UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO MANOEL MATUSALÉM SOUSA CORDEL GRITO DO OPRIMIDO - uma escola de resistência à Ditadura Militar - Orientador: Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto João Pessoa/PB 2007 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO CORDEL GRITO DO OPRIMIDO - uma escola de resistência à Ditadura Militar - Manoel Matusalém Sousa Tese de Doutorado apresentada junto ao Programa de Pós- Graduação em Educação como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Educação pela Universidade Federal da Paraíba-UFPB. Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto Orientador João Pessoa 2007 2 FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA EDITORA CENTRAL DA UFPB S725g UFPB/BC Sousa. Manoel Matusalém Grito do aprimido no cordel: uma escola de resistência à ditadura militar / Manoel Matusalém Sousa... João Pessoa, 2007. 282 p. Orientador: José Francisco de Melo Neto. Tese (doutorado) - UFPB/CE 1. Educação. 2. Literatura popular. 3. Literatura de cordel. 4. Dialética – Literatura de cordel. CDU 37(043) 3 MANOEL MATUSALÉM SOUSA CORDEL GRITO DO OPRIMIDO - UMA ESCOLA DE RESISTÊNCIA À DITADURA MILITAR – BANCA EXAMINADORA _________________________________________________ Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto Orientador/UFPB _________________________________________________ Profª Drª Edna Gusmão de Góes Brennad 1º Membro/UFPB _________________________________________________ Profª Drª Marinalva Freire da Silva 2º Membro/UEPB _________________________________________________ Profª Drª Maria de Fátima B. Batista 3º Membro/UFPB _________________________________________________ Prof Dr Luciano Barbosa Justino 4º Membro/UEPB Tese aprovada em 26 / 09 / 2007. João Pessoa/PB 2007 4 DEDICATÓRIA Aos poetas populares de Cordel e aos poetas violeiros que gravaram, com sangue a poesia de resistência à Ditadura Militar orquestrada pelo Golpe de 1964 no Brasil. 5 AGRADECIMENTOS Inicialmente, à minha esposa e a aos meus filhos, que sacrificaram muitas horas de carinho e convivência em troca da tolerância e espera enquanto eu estudava: Dalva, Soraya, Mathusael, Sylmara e Vitória. Sou plenamente grato ao meu primeiro orientador Luíz Dias Rodrigues (Luizito) que, mesmo enfermo, nunca negou orientação segura, exigente e competente porque plasmada a convicção profunda de justiça e fraternidade peculiares aos homens de fé e sabedoria. Reconhecimento ao segundo orientador, José Francisco de Melo Neto, que sabendo manter a dialética entre o já iniciado e o que se haveria de fazer, comigo pisou o mesmo chão-da-vida de onde brota a existência sustentada pela luta à procura da síntese: o saber. Aos professores Afonso Scocuglia, Charliton Machado, Eymard Vasconcelos, Edna Brennand, Eulina Carvalho e Jarry Richardson, pela efetiva eficácia docência do dever cumprido e marca impressa em mim que, preservando minha liberdade e identidade, aceitaram-me na mesma comunidade produtora do saber e da ciência que a une na diferença. Ao casal Arnaldo e Teresina Cavalcanti Barreto, companheiros no fazer o saber teológico, pela colaboração incondicional no meu trajeto doutoral. Aos abnegados Osvaldo Valério e Samuel Freire da Silva, pelo trabalho de garimpar as letras cordelinas e dar-lhes feitura técnica de ingresso à academia dos doutos em educação popular. Ao Dr. Luiz Dias Rodrigues, pelo estímulo profissional e intelectual diante das dificuldades existenciais que as superei. Aos doutores Luciano Barbosa Justino, Maria de Fátima B. Batista e Marinalva Freire da Silva, que constituíram, no que lhes competiam, o adro de minha articulação, agradeço a cada um individualmente pelo que me foi favorecido, e a todos, indistintamente, pelo que contribuíram com a ciência. Às instituições de ensino superior FACET, FAEST e Instituto Imaculada Conceição, onde o meu dia-a-dia se faz docência, pelo apoio e reconhecimento. A todos os meus colegas do magistério superior de quem recebi apoio, estímulo e intercâmbio científico-cultural. Aos meus alunos que sempre me sustentam no árduo trabalho de pesquisa e me abriram espaço para saber que com eles somos iguais: amantes do conhecimento. Por último, mas em primeiro lugar a Deus, que nos fez inteligentes capazes de sabedoria! 6 Ninguém pode negar toda beleza Do poema bem feito improvisado Junto ao povo banido, escravizado Sofrimento opressão sem ter firmeza Implorando a todas sua defesa Liberdade, espaço e lisura Que safaste do verso a censura A tortura do vate que o irrita: O POETA SOFRE, GEME E CRITA CONTRA OS CRIMES DA NOVA DITADURA! Este golpe com força determina Expulsando, matando sem parar Até a vida de Vladimir Pomar Atingiu esta draga assassina. Margarida sofreu a mesma sina, Brizola e Arraes outra figura, Paulo Freire a nobre criatura Desta terra expulsou esta maldita: O POETA SOFRE, GEME E GRITA CONTRA OS CRIMES DA NOVA DITADURA! (Oliveira de Panelas, 18/08/1979) . 7 RESUMO CORDEL GRITO DO OPRIMIDO: uma escola de resistência à Ditadura Militar responde a uma questão fundamental dentro do contexto de repressão do período instalado pelo Golpe Militar de 1964 no Brasil, quando as expressões culturais e políticas foram silenciadas e a literatura popular sobreviveu: o discurso popular da Literatura de Cordel é uma resistência à Ditadura Militar entre 1964 a 1984? A preocupação última, que se tornou Tese desenvolveu-se em cinco capítulos mediados pelas categorias opressão, libertação, contradição e resistência, fazendo uso da dialética como instrumento metodológico de leitura das matizes de cordel. O primeiro capítulo contextualiza a Literatura de Cordel, ao lado da poesia-canção da MPB na tensão dialética entre a injustiça (da ditadura) e a libertação (da resistência) de onde emergem os objetos material e formal de pesquisa. O segundo, mapeando o universo da Literatura de Cordel, torna a “palavra” na relação dialética com a existencialidade do poeta para encontrar a resistência e a luta por libertação. O terceiro delimita o objeto de estudo em 17 folhetos que, submetidos à tensão dialética, denominou-se de “cordelteca” sob a Ditadura Militar. O quarto trata do movimento histórico-dialético da poética à tensão histórico-dialética dos opostos em busca da síntese como práxis histórica da resistência da poesia popular. O quinto e último, constitui-se de uma reflexão filosófica da Literatura de Cordel como ato-de-fala, estabelecendo a racionalidade comunicativa, culminando na unidade intersubjetiva entre poetas e leitores que, como escola popular, ensinou a resistir, resistindo à Ditadura Militar sobre a base pressuposta de pretensões de validade de seu discurso: compreensibilidade, verdade, veracidade e justeza para confirmar o hipoteticamente dado. Palavras-chave: Cordel, dialética, contradição, resistência. 8 RESUMÉ Litterature de colportage Crit de l’Oprimé: une école de résistence à la Dictature Militaire répond a une question fondamentalle dans le contexte de la répression dans la période mise en cène par le Coup d’État de 1964 au Brésil, au moment où les expressions culturelles e politiques on été réduites au silence et la literature populaire a surveicu: le discours populaire de la Litterature de Colportage est-il une resistense à la Dictature Militaire entre les années 1964 et 1984? Cet dernière inquietude, qui est dévenue thèse, s’est développé em cinque chapitres par l’intermediaire des catégories : opréssion, libertation, contradiction et résistence, en faisant l’utilisation de la dialétique comme instrument métodologique des lectures des matricielles de la litterature de colportage. Le chapitre permier met en contexte la Littérature de Colportage à côté de la poésie-chanson de la Musique Populaire Brésilienne (MPB), en tension dialétique entre l’injustice (tênue par la dictature) et la liberté (tênue par la résistance), par laquelle ressort les objets materiels et formel de la recherche. Le deuxième chapitre, en regardant l’univers de la Littérature de Colportage transforme les “mots” em relations dialétique avec l’existencialité du poète en trouvant la résistence et la lute pour la libertation. Le troisième chapitre delimite l’objet d’étude em 17 brochures , que soumises à la tension dialétique, se sont dénomées “Bibliothèque de Colportage” pendant la Dictature Militaire. Dans le quatrième chapitre, a un passage du mouvement hitorique-dialétique da la poésie jusqu’à la tension historique-dialétique des côtés opposés et la recherche de la synthèse comme pratique historique de la résistence de la poésie populaire. Le dernier chapitre a été construit par rapport à une réflexion filosofique de la Littérature de Colportage par moyen d’un ATO DE FALA que établie la racionalisation communicative qui amène à l’unité intersubjective entre les poètes et les lecteurs que, aussi bien que l’école populaire, ont enseigné la résistence. Ils ont résisté à la Dictature Militaire ayant comme base une soit disant prétention de validité de son discours: comprehension, vérité, véracité et hônneteté pour pouvoir confirmer les données hypothétiques. Mots – clefs: Littérature de colportage, dialétique, contradiction, résistence 9 RESUMEN CORDEL GRITO DE LO OPRIMIDO: una escuela de resistencia a la Dictadura Militar responde a una cuestión fundamental dentro del contexto de represión del período instalado por el Golpe Militar de 1964 en el Brasil, cuando las expresiones culturales y políticas fueron silenciadas y la literatura popular supervivió: ¿ el discurso popular de la Literatura de Cordel es una resistencia a la Dictadura Militar entre el 1964 al 1984? La preocupación última, que se transformó en Tesis desarrolló en cinco capítulos mediados por las categorías opresión, libertación, contradicción y resistencia, haciendo uso de la dialéctica como instrumento metodológico de lecitura de las matices de cordel. El capítulo primero contextualiza a Literatura de Cordel, al lado de la poesía-canción de la MPB en la tensión diaclética entre la injusticia de la dictadura) y la libertación (de la resistencia) de donde emergen los objetos material formal de investigación . El capítulo segundo, ubicando el universo de la Literatura de Cordel, hace la “palabra” en la relación diaclética con la existencialidad del poeta para encontrar la resistencia y la lucha por libertación. El capítulo tercero delimita el objeto de estudio en 17 folletos que, sometidos a la tensión dialéctica, se denominó cordelteca bajo la Dictadura Militar. En capítulo cuarto se pasa del movimiento histórico diacético de la poética a la tensión histórica dialéctica de los opuestos en búsqueda de la síntesis como práxis histórica de la resistencia de la poesía popular. El capítulo quinto y último se constituye de una reflexión filosófica de la Literatura de Cordel como acto de habla estableciendo la racionalidad comunicativa, culminando en la unidad intersubjetiva entre poetas y lectores que, como escuela popular, enseñó resistir, resistiendo a la Dictadura Militar sobre la base pressupuesta de pretensões de validad de su discurso: comprensibilidad, verdad, veracidad y justeza para confirmar lo hipotéticamente intuido. Palabras claves: Cordel, dialéctica, contradicción, resistencia. 10 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.............................................................................................. 11 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 13 1 - LITERATURA DE CORDEL – UM CONTEXTO.................................... 23 2 - LITERATURA DE CORDEL – UM UNIVERSO..................................... 34 3 - CORDELTECA SOB O REGIME MILITAR .......................................... 3.1 Folhetos de 1964 a 1970 ......................................................................... 3.2 Folhetos de 1971 a 1979 ......................................................................... 3.3 Folhetos de 1980 a 1984 ......................................................................... 79 91 102 113 4 - DIALÉTICA DE LEITURA......................................................................... 4.1 - Cosmovisão............................................................................................. 4.2 - Comportamento...................................................................................... 4.3 - Estratégias............................................................................................... 4.4 - Meios...................................................................................................... 4.5 - Síntese dialética de leitura....................................................................... 4.6 – Indicadores de leitura e expressão significantes .................................... 126 130 156 186 217 241 245 5 - CORDEL: ESCOLA DE RESISTÊNCIA .................................................. 247 CONSIDERAÇÕES............................................................................................. 258 REFERÊNCIAS................................................................................................... 261 CORDÉIS.............................................................................................................. 274 ANEXOS .............................................................................................................. 277 11 APRESENTAÇÃO Ancorado na experiência, quase existencial, com a Literatura de Cordel e com os versos improvisados ao som da viola dos menestréis nordestinos, o autor atingiu a maturidade de suas preocupações produzindo e publicando folhetos rimados, sustentados pelas métricas; tornando-se cantador-violeiro; escrevendo artigos, dos mais simples aos mais complexos; publicando livros; proferindo palestras e ministrando aulas de Literatura de Cordel como componente curricular do Curso de Graduação em Letras da Universidade Estadual da Paraíba. A maturidade, que não prescindiu dos obstáculos transpostos, objetivou-se na sua questão fundamental fundada na sua existência que se pode chamar bipolar: ser poeta popular com o povo e sofrer com os poetas populares os rigores da ditadura militar inaugurada em 1964 no Brasil. A preocupação última desta tese é mostrar se o discurso popular da Literatura de Cordel foi de resistência à ditadura militar entre os anos 1964 e 1984. Para responder a esta questão, o autor desenvolveu quatro capítulos, à espera de um quinto e das considerações finais, mediado pelas categorias opressão, libertação, contradição e resistência, fazendo uso da dialética como instrumento metodológico de leitura das matizes de cordel. O primeiro capítulo contextualiza a Literatura de Cordel, ao lado da poesia-canção, na tensão dialética entre a injustiça (da ditadura) e a libertação (da resistência) da qual emergem os objetos material e formal de sua pesquisa. O segundo, mapeando o universo da Literatura de Cordel, toma a palavra na relação dialética com a existencialidade do poeta, não só o popular mas qualquer poeta, para encontrar a resistência e a luta por libertação. Para tanto, faz uma viagem, com os poetas populares pela poética grega, romana e portuguesa modelando um contexto mais epistêmico 12 que histórico da resistência, no qual situa a Literatura de Cordel como luta, resistência e prática educativa. O terceiro é a delimitação do objeto de pesquisa pela mediação do poema “Se Deus fosse brasileiro”, que pela sua incidência direta no golpe militar de 1964 no Brasil, serviu de paradigma para a relação de 17 folhetos que são apresentados, sob rápida contextualização histórica e epistêmica, serão submetidos à tensão da dialética de leitura (capítulo quarto), o que denominou de “cordelteca” sob a ditadura militar. O ponto alto da tese está no capítulo quarto, dedicado ao movimento históricodialético da poética, como objetivação do espírito absoluto hegeliano, à tensão históricodialética dos opostos do pensamento marxista – componentes autoritários e componentes democráticos – em busca da síntese como práxis histórica da resistência da poesia de Cordel. Este capítulo, sem prescindir da tensão dialética, apresenta o ponto de chegada da preocupação última do autor, qual seja, constatar que o discurso da Literatura de Cordel expressa a resistência ao autoritarismo da ditadura militar no Brasil entre os anos 1964 a 1984. O capítulo seguinte faz uma reflexão filosófica tomando a Literatura de Cordel que, como ato-de-fala, estabelece a racionalidade comunicativa, culminando na unidade intersubjetiva entre poetas populares e leitores e, como escola de resistência, a resistir à ditadura militar, funda-se sobre a base necessária das pretensões de validade do discurso: verdade, veracidade e justeza. As considerações finais evidenciam principalmente, a posição de que a palavra cordelina, como comum-pertencer aos poetas e leitores no mesmo chão-da-vida, emerge como escola-de-resistência à Ditadura Militar instalada com o golpe de 1964. 13 INTRODUÇÃO a) Palavras iniciais Em 1960, já mergulhado na poesia popular, vivendo a experiência de ler folhetos de Cordel, à luz de lamparina, para adultos analfebetos1, o autor deste estudo lia um romance político, de Leandro Gomes de Barros (1909), intitulado “O imposto e a fome”2, que possibilitava seu contato com a abordagem sócio-política na linguagem da gente. Essa era a sua literatura porque os textos da literatura oficial não lhe chegavam às mãos. Nesse ingresso nas letras populares, os folhetos multiplicavam-se pela diversidade de títulos e repetiam-se nas declamações, de modo que, somente dois anos após o golpe militar (1964), o texto era relido para que algo chamasse a atenção: o Cordel refletia e fazia circular sérias questões da política, da economia e da sociedade de modo tão pertinente que decora a primeira página do referido folheto: O imposto disse à fome: - Colega vamos andar Vamos ver pobre gemer E o rico se queixar? A tarde está suculenta, O governo nos sustenta Nós podemos passear. Disse a fome: - eu estou tão triste Que nem sei o que lhe diga Este novo presidente Votes, credo, eu lhe dou figa, Este Hermes da Fonseca Jurou acabar a seca Vae tudo encher a barriga Disse o imposto: - colega, O governo é uma brasa, O imposto onde chega Até o fogo se arraza, Não fica eixo com cunha Não fica gato com unha Não fica um pinto com aza. (BARROS, 1962, p. 1). 1 2 Aos oitos anos de idade, em Caxias no Maranhão, o autor desta pesquisa lia folhetos de Cordel, chamados na época de romances, para um auditório constituído por três famílias vizinhas, no terreiro de uma das residências, para simples deleite, gracejo ou atualização sobre os últimos acontecimentos (folhetos de época), estudo da história universal (Carlos Magno e os Doze pares de França) sobre as guerras mundiais, estadistas (Hitler, Getúlio Vargas), sobre mitologia e o cangaço no Brasil. Os comentários ao final de cada leitura eram empolgantes e formativos. No Cordel se aprendia tudo, nisto todos acreditavam. A edição lida era a de 1962, da Editora de José Bernardo da Silva no Juazeiro do Norte (Ceará). 