maneira de olhar a transmutação de textos literários em fílmicos
instiga a procurar as escolhas pessoais, as maneiras de ressignificação e
interpretação, a maneira que, ao interpretar, o tradutor transfere sua experiência de
mundo e que, ao traduzir, ele é, também, autor.
70
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FILMOGRAFIA
Título: O Quinze
Ano: 2004
Direção:Jurandir Oliveira
Roteiro:Jurandir Oliveira
Gênero: Drama
Origem: Brasil
Duração: 100 minutos (1 hora e 40 minutos)
Tipo: Longa
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ JANAINA LISBOA