14 Outro poeta que marcou muito tempo foi Francisco das Chagas Batista, com o folheto “O resultado da Revolução do Recife – O enterro da justiça”, pela abordagem política na visão simples, porém profunda, do poeta popular. A primeira e última estrofes do folheto mostram o que se aprendia: A oligarquia julgava Que com seu orgulho forte Escravisaria o povo Do grande “Leão do Norte” Porém este despotismo A muitos custou a morte. Se algum dia em meu país O voto livre existir Talvez eu ainda vote Naquele que me convir Boa noite. Neste assunto Não desejo me expandir. (BATISTA, 1996, p. 1,32) A compreensão que se plasmava era que a formação do pesquisador recebia mais contribuição do Cordel do que a oferecida pelo componente curricular OSPB (Organização Social e Política do Brasil), implantada no curso ginasial, pela ditadura militar. Nesse processo de educação popular, a Literatura de Cordel aparecia como resistência à dominação como se lia no folheto “A política de Antônio Silvino”, do poeta Chagas Batista (1969): Aqueles que não quizerem Ao governo servir Poderão me procurar Se a política os perseguir Havemos de ver quem tem Coragem de resistir. E essa transformação Traz grandes melhoramentos Todos terão seus direitos De crenças e pensamentos Haverá plena igualdade E eis ahi meus intentos. (p. 16,16) Crescia o fascínio pelo Cordel com o passar do tempo e a sua leitura, como prática das camadas populares, ficava mais instigante na formação duma consciência democrática de resistência ao autoritarismo. Tal consciência podia ser observada por ocasião da vitória de Jânio Quadros para presidência da República nos versos de José Francisco Soares: Toda Nação Brasileira Está coberta de glória Por ver o Dr. Jânio Quadros Com a faixa da vitória Fato este que jamais Se apagará da história Pelo homem da vassoura Jânio ficou conhecido E o povo conheceu Que ele era destemido No dia 3 de outubro Seu nome foi escolhido. (SOUSA, s/d., p. 4) 15 O poeta potiguar, Antônio Francisco Dias, apresenta clara posição política de oposição popular ao regime autoritário no folheto “Aloízio indica para Senador Roberto Furtado e o vereador Antônio Dias”3 (1982): Eleitores está na hora De pensar com atenção Escolha seus candidatos Vote na oposição Pois unidos venceremos E só assim poderemos Acabar com a inflação... (DIAS, 1982, p. 2) A questão política e a resistência ao autoritarismo sempre estiveram presentes na poesia cordelina, além da grande editoração dedicada a Getúlio Vargas, foi em 1985 que se catalogou uma das maiores produções cordelinas sobre a questão política: produção em torno do presidente Tancredo Neves e do movimento das Diretas já4. Nesta produção os poetas discutem questões pertinentes sobre a sociedade e política brasileiras que, se estivessem juntos, daria para se fazer um grande fórum político de cordelistas. Representam este grande universo as seguintes estrofes dos poetas Celestino (1985) e Azulão (s/d.): Eu registrei em cordel Pra vê-lo imortalizado o cordel imortaliza porque é lido e cantado quero ver Doutor Tancredo no mundo inteiro lembrado (ALVES, 1985). Para o Brasil libertar-se Da fome, da inflação Das multinacionais Que sugam nossa Nação E ficar tudo certinho Existe só um caminho Tancredo é a solução 3 4 Sua política vai ser Reta, pesada e medida Vai freiar a inflação Baixar o custo de vida Pra o brasileiro ter O direito de vivar Com casa, emprego e comida. (SANTOS AZULÃO, s/d) Antônio Dias é poeta popular, dentre outros que ingressaram na política, candidato a vereador indicado por apologistas e poetas de Cordel com o apoio popular (COSTA, 2004, p. 37; PROENÇA, 1976, p. 14-15). A relação de títulos publicados em todo o país, apresentada (MELO, p. 29-35) totalizava 101 títulos. Hoje em todo o Brasil, segundo a catalogação da Cordelteca Siqueira de Amorim (Paraíba), tem-se 150 títulos publicados, incluem-se aí textos publicados em periódicos especializados em publicações de poesia popular (Teresina-PI e Brasília- DF). 16 “Tendo sido a titulação, que lhe é peculiar, precedida e fundada no universo de cultura popular onde a Literatura de Cordel – oral e escrita – convocava os leitores a uma atitude de resistência, é que o autor se tornou cantador-violeiro e cordelista editorando folhetos”5. Em 1980, com uma produção editorial em livros e artigos, na prática pedagógica do ensino formal, o autor desta pesquisa fazia a apologia, preservação e divulgação da Literatura de Cordel e, neste contexto foi que nos dias 14 a 16 de março de 1980, quando ele participou do I Congresso Nacional de Literatura de Cordel, no Rio de Janeiro, redigiu e assinou uma grande expressão de resistência e luta política da Literatura de Cordel contra o autoritarismo. Lançava-se, assim, a Carta de Princípios e suas reivindicações por direitos: Os poetas populares do Brasil, do cantador repentista ao escritor de livretos e/ou folhetos não reivindicam privilégios nem concessões paternalistas. O poeta de Cordel quer chão para pisar e espaço para se mexer, porque entende que um país, onde o poeta não pode cantar nas praças, é um país doente. O poeta de Cordel quer sua literatura (cultura nacional) incluída nos currículos escolares, finalmente os poetas de cordel querem o direito de utilizar o seu instrumento de trabalho que é a sua arte, para viver com o mínimo de alegria, liberdade e dignidade (Carta de Princípios, 1980, §7). A consciência da repressão da ditadura militar, que atingiu intelectuais brasileiros, atingia, naquele momento, os poetas de bancada e os violeiros que tiveram folhetos queimados e violas quebradas, em várias capitais brasileiras, quando protestavam contra a situação e defendiam o povo na mesma linha do seguinte depoimento de Patativa do Assaré (1981): Naturalmente, eu acho que o poeta ele tem seu dom natural, uma coisa privilegiada pela natureza. Ele não deve desvirtuar a sua lira do benefício do povo, em favor do bem comum. Ele deve empregar sua poesia no momento político, mas na política com “P” grande, viu? Esta política em favor do bem comum, esta política que requer os direitos humanos de cada um (1981/1982, p. 4)6 Nascia aí o desafio de estudar o Cordel como grito do oprimido durante a repressão militar. Este período, porque além de representar uma recessão, ou hiato, na produção literária 5 6 Lêm-se os folhetos “O Evangelho do trovador de Cordel”, “Meu Jesus é nordestino”, Patativa do Assaré – o poeta passarinho dentre outros. Entrevista ao Jornal Nação Cariri, Fortaleza, dezembro/janeiro de 1981/1982, reproduzida in CARRY et BARROSO, 1982, p. 32-58. 17 no Brasil, possibilitaria compreender, a um tempo, a Literatura de Cordel como discurso não alienado e incômodo ao poder dominante (político, econômico e militar), sendo autoconsciente de sua identidade: Os escritores de Cordel estão sendo presos como se fossem camelôs, e sua criação literária está sendo rasgada e atirada na lata de lixo, ou queimada como se a cultura cordelista nacional, produzida honestamente por modestos poetas brasileiros, ferissem o visual das posturas municipais, ou fossem uma forte ameaça à Segurança Nacional (Carta de Princípios, 1980, §2). b) Do fascínio à sua superação A opção pelo período 1964 a 1984, como tempo de estudo e pesquisa para a tese de doutoramento em educação, nascera dia cinco de novembro de 1970 quando, no Festival de Violeiros em Campina Grande-PB, o poeta Pedrosa declama o poema “Se Deus fosse brasileiro” que, pela força da ditadura, só fora publicado em 2002. Exatamente os seguintes versos trouxeram a motivação primeira: Até que em sessenta e quatro Quando menos esperava ..................................................... Aumentou a confusão A sala ficou escura ..................................................... E quando o painel ascendeu Tava escrito DI-TA-DU-RA! (PEDROSA, 1977/2006, p. 5,6). Somente depois de um longo período de naturação7 , pelas práticas diversificadas entre participação em festivais, palestras e publicações, passa-se do fascínio à cientificidade, oportunidade em que o autor definiu o tema de pesquisa: Cordel grito do oprimido: uma escola de resistência à ditadura militar. O fenômeno permanecerá o mesmo, o fascinante: a Literatura de Cordel acontecendo. O tempo foi o delimitado pelo declamado poema de Pedrosa (1977) e o hiato na literatura oficial, período de 1964 a 1984, quando a Literatura de 7 Compreende-se como naturação as produções para jornais, o lecionar a disciplina Literatura de Cordel no curso de letras no Centro de Humanidades da Universidade Estadual da Paraíba, em Guarabira-PB. 18 Cordel resistiu como produção e grito do oprimido à ditadura militar que, segundo Proença (1976), possibilitou objetivar a sua indestrutibilidade e fertilidade porque o povo às vezes, adapta-se para poder sobreviver, recolhe as migalhas da mesa dos poderosos e neste recolher assegura a condição de sua liberdade compreendida como espaço de luta. Neste espaço o Cordel e sua indestrutibilidade torna-o, a um tempo, objeto inesgotável de injustiça e terreno fértil de libertação (PROENÇA, 1976, p. 64)8. A tensão entre a inesgotabilidade de injustiça e o terreno fértil de libertação possibilitou compreender-se Cordel grito do oprimido como uma escola sócio-política que se explicita, como sendo uma nova leitura das matizes de Cordel, contrapondo-se à afirmação de que em tal literatura só se percebe a ausência da revolta da maioria dos poetas populares diante os supostos socialmente mais infelizes do que eles (CAMPOS, 1977; MENEZES, 1971), caracterizando este dado popular como ensino alienado e alienante pela mistificação falseada do sistema sócio-político (PROENÇA, 1976, p. 26-63). Neste contexto histórico e epistêmico, o título da tese evoca uma leitura reflexiva das matizes cordelinas reeducando politicamente seus leitores por duas razões: auto-consciência do lugar social que ocupam os poetas (pobres e oprimidos) e a clara consciência de que os consumidores da produção cultural prescindem da educação formal, do poder de decisão e da escola, como espaço de questionamento e reflexão sócio-política. O folheto de Cordel tornouse, desde o golpe militar (1964), o espaço de educação sócio-política do oprimido, produzida e consumida no meio popular: Num tempo em que o sofrimento e a morte estão cada vez mais banalizadas, sobretudo o sofrimento dos mais pobres, a leitura de poemas de Cordel tão contundentes como este9 pode ajudar na reeducação da sensibilidade de muitos leitores (PINHEIRO et LÚCIO, 2001, p. 66). 8 9 O paradoxo tempo inesgotável de injustiça e terreno fértil de libertação fez suscitar a metodologia dialética como condição de trabalho por já ter sido condição do existir cordelino por ser do povo. A referência é ao folheto “A morte de Nanã” de Patativa do Assaré, chamado pelos autores o poema mais contundente na denúncia das injustiças sociais (ASSARÉ, 1978, p. 38-43). 19 O problema constitutivo para a tese emerge na seguinte forma expressiva: o discurso da Literatura de Cordel é uma resistência à ditadura militar entre os anos 1964 a 1984? Este problema se sustenta, como questão, nos depoimentos dos poetas vítimas da repressão resistindo e falando como o fez o poeta Geraldo Maia (1968): Sempre aparecia um policial que nos dizia para deixarmos de viver de sonhos, que deveríamos apenas cantar poesias líricas, e nos dizia que terminaríamos nos transformando em heróis mortos. A alegação de versos obsenos foi apenas o pretexto que encontraram, mas o que queriam era acabar poemas sociais. Não o fizeram antes porque não tinham um pretexto, afinal não estávamos ligados a nenhum partido político, não estamos na clandestinidade, o nosso partido é a poesia, é a vida (PEREGRINO, 1984, p. 131-134). Os poetas de Cordel foram presos e tiveram apreendidos folhetos e equipamentos de som sob a alegação de atentado ao pudor, isto é, comercializavam folhetos pornográficos. Presos sob interrogatórios, a imprensa documentou a seguinte verdade: Perante o delegado os poetas presos souberam que houvera denúncia contra eles por parte do conhecido movimento Tradição, Família e Propriedade (TFP), extrema direita da Igreja, que sustentou a repressão militar e está na vanguarda do silêncio imposto aos teólogos da libertação no Brasil (O GLOBO, 12/04/1982). A superação do fascínio pelo Cordel, na direção da cientificidade deste dado da cultura do povo, fez-se no assumir os seguintes desafios: - explicitar que o discurso cordelino tem uma dialética nova, a analética10, similar ao lugar social ocupado pelo produtor falante; - esclarecer que a grande dificuldade de uma nova leitura da Literatura de Cordel está 10 . Entende-se analética como método instrinsecamente ético e não meramente teórico, como é o discurso ôntico das ciências ou da dialética. A analética também é entendida como espaço onde a prática é iluminada pela teoria e a teoria se enriquece na prática: nesta tensão busca-se a libertação (DUSSEL, 1977c, p. 162-165; MARIA, 1996, p. 105,112). 20 no modo científico de pensar forjado por uma visão de mundo tradicionalmente filológica e pela história da cultura sob uma visão unilateral (CASSIRRER, 2001, p. 83-86); esse pensamento não foi nutrido por uma concepção etnolingüística da fala viva nem por suas formas adquiridas por ela. A Literatura de Cordel é uma destas formas; - sintetizar a partir das matizes de Cordel (1964 a 1984) o “paideuma” sócio-político como educação popular informal, mas eficiente, no agir político do público alvo desta produção: os sem vez e sem letras. Tais desafios constituem os mesmos (desafios) da poesia popular, conforme explica o poeta Crispiniano Neto (1978): O poeta popular é a garganta do pobre pois tanto um como o outro vive com fome sem cobre. Assim fico revoltado vendo o pobre escravizado prá dar mais riqueza ao nobre. Como poeta do povo meu coração sente a dor de ver o rico mais rico e o pobre mais sofredor... Onde goza o milionário sofre o sofrido operário ao lado do agricultor Precisa muita união pra desatar este nó Mas inda tem muitos falsos chaleiras de fazer dó. Só vale a pena enfrentar quando a Serra se juntar todinha num corpo só. A união faz a força dizem os aconselhadores por isto dou um conselho aos colonos sofredores: Se unam, metam dos peitos Lutem pelos seus direitos Expulsem os bajuladores. (CRISPINIANO NETO, 1981, p. 43,46). Assumindo esses desafios, espera-se contribuir para um novo horizonte epistemológico de leitura da Literatura de Cordel que entra resistente no terceiro milênio. A novidade está na constatação de que a Literatura de Cordel é, essencialmente, uma noçãochave na pedagógica popular. Pedagógica aqui não se confunde com pedagogia. Esta última é a ciência do ensinamento, mas aquela é parte da filosofia que pensa a relação face-a-face, significando que a pedagógica popular, nesta abordagem, vai indicar a relação face-a-face do educador e do educando, assumindo a conotação da eticidade no discurso pedagógico- 21 cordelista. Esta é a novidade que confere identidade pedagógica educativa à Literatura de Cordel. c) Cumplicidade teórico-metodológica Nada constrangeu admitir a necessidade da filosofia da linguagem capaz de explicar a fenomenologia da sabedoria advinda de pensadores como Scannone (1974), Searle (2000) que fornecem o horizonte epistêmico pelo qual é possível compreender que um escritor, inclusive o poeta popular, é ultrapassado quando não é mais capaz de fundar uma universidade nova (universo histórico epistêmico) e comunicar no risco (MERIEAU-PONTY, 1974), como faz o poeta de Cordel no período de repressão militar. Aqui, outro dado fundamenta a temática na direção educacional: a concepção de pedagogia da libertação de Dussel (1977d), especialmente em a pedagógica, abrindo perspectiva para ver-se a cultura popular e a Literatura de Cordel como posturas educacionais. Indubitavelmente, a metodologia teve fundamental importância por ter de ultrapassar os aspectos formais da Literatura de Cordel, para, junto da dialética da linguagem e do discurso popular, possibilitando uma hermenêutica que fosse dialética na perspectiva hegeliana, busca de síntese na tensão dos opostos (HEGEL, 1981) e na perspectiva marxista de ver a realidade do ponto de vista do oprimido (BAKHTIN, 1997; BOURDIEU, 1982), o que se fez possível com a contribuição de Coreth (1973) e Paulo Freire (1983, 2000). Tendo em vista ter sido dado prioridade aos folhetos produzidos, conforme se frisou, no período de mais intensa repressão à cultura popular e ao Cordel (BRANDÃO et al. 1982), o método dialético aparece em todo o texto, mais explicitamente na dialética de leitura11, quando faz a leitura das matizes cordelinas sob a tensão dialética entre os componentes autoritários e componentes democráticos, buscando a cosmovisão, o comportamento, as estratégias e os meios, pela mediação dos indicadores de leitura subordinados às categorias 11 Dialética de leitura no qual há uma cumplicidade entre método de pesquisa e apresentação do próprio objeto pesquisa: as matizes de Cordel, constitui o quarto capítulo da tese. 22 opressão, libertação, contradição e resistência. A dialeticidade destas categorias, presente no universo vocabular filosófico e cordelino, profundamente articulados como fonte e método de pesquisa, possibilitou confirmar-se o hipotético como tese de que o discurso da Literatura de Cordel expressa resistência ao autoritarismo da ditadura militar no Brasil entre os anos 1964 a 1984 e, por isto mesmo, constitui-se em um grito do oprimido e uma escola de resistência, no quotidiano e na tese doutoral de educação popular. 23 1 CORDEL COMO EXPRESSÃO DO POVO A Literatura de Cordel, que se constitui objeto material desta pesquisa, entrou no Brasil em 1836, segundo Manuel Diégues Júnior (1985), com o folheto “Da Pedra do Reino”, circulando por todo o sertão nordestino (cf. DIÉGUES JÚNIOR, 1975, p. 8-10). Nesse circular, as produções de títulos novos e o número de leitores se multiplicaram com sucesso. A categoria objeto material é tomada aqui da Filosofia peripatética adotada pelos filósofos escolásticos, especialmente Alberto Magno, Duns Scot e Santo Tomás de Aquino, cujas reflexões dizem que o objeto cognitivo é aquilo sobre o qual recai alguma potencialidade de tornar-se conhecimento. O vocábulo objeto pode ser tomado em dois sentidos: material e formal. Antes de precisar cada um dos sentidos, é verossímil dizer que as ciências nem sempre se distinguem umas das outras pelo objeto material, mas sim pelo formal (cf. OCKHAN, 1979, p. 347-353). Santo Tomás compreende que o objeto formal e o objeto material são geralmente considerados como objetos de conhecimento. O objeto formal é alcançado direta e essencialmente pela potencialidade do ato de conhecimento. Por meio do objeto formal se alcança o objeto material que é simplesmente o termo para o qual se dirige a potencialidade do ato de conhecimento através do objeto formal. O objeto material é como um objeto cuja determinação é feita pelo objeto formal. A diferença entre objeto formal e objeto material baseia-se na diferença entre o conhecido como conhecido e o objeto do cognoscente.1 Para o homem simples e pobre do Nordeste do Brasil, carente por demais dos meios de comunicação, o Cordel passa a significar quase tudo. Até mesmo na últimas décadas do 1 Devemos prevenir que, em certas ocasiões, o objeto material é chamado também sujeito, enquanto exprime logicamente um termo do qual se predica algo. Para Husseri, o objeto é tudo em que pode estar sujeito um juízo. Significa pois tudo que pode estar sujeito a uma inteligência e, por isto mesmo, sujeitado a um processo de conhecimento. O objeto fica assim transformado de imediato, pelo apoio lógico expresso gramaticalmente, na palavra sujeito como susceptível de receber uma determinação. O termo sujeito à forma elegante do particípio passado (sujeitado) do verbo sujeitar, aqui substantivo, de modo a designar algo sob alguém. Daí, sujeito vai designar um cognoscível, enquanto cognoscendo sob um congnoscente. Conclusão, tanto se pode falar de sujeito como subjetividade (cognoscente), como de sujeito como um cognoscível sujeitado (cognoscendo) a um cognoscente (cf. XIRAU, 1941. p. 5-60). 24 século passado, não houve só acontecimento importante que não tenha sido noticiado pelos folhetos. Por esta razão, são também chamados folhetos de época, pois sempre explicitam o saber e a ciência populares com registro de comentários marcando uma época. Como bem registra o poeta H. Rufino, demonstrando esta consciência popular de formação da opinião pública, no folheto “o Foguete na Lua e os Boatos do Povo (1968)”, quando diz: Pronto aqui meus bons leitores um livro feito na hora demonstrando as novidades que se dá (SIC) de mundo a fora quem ainda não conhece vai conhecer tudo agora!”.. Assim, os poucos alfabetizados lêem para os grandes grupos de ouvintes (cantando nas praças ou declamando nos terreiros) que saboreiam cada verso narrado. O Cordel é jornal, é divertimento, literatura; meio de difusão dos acontecimentos, de perpetuação memorial da história e da cultura subalterna em relação à literatura oficial. Como meio de expressão dos sentimentos, é espaço epistêmico do refletir e do pensar a realidade como faz o poeta Crispiniano Neto no mote “No ano que falta inverno / O pobre sofre demais”: “É de cortar coração Os pobres na indigência E o serviço de emergência Em atraso é confusão. Senhor ministro o sertão Não tá suportando mais Nestes dias nossa paz Pode virar um inferno: No ano que falta inverno O pobre sofre demais. Governo, tenha coragem De melhorar o sertão Com planos de irrigação Reforma Agrária e barragem Que seca não vai ter mais Trabalhadores rurais 25 Vão viver em berço eterno: No ano que falta inverno O pobre sofre demais”. (CRISPINIANO NETO, 1983, p. 34) Cordel é também um veículo que possibilita o participar do povo na vida do país. Expressa suas necessidades e idéias; discute a realidade como seguimento social da sociedade nacional global (SOUSA, 1984, p. 32-48). Deste dado emerge o objeto formal2 desta pesquisa: Cordel como resistência a todo tipo de autoritarismo. Ancorado em fundamentos da Filosofia da Educação, compreende-se que o autoritarismo advoga a práxis da ausência da razão e de proclamação de si mesmo. A autoridade afirma-se como “a primeira e suprema razão e a razão como a última e ínfima autoridade”. Neste compreender o homem não é livre quando está sendo compelido a seguir numa direção indicada. Ele deve ir por vontade própria, sabendo porque e para onde vai. Neste nível, não autoritário, a responsabilidade pessoal tem uma importância primordial3. Para os gregos antigos, o fim de toda formação humana era a existência política, onde muitos, morando num mesmo lugar polis, viviam na unidade, isto é, no mesmo acolhimento. E, enquanto mais viviam a existência política, tanto mais necessidades sentiam de praticar a educação. (ARISTOTELES, 1979, p. 1; MARIE, 2002, p. 81-83; JAEGER, 1984, p. 214-216). O Cordel, como produção do povo para o povo, abre espaço para a Educação Popular enquanto os poetas, como educadores populares são aqueles que servem ao grupo à medida que, unindo os integrantes, na solidariedade e na ajuda mútua, jamais fomenta a competição e a hostilidade3, mas faz com que todos desenvolvam um conhecimento na troca 2 3 3 Evoca-se novamente a Filosofia escolástica que tendo distinguido o objeto material como o ente concreto tal qual se dirige o sujeito, o objeto formal é compreendido como a característica peculiar, o especto especial (forma) sob o qual o todo é considerado (cf. BRUGER, verbo. objeto). Pode-se dizer que um homem é livre à medida que suas opções contribuem para o seu máximo desenvolvimento como criatura racional e responsável: e que ele não é livre, à medida que as suas opções acarretam o efeito contrário, embrutecendo as suas faculdades e colocando-o no assentimento do autoritarismo (JEFFREYS, 1975. p. 45). A categoria hostilidade, para um observador artificial, entre os cordelistas, sobretudo quando se defrontam em desafios, espécie de um torneio ou duelo (pugnas poéticas), passam a nítida impressão de se injuriarem e se 26 contínua de informações relevantes; robustecendo-lhe a autonomia, criando condições, os fins e os meios por si mesmos (cf. RODRIGUES, 1999, p. 157-158). Neste compreender o Cordel, como espaço epistêmico popular, não forma, nem suporta uma nação autoritária. É esta a posição dos poetas cordelistas do Brasil na Carta de Princípios contra o autoritarismo: “Os poetas populares cordelistas do Brasil (do cantador-repentista ao escritor de livretos e/ou folhetos) não reivindicam”.' Privilégios e nem concessões paternalistas. O poeta de Cordel quer o chão para pisar e espaço para se mexer, porque entende que um país, onde o poeta não pode cantar nas praças, é um país doente [...]. Os poetas de Cordel querem o direito de utilizar o seu instrumento de trabalho, que é a sua arte, para viver com o mínimo de alegria, liberdade e dignidade.” (Rio de Janeiro, 1980, p. 2). Como se sabe, o Cordel, como dado cultural, consolidou-se entre as décadas de 30 e 40 do século XX, chegando ao seu apogeu nas décadas de 50 e 60, como produção do povo para o povo, tem o seu próprio saber. Neste saber, é o seu trabalho político que cria, a um tempo, a prática de sua luta cotidiana pela liberdade e é o imaginário que pensa esta luta e o mundo em que vive e para o qual aponta. Neste fazer, o Cordel como saber popular assume as lutas do povo (MELO NETO, 2004). O Cordel tem a seu lado a poesia da música popular brasileira (MPB) produzida no meio popular mesclada pelo acadêmico. Isto é, a música popular, refletindo o agir e o pensar do povo, é produzida pelo contingente escolarizado, notadamente Chico Buarque de Holanda, Geraldo Vandré, Martinho da Vila, Jorge Bem e Gilberto Gil, dentre outros. Esta consciência de contemporaneidade entre as duas produções, da diferença na unidade do fazer poesia, é muito bem explicitada pelo poeta Patativa do Assaré (1978, p. 27), ao dizer: Repare que a minha vida É deferente da sua. Sua rima é pulida Nasceu no salão da rua. Já eu sou deferente, difamarem verbal e reciprocamente. No entanto, para um observador mais atento esta impressão é aparente falaciosa, pois apenas faz parte do gênero literário cênico para maior vivacidade. Como exemplo ilustrante é o desafio em “moura” ou em “martelo agalopado”. Ainda exemplificando as pelejas publicadas pelos poetas de bancada: “Peleja de Cego Aderaldo e Zé Pretinho”, escrita por Firmino Teixeira do Amaral. 27 Meu verso é como simente (CIC) Que nasce inriba do chão; Não tem estudo nem arte, A minha rima faz parte Das obras da criação. Mas porém eu não invejo O grande tesouro seu Os livros do seu colejo (CIC) A onde você aprendeu. Pra gente aqui sê poeta E fazer rima compreta (CIC) Não precisa sê professô; Basta vê no mês de maio Um poema em cada gaio E um verso em cada fulo. A contemporaneidade de duas produções poéticas: Literatura de Cordel (popular) e poesia-canção na MPB (popular mesclada de acadêmico) contextualiza o objeto formal de pesquisa quando se pode constatar, ao lado do ufanismo bastante divulgado durante os autoritarismos (Estado Novo e Golpe Militar de 64), a presença da resistência às formas diversas de autoritarismo. Uma das características que permitem classificar, dentro da categoria de literatura popular a poesia da MPB é a sua divulgação feita pela ação do rádio e rodas de samba, radiolas nos bares e biroscas espalhadas nas cidades brasileiras, atingindo e contagiando o povo, conforme Da Cunha (2004). Tudo isto equivale dizer que a poesia da MPB é o que se pode chamar quase-popular porque, quanto ao autor, passou pela escola; quanto à origem, procede de gravadoras e de recursos gráficos sofisticados e, quanto à divulgação, contando com o apoio notável da mídia4. Como exemplo, tem-se, nos primórdios, Noel Rosa, nascido da classe média carioca, no bairro da Vila Isabel, que compõe um samba para ser apresentado na revista “Rio Folies”, 4 Esta característica é um sintoma e não uma síndrome. O que se está vendo é puro, é o desembaraçado em amarras e não o doentio autoritarismo da densa tassitura social da sociedade capitalista. Trata-se de posturasintomática que leva necessariamente a questionar a precariedade inoperante dos conceitos anacrônicos e anêmicos sobre os quais se tem eregido parte das colocações teórico-práticas sobre cultura popular. (SANTAELLA, 1995, p. 33-37; AGUIAR, 1993. 28 com o apoio da Rádio Roquete Pinto, que também o divulgou. A poesia-canção intitulou-se “X” do problema”, tratando da identidade povo que deve ser afirmada: Nasci no Estácio e fui educada na roda de bamba e fui diplomada na escola de samba sou independente como se vê. Nasci no Estácio o samba é a corda e eu sou a caçamba e não acredito que haja muamba que possa fazer eu gostar de você. A estrofe explicita o poeta se expressando pela voz de uma mulher, prática que os clássicos a chamariam de “cantiga de amigo”. O samba foi encomendado por uma amiga, a atriz Ema D'Ávila, que resistia em abandonar suas raízes populares, para acompanhar o moço enamorado que queria tirá-la do seu Estácio: Você tem vontade que eu abandone o Largo do Estácio para ser rainha de um grande palácio e ... não posso mudar minha massa de sangue você pode crer que palmeira do mangue não vive na área de Copacabana. (AGUIAR, 1993, p. 22) Percebe-se, aqui, o que se pode chamar unidade ôntica entre poesia, poeta e forma .de vida. Daí, tanto na poesia cordelina, como na poesia-canção da MPB, percebe-se que esquecendo a forma de vida, peculiar às duas vertentes produtoras, fica difícil compreender a contextualidade fundamental e fundante da produção e consumo do Cordel. Esta ligação do Cordel e da poesia-canção da MPB ao mundo da vida popular garante por um lado os seus entendimentos, por outro, a relação intersubjetiva, mesmo quando o elemento objetivo, portado em suas páginas, vai sendo substituído historicamente. Significa que o agir comunicativo cordelino não prescinde nem do entendimento, nem do nexo intersubjetivo. A este respeito, o depoimento do poeta popular Manoel D'Almeida Filho 29 (2001) chamando a linguagem do Cordel, que procede do mundo, da vida, de código aceito como constitutivo de validade do popular é importante: A forma é fundamental: não importa que o jornal e o folheto divulguem a mesma notícia ela só será acessível se for rimada ou seja, se for veiculada com o código aceito e compreendido pela comunidade. (GALVÃO, 2001, p. 148)5 O poeta Juvenal Evangelista (1984), no folheto “Origem da Literatura de Cordel publicado em Teresina no Piauí, confirma a presente contextualização: Cordel é literatura Que é dita popular Com ela a gente aprende Também se pode ensinar Cordel é nossa linguagem Deste nosso versejar. O recurso ao verbo ensinar, presente no quarto verso da estrofe supracitada, explica a intenção pedagógica dos cordelistas, que versejam não apenas para divertir, mas educam e instruem enquanto divertem.6 Esta característica do Cordel, associada a outra de ser popular representam dois aspectos importantes e não desprezíveis para estudiosos concentrados na área de Educação Popular. O objeto formal de pesquisa emerge contextualmente das duas produções - Cordel e poesia-canção - como resistência ao autoritarismo na autonomia do compositor e do seu ser sujeito histórico do seu meio: “o morro”. O eu-lírico que explicita a liberdade, de modo metafísico, diante do autoritarismo no samba “Opinião” de Zé Keti e Mansueto: 5 Apud GALVÃO, A. M. de. “O Cordel leitores e ouvintes”. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 148. Sobre o agir comunicativo cf. HEBERMAS, 2004. p. 117 ss. 6 Em todas as áreas de conhecimento o Cordel ensina. Para ilustração na área de educação temos “Paulo Freire e B.C. Neto: um cordel comparativo” da Arievaldo Viana Lima (Fortaleza-CE); “Paulo Freire um Educador Diferente” de Veneci Santos Nascimento (Guarabira-PB); “A discussão do Ensino Antigo com o Ensino Moderno” de Afrânio G. de Brito (Campina Grande-PB); “Pergunta de um Analfabeto” de Patativa do Assaré (Fortaleza-CE). Um recente trabalho sistemático nesta questão é o texto de PINHEIRO, M. e LÚCIO, A. C. M; “Cordel na sala de aula”. São Paulo: Duas cidades, 2001. 30 Podem me prender Podem me bater Podem até deixar-me sem comer Daqui do morro eu não saio. (1964) A decisão de resistência e fidelidade às raízes e à sua gente funda-se na tensão dialética da oposição dos contrários, fazendo a história viva que avança para a frente: Se não tiver água Eu furo um poço Se não tiver carne Eu compro um osso e ponho na sopa E deixa andar, deixa andar Aqui eu não pago aluguel. (1964) O poeta popular de Cordel João Martins de Athayde (1946), no folheto “As Proezas de Lampião”, dialogando com o cangaceiro, ambos em primeira pessoa, explicita a resistência ao autoritarismo do governo na fala de Lampião: Eu não conheço governo que mande em minha vontade, qui no sertão eu sou a única autoridade quem quiser acreditar que venha cá me buscar e saberá da verdade. No Cordel e na poesia-canção, os elementos individuais adquirem significado social à medida que as pessoas correspondam às necessidade coletivas; e estas, agindo, permitem, por sua vez, que os indivíduos possam exprimir-se, encontrando repercussão no grupo. Esta é a dinamicidade da cultura popular. Constatando-se a similaridade entre poesia de cordel e a poesia-canção da MPB, desta emergem as relações entre o artista e o grupo social como circunstância produtora do bem cultural como poesia popular, que pode ser esquematizada assim: 31 - em primeiro lugar, há necessidade de um agente individual que tome para si a tarefa de criar ou apresentar a obra; - em segundo, ele é ou não reconhecido como criador ou intérprete pela sociedade, e o destino da obra está ligado a esta circunstância; - em terceiro, ele utiliza a obra, assim marcada pela sociedade, como veículo das aspirações do povo, identificando-as profundamente com as próprias aspirações pessoais mais profundas. É neste ponto ainda que o cordelista oferece um novo e consistente argumento em favor de seu caráter eminentemente popular. Neste compreender, popular, em seu significado original, não pode existir em intérpretes e porta-vozes do povo que não sintam, pensem e ajam como o povo nem em omissos na tarefa de participação ativa, tendentes a concretizar as aspirações do povo, a transformar em realidade social a utopia de uma sociedade justa, onde todos sejam tratados condignamente como povo, sem dicotomia de classes sem nababos e páreos, nem nobres e plebeus.7 Com esta relação de similaridade não se prescinde de que o povo é ambíguo, abriga em seu ser tudo o que há de melhor, mas também pode descer. O povo, às vezes, adapta-se para poder sobreviver, recolhe as migalhas da mesa dos poderosos. Esta atitude é, a longo prazo, frutífera, porque faz do povo algo permanente, raiz e limo da história, perpetuando-se no tempo: esse prolongamento indefinido é que é refletido na poesia de Cordel e na poesiacanção (PROENÇA, 1978, p. 62-64). O prolongamento do povo se explicita no binômio inesgotabilidade e fertilidade. Da inesgotabilidade percebe-se o povo como espaço da prática 7 Este terceiro ponto, nascido da relação artista literária e grupo social, tem como fundamento a idéia da relação dialética entre nações colonizadoras sobre colonizados; o hegemônico sobre impotentes e que haja um seguimento que sob a fé acredita em Deus e sob a natureza vive a justiça. (cf. NEUMMANN, Zahar, 1969. p. 275-277). 32 da injustiça pelos autoritarismos e, da fertilidade, percebe-se a gênese do processo de libertação. Historicamente, a Literatura de Cordel manteve a tensão dialética entre injustiça e libertação caracterizando a resistência do oprimido como identidade. Dependendo do momento histórico, esta literatura popular tem refletido maior ou menor resistência ao autoritarismo: no ciclo cordelino, denominado Lampião, folhetos exaltam Virgulino como o justiceiro das camadas populares; outros, porém, retratam-no como bandido, exaltando os feitos das volantes e favorecendo ao governo. O mesmo acontece no indianismo da poesia de cordel, mas a maioria dos autores compreendem o índio como injustiçado e o apresentam como forte e resistente à opressão (SOUSA, 2002, p. 55-68). Assim disse o poeta Cordeiro (1978): O Tuxaua disse: Barão O senhor não pensa bem Seus homens não me intimidam Daqui não me sai ninguém De onde surge a desgraça Sai fortuna também. Ali baixou a cabeça E falou bem positivo: - Se aquele branco voltar Juro não deixá-lo vivo Embora se acabe a tribo Mas ninguém fica cativo. Guanacuí ainda disse - Branco comigo não berra Eu não sei por qual motivo Ele me faz esta guerra, Quer me deixar cativo Se apossar de minha terra! A historicidade da poesia de Cordel e da poesia-canção é perceptível porque, procedendo do mundo-da-vida, não contradiz a popular estrofe de resistência de Geraldo Vandré (1968): 33 Vem vamos embora que esperar não é saber Quem sabe faz a hora não espera acontecer! 34 2 LITERATURA DE CORDEL - UM UNIVERSO A Literatura de Cordel, assim designada pelo fato de serem os folhetos presos por um pequeno cordel em exposição nas casas onde eram vendidos (DIEGUES JÚNIOR, 1977, p. 3), hoje, porém, dentro de suportes plásticos de modo similar à exposição de jornais e revistas - penetrou no Brasil através dos colonos portugueses, por volta dos séculos XVI e XVII. Mais precisamente, entre 1624 e 1851, entravam os primeiros folhetos vindos de Portugal. Mas, foi em 1873 que se produziram os primeiros folhetos de composição dos poetas nacionais: Leandro Gomes de Barros, Chagas Batista, Martins de Athayde, Silvino Pirauá de Lima, João Melquíades e outros (ROMERO, 1977; LUYTEN, 1983). Este período é caracterizado como fértil na produção de Cordel no Brasil. Contudo, após a origem lusitana, a editoração de Cordel não se constituiu exclusividade do Brasil. A produção e divulgação do Cordel são também encontradas na América Espanhola, como em outras partes da Europa, recebendo designações específicas em cada região. Na Espanha, é conhecida como “pliegos sueltos” - correspondente “a folhas volantes” ou “folhas soltas” (designações portuguesas). Na França, é denominada como “litterature de colportage”, constituindo a Biblioteca Bleue (DIEGUES JÚNIOR, 1990, p. 8-16). No México, o “corrido” - tendo como variante o “contrapuento”, o qual equivale ao nosso “desafio”; na Argentina “hajas” ou “pliegos sueltos”; Na Nigarágua e no Perú, o uso desta vai ser equivalente ao que se vê no Brasil, apresentando histórias tradicionais européias, tragédias, o fantástico e fatos acontecidos (TERRA, 1983, p. 13ss). Nesse contexto de compreensão, situa-se a Literatura de Cordel como palavra peculiar a uma forma de vida, ou seja, a linguagem mãe de uma comunidade histórica particular estereotipada pela gramatologia isomórfica dos letrados (cf. PROENÇA, 1976, p. 57 e FAUSTO NETO, 1979, p. 57-80) que, antes de tê-la, a ela transporta a significação 35 metafísica - veritas adequatio intelectus rei1 cujo pressuposto é a identidade ôntica entre linguagem e o mundo de validade universal. A validade significativa da palavra linguagem não está na adequação do vocábulo ao mundo, mas no uso que se faz dele no espaço vital que Wittgenstein (1979, § 359) chamou de ‘forma de vida’ . As palavras só adquirem significado no fluxo da vida; o signo, considerado separadamente de suas aplicações, parece morto, sendo no uso que ele ganha seu sopro vi tal. A ‘forma de vida’ é o lugar no interior do qual a linguagem se assenta. Significa que ‘a forma’ é o ancoradouro último da linguagem. Considerando-se que aqui, em se fazendo pesquisa, sempre se busca a resposta última, a partir da citação de Wittgenstein a ‘forma’, como algo que é dado é, por isto mesmo fundante da própria linguagem (WITTGENSTEIN, 1979, § 221). Neste explicitar de proximidade epistêmica da verdade última, a propósito da Literatura de Cordel, depreende-se que a compreensão do dado da comunicação popular depende da situação em que a palavra (ou frase) é usada e não do ato intencional de querer significar. Noutros termos, ‘a forma’ faz com que a palavra, mesmo sendo um símbolo de outra realidade, crie uma realidade nova. A palavra cria um universo autônomo onde, pelo fato da relação símbolo e objeto vivida, a realidade passa a ser o seu próprio universo verbal; deixa de ser símbolo metafísicamente abstraível e universalizável, para ser objeto. Daí, compreender que se funda como elemento de uma forma de vida na qual se está inserido em virtude do contexto histórico. Compreender, neste entendimento, denota adestrar-se à determinada práxis, ou seja, é um inserir-se em uma determinada ‘forma’. Esta é a postura hermenêutica reclamada pelo poeta popular, para a Literatura de Cordel cujo pressuposto não é um superconceito fundado metafisicamente como paradigma do entendimento, mas a ‘forma’ como o donde emerge a palavra e o significante como explicitam as estrofes de Patativa do Assaré dirigidas ao homem simples e ao letrado: 1 “Verdade é a adequação entre o intelecto e a coisa”. 36 Caboco Mane Lourenço meu colega e meu amigo que pensa aquilo queu penso e diz aquilo queu digo, nós somos da mesma laia dos coitado que trabaia ou na diária ou na meia nos pertence a mesma crasse da que apenasmente nasce inriba da terra alheia. “Você teve inducação Aprendeu munta ciênça Mas das coisas do sertão Não tem boa experiênça, Nunca fez uma paioça Nunca trabaiou na roça Não pode conhece bem Pois nesta penosa vida Só quem provou da comida Sabe o gosto que ela tem (PATATIVA DO ASSARÉ, 1978, p. 25). A perspectiva que se faz vislumbrar, na fenda aberta por Wittgenstein, possibilita contextualizar a linguagem ordinária (no sentido de sua quotidianidade) da poesia de Cordel como uma hermenêutica e não uma figuração e/ou reprodução ôntica do discurso dominante. Buscar a hermeneuticidade da Literatura de Cordel de modo que ela possa emergir como poesia vetor de educação popular, significa tematizar a gênese ontológica da linguagem do Cordel como comunicação, como poesia e tudo isto como condição de possibilidade de educação popular. Esta postura de estudo constitui aqui uma resposta ao que aspira a própria Literatura de Cordel na expressão do poeta Elias de Carvalho (1981, p.1) Se o cordel for estudado por um cabra inteligente, sábio, filósofo e prudente ele vai ser respeitado, ouvido e admirado extinguindo o ponto falho. Aqui termino o trabalho a todos muito obrigado. Sem mais delonga assinado. 37 A reivindicação do poeta, por um lado, aponta para a Filosofia como a ciência que busca o fundamento para o suficiente esclarecer na perspectiva aristotélica: “Teremos falado suficiente, se tivermos dado esclarecimento conforme a matéria que e o assunto (ARISTOTELES, 1969, I (A), § 981). Por outro, o poeta reivindica uma contextualização resultante de uma reflexão capaz de fundamentar a linguagem, o discurso do Cordel como sendo o que realmente é. Ora, esta reflexão reivindicada é a filosófica enquanto a busca das últimas causas e se explicitando como ciência suprema, portanto, pesquisando as causas primeiras do que é enquanto é: É pois manifesto que a ciência a adquirir é a das causas primeiras, pois dizemos que conhecemos cada coisa somente quando julgamos conhecer a sua primeira causa [...]. Quem conhece as causas com mais exatidão, é mais capaz de ensinar, é considerado em qualquer espécie de ciência como o mais filosófico (ARISTOTELES, 1969, I (A) III, I; I(A) II, 2). A Ciência das causas primeiras ganha mais eloqüência quando usualmente se diz “ciência como toda espécie de conhecimento e nem sempre a filosofia é considerada na sua cientificidade”. Mas, segundo Aristóteles, “a cientificidade filosófica se explicita quando alguém se sabe conhecendo a causa pela qual uma coisa é e que esta como tal não seria sem aquela”. A filosofia aristotélica, tendo como fundamento o princípio da causalidade, afirma a existência de uma relação necessária entre causa e efeito que, do ponto de vista do movimento do conhecimento, nunca se tem a última causa, porém, dela o cognoscente se aproxima e se distancia. Este movimento permanente em direção e busca das últimas causas constitui a dialética da ciência filosófica. Não é sem mais que se pode escutar de Heráclito a dizer: “a natureza, que é um constante aparecer, gosta de se esconder no próprio aparecimento” (BORNHEIM, 1993, p. 43). Cabe elucidar que filosofar é voltar às construções, ao vivido, ao mundo e a nós mesmos, sem cair na tentação de se deixar levar para a atmosfera rarefeita da introspecção ou 38 para um mundo distinto ou diverso deste. Filosofar é, a propósito do Cordel, procurar incansavelmente a evidência e o sentido da realidade, mesmo quando ambos sejam tecidos pela ambigüidade. Sócrates, o protótipo do filósofo, não distinguia a atividade de filosofar do próprio ato de viver – aqui é a poesia popular que não se distingue do ato de viver – o que o possibilitou ensinar que a máxima da sabedoria, ou seja do ato de filosofar, é amar a sabedoria e saber que nada sabe. É a atitude contrária àquela que tenta instalar-se num saber absoluto e daí, no autoritarismo. Neste compreender, filosofar não é erigir ideologias, nem fabricar ilusões e, menos ainda, cair na mistificação porque o discurso filosófico nunca é independente do discurso histórico. Para os primeiros pensadores gregos, a Filosofia origina-se na perplexidade que o homem sente diante a realidade, o desejo de saber o último porquê, às primeiras causas de tudo o que existe: Com efeito, foi pela admiração que os homens começaram a filosofar, tanto no princípio como agora; perplexos inicialmente diante das dificuldades mais óbvias, avançam pouco a pouco e enunciam problemas a respeito dos maiores fenômenos como os da Lua, do Sol e das Estrelas, assim como sobre a gênese do universo (ARISTOTELES, 1993, I(B) § 9288). Buscar o último porquê da poesia de Cordel evoca a postura cartesiana determinada como “caminho seguro para a ciência”. Este caminho se explicitou nas regras propostas em “Discurso do Método” de Descartes ( 1983, p. 37-38), a saber: - dividir cada dificuldade a ser examinada em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las; - por em ordem meus pensamentos, começando pelos assuntos mais simples e fáceis de serem conhecidos, para atingir paulatinamente o conhecimento dos mais complexos e supondo ainda uma ordem entre os que não se precedem normalmente uns aos outros. 39 Esta é a possibilidade da ciência e a postura de quem busca a verdade científica tal objeto. Além disto, nada mais se requer porque, desde que se possa evitar ter como real alguma coisa que não o seja, e desde que se consiga conservar a ordem necessária para se deduzir uma das outras, não existirão coisas tão distantes que não sejam alcançadas, nem tão escondidas que não sejam descobertas. (DESCARTES, 1983, p. 37-38). Elucidar similaridades e diferenças entre a poesia de Cordel e a poesia trágica dos gregos, dos romanos, também das grandes epopéias, não menos trágicas, de Portugal e do Brasil sob o escopo da articulação palavra, poesia e arte, na explicitação do humano, faz-se necessária uma reflexão epistemológica. Tal necessidade a propósito da Literatura de Cordel fora apontada por Sílvio Romero, quando afirma: [...] temos um povo em tudo capaz de ombriar-se com os mais distintos do velho mundo, é que possuímos uma poesia popular das mais brilhantes que se conhecem (ROMERO, 1977, p. 32). As suas palavras se perderiam no lirismo do tempo sem a postura científica de comparação da Literatura de Cordel com outras literaturas exatamente cem anos depois: A Literatura de Cordel é igual a qualquer literatura isto é, tem autores. Esses autores podem ter preferências por algum tema mas, neste caso, serão eles e não a Literatura de Cordel que devem ser estudados [...]. Por tudo isto, podemos dizer simplesmente que a Literatura de Cordel, como é popular, trata de assuntos que interessam ao povo referindo-se a assuntos e pessoas sob o ponto de vista popular (LUYTEN, 1983, p. 42-43). Retomar a comparação da poesia de Cordel com outras poesias significa apontar para estudos da possibilitantes de sua contextualização e, por isto mesmo, uma postura filosófica de busca das últimas causas, como pressupunha Sílvio Romero, a propósito do conteúdo sócio-político e educativo da poesia popular brasileira: A poesia popular revela o caráter dos povos [...]. Num estudo aprofundado de nossas poesias popular, seria mister fazer escavações sobre os nossos 40 movimentos políticos e sociais. Pelo que temos podido indagar, estamos certos de que os movimentos revoltosos, que são conhecidos na história com os nomes de Guerra da Independência, e posteriormente Guerra dos Farrapos no Rio Grande do Sul, a dos Carbonos e Balaiada no Maranhão e Piauí, e recentemente Guerra do Paraguaio, produziram uma corrente de composição (ROMERO, 1977, p. 32-33). O contexto original da poesia popular, até onde puderam alcançar as escavações de Sílvio Romero (1888), Diégues Júnior (1973), Franklin Maxado (1980) e outros, remontam-se aos povos inteiramente bárbaros e até selvagens cujas representações só se tornariam tocáveis no IV milênio a.C. Contudo, junta às populações que se dedicavam à agricultura, à leitura de imagens da terra tornou-se o centro das atenções dos povos neolíticos que baseavam nela a própria sobrevivência e que deveriam passar por crises periódicas produzidas pela perda da fertilidade dos terrenos, cujos reflexos aparecem nas tumbas descobertas em Tell es-Sawwam, na planície mesopotâmica (cf. SCARDI, 2004, p. 11-15). De fato, quase 15 mil anos separam os bisões desenhados nas grutas de Lascaux2, uma das mais antigas cavernas conhecidas hoje, contendo uma representação figurativa clara de uma cena da vida e os primeiros vestígios da escrita. Dos gestos à fala e da fala à organização e à sistematização da linguagem escrita, um longo percurso se deu. Fazer este percurso é, além de um mergulho2 na história, uma atitude filosófica de buscar as causas últimas (Aristóteles), atingindo paulatinamente o conhecimento dos mais complexos, supondo, por isto mesmo, uma ordem entre os que não se precedem normalmente uns aos outros (Descartes), mas constitui-se em passo metodológico de cientificidade pertinente. Os registros gráficos, desde a sua origem nas cavernas, tiveram tanto uma função instrumental, quanto mística e religiosa, expressiva e comunicativa. Para os egípcios, a escrita era um dom de Deus. Para os chineses, a escrita e o fogo, eram um produto de roubo, havia- 2 Os homens de Lascaux viveram há quase mil anos e os primeiros oitogramas datam de 5.160 anos (cf. SCARPI, 2004, p. 25-50 ). 41 se roubado de Deus o segredo da escrita era estar dentro do segredo e participar dele3. Penetrar neste latrocínio significa avançar na direção das últimas causas da poesia popular brasileira. Este avanço será mais seguro numa viagem diacrônica pela filosofia grega e pela literatura greco-latina de cuja evolução possibilitou perceber a Literatura com “De Natura Rerum”, época de Cícero até o ano 29 a.C. É filosoficamente uma exposição da doutrina epicurista. Como base nos dois primeiros cantos, o poeta expõe a natureza das coisas segundo o princípio que seria resumido por Bertjeolot, no século XIX, nas palavras: “Nada se cria, nada se perde: tudo se transforma”. Aparece, já neste momento, um poema didático com o escopo educacional. Comenta Nelson Romero que a força poética de “De Natura Rerum” recuperou em Roma o gosto pelo trabalho do campo, evitando o êxoto rural (cf. ROMERO, 1968, p. 45). A sua moral é a do prazer: gozar com moderação, para gozar por mais tempo, evitando a ambição ou qualquer outro sentimento que possa perturbar a serenidade da alma4. Do ponto de vista propriamente poético, a beleza do poema reside nas digressões que de vez em quando cortam a monotonia da exposição didática, como a inovação a Vênus, com que abre o poema, a pintura do sacrifício da Ifigênia, do reverdecer dos campos depois das chuvas, da peste de Atenas etc. Nestas e em tantas outras passagens se revela a imaginação do poeta na força de sua linguagem. Foi o contato com a Grécia que possibilitou a Roma o enriquecimento filosófico ocidental. Os romanos, na relação com os gregos, procuraram examinar seus costumes, admirar seus pensamentos e história, uma e outra ricas de beleza e pujança ao lado da sátira, a pretérita criação romana. É sobre ele que, na versatilidade literária dos romanos, orgulhosamente disse Quintiliano: “Satira tota nostra est5. Esta consciência do saber literário, misturada com a habilidade da reflexão racional, constituem o legado histórico ocidental do 3 4 5 Tanto a Filosofia grega, como a literatura greco-latina, apresenta a origem da escrita ligada ao roubo do poder divino. No decorrer deste capítulo se fará uma revisão desde a propósito da poética popular brasileira. Em Lucrécio não está presente a subsistência da alma após a morte. Apenas concebe a alma composta de átomos que dissolve-se com a dissolução do corpo (cf. ROMERO, 1968, p. 45-46). “A sátira é totalmente nossa”. 42 qual emerge a poesia popular veiculando a mesma consciência do saber sabendo-se. É notável como este dado contextualizante seja conhecido pelos cordelistas. A exemplo, o poeta popular de bancada (Linhares, 1979), cearense, a propósito disse: Quem despreza o poeta é muito mau Não conhece a história dos romanos Nem dos gregos lutando com os troianos Por Helena, a mulher de Menelau! Finalmente o poeta é como a nau E é nele que a perfeição se encerra: Pois as musas que o amam são divinas Como as árvores frondosas das campinas O poeta nasceu da própria Terra! Na estrofe o poeta Linhares aponta que se busque ter o segredo da escrita, próprio da divindade, mas hoje propriedade humana e condição de possibilidade da percepção poética por se constituir linguagem. A linguagem reflete o ser psíquico-corpóreo do homem e segue as leis do mesmo, tendo como intuito principal a representação figurativa, imita o objeto significado em sua forma sensível e, por conseguinte, é imediatamente compreendido por qualquer interlocutor. Contudo, a linguagem faz presente não o objeto, mas o pensamento e este se objetiva (na sua forma evoluída) não por meio de cópia, mas mediante um sinal que o substitui sem esgotá-lo porque, se assim o fosse, destruir-se-ia a dialética do conhecer que se sabe como busca e não como posse absoluta da verdade. Conhecer e o ato de fazer representações mentais que, por si, não podem ser externadas, mas dentro de um processo de comunicação ganham expressão, que é designada palavra cujo signo se faz no som e na escrita como sinais que representam o conceito, efetivando uma analogia e não a mesmidade ôntica do representado. Noutros termos, a linguagem representa a veracidade. do objeto depois de sua presentificação menta1 (PUGLIESI, 1977, verb. linguagem). 43 Platão, que considerava a escrita uma auxiliar para a recordação e não para a memória, apresenta o deus Thot criando as artes, dentre os quais a escrita, que tornara os egípcios mais sábios que os demais homens, conforme se pode ler do diálogo a Fedra: O deus chamava-se Thoth. Foi ele quem inventou os números [...] e também a escrita. Naquele tempo governava o Egito Tamuz, que residia no sul do país, na grande cidade que os egípcios chamavam Tebas do Egito, e a esse deus dava-se o nome de Amon. Thoth foi ter com ele e mostrou-lhe as suas artes, dizendo que elas deviam ser ensinadas aos egípcios [...]. Quando chegaram à escrita, disse Thoth: Esta arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes fornecerá a memória; portanto, com a escrita inventei um grande auxiliar para a memória e a sabedoria. Responde Tamuz: ´Grande artista Thoth! [...]. Tu, como pai da escrita, espera dela com teu entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode fazer [...]. Tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação (PLATÃO, 1996, p. 261-262). Como auxiliar para a memória ou para a recordação, a escrita foi se tornando cada vez mais presente nas nossas vidas. Ainda no universo cultural grego Esquilo, em Prometeu Acorrentado”, apresenta um dado que em nada contraria Platão. Prometeu (deus do fogo, filho do titã Japeto e irmão de Atlas, aparece na mitologia grega como inimigo criador da primeira civilização humana), que representa o amigo da humanidade, que se colocou em sua defesa quando Zeus se irritou contra ela e ensinou aos homens a civilização e as artes. Ao proceder, desobedeceu a vontade de Zeus e tornou-se alvo da ira do rei dos deuses e dos homens. Prometeu, por ter dado a escrita a humanidade, não se rebaixou em fazê-lo, tornou-se, porém, símbolo da abnegada resistência a um sofrimento imerecido e da força de vontade de resistir à opressão. Provavelmente, a chave para o melhor entendimento da tragédia é o nome de sua personagem principal. O progresso da humanidade deveu-se à capacidade dos homens de pensar antes de fazer: “literalmente Prometheus significa aquele que pensa antes de fazer” (BULFINCH, 1965, p. 20). Esta chave torna mais compreensível o longo discurso de Prometeu sobre o bem que ele fez à humanidade em seus primórdios. Da acusação às declarações de Prometeu lê-se: - Poder Ele roubou teu privilegio, o fogo rubro 44 de onde nasceram todas as artes humanas para presenteá-lo aos mortais indefesos. É hora de pagar aos deuses por seu crime e de aprender a resignar-se humildemente ao mando soberano de Zeus poderoso, deixando de querer ser benfeitor dos homens. Eis tua recompensa por haver querido agir como se fosse benfeitor dos homens, como recompensa permanecerás numa vigília dolorosa sempre em pé sem conseguir dormir nem dobrar os joelho. - Prometeu “Subjugam-me estes males todos- ai de nin! – por ter feito um favor a todos os mortais. Em certa ocasião apanhei e guardei na cavidade de uma árvore a semente do fogo roubado por mim para entregar à estirpe humana, a fim de .servir-lhe de mestre das artes numerosas, dos meios eficazes de fazê-la chegar a elevados fins. Fica sabendo ainda: nunca eu trocaria minha desdita pela tua submissão. Acho melhor ficar preso a este rochedo que me ver transformado em fiel mensageiro de Zeus, Senhor dos deuses! Assim mostrarei aos orgulhosos quão vazio é o seu orgulho! (ÉSQUILO, 2004, p. 15-16.21). Dessa iluminação nascente do mundo olímpico, aparece o contexto de resistência à opressão nas palavras de Prometeu: “Acho melhor ficar preso a este rochedo, que me ver transformado em fiel mensageiro de Zeus, Senhor dos deuses”! Esta postura radical de liberdade é contra o autoritarismo passivo a que jamais se deve submeter-se. A dimensão popular deste dado é mesmo de educação para a liberdade: [...] “assim mostrarei aos orgulhosos que vazio é o seu orgulho”. Esta iluminação é que emerge quando poetas, quer gregos, romanos ou da Literatura de Cordel, evocando divindades do Olimpo, suplicam a arte de versejar. Neste contexto da arte, que se faz linguagem, adequa-se a súplica de Nietzsche a propósito da sabedoria popular da Grécia: Não te afastes antes de ouvir o que declara a sabedoria popular grega dessa vida que, diante de ti, se estende como uma alegria tão inexplicável! 45 [...] A fim de poder viver foram os gregos obrigados a criar esses deuses da maior necessidade, acontecimento que nós devemos respeitar, certamente de tal maneira que a primitiva, com paulatinas modificações, na olímpica ordem divina da alegria; como rosas que brotam de espinhosa sebe (NIETSCHE, 2005, p. 35-36). Uma questão se impõe: como poderia ter suportado a existência aquele povo tão sensível, tão desejoso, tão inclinado ao sofrimento, se ela não fosse apontada como rodeada de uma glória de superioridade, em seus deuses? Aquele mesmo impulso que chama a arte à vida, como o complemento sedutor à continuação da vida e perfeição da existência, fez também nascer o mundo olímpico em que se representou a vontade helênica como um espelho transfigurante. Assim, os deuses justificam a vida humana vivendo-a eles mesmos. Mesmo com a mistura divino-humana, a tragicidade da vida faz-se mais presente no canto poético de modo a ter merecido de Nietzsche a seguinte afirmação: Quando a lamentação se faz ouvir uma vez, então ela ressoa sobre Aquiles. que tão breve existência desfrutou, sobre os seres humanos que mudam e passam como folhas. sobre o desaparecimento do tempo heróico (NIETSCHE, 2005, p. 36). Nesse contemplar da efemeridade da vida, Ésquilo encontra-se com Sófocles com a sua mais trágica comédia, “Rei Édipo”. Nos pontos radicais - cumpre advertir o poeta manteve-se fiel à tradição. Em que pese a fala final do coro, segundo os deuses, ninguém deve ser considerado feliz enquanto não houver atingido o termo de sua vida. A tese dominante do Rei Édipo consiste na contingência inexorável de fatalismo: “nenhuma criatura humana pode fugir de seu destino”. Meio à tragicidade reencontra-se, na peça capital do gênio grego, a relação profunda entre as divindades e os homens. Na abertura de textos (de Ésquilo e de Sófocles), na constante similaridade de súplicas a PalIas, a Aqueloo ou a outras entidades, 46 percebe-se na fala do sacerdote, direcionada a Édipo, a consciência da ação da divindade e a eficácia da palavra em favor da efêmera existência: Édipo, tu que reina em minha pátria bem vês esta multidão prosternada![...] Certamente, nós não te igualamos aos deuses imortais [...], mas vemos em ti o primeiro dos homens, quando a desgraça nos abala a vida, ou quando se faz preciso obter o apoio da divindade. Porque tu livraste a cidade de Cadmo do tributo que nós pagávamos à cruel Esfinge [...]. Salva de novo a cidade, restitui-nos a tranqüilidade, ó Édipo. Se o concurso dos deuses te valeu, outrora, para nos redimir do perigo, mostra pela segunda vez, que és o mesmo! (SOFOCLES, 1957, p. 50-51). O que constitui fruto da imaginação de Sófocles é o modo atroz pelo qual o próprio Édipo arranca os olhos das órbitas, utilizando as presilhas de metal de seu régio manto. Enloquecido e cego, temido e abandonado por todos, exceto pelas filhas, depois de dolorosa peregrinação, ele se libertou de sua desgraça, fruto do destino ou da punição dos deuses. Cabe a observação de Nietzsche a propósito da poesia grega que, estabelecendo a unidade entre Sófocles e Ésquilo, possibilita que se retome o dado frontal da solidariedade aos homens: Em virtude de seu amor titânico para com os homens, foi Prometeu despedaçado pelos abutres; por causa da sua sabedoria descomunal que decifrava o enigma da esfinge, teve Édipo de cair num abismo desnorteante de crimes: assim interpretava o deus délfico o passado grego (NIETZCHE, 2005, p. 38). Tais informações, quando relacionadas à Literatura de Cordel, apontam para o escopo educativo desta última. Com ou sem explícitas pretensões de educar, o Cordel vem informando e formando, opiniões. Nesse sentido, não foram poucas as estrofes produzidas pela oralidade e folhetos na poesia popular. Enquanto muitas estrofes desapareceram no cessar da sonoridade dos vates cantadores e de cordelistas em glosas - momento de declamação improvisada sob a orientação de um mote proposto -, tem-se algum registro de educação cordelística a propósito da gênese da palavra como arte para a arte poética. 47 O poeta Rodolfo Coelho Cavalcante, respondia ao locutor Pedro Mendes Ribeiro, sobre a origem da poesia, com a seguinte estrofe: Thot a palavra inventou no centro olímpico certo dia, Prometeu foi lá e a robou pra gente fazer a poesia, garantindo pra sempre nosso verso de viola, de cordel e cantoria6. A fonte para os poetas populares brotava dos almanaques e do Lunário Perpétuo livro vindo de Portugal em sua primeira edição, editado em Lisboa em 1903 - fornecendo ciência popular e mitologia greco-latina (cf. CASCUDO, 1980, verb. Lunário Perfétuo). Enquanto a pesquisa acontecia, a informação ia circulando em folhetos e cantorias de viola. Nesse contexto, do X Festival de Cantadores, no Piauí (1980), ouvia-se a dupla Pedro Bandeira e João Furiba, de repente ecoa uma estrofe cantada por Pedro Bandeira que dizia: Que beleza sem fim prá humanidade quando o mundo inteiro compreender que nos somos poetas a fazer perdurar neste mundo a divindade porque temos a força da verdade dentre as artes a arte que criou: Nossa palavra Thotte a inventou, mas Prometeu foi quem deu ao poeta quando agiu parecendo um atleta e dos céus a palavra ele roubou. A palavra céu aparece em substituição ao vocábulo olimpo, aponta, a um tempo, para a necessidade métrica e para o universo da cultura ocidental, marcada pelo encontro de duas vertentes de saber, grega e romana, sinteticamente objetivadas no cristianismo. Contudo, os poetas populares têm familiaridade com a sabedoria grega, aparentemente seara dos 6 Esta estrofe fora produzida numa entrevista de poeta no programa de violeiros Sertão pau dentro e por fora da Rádio Pioneira deTeresina (PI), dia 16/08/1975, período do V Festival Norte Nordeste de Violeiros. 48 doutos, conforme se pode perceber nas seguintes as estrofes produzidas na peleja entre Otacílo Batista e Oliveira de Panelas, no ano 1979, em Fortaleza: OB- Vi a Grécia explorando a inteligência Dos seus sábios, artistas, de seus gênios, Procurando o segredo dos milênios No caminho infinito da ciência... Muitas vezes na busca da essência Encontramos tremendos desabores Junto a Zeus, dominei as minhas dores Quando lá no Olimpo, fiz o morada A pedido de Juno apaixonada Fiz, de es pinhos agudos, lindas flores: OP- Junto a Hercules, soltei o “Prometeu”; Consegui, para a Grécia, a paz interna Batalhei com o tal Hidra de Lerma, No ritmo da música de Orfeu Fui às casas de Júpiter e de Perseu À procura de Apolo e de Atenéia Sem temer ameaças de Medéia Com a força de uma bela musa: Derrotei os encantos de Medusa E o leão “invencível de Neméia. (LINHARES BATISTA, 1982, p.13 e 15) A leitura mais acurada das matizes de Cordel possibilita o perceber-se a influência helênica em sua produções por se tratar de poetas formados sob a égide do cristianismo, o que remete a ver-se a gênese da poesia popular brasileira atrelada à vocação intelectual de Roma. Como já fora referido anteriormente, a propósito desta identidade intelectual romana, dos críticos sempre se empenharam em mostrar Virgílio copiando os modelos gregos de Teócrito, Hesíodo e Homero, mas todos são acordes em confessar que ele sabe, com mais arte e sentimento, tecer a sua poética e pintar os quadros da natureza. Contudo, se se passa a considerar “Eneida” o grande poema da humanidade, no que diz respeito à sua popularidade, como uma das cinco grandes epopéias da literatura universal, vale a declaração de Xavier Pedroza: 49 Força, é confessar, porém, que nem mesmo a Ilíada e a Odisséia foram tão populares e estimadas entre os povos ocidentais ou mesmo em toda a Europa quanto Eneida de Virgílio (PEDROSA, 1947, P. 94). Em Roma Virgílio fez da vida um canto cuja popularidade7 deveu-se ao fato de ter sido ele criado no ambiente campestre. Filho de pequeno agricultor, foi capaz de conservar fidelidade às suas raízes com muito amor ao compor Bucólicas ou Écoglas. A sua glória, contudo, firmou-se com a segunda obra As Geórgicas8, poema didático sobre a agricultura, dividido em quatro livros: o primeiro trata da cultura da terra; o segundo, das árvores, especialmente da vinha; o terceiro, da criação e o quarto, da apicultura. A sensibilidade e a imaginação do poeta vivificam freqüentemente a exposição didática em belas descrições de fenômenos naturais e em reflexões de caráter moral. A poesia didática de Virgílio – Geórgicos - nos cinco primeiros versos do livro I propõe a temática ecológica do ponto de vista da formação de uma nova consciência para a vida ativa no campo: O que torna fortes searas, sob que astros é conveniente revolver a terra e amarrar as videiras às estacas, sobre as preocupações em relação aos bois, que cuidados são exigidos para a criação do gado, qual a experiência com as delicadíssimas abelhas. Eis, Macenas, o que me disponho a cantar (VIRGILE, 1910, v. 5-10). O poeta apresenta seus objetivos depois de ter invocado as divindades gregas e itálicas (os poetas de Cordel também fazem a mesma invocação, acrescentando as divindades judaico-cristãs), para iniciar sua exposição falando dos tipos de solo que é preciso conhecer antes de iniciar o cultivo, da necessidade que tem a terra de descansar entre uma seara e outra, da importância de se alternarem as culturas. 7 8 A popularidade referida ao poema Eneida, de modo a merecer-lhe a alcunha de grande poema da humanidade, faz referência à Itália onde a popularidade do poema é indiscutível.. Poema didático produzido para atender a solicitação de Macenas. 50 Várias foram as fontes de que Virgílio se valeu para composição de seu poema. É sensível a influência de Hesíodo (Os trabalhos e os dias), Aristóteles (História dos animais e História das plantas), Aratos (Fenômenos), Catão (Sobre a apicultura), bem como em menor escala, as obras de Teofrasto, Nicândro, Magão e Varrão (CARDOSO, 1988, p. 63-66; 194208). A presença dos filósofos na poesia didática, Aristóteles em Virgílio e Epicuro em Lucrécio, faz da poética romana um acervo filosófico de importância doutrinal existencial. Por esta hibridade é que o epicurismo, já sendo conhecido em Roma desde o século II a.C., encontrara o seu grande porta-voz quando Lucrécio exalta Epicuro a ponto de considerá-lo um deus (LUCRÉCIO, 1986, III, 1-30). No livro primeiro, que se inicia por uma invocação a Vênus, seguido do elogio a Epicuro - que liberta a humanidade do temor dos deuses -, Lucrécio discorre sobre a matéria e o vácuo. Retomando idéias exploradas por Demócrito (460-370 a.C,.), defende o princípio de que “nada se cria e nada se destrói: tudo se reintegra na massa material que forma o universo, constituindo este de partículas mínimas e individuais - os átomo - que, agrupando-se em combinações múltiplas, compõem os corpos e os seres (LEONI, 1960, p. 16). Lucrécio revela grande preocupação com a verdade científica e, ao mesmo tempo, com a clareza do pensamento. Pretendeu escrever não um tratado filosófico, apenas mas também um poema, uma obra de arte como ele mesmo se faz entender: [...] Por isso a nossa época não pode conhecer o que se passou anteriormente, a não ser alguns traços que o racionalismo nos indica [...]. Assim o tempo leva, paulatinamente a novas descobertas e a razão as traz a plena luz (LUCRÉCIO, 1986, liv. v. 1436-1445). Colocando-se ao lado da poesia didática romana, voltada para a natureza, a poesia didática da Literatura de Cordel brasileira, também voltada para a natureza, eis a única versatilidade literária juntando a Virgílio e Lucirécio os poetas populares Alberto Porfírio, 51 Buble-Bule da Bahia e João Bandeira que, segundo o poeta popular Téo de Azevedo, no poema “Faculdade Sertaneja”, são formados na escola natureza: Sou formado numa escola 0 seu nome e natureza, Meu diploma é a viola Num ponteio de grandeza Do jeito que canto a água Quebrando a correnteza. Eu sei comer com a mão Beber água cristalina Conversar com o meu gado Num aboio que domina Calçar minha Salga-Bunda E correr pela campina (TEO AZEVEDO, 1979, p. 107). Não só Téo de Azevedo, mas a grande maioria dos poetas de Cordel, como Virgílio, tem suas raízes na vida do campo, o que possibilita dizer-se que a Faculdade Sertaneja ensina os poetas populares. Estudantes desta escola, estagiários da comparação e produtores das metáforas, mostram estrofes expressão do mundo, da vida, que, na questão ecológica, aproximam-se do mestre Virgílio e, quanto às imagens estróficas, aproximam-se da filosofia de Lucrécio: As florestas são chamadas Os pulmões da Natureza Sem elas, se acaba tudo Na fome, na impureza Os que a estragam só pensam No dinheiro e na grandeza. Sendo a floresta acabada Ninguém vai fazer qlais fogueira, Tendo falta de madeira Ninguém vai fazer latada, Vão dar fim na farinhada Com industrialização Fazendo álcool pra FUSCÃO Mas farinha vai faltar... Estão querendo acabar As riquezas do sertão. “Os homens dos nossos dias Têm causado tanto invento 52 Que se não se prevenirem Poderão, em um momento Causar na humanidade Um completo arrasamento. Pois você não tem juízo seja pessoa mais honesta será grande o prejuízo se acabar a floresta apois queimando a fulora (SIC) os passarin vai (SIC) embora as ave não canta mais (SIC) se é esse seu prazê (SIC) deixe primeiro fazer o açude dos Carás9. Retomando a literatura romana, os períodos de Cícero e de Augusto (80-43 a.C. e 43 a.C -14 d.C.), pouco contribuem para a dramaturgia latina. Dos numerosos escritores que compuseram tragédias (Cássio, Quinto Cícero, Balbo, Vário Rufo, Olvídio, Mamerco Escauro, Pompônio Segundo) pouca coisa se conservou para a posteridade: alguns versos, uma ou outra notícia, alguma referência curiosa. Mas, no século I d.C., surgiu em Roma uma produção de tragédias que não apenas conseguem atravessar os séculos, perdurando até hoje, como vão exercer profunda influência sobre a literatura dramática que se produzira depois. São as tragédias de Sêneca10, o filósofo, uma figura das mais significativas das letras latinas da época da dinastia claudiana (BANDON, 1952, p. 16-58). Cenas de horror e de violência pontuam as tragédias de Sêneca, tornando, por vezes, quase impossível à representação. É o caso do assassinato dos filhos do herói, em “A loucura de Hércules”; do sacrifício de animais, em Édipo e, do lançamento do cadáver da criança do 9 Na autoria dos verbos citados, tem-se, na ordem estrofes, os seguintes poetas e títulos: PORFÍRO, Alberto, 1979, p. 4; BULE-BULE, 1980, p. 1; PORFIRO, 1979, p.4 E CALDAS, s.d., p. 4. 10 Lúcio Annaeu Sêneca (4 a.C.? – 65 d.C.) que compôs nove tragédias inspiradas em modelos gregos, sobretudo nas peças de Eurípedes. Uma delas “As feníncias” (Phoenisae) que se encontra incompleta, as demais conservaram-se na íntegra. Dentre elas estão “A loucura de Hércules (Hercules furens) e “Hercules no Eta” (Hercules Detaeus), também “Agamenão” (Agamenon) e “As troianas” (Troades) e “Pretexta” considerada apócrifa. (cf. BARDON, 1952. pp. 24-25). 53 alto do terraço em “Medéia”. Medéia, num dos solilóquios, revela a luta que se trava em seu íntimo e a firme resolução ali gerada: Minha mente tumultua com a idéia de desgraças selvagens, desconhecidas, capazes de fazer tremer o céu e a terra [...]. Arma-te com o teu ódio e [...] prepara-te para a destruição com todo o teu furor. [...]. Arranca de ti essa indecisão covarde. A pátria que conquistaste com um crime, com um crime [...] deverá abandoná-la (BANDON, 1952, p. 45.55). A tragédia na Literatura de CordeL aparece nos folhetos do ciclo da metamorfose e dos fatos circunstanciais ou acontecidos. A poética popular, em seu existir de criações constantes, propõe-se ser legível, deixando as marcas possíveis de suas leituras. No processo metamorfósico, tais marcas evidenciam as presenças do Bem e do Mal, duas forças antagônicas que recebem corpo na forma de algumas figuras. Entretanto, a criação literária cordelina, em seu momento metamorfoseante, elege o mundo animal. Neste sentido, o discurso conduz para a dialética da atração e repulsão que está no centro do nosso fascínio pela vida animal, vida mais próxima do homem, faltando, somente, a interferência da razão, porém em plenitude no que toca aos instintos (MATOS, 1986, p. 46-47). A mudança de homem para animal tem o sentido de castigo, de maldição quando é abordada sob a ótica adulta. É neste aspecto que Held (1985), fazendo referência a este assunto detém-se, informado que isso ocorreu nos grandes mitos, nas estórias originalmente escritas para adultos, a exemplo da Odisséia, quando os marinheiros são metamorfoseados em porcos pela feiticeira Circe. A metamorfose, do ponto de vista adulto, é passageira e deplorável (HELD, 1985, p. 13-33). A literatura popular em versos, que é feita basicamente para o público adulto, insere-se no pensamento heldiano, em relação à metamorfose de caráter, transitório, cujo exemplo é o folheto “Estória do pavão encantado” de Minelvino Francisco da Silva (1975), em que há o relato de um príncipe que se transforma num pavão, o 54 que se dá por um determinado tempo até o desencantamento. A respeito da tragicidade e metamorfose, Matos (1986, p. 50), comentam o seguinte: A poética popular abrange um universo do imaginário enriquecido com as mais diversas histórias. Também, aí se dá a desvalorização do que é concreto. Como exemplo, diremos do caráter polissêmico dos textos onde se opera a metamorfose por punição. Não é pelo simples fato de ter desobedecido a mão e estar sem rumo certo que a cachorra, de ´A moça que bateu na mãe e virou cachorra`, percorre v´rios locais do Nordeste. Nas entrelinhas, está representada a alegoria da punição, num modelo exemplar para ser visto e nunca imitado – um grito de alerta. Onde estaria, pois, a tragicidade no metamorfoseamento? A tragicidade está na própria condição da metamorfose que, como processo do imaginário, permite localizá-lo em sua plenitude, no que toca o aspecto punitivo que, segundo Matos (1986, p. 50), aparece como operação mediadora entre o mundo racional e o irracional: A condição de metamorfose pode ser compreendida em sua plenitude, no que toca ao aspecto punitivo, como um problema que, se por um lado sugere a resistência a uma completa mudança, por outro lado, apresenta-se, a rigor, como o mais alto testemunho de punição: a transformação pela metade. Nessa mistura de metade homem, metade animal estão explícitas as duas formas, sem possibilidade de determinação de uma sobre outra. A parte superior onde está a cabeça, símbolo da racionalidade que traz o olho, elemento de visualização, fica inteiramente preservada. A parte dos membros realiza o movimento transformador. Na preservação da racionalidade é onde se situa o ponto alto da punição, porque não existe a oportunidade de participar do reino animal quando se está de posse justamente daquilo que age como distintivo: a razão ao contrário, não se poderia inteirar-se do reino humano, pois causaria uma estranheza pelo aspecto físico, ao tempo em que a denúncia dos atos indignos e a sua conseqüente punição se evidenciariam. 55 A tragicidade consiste em que o ser metamorfoseado pela metade estaria condenado ao isolamento e, daí, a uma maior dose de sofrimento, a exemplo do folheto “a moça que bateu na mãe e virou cachorra”, e Helena, a moça que zombou da sexta feira da paixão, ficou assim metamorfoseada: Tinha a cabeça de gente com a mesma feição dela Mas o corpo até a cauda era uma horrivel cadela... Foi Helena castigada uma filha amaldiçoada o castigo pegou nela. A penitência da moça é vinte anos sofrendo Por isso que ela padece, uivando, se maldizendo Pegando de noite gente, é uma cachorra valente que a anos vem aparecendo (CAVALCANTE, 1976, p. 7). A temporalidade da metamorfose é evidente na segunda septilha. Este aspecto da metamorfose, sob a ótica da punição, tem, no âmbito da literatura popular em verso, rico acervo. A sua penetração no público leitor/ouvinte é muito grande. A exemplo de ilustração, a antologia cordelina apresenta, dentre muitos, os seguintes títulos: “A mulher que virou serpente” (1946), de Rodolfo Coelho Cavalcanti; “A mulher que virou cobra porque açoitou a mãe” (1970), de Pedro Bandeira. No ciclo dos fatos circunstanciais ou acontecimentos, a Literatura de Cordel expressa a tragicidade na postura dos poeta populares que, tomando conhecimento do quotidiano local, regional, nacional e até mesmo internacional, algumas horas depois do ocorrido produzem um folheto, fazendo o jornalismo paralelo. Não só noticiam os fatos, mas envolvem os leitores na tragicidade do acontecido. Nestes folhetos os poetas têm o cuidado de preparar os leitores progressivamente para as grandes emoções. Nesta didática o poeta José 56 Caetano, abre seu folheto “Desastre na serva de Pacatuba” (1982, p. 1), com a seguinte estrofe: Com emoção e tristeza E o pensamento apagado, Com minha fraca caneta Vou escrever um tratado Uma das cenas mais tristes Que já houve em nosso Estado. A tragédia no Cordel possibilita elencar os seguintes títulos de folhetos circunstanciais: “Os suicídios do Elevador Lacerda” (1947) de Rodolfo Coelho Cavalcante, em Salvador; “A tragédia de Cubatão” (1984) de Raimundo Santa Helena, no Rio de Janeiro; “Tragédia mar na última noite de ano” (1989) de Apolônio Alves dos Santos, Rio de Janeiro. O início do novo milênio, segundo Jeová de Aquino, nunca será esquecido dada a tragicidade de seu nascimento. Esta é a posição manifesta no folheto “A queda das torres douradas do Império Americano” (2001) do poeta citado. As estrofes seguintes ilustram a tragicidade da vida nas letras populares: Valei-me meus Deus amado Põe teu olhar sobre a terra , O mundo esta ameaçado Pelo mal que não se encerra O egoismo excitado Ensaia uma nova guerra. E explosões abundantes As torres foram pro chão Muitas vidas num instante Viraram pó.e carvão Desespero alucinante Prejuízos sem razão (AQUINO, 2001, p. 1 e 3). Esta epocalidade da Literatura de Cordel, cujo escopo é informar e formar a opinião pública popular sobre o que acontece, faz jus à declaração feita por Mário de Andrade (1932, p. 73), quando disse: 57 O romance é a forma solista por excelência, poesia historiada, relatando fatos do dia. Qualquer caso mais ou menos impressionante sucedido no Brasil, e às vezes mesmo no estrangeiro, é colhido nos jornais por algum poeta popular praciano, versificado e impresso em folheto. Somente na década de 50 do século XX a Literatura de Cordel foi publicamente reconhecida como jornalismo paralelo nas palavras de Orígenes Lessa (1955, p. 17). Os desastres, as inundações, as secas, os cangaceiros, as reviravoltas da política alimentam o caráter jornalístico dessa produção que sobre as centenas de títulos por ano. Sobre esse modo de poetar, é pertinente recordar o que Sílvio Romero (1977) verbalizou: “A literatura ambulante e de cordel no Brasil no Brasil é a mesma de Portugal”. Esta informação remete ao trovadorismo português e à práxis comunicativa medieval. Dá-se o nome de trovadorismo ao movimento poético português de florescimento das cantigas que eram poemas feitos para serem cantados ao som de instrumentos musicais como flautas, a viola, o alaúde e outros. Trovador era o nome que se dava ao autor das cantigas. Ao cantor costumava-se chamar de jogral. Esse período se estende do século XII ao XV e é de inspiração provença1 (MAXADO, 1980, p. 13). Na região de Provença, Sul da França atual, floresceu no século XI um rico movimento poético que depois se espalhou pelo resto da Europa.. Esta produção, fruto do ambiente requintado das cortes francesas do Sul, cantigas líricas provençais, expressam o sentimento de amor do trovador pela dama. O trovador é alguém que implora seus favores e sua atenção, não escondendo por trás das sutilezas da linguagem, todo o erotismo de desejo amoroso. Os trovadores provençais ficaram famosos pelo alto nível que atingiram na elaboração das antigas. A maneira. de trovar; isto é, o poetar e muitas expressões da linguagem usadas por eles atravessaram fronteiras e foram imitadas por toda parte (CIDADSE, 1936, p. 60). 58 Em vista das próprias condições nas quais foram compostas e executadas as cantigas, a maior parte ficou perdida, pois não havia a preocupação de registrá-las por escrito. A obra mais antiga que se conhece é chamada Cantiga de A Ribeirinha ou Cantiga de Guarvaia, escrita provavelmente em 1189 pelo trovador Paio Soares de Taveirós, segundo Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1929), e que costuma ser assinalada como marco inicial da literatura portuguesa. Os únicos documentos que nos restaram sobre tal produção literária são os cancioneiros, coleção de .cantigas com características variadas, escritos por diversos autores. Desses cancioneiros, são importantes para o conhecimento do trovadorismo galegoportuguês os seguintes: Cancioneiro da Ajuda, com pilado provavelmente no século XIII; Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa, conhecido também pelo nome dos italianos que o possuíam, Cancioneiro Coloci-Brancuti. Foi compilado provavelmente no século XV; Cancioneiro da Vaticana, fora organizado provavelmente também no século XV. Cita~se outra fonte preciosa, em galego-português, que é a compilação das Cantigas de Santa Maria, ordenada por Afonso X, rei de Castela, em meados do século XIII, e que contém mais de quatrocentas cantigas, todas de inspiração religiosa. As cantigas recolhidas nos três primeiros cancioneiros estão distribuídas em dois gêneros e subdivididas em quatro modalidades: gênero lírico, constituído pelas cantigas de amor e cantigas de amigo; gênero satírico, constituído pelas cantigas de escárnio e cantigas de maldizer. Sem prescindir da importância peculiar do gênero lírico, tomar-se-á aqui o gênero satírico em conformidade, mais imediata, à perspectiva desta contextualização da Literatura de Cordel. As cantigas satíricas visavam criticar personagens ou comportamentos sociais por meio de uma linguagem humorística, quase sempre tendia à ridicularização. Seu alvo ia da decadência dos nobres à incompetência política dos governantes; das libertinagens do clero ao 59 comportamento das prostitutas, além da prática de homossexualismo, de adultério, do ócio, do latrocínio e muitas outras questões sociopolíticas. Embora apresentem vários aspectos comuns, há três elementos básicos que permitem diferençar as cantigas escárnio das cantigas de maldizer. As cantigas de escárnio procuram apenas sugerir a pessoa que é satirizada, sem revelar o seu nome, ao passo que as cantigas de maldizer normalmente a identificam. As cantigas de escárnio apresentam uma linguagem trabalhada, rica de sugestões e ambigüidades; a linguagem das de maldizer normalmente é direta e agressiva e, freqüentemente, faz uso de palavras de baixo calão. Nas cantigas de escárnio predomina a ironia, nas de maldizer, a zombaria. Apesar da eficiência das cantigas satíricas, durante muito tempo foram relegadas a segundo plano, em virtude do preconceito moral e do predomínio das cantigas líricas. Contudo, a sátira trovadoresca tem uma grande importância, sobretudo, por três razões: o seu valor histórico-sociológico, enquanto descrição da sociedade medieval portuguesa; o distanciamento das convenções literárias vigentes e a busca de caminhos próprios; e o aprimoramento da língua literária ao explorar as ambigüidades e ao fazer trocadilhos sugestivos. A cantiga, que será lida logo em seguida, do trovador Fernam Velho, é uma sátira à soldadeira Maria Balteira e à sua regeneração. As soldadeiras eram mulheres que acompanhavam, cantando, tocando ou dançando, os concertos musicais de trovadores e jograis na Idade Média. Pela vida diferente que levavam, considerando o papel social da mulher na época, tinham má reputação: Maria Peres s'e manifestou noutro dia pois pecadora se sentiu, e log´a Nosso Senhor prometeu, pelo mau em que andou, que tivess 'um clérigo em seu poder pelos pecados que lhe faz fazer o demônio com quem sempre andou. 60 Manifestou-se porque diz que s'achou muito pecadora, porem rogador foi log´a Deus, pois teve por melhor do que aquele que a guardou (demônio) E enquanto viva diz quer ter um clérigo, com quem se defender possa do demo, que sempre guardou (Idem). Ainda, sob o enfoque da epocalidade da poesia, novo recorte é feito no período chamado “Segunda Época Medieval”, compreendido entre meados do século XV e início do século XVI, período português de assimilação da cultura greco-latina de cujo gênero épico de maior prestígio brotara monumentos literários do passado helenístico: “Ilíada” e “Odisséia” de Homero (mais ou menos no século VIII a.C.), mais tarde, “Eneida” de Virgílio (século I d.C.). Os temas centrais da epopéia, como se pode observar, expressam valores da aristocracia guerreira: o culto da coragem e da honra; o desejo de glória e fama; a preocupação com o Fado (destino). A mitologia, indispensável na epopéia, representa a presença e a intervenção divina no mundo, confrontando a condição de mortalidade dos homens à de imortalidade dos deuses. O Renascimento pôs novamente em prática as formas poéticas greco-romanas, respondendo a um desafio: recriar a epopéia. Depois dos italianos Boiardo e Ariosto11, Camões escreveu “Os Lusíadas”, a mais importante epopéia de todo o renascimento europeu, e está entre as maiores de todos os tempos. Comenta Cidade (1963), “o poema de Camões, como epopéia marítima, só é inferior à Odisséia de Homero”. Por ser a maior glória da língua e da literatura portuguesas, o poema Os Lusíadas tornou-se referência obrigatória, influindo nas poesias portuguesa, brasileira nos séculos posteriores e na poesia de Cordel do Brasil. 11 Bioardo compusera “Oriando enamorado” e Ariosto “Orlando furioso”, epopéias italianas renascentistas que ainda despertam interesse hoje. 61 A similaridade do poema camoniano – “Os Lusíadas” - com a poesia popular do Brasil passa pelo Martelo-de-oito-pés ou Oitava-de-martelo12. “O Lusíadas” foi escrito em estrofes de oito versos, em decassílabos, com acentuação tônica na sexta e décima sílabas, com o seguinte esquema de rimas: ABABABCC: As armas e os Barões assinalados Que da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca d'antes navegados Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana E entre gente remota adificaram Novo Reino, que tanto sublimaram -A -B -A -B -A -B -C -C (CAMÕES, 1980, I, 1). A mesma métrica, o mesmo esquema de rimas e a mesma acentuação podem ser observados na estrofes da poesia popular que, a título de exemplo, demonstra a estrofe do poeta popular piauense Pedro Mendes Ribeiro: O progresso da era espacial Conquistando no mundo da ciência Explorando no espaço sideral A beleza de nossa inteligência... Como a nave no campo orbital Confirmando o poder da Providência O trabalho dos grandes cientistas Fazendo prá história outras conquistas (RIBEIRO, 1995, p. 68). -A -B -A -B -A -B -C -C A epocalidade do poema mistura a narrativa da viagem de Vasco da Gama às Índias, os feitos do povo português com a empresa a que se propusera: despertar o interesse dos deuses que se reuniam para decidir a sorte dos portugueses: 12 Martelo-de-oito-pés é o gênero da poesia popular de improviso que desenvolveu-se para a forma atual de Martelo Agalopado de dez-pés.na cantoria de viola. 62 Já no largo Oceano navegavam As inquietas ondas apartando; Os ventos brandamente respiravam Das maus as velas côncavas inchando; Da branca escuma os mares se mostravam Cobertos, onde as proas vão cortando As marítimas águas consagradas Que do gado de Proteu são cortadas. Quando os Deuses do Olimpio luminoso Onde o governo está da humana gente, Se ajunta em concílio glorioso Sobre as coisas futuras do Oriente. Pisando o cristalino Céu formoso Vem pela Via Láctea juntamente Convocados da parte de Tonante, Pelo neto gentil do velho Atlante (CAMÕES, 1980, 1,19-20). A tragicidade epocal camoniana registra momentos fortes como “o amor trágico de Inês de Castro” (canto III), “o gigante Adamastor” (Canto V) profetizando naufrágios, provocando a cólera de Júpiter punindo os navegadores que violaram o grande segredo dos nautas. Nas últimas doze estrofes do poema, Camões lamenta a degeneração de seu povo e profetiza a decadência do país em tom dilacerado, como que epilogando a tragicidade epocal portuguesa que, apesar da advertência do vate português, passa despercebida: Não mais, Musa, não mais, que Lira tenho Destemperada e a voz enroquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende e engenho Não no da pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na dureza Duma austera, apagada e vil tristeza (CAMÕES, 1980, X, 145). Além da produção estrófica da poesia de Cordel, similar ao poema camoniano quanto à forma, a temática e a epicidade aparecem constantemente. Os poetas populares, de diferentes modos e profundidade, conhecem Camões e a literatura universal, notadamente as produções épicas e as tragédias gregas e latinas. O poeta de Cordel e violeiro paraibano, 63 Belarmino de Franca13, apresenta uma das melhores páginas de revisão de literatura grecolatina. Depois de extensa exaltação da figura, diz: Virgílio, vate latino Que Eneida escreveu E no ano dezenove Depois que cristo morreu, Ainda hoje em todo mundo Se fala o nome seu. Homero o poeta grego Narrou a guerra de Tróia Ele, compôs Ilíada Uma sublimada jóia, Já fez quase três mil anos Seu nome ainda se apoia. Homero além da Ilíada Compôs mais a Odisséia, Os episódios de Ulisses. A mais sublime epopéia, Que só o gênio poético Concebe tamanha idéia. Horácio, o barbo latino, Foi um poeta modeo Que a poesia do tempo Nã conseguiu envolvê-lo As densas brumas dos séculos Jamais farão esquecê-lo. Dante, vate italiano Encheu seu nome de glória Com a Divina Comédia Obra de eterna memória Que faz seu autor tornar-se Imortal sobre a história. Quem foi Luis de Camões Essa importante figura? Um gênio que só por si Vale uma literatura Seu nome através dos séculos Eternamente perdura. Sabemos que Camões foi Um poeta genial 13 Belarmino de França, poeta popular-viloleiro, paraibano de Paulista, nasceu dia 26/12/1824, e morreu dia 20/03/1982, com 88 anos. 64 Seu grande poema Os Lusíadas Fê-lo tornar-se imortal Ele embelezou a língua 68 E deu nome a Portugal (ABRANTES et MEDEIROS, 2006, P. 39-41). Belarmino de França, ao completar oitenta e quatro anos de idade, externou o seu pensamento e, sob emoções, explicitou-se na confluência do efêmero com o terno, à maneira dos clássicos, sem prescindir do tom jocoso da poética popular: Andei a primeira vez de quatro pés, e depois prossegui andando em dois hoje estou andando em três mas Deus assim não me fez, nem nasci desta maneira, esta perna de madeira uso por necessidade, Oitenta e quatro de idade não é boa brincadeira. Na vida que idolatro fiz ano mais um vez, sai dos oitenta e três, entrei nos oitenta e quatro já vou transpondo o teatro desta vida passageiro. descendo íngreme ladeira , em busca da eternidade. Oitenta e quatro de idade não é boa brincadeira (Idem, 15). A tragicidade versada confunde-se com o trágico vivido por Belarmino de França que, numa cantoria de viola, exalta a eternidade da poesia, parafraseando clássicos da poesia universal com o poeta popular, Leandro Gomes de Barros, o clássico do Cordel, glosando o mote “Desaparece o poeta/ mas a poesia não”, doado pelo cantador-cordelista Otacilio Batista. Assim, em décimas modernas cantou: O poeta é um dos tais Que o tempo jamais consome, Morre o corpo e deixa o nome No livro dos imortais 65 Entre a fama e os anais Seus versos nobres estão No seio frio do chão Dorme a matéria incompleta: Desaparece o poeta Mas a poesia não. Virgílio, vate latino Que a Eneida escreveu Antes de cristo morreu Mas seu poema divino Traçado pelo destino Tem a mesma perfeição. Dois mil anos já se vão Mas a obra esta completa: Desaparece o poeta Mas a poesia não. Ilíada e Odisséia Dois poemas, dois primores Cantados pelos cantores De Salamina e Platéia A mais sublime epopéia Mostra tanta perfeição Até nós com distinção A mão do tempo acarreta: Desaparece o poeta Mas a poesia não. Camões o poeta fecundo Faleceu há tempos idos Mas seus versos são conhecidos Nas cinco partes do mundo, No meu português profundo Versava com perfeição Deu mais à sua nação As glórias de grande atleta: Desaparece o poeta Mas a poesia não. Leandro Gomes de Barros Há muitos anos morreu Mas chegou ao apogeu Com seus poemas bizarros. Ele abarrotou os jarros Da poética inspiração Seu nome em toda nação Alcançou a última meta: Desaparece o poeta Mas a poesia não (ABRANTES & MEDEIROS, 2006, p. 88-89). 66 “O mote Desaparece o poeta/ mas a poesia não”, glosado por Belarmino de França e lido há pouco, favorece a passagem da poesia camoniana para a Poética brasileira e desta para a Literatura de Cordel, isto porque é incontestável que no Brasil houve ecos do Barroco europeu durante as séculos XVII e XVIII (BOSI, 1995, p. 39-41). Toma-se aqui Bento Teixeira, Gregório de Matos e depois Castro Alves, que emergiram e tornaram-se notórios na Bahia, sob o modelo de oitavas-de-martelo e temáticas sociais afins. Bento Teixeira14 tornou-se notável com a publicação do poema épico Prosopopéia (1601), um ano depois de sua morte, de 1601 até nossos dias, tal obra tem suscitado os mais diversos posicionamentos críticos, com predominância de pareceres desfavoráveis. A desfavorabilidade gira em torno da sua imitação do poema camoniano que, na linguagem de Bosi (1995, p. 41) não passa o poema Prosopopéia de um “primeiro e canhesco exemplo de maneirismo nas letras da colônia”. Como descolorida imitação camoniana, o poema foi chamado “um poemeto de segunda ordem e o seu autor um versejador nada inspirado”. Contudo, vale ressaltar Amora (1959, p. 5), que chama a atenção para o fato de que, “se Bento Teixeira imitou Camões, tal procedimento se deu dentro dos preceitos da imitação clássica”. Sobre a imitação clássica, a colocação de Aristóteles (1997, p. 22), em “A poética”, é pertinente para o momento: Por serem naturais em nós a tendência para a imitação, a melodia e o ritmo que os metros são partes dos ritmos é fato evidente - primitivamente, os mais bem dotados para eles, progredindo a pouco e pouco, fizeram nascer de suas improvisações a poesia. Aristóteles (1997, p. 22), fundamentando a diversidade da arte de produzir poeticamente na unidade fontal da genialidade dos vates, prossegue: A poesia diversificou-se conforme o gênio dos autores; uns mais graves, representavam as ações nobres e as de pessoas nobres; outros mais vulgares, 14 Bento Teixeira nasceu em Lisboa, em 1561, veio para o Brasil ainda criança, vivendo em Salvador (Ba.) e Recife (Pe.), morrendo em Lisboa em 1600. 67 as do vulgo, compondo inicialmente vitupérios, como ..os outros compunham hinos e encônios . A imitação de obras consideradas modelares era então um princípio posto em vigor pelo Renascimento. No caso particular de “Os Lusíadas”, a imitação atendia às intenções do poeta que daria à figura e aos feitos de seus heróis (Jorge de Albuquerque Coelho, seu irmão, seus pais e tio) uma significação semelhante à que passaram a ter os heróis camonianos. Mas, justificar, a bem da justiça, a imitação praticada por Bento Teixeira nada tem a ver como concluir pelo valor de sua obra. A este propósito há dese convir que não faltou ao autor o domínio dos processos épicos e dos recursos poemáticos oferecidos pelo modelo. Isto é, a imitação de “Os Lusíadas” é assumida desde a estrutura até o uso dos chavões da mitologia e dos torneios sintáticos. Nessa linha de pensamento, Bosi (1995, p. 41) refere: o que há de não português (mas não diria de brasileiro) no poemeto, como a descrição do Recife de Pernambuco; Olinda'celebrada e o canto dos feitos de Albuquerque Coelho, entra a título de louvação da terra enquanto colônia, parecendo precoce atribuição de um sentimento nacionalista nos passos citados. O poeta demonstra originalidade e contraria a tradição, pois diferente da maneira dos poetas clássicos, não evoca Délficas irmãs, musas inspiradoras do Parnaso, já que “tal invocação é vão estudo”. Na descrição do semideus Tritão, muito se distância daquela apresentada por Camões em “Os Lusíadas”. O vate faz questão de contrariar o seu modelo como aparece neste paralelo: Os cabelos da barba e os que descem Da cabeça nos ombros, todos eram Uns limos prenhes de água, e bem parecem Que nunca brando pente conheceram. Nas pontas pendurados não falecem. Na cabeça. por garra, tinha posta Uma mui grande casca de Lagosta (CAMÕES, 1980, Canto V) 68 Quando ao longo da praia, cuja areia É de marinhas aves estampada, E de crespadas Conchas mil se área Assim de cor azul. como rosada, Do mar cortando a prateada vea, Vinha Tritão em coIa duplicada, Não lhe via na cabeça casca posta (Como Camões descreve) de Lagosta. Mas Concha lisa e bem lavrada De rica Marepérola trazia De fino Coral crespo marchetada, Cujo louvor o natural vencia. Estava nela ao vivo debuchada A cruel e espantosa bateria Que deu a temerária e cega gente Aos deuses do Ceo puro reluzente (TEIXEIRA, 1977, XXI). É no universo vocabular de Bento Teixeira que se identifica um contra-argumento à acusação de plagiador de “Os Lusíadas”. O poeta, em pleno reinado cristão, não menciona, uma vez sequer, nomes de santos do catolicismo. Camões, por diversas vezes, faz referências a santos católicos; Bento Teixeira, seu suposto imitador, nenhuma. Estes dados podem reforçar indícios de resistência às leis cristãs, preferindo o poeta a observância das leis herdadas de Moisés: “Não terás outros deuses diante de mim!” Como judeu, fiel à tradição, seu poema se distancia de Camões como resistência à censura do Santo ofício. Não é sem razão que, a propósito da censura, Bosi (1990, p. 143), comenta sobre alternativas de sobrevivência da poética judaica no Brasil, no sentido de que uma delas é confundir a censura. Bento Teixeira introduz parcas menções de ritos católicos em seu poema, tentando talvez desfazer as perigosas referências anteriores. As referências anteriores, apontadas por Bosi, dizem respeito às passagens estróficas de feição judaica: o personagem Proteu, deus que pode adquirir aparências falsas e difícil de ser apanhado, segundo a mitologia. O monoteísmo hebraico é que impede o poeta de apelar para divindades pagãs e o impede também de pronunciar o nome de Deus em vão. Mas o 69 exemplo proposital de confundir a censura aparece na estrofe 68, que menciona uma procissão realizada pelos Albuquerque em Lisboa: As cidades de Ulisses destroçadas Chegarão da Fortuna e Reino salso Os templos visitando Consagrados Em procissão e cada qual descalço Desta maneira ficarão frustrados Os pemsamentos vãos de Lémnio falso Que o mal tirar não pode o beneficio Que ao bem tem prometido o Ceo propício. Além disso, observa-se que os dois versos que abrem a Prosopopéia, colaboram para o discurso recheado de duplo sentido: tanto podem estar fazendo alusão aos poetas , a exemplo de como Lucano na “Farsália”, que cantam as guerras de Roma, como podem estar sugerindo sutilmente críticas contra as perseguições que a Igreja Católica infligia aos judeus e aos seus descendentes: “Cantem poetas o Poder Romano/ Submetendo nações ao jugo duro!” A posição crítica de Bento Teixeira não é descontextualizada. Lembre-se de que o Brasil da Inquisição, com a visitação do Santo Ofício, inaugura para os hebreus uma época insuportável, mistura de torturas e humilhações de toda espécie. Os cristãos-novos viviam debatendo-se ante o dilema da “possibilidade de progresso material e a permanente ameaça de extermínio físico. Apesar disto, mitos aferram-se terimosamente às suas crenças e costumes” (SCLIAR, 1990). Nesse contexto é que se compreende Bento Teixeira e a sua poética de resistência ao autoritarismo, como questionamento onticamente fincando no seu ser judeu no Brasil, conforme aparece nas reflexões seguintes de Scilar (1985, p. 9): Questionar faz parte da condição judaica. É próprio do judaísmo não aceitar as coisas simplesmente porque elas têm atrás de si o peso da autoridade, e neste sentido os próprios profetas são exemplos eloqüentes. Raramente a história viu questionadores tão atravidos e tão corajosos como os profetas bíblicos, modelos de todos os reformadores. 70 Essa identidade judaica é, no poema “Prosopopéia”, a presença da resistência. Dissimuladamente, ali está a mensagem do transgressor Bento Teixeira a se insinuar nos seus versos aparentemente nacionalistas e cristãos: Neste tempo sebasto lusitano Rei que domina as águas do grão Douro Ao rei passará de Mauritano, E a lança tingirá em sangue Mouro; O famoso Albuquerque mais ufano Que Iason na conquista o véu d´ouro E seu irmão, Duarte valeroso, Irão ao Rei altivo, imperioso. (TEIXEIRA, 1997, p. 99) A narração com exaltação dos feitos dos Albuquerque, da luta para disciplinar os indígenas até a expulsão dos holandeses das terras brasileiras, dá a Bento Teixeira a possibilidade de entremear tais façanhas com exortação moral, que induzem alguns críticos, como Amora (1999, p. 5), a considerar que este é o que de melhor Bento Teixeira produziu: Ó sorte tão cruel, como mudável Por que usurpas aos bons o seu direito? Escolhe sempre o mais abominável, Reprovas e abandonais o perfeito E menos digno fazeres agradável, O agradável mais, menos aceito. Ò frágil, inconstante, quebradiça Roubadora dos bens e da justiça! (TEIXEIRA, 1977, 99) A figura e talento de Bento Teixeira não passaram despercebidos pela poesia popular. No VI Festival de Cantadores e Violeiros do Ceará, realizado no dia 9 de setembro de 1979, em Fortaleza, cantavam Zé Maria Nascimento e Dr. Ferreira (advogado repentista), quando o cantador Alberto Porfírio, professor primário, anunciava o seguinte mote: “Eu me lembro que foi Prosopopéia/ Uma medalha de nossa poesia”. Da peleja destacam-se as seguintes estrofes: 71 Z.N. – Como pôde a Igreja perseguir Um poeta que fez o verso seu E somente porque era judeu Não podia senão que resistir. Foi assim a vida e o porvir De seu Bento Teixeira da Bahia Que versou com grande galhardia Um poema, seu livro de estréia: Eu me lembro que foi prosopopéia Uma medalha de nossa poesia. Dr.F. - Bento Teixeira, Gregório e Castro Alves Baluartes na luta de opressão Três colunas de grande projeção Que na luta foram implacáve´s Bento Teixeira foi entre os declináve´s Que na força de sua cantoria Lutou contra toda hipocrisia E desmandos cristãos pela idéia: Eu me lembro que foi prosopopéia Uma medalha de nossa poesia. A estrofe de Dr. Ferreira evoca, para esta tematização do universo da Literatura de Cordel, o vate Gregório de Matos Guerra15, que segundo a dupla citada, tem uma poética de contestação e resistência ao autoritarismo. A diversidade e antagonismo de sua produção poética o enquadraram no espírito do barroco nacional, a tenacidade de suas investidas nas questões sociais e populares dos seus versáteis improvisos lhe mereceram a seguinte declaração dos poetas populares, Linhares e Batista (1982, p. 1): Coube ao Brasil o privilégio do aparecimento do legítimo cantador de viola, com Gregório de Matos Guerra nascido na Bahia, no século XVII e primeiro doutor brasileiro. Seguido pelo Padre Domingos caldas Barbosa, que, também, improvisava ao som da viola. Câmara Cascudo (1984), fazendo referência à sátira como característica das orações versificadas no sertão nordestino, resgata uma mistura de popular e erudito, no poema “Anjo 15 Gregório de Matos, baiano, muito conhecido dos cordelistas, nasceu em 1636 e faleceu em Recife em 1696 depois de ter vivido o degredo em Angola devido a sua sátira irreverente que, além de fechar as portas da Bahia para o seu progresso, o habilitou a receber a alcunha “Boca do Inferno” 72 Bento” de Gregório de Matos. O resgate fora feito no sertão paraibano de cinco quintilhas terminando com o mote em latim “libera nos Domine”: De homens mal encarados De partos atravessados De passar em Afogados Quando esta cheia a maré... LIBERA NOS DOMINEZ! (CASCUDO, 1984, p. 98). Expressões latinas são muito freqüentes na obra de Gregório de Matos como bem na sátira ao Sr. Antônio Luis da Câmara Coutinho, governador da Bahia (1690-1694): “in secula seculorum”, “verbi gratia” dentre outras. Tais expressões aparecem ora para uma escondida e contundente crítica que, em expressões latinas é, mais pertinente e menos visível; ora para satirizar um religioso perdendo a sua identidade. Vivendo numa sociedade cuja decadência econômica tornava-se visível e onde visível também se tornava o “círculo do ferro” e da pressão colonial, Gregório de Matos se vigaria através da poesia como diz Wisnik (1977, p. 15): O filho do senhor-de-engenho em plena crise, e o seu mundo, usurpado por aquilo que ele vê como o arrivismo oportunista dos pretensos e falsos nobres, os negociantes portugueses. O bacharel vive a farsa das instituições jurídicas [...].O poeta culto se vê no meio iletrado; a literatura sufocada nos auditórios – de igreja, academia, comemorações – praticada por sacerdotes, juristas, administradores, realiza a apologia suhjacente de um status quo que soa, como se vê, incômodo para Gregório de Matos. Na quotidianidade da vida de Gregório de Matos vislumbram-se as idéias barrocas do “desengaño del mundo”, do desconcerto da existência. Protesta com a linguagem poética e ninguém parece escapar à ironia do escritor: todos são sistematicamente ridicularizados como aparece no juízo que faz o poeta da cidade da Bahia: 73 Que falta nesta cidade? .................................. Verdade. Que mais por sua desonra? ............................. Honra. Falta mais que se lhe ponha? .......................... Vergonha. O demo a ver se exponha, Por mais que a fama a falta Numa cidade onde fala Verdade, honra, vergonha . E que justiça a resguarda? ................................. Bastarda. É gratis distribuída? .......................................... Vendida. Que tem, que a todos assusta? .......................... Injustiça. Vaha-nos. Deus, -o que custa O que El-Rei nos dá de graça, Que anda a justiça na praça Bastarda, vendida, injustiça. A Câmara não acode? ...................................... Não pode. Pois não tem todo o poder? ............................. Não quer. É que o governo a convence? .......................... Não vence Quem haverá que tal pense Que uma Câmara toda nobre Por ver-se mísera e pobre Não pode, não quer, não vence (MATOS, 1997, p. 37-39) Gregório de Matos, tendo consciência de que não era bem visto, não retrocede e declara nunca se calar: “Se o que fui sempre hei der ser/Eu falo seja o que for”. Assim, as prováveis torturas, o degredo e a volta condicional do exílio não aquebrantaram o espírito de luta e de resistência do vate-cantador barroco, cantado e exaltado na poesia popular. Documenta-se, desta exaltação os irmãos Bandeira16 que temerosos, pela presença de militares graduados na cantoria, improvisaram as seguintes estrofes: D.B. - Nosso Gregório de Matos Foi poeta de primeira Que seguiu Bento Teixeira Na doutrina e nos tratos, No dizer e ver os fatos Nos problemas sociais. Estes dois foram iguais Com talento, com bravura: CONTRA TODA DITADURA DOS TEMPOS COLONIAIS. 16 As estrofes foram improvisadas dia 18 de agosto de 1998 pelos poetas Pedro e Daldete Bandeira, na residência de Dr. Walber Angelim, em Teresina (PI), atendendo ao mote “Contra toda ditadura / dos tempos coloniais”, doado por Dr. Seabra da AGESPISA, preso-político do Regime Militar. 74 P.B. - Gregório pôde cantar As mazelas da Bahia. Gritava na poesia E no verso popular, Pois teria de projetar Em letras nacionais Desmandos oficiais Da imponente figura: CONTRA TODA DITADURA DOS TEMPOS COLONIAIS. D.B. - Hoje nós os cantadores Dele somos herdeiros, Seguidores verdadeiros Como vates trovadores. Pois nisto somos doutores E não somos marginais, Mas profetas sociais Da nossa literatura: CONTRA TODA DITADURA DOS TEMPOS COLONIAIS17. No pensar cordelino, Gregório de Matos, poeta andarilho, não é propriamente um marginal, como não são os seus herdeiros, mas vate inserido, com competência e pertinência na sociedade como cantador transmissor da poesia e da notícia, deixando aos outros cantadores a herança da inconformação diante da injustiça e a resistência à opressão. Este legado vem do poeta do improviso e não do bacharel em Direito. Da luta implacável contra a opressão, recordem-se quatro versos da estrofe do cantador-violeiro Dr. Ferreira que dizia: Bento Teixeira, Gregório e Castro Alves Baluartes na luta de opressão Três colunas de grande projeção Que na luta foram implacáveis18. A estréia de Castro Alves coincide com o amadurecer de uma situação nova no país: 17 18 Cópia da gravação em fita de propriedade da Cordelteca Siqueira de Amorim. João Pessoa, 2005. No dizer do poeta popular, Antônio de Castro Alves, nascido em Curralinho, na Bahia, em 1847 e falecido em 1971, em Salvador, é o último dos poetas elencados pelo talento e declamatória, aparecendo similar ao poeta de Cordel. 75 A crise do Brasil puramente rural; o lento mas firme crescimento da cultura urbana, dos ideais democráticos e, portanto, o despertar de uma repulsa pela moral do senhor-escravo, que poluía as fontes da vida familiar e social no Braisl-Império.(BOSI, 1995, p. 132). Nesse contexto, Castro Alves foi um dos primeiros líderes da campanha liberalabolicionista, junto a Tobias Barreto e, como Bento Teixeira e Gregório de Matos, passara pelo Recife, onde iniciara a sua fulgurante e meteórica carreira de inspirado poeta acadêmico e eloqüente declamador. Assim, o tom vigoroso dos poemas, a ressonância dos seus versos, a indignação e a expressividade são elementos que consagraram o “poeta dos escravos”. Condoeiro, a sua poesia serviu de instrumento de luta contra a escravidão, dado seu tom para récitas em locais públicos: praças, salões de leitura entre outros. Os mesmos lugares, que se constituíram palcos de Castro Alves, sempre constituíram o chão-firme dos poeta de Cordel, declamando e cantando as suas produções. A eloqüência dos versos castroalvinos está evidenciada nos poemas que denunciavam a vida miserável dos escravos e também aqueles que defendiam interesses políticos. O poeta aproximava-se da realidade social, embora conservasse ainda o idealismo e subjetivismo românticos. Tomando-se “O Navio Negreiro”, subtitulado “Tragédia do Mar”, do livro “Os escravos” (1886), declamado com sucesso no dia 7 de setembro, do ano de publicação do livro, é o mais representativo, tendo em vista que a força das palavras e expressões por Castro Alves levam o leitor a sensibilizar-se com a dramática situação daqueles homens, mulheres e crianças tratados de modo animalesco. 19 Nas duas primeiras estrofes, o poeta parece dispor de uma câmera que percorre primeiramente o oceano, depois focaliza o navio e, de repente, surgem as pessoas: 19 O poema “O navio negreiro” é muito longo. Está dividido em seis partes pelo próprio poeta, tratando muito dos escravos: Preparação do ambiente e tentativa de aproximação do navio (11 estrofes); Idealização dos marinheiros (4 estrofes); Aproximação e descoberta do horror (1 estrofe); Horror e sofrimento (6 estrofes); Passado X presente; liberdade X escravidão (9 estrofes) e Indignação (3 estrofes) num total de 240 versos em 34 estrofes (cf. CASTRO ALVES, 2002). 76 Estamos em pleno mar... Dois infinitos Ali se estreitam num abraço insano Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Qual dos dois e o céu? Qual.o oceano?... A câmera percorre todo o navio. A aguçada imaginação do poeta leva o leitor a cenas terríveis: Era um sonho dantesco... O trombadilho Que das luzernas avermelha o brilho Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar do açoite... Legiões de homens Como a noite Horrendos a dançar. A visão que o poeta passa é a dos infernos: o navio negreiro era, na realidade, um fantasma que navegava pelo oceano a espalhar gritos lacinantes de seres humanos aprisionados e levados para terras estranhas. Longe de sua terra, esses homens eram humilhados, a experiência de vida era cruel e triste. No final do poema, há um clamor que ecoa pelo universo: ... Mas é infâmia de mais... De etéria plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo... Andrada! arranca este pendão dos ares! Colombo! fecha a porta de teus mares! Além da tragicidade, a evocação de responsável pela independência do Brasil é um apelo para que as autoridades do pais acabassem com a infâmia de se receber escravos, numa nação que há bem pouco tempo conquistara a liberdade política. Era muito contraditório lutar para a conquista da liberdade e manter a escravidão. Na Bahia muitos poetas populares tomaram Castro Alves como tema, mas foi Rodolfo Coelho Cavalcante20 quem mais editorou folhetos sobre a vida e luta libertadora do 20 De Rodolfo Coelho Cavalcante registram-se em nosso acervo os seguintes títulos: Castro Alves – Anjo da Liberdade (1981); Castro Alves – Poeta dos Escravos (1983); Castro Alves e Camões – Dois gênios da poesia universal (1984) e Castro Alves não morreu/ vive na alma do povo (1985). 77 “poeta dos escravos”. Seus folhetos são muito usados pelas crianças como leitura introdutória ao estudo da poesia social popular. Desta produção lê-se: Ser poeta é compreender Do povo seu nascimento, No auge do sofrimento Sentir o seu padecer; Castro Alves desde novo Sentia o sofrer do povo Dentro de seu coração E por isso foi um forte Que nunca temeu a morte Contra a vil escravidão. Bradava bem alto o vate: Abaixo a selvageria! Morra toda tirania! Era assim o seu combate. No brilho dos seus poemas Ia quebrando as algemas No pelorinho das dores, Seus versos na praça pública De Castro Alves a rubrica Nas almas dos opressores (CAVALCANTE, 1985, p. 1). O trovador popular, baiano por opção, não só historia Castro Alves, mas suplicando liricamente a sua volta, atualiza a realidade da escravatura nos dezenove anos de Ditadura Militar no Brasil: Volta ó gênio do Condor Com teus versos inflamáveis Porque foste, Castro Alves, Poeta libertador O grande conquistador Que ninguém te esquece mais, Vives entre os imortais Nas páginas de nossa História, Hoje nós pasmos de glória Descanças, poeta, em paz! Vive o mundo mergulhado Numa nova escravidão Que se chama inflação Deixando o pobre apertado 78 É roubo pra todo lado E o povo sem moradia, E a infeliz demagogia Vem de um passado oriundo Das quatro partes do mundo Que virou Filosofia! (Idem, 1983, p. 3-7) O universo da Literatura de Cordel, depois de percorrido este longo caminho, emerge como o universo da palavra que se faz, a um tempo, vida e poesia. Tal universo se objetiva onde quer que exista o homem. Por isto mesmo, a Literatura de Cordel, como palavra e como poesia, questiona as contradições geradas pelo autoritarismo, apontando para a necessidade de um instrumento de investigação que possa evidenciá-la como resistência. 79 3 C O R D E L T E CA S O B O G O L P E M I L I T A R Considerando-se que qualquer poeta popular tem clara consciência de sua condição de artista, ele sabe que é, antes de mais nada, um fabulador. Além disso, é facilmente identificável uma função pedagógica, sobretudo, nas áreas tradicionais e não-alfabetizadas, onde as artes verbais, em geral, e a Literatura de Cordel, em particular, cumprem um importante papel educacional pela transmissão de conhecimentos, valores e atitudes, assim como da informação coletiva, sem esquecer que a Literatura de Cordel exerce uma função de controle social, contribuindo para manter a aceitação dos valores culturais e dos padrões de comportamento estabelecidos (cf. CURRAN, 1973, p. 44-45). Estas três dimensões da Literatura de Cordel, que já são de domínio público, são consideradas por muitos como no seu conjunto, um contributo para a estabilidade e continuidade de uma cultura, de uma situação social e de uma política como hegemonia. Entretanto, em 1977, o sociólogo da cultura cearense avança dizendo: O Cordel pode atuar também,e de fato o faz, no sentido de favorecer a mudança social, assim como pode constituir um meio de ação política, programada e intencional, ou meramente implícita. Por um lado, os próprios poetas costumam formular sobretudo nos folhetos de acontecidos ou nos de crítica social, o protesto ou a simples lamentação dos oprimidos; por outro lado, são conhecidas as inúmeras utilizações dos folhetos de propaganda política: alguns chegando, aos extremos do grotesco e da louvação, outros definindo uma posição ideológica clara e até um programa de ação (MENEZES, 1977, p. 33). Menezes (1977, p. 52), depois de compreender e fazer a superação do meramente visto no Cordel, propõe uma perspectiva de análise sociológica da literatura popular, ainda pertinente nos dias atuais: Acredito, pois que uma leitura sociológica dos folhetos populares só será realmente fecunda e reveladora se não estiver restrita ao manifestamente 80 dito e se, portanto, for capaz de incluir no trabalho de análise a interpretação dos silêncios dessa literatura, a decodificação e o desvelar da significação profunda daquilo sobre o qual ela se cala e por que o faz . Essa postura epistemológica fora seguida por Fausto Neto na sua dissertação sobre a Literatura de Cordel dois anos depois do artigo de Menezes: Assim sendo, interessa-nos examinar, de maneira crítica, o discurso enquanto prática social e ideológica, através da produção de significações (TONETO, 1979, p. 43). Isso se faz necessário porque, numa sociedade competitiva e rigidamente estratificada por classes, as ideologias das classes hegemônicas tendem a predominar e a subsumir as demais ou a recuperá-las sob diferentes formas. Neste contexto, sempre permanece algum espaço, ainda que intesticial, por onde a contradição e o conflito se manifestam. É, pois, no claro-escuro desse quadro que se elabora a consciência do poeta popular. E isto se expressa por uma ideologia que em seu conjunto, não podia ser outra senão a ambigüidade: ora submissa, ora rebelde, ora meramente receptiva e reprodutora dos valores e crenças dominantes, ora profundamente criativa e afirmadora de seus próprios símbolos e significados, de seu vigor e importância (MENEZES, 1977, p. 53, apud CUCHE, 2002, p. 144-146). Essa criatividade é a porta aberta na Literatura de Cordel, objeto deste estudo, que possibilitou a dialética de leitura e o por onde buscar as matizes de Cordel (títulos publicados) para dar termo ao que se busca, tudo isto porque, enquanto as matizes de Cordel, a um tempo, indicam uma realidade e são produtos de uma formação social, produzindo-a e reproduzindoa. Assim sendo, afasta a idéia de que as representações cordelinas da realidade não surgem sob forma conceitual como comenta Fausto Neto, articulando Ballibar (1975) a proposida poesia popular de bancada: 81 Como forma ideológica entre outras os textos correspondem a uma base de relações de produção historicamente determinadas e ligadas a outras formas ideológicas (FAUSTO NETO, 1979, p. 49). Para chegar-se a um conjunto de folhetos, faz-se necessária a determinação do Golpe Militar de 1964 como marco histórico referencial e o folheto Se Deus fosse Brasileiro de Francisco Pedrosa1, um referencial indicador de títulos-temáticos para a seleção e justificativa do corpus. O texto de Francisco Pedrosa foi declamado e nunca publicado, senão bem recentemente, pela Cordelteca Siqueira de Amorim, em João Pessoa (2006), para ser lido aqui como porta indicativa dos folhetos durante a Ditadura Militar no Brasil. A leitura do referido folheto torna-se, neste contexto, importante: SE DEUS FOSSE BRASILEIRO Francisco Pedrosa Não sei quem foi que escreveu Nas páginas dum matutino Sobre uma sala que existe No céu do bom Deus divino Onde trabalham os santos Que protegem, com seus mantos As nações aqui da terra, São por São Pedro ecalados Pra livrar seus afilhados Das influências da guerra, São quase duzentos santos Que na atualidade passam Quase dez horas por dia, Cheios de boa vontade Plantados de sentinela, De olhos fixos na tela; Mexendo em fios e chaves, Botões e interruptores De aparelhos transmissores De sons agudos e graves. À distância, até perece 1 Francisco Pedrosa, poeta paraibano de bancada, intelectual não antologado ou publicado, mas voz eloqüente para os cantadores, violeiros e cordelistas na noite de 05/11/1977, em Campina Grande, na Paraíba. 82 Que estão se divertindo. Mas, na verdade, estão Fazendo esforço infindo Para proporcionar Conforto e vida exemplar Aos filhos das nações, Pelas quais são responsáveis, Pelos serviços prestáveis Ás futuras gerações. Como em repartição pública, Um trabalho, outro ganha. O santo da Dinamarca Vive comendo na manha Assina o ponto e cochila. Já o senhor São Tequila, Protetor na Nicarágua, Não tem tempo pra cuspir, Conversar, nem pra ir No banheiro verter água. São Pedro nomeia o santo De acordo com o país. Quando a nação é pequena, Rochosa, pobre, infeliz Escolhe um santo valente, Trabalhador, competente, Mão-de-ferro, talentoso. E quando sente que a nação Não precisa proteção, Bota um santo preguiçoso. Por exemplo o Canadá Depois da emancipação, São Pedro entregou a um santo Pequeno e sem projeção. Ainda hoje vive lá, Porque para o Canadá Qualquer santo é protetor, Não precisa ser Titã Como os santos do Irã, Irac e El Salvador. No dia que o Brasil Se tornou independente Um guarda acordou São Pedro Pra ver nosso continente. São Pedro olhou lá de cima: Viu as matas, a fauna, o clima; Os lagos, a costa, a extensão Disse: “eita terra boa!… Vou mandar um santo atoa Proteger esta nação!” Imediatamente nomeou 83 Seu afilhado São Braz, Que há mais de cem anos No céu estava encostado, Não conseguia trabalho, Vivia de quebra-galho Respondendo pelos danos, Que causou quando criança, À população da França Pela guerra dos Cem Anos. E porque no século passado Tomando conta da Espanha, Um dia contra a vontade Se viu em palpos de aranha. Por falta de competência, Assinou, numa audiência, Os papéis desconhecidos. E só nessa assinatura, Vendeu a Flórida todinha Para os Estados Unidos. Só depois de muito tempo Declarou ter aprendido. Um dia disse a São Pedro Que estava arrependido, Precisava trabalhar E, mesmo queria provar Que não era incompetente. Fez aquela choradeira Do falso cego na feira Quando quer roubar a gente. São Pedro disse: “está certo, Mas não mexa nessa mesa! Porque a país BRASIL Cresce só, tenho certeza!” Era o que São Braz queria, Passava as horas do dia Conversando na bodega Do pai de Santa Lucrecia, Com os santos da Suécia Dinamarca e Noruega. Até que em sessenta e quatro Quando menos esperava, Chegou um funcionário Correndo onde ele estava Dizendo: “corra São Braz, Que mais de uma hora faz Que a sua mesa balança! E pelo que pude apurar, Tão querendo bagunçar O chão da BOA ESPERANÇA”. Mas na verdade não era 84 Nada de especial, Foi só um curto circuito Que deu na chave geral. Porém, pelo compromisso E para mostrar serviço, Que ainda não tinha mostrado; São Braz ligou um botão, Apareceu no telão Escrito: GOLPE DE ESTADO! Nisto gritou São Pierre, O velho protetor da França: “São Braz, por Nossa Senhora, Você parece criança?! Preste a atenção no trabalho, Corrija o serviço falho Enquanto tem energia; Se está com sono desperte, Corra ligeiro e aperte O botão da DEMOCRACIA!” São Braz ao invés de apertar O botão da DEMOCRACIA Confuso enfiou o dedo No botão da CARESTIA; Ligou o da REPRESSÃO, Aumentou a confusão, A sala ficou escura, Teve santo que correu. E quando o painel acendeu Tava escrito: DI-TA-DU-RA! Por último ele abriu As válvulas das MULTINACIONAIS Ligou a chave que acende Os arrochos SALARIAIS, Quebrou o interruptor Das LEIS DO TRABALHADOR Que estava no seu nariz. Todo controle tremia E quanto mais São Braz mexia, Mais bagunçava o país. Até que chegou um ponto Que nada mais dava certo. Quando cobria um lado Deixava outro descoberto. Se cobria o EMPRESÁRIO, Descobria o OPERÁRIO; E se cobria o PRODUTOR Descobria quem comprava; E no fim a bomba estourava Nas mãos do CONSUMIDOR! Só existe uma saída! 85 Vou já conversar com Deus. Deus como bom brasileiro Dará jeito aos erros meus! Aí pegou um cajado, Vestiu um termo engomado, Saiu falando sozinho. Mas quando chegou no trono, Encontrou Deus de KIMONO Comendo arroz de pausinho. Só aí ficou sabendo Que Deus era japonês. E se Deus fosse brasileiro, O Japão teria vez?! Logo um país pedregoso, Altamente populoso Nos confins orientais? No tamanho um dos menores Ser, hoje, um dos três maiores Poderia mundiais?! Se Deus fosse brasileiro Será que consentiria Uma inflação de três números Roer nossa economia?! Consentiria a NAÇÃO Andar de pires na mão Mendigando no ESTRANGEIRO? Deixaria o desemprego Roubar a PAZ e o sossego Da casa do BRASILEIRO? Paremos com essa história De que Deus é brasileiro, E tratemos de ficar Com São Braz o timoneiro, Manipulando os botões Do painel de operações, Já que o DESTINO assim quis, Resta-nos apenas rezar, Para São Braz acertar No controle do PAÍS.2 (05/11/1977) 2 A última página desse folheto, publicado pela Cordelteca Siqueira de Amorim, em João Pessoa, traz o seguinte texto: “Este folheto fora declamado no Festival de Cantadores-violeiros, no dia cinco de novembro de mil novecentos e setenta e sete, em Campina Grande na Paraíba. A DI-TA-DU-RA proibiu a sua editoração, mas hoje se pode lê-lo!” 86 A última estrofe do texto lido pode parecer uma acomodação: “Paremos com essa história/ De que Deus é brasileiro/ […] Resta-nos apenas rezar,/ Para São Braz acertar/ No controle do país”. Esta parada da história é a metáfora do fabulador que, no “acertar de São Braz”, convoca à ação pela fábula religiosa, peculiar ao folheto de crítica social. Isto equivale dizer que as culturas populares revelam-se, na análise, nem inteiramente independentes, nem inteiramente autônomas, nem pura imitação, nem pura criação dado o paradoxo que lhes é peculiar: cultura subalterna e criativa; elementos de invenções próprias e de empréstimos. Neste sentido, o Cordel, como cultura popular, é literatura de resistência e de contestação no universo da cultura dos grupos sociais subalternos. É a resistência das classes populares à dominação cultural nas expressões da poesia-de-Corde1 e da poesia-canção3, que são constituídas em uma situação de dominação. Sendo a situação de dominação o espaço de produção da Literatura de Cordel, nele a metáfora, a fábula e o silêncio não podem ser lidos apenas como acomodação ou cooptação, nem podem ser equiparados à atitude de defesa militante, observa Cuche (2002, p. 149-150): As culturas populares não estão mobilizadas permanentemente em uma atitude militante. Elas funcionam também em repouso. Nem toda alteridade popular se encontra na contestação. Elas assumem, sem querer, funções integradoras, mesmo sendo passíveis de cooptação pelo grupo dominante, e os modos de resistência. O metafórico do poeta popular Francisco Pedrosa (“Já que o destino assim quis/ Resta-nos apenas rezar”.), sem pressindir da situação de dominação, é talvez mais correto considerá-lo como expressão de um conjunto de “maneiras de viver com esta dominação, ou, 3 O paralelo entre poesia-de-Cordel e poesia-canção já foi a tematizado em Literatura de Cordel – um contexto 16-17. 87 mais ainda, como um modo de resistência sistemática4 à dominação que se manifesta e se oculta dialeticamente: A cultura popular como a cultura comum das pessoas comuns, isto é, uma cultura que se fabrica no cotidiano, nas atividades ao mesmo tempo banais e renovadas a cada dia é criatividade. Como criatividade popular não desapareceu, mas não está necessariamente onde a buscamos, nas produções perceptíveis e claramente identificáveis. Ela é multiforme e disseminada: Ela foge por mil caminhos (CERTEAU, 1980, p. 16-17). Para captá-la, é preciso captar a inteligência prática de pessoas comuns, principalmente no uso que elas fazem da produção de massa. Certeau (1980) define cultura popular como sendo cultura de consumo. O Cordel é esta cultura de consumo por ser autêntica “arte do fazer” que tem parentesco com o “faça você mesmo” com práticas multiformes e combinatórias: combinam os poetas-de-bancada e seus leitores. Neste sentido, os folhetos de Cordel são produtos-mercadoria. Estes produtos-mercadoria são, de certa maneira, o repertório com o qual os consumidores (leitores) fazem operações culturais e políticas que lhes são próprias. Neste sentido, a resistência cabe na seguinte afirmação: A análise tem mérito quando pode mostrar que se uma cultura dominada é obrigada a funcionar,ao menos em p.arte, como cultura dominada, no sentido em que os indivíduos dominados devem sempre viver com o que os dominantes lhes impõem ou lhes recusam, isto não impede que ela seja uma cultura inteira, baseada em valores e práticas originais que dão sentido à sua existência (CUCHE, 2002, p. 152). Não há, pois, como contestar a ambivalência das culturas populares que Grignon e Passeron consideram como uma característica essencial. Para eles a cultura popular é ao mesmo tempo uma cultura de aceitação e uma cultura de negação. Este dado leva uma mesma prática a ser interpretada com participando de duas lógicas postas, o que aponta para heterogeneidade que caracteriza as culturas populares. Estas são em certos aspectos mais 4 A resistência no Cordel aparece no uso vocabular que, intermediado de metáforas, os poetas se escondem como que se protegendo, o silêncio foi muitas vezes cuidadoso. 88 marcadas pela dependência em relação à cultura dominante e, ao contrário, em outros aspectos, mais independentes. E isto só se dá porque os grupos populares não estão sempre e em toda parte confrontados ao grupo dominante. Considerando-se os poetas populares, nos lugares e momentos em que eles se encontram a sós, o esquecimento da dominação social e simbólica permite uma atividade de simbolização original. Significa que o isolamento, mesmo quando ele representa marginalização, pode ser fonte de autonomia e de criatividade cultural (CUCHE, 2002, p. 156-157). Neste compreender, o folheto “Se Deus fosse brasileiro” expressa este espaço de autonomia e aponta a possibilidade de outros poetas e outros textos cordelinos ocupando o mesmo espaço de resistência, contestação e luta. Foi desse espaço cronológico e epistemologicamente considerado, que saíra a seguinte seleção de folhetos de Cordel: 89 FOLHETOS SELECIONADOS N° PERÍODO: 1960 - 1984 AUTOR TÍTULO ANO PÁGINA LOCAL 01 SANTOS, O. D. O Juiz é você: Teremos um Brasil Forte com Jânio ma Direção. 1960 09 Sem indicação 02 TESTA DE FERRO (A.A.C.) A Liga Camponesa e a Resposta a Julião. 1965 17 Sem indicação 03 PATATIVA DO ASSARÉ, A. G. da SILVA O Padre Herique e o Dragão da maldade 1969 16 Olinda 04 SOUSA, José Francisco de Porque o mundo é assim? 1969 08 Guarabira 05 SILVA, Tertuliano Quem é? Quem é? 1970 07 Sem indicação 06 BRANDÃO, Humberto Gualberto Quem foi o agricultor e o que está sendo hoje em dia. 1976 16 Assaré 07 IZIDRO, Zé Os sem terra. 1977 10 Natal 08 BARROS, Homero do Rego Direitos Humanos 1978 08 Recife 09 FARIAS, Manoel de Desabafo ao Presidente 1979 14 Fortaleza 10 CARVALHO, Rafael de A volta de Prestes 1979 08 São Paulo 11 CARVALHO, Rafael de A Light deu a luz e o Brasil pagou o parto. 1979 20 São Paulo 12 SOUZA, Paulo Teixeira de Cordel pela Anistia ampla, geral e irrestrita. 1979 12 Rio de Janeiro 81 90 FOLHETOS SELECIONADOS N° ERÍODO: 1960 - 1984 AUTOR TÍTULO ANO PÁGINA LOCAL 1980 08 Salvador sertanejo. 1980 16 Maceió 13 CAVALCANTE, Rodolfo Coelho A Crueldade dos donos de Terra para com os pobres lavradores. 14 FEIRA, Zé da É Hora de União: a conversa entre um camponês, um operário e um 15 MEDEIROS, Eugênio Dantas de É bom votar consciente. 1981 12 Crato 16 FLÁVIO, José Margarida, Flor de Briga da Campanha Trabalhista. 1983 08 Alagoa Grande 17 VÊ TUDO, Chico Cz$ Cruzado UM foi trambique e Cz$ DOIS é tragédia 1984 19 Sem indicação ANO PÁGINA LOCAL FOLHETOS SUPORTES PARA A ANÁLISE N° AUTOR TÍTULO 01 PEDROSA, Francisco Se Deus fosse brasileiro 1977 08 J. Pessoa 02 LIMA, Manoel Basílio de No Brasil vem assim (vol. 1) s/ind. 08 Pesqueira 03 LIMA, Manoel Basílio de No Brasil vem sendo assim (vol. 2) s/ind. 08 Pesqueira 04 ANÔNIMO (publicação da C.D.H/ SECIPO/ A Vitória das professora de Pombos ou Deus sempre escuta o s/ind. 18 Recife CNBB Reg, NE, II) clamor do povo unido. 82 91 3.1 Folhetos de 1960 a 1970 - O Juiz é você. Teremos um Brasil forte com Jânio na Direção, de D. G. Santos. - A Liga Camponesa e a Resposta a Julião, de Testa de Ferro (A. A. C.). - O Padre Henrique e o Dragão da Maldade, de Patativa do Assaré (A. A. Silva). - Porque o mundo é assim?, de José Francisco de Sousa. - Quem é? Quem é?, de Tertuliano Silva. O JUIZ É VOCÊ. TEREMOS UM BRASIL FORTE COM JANIO NA DIREÇÃO O folheto de D. G. Santos5 , com nove páginas, vinte e nove estrofes, ilustrado com a foto de Jânio Quadros e o título bem distribuído à direita e abaixo da foto; formato tradicional (10,5 X 15,5cm), impresso, em papel manilha para a capa e papel jorna1 para o conteúdo, peIa tipografia São Luis, Av. 10, n° 1684. Não aparece registrado a indicação do lugar, nem a data. Contudo, o autor situa sua produção no final do ano 60 do século passado e, na última estrofe, se identifica como norte riograndense. A última estrofe dá a conhecer que o folheto não fora encomendado, mas brotara da consciência política do vate potiguar: Sou norte riograndense Sou janista verdadeiro E peço ao Brasil inteiro Que antes de votar pense: O Doutor Janio é quem vence Eu tenho convição Janista de coração Proclamai de Sul a Norte: Nosso Brasil será forte Com Jânio na direção.6 O folheto é conduzido pelo mote Jânio na direção para fechar as estrofes de dez versos em sete sílabas. Nas duas primeiras estrofes, o poeta apresenta os seus destinatários: 5 6 Há dificuldades de declinar-se os nomes relativos às D e G do nome do poeta por não ter sido, o até, historiografado pelos estudiosos do Rio Grande do Norte. Em nenhum momento o poeta acentua a palavra Jânio, o que denota a postura de um alfabetizado político, sem o letramento diminante. 92 “Meus Senhores e Senhoras/ Solicito todos vós/ [...]/ Eu falo à pátria Genti1/ Meus Senhores e Senhoras”. Na terceira estrofe aparece identificação dos destinatários, aparentemente perdidos no lirismo, como “os polítizados” (SANTOS, 1960). .................................................... Eu sei que estou falando A um povo politizado Povo de espírito elevado De viva compreensão. Da estrofe três até a décima, o poeta faz a apologia de Jânio. Esta é interrompida com a estrofe onde o vate convoca seus leitores a uma luta em defesa da nação: Aos meus irmãos Brasileiros Eu conclamo nesta hora Marcharmos para a vitória Como valentes guerreiros. Devemos ser dos primeiros A defender a nação Elegendo Janio, então Já não há força que corte A marcha de um Brasil forte Com Jânio na direção (SANTOS, 1960) A conclusão da leitura de folheto de Santos possibilita compreender-se o contexto de expectativa que pairava em relação à realidade nacional. O vate, na estrofe dezenove, abandona o mote, para retomá-lo apenas na última. Esta digressão aponta para sua espontaneidade e liberdade de não ter sido encomendado. Neste espaço epistemologicamente livre, o que direciona a produção é o mote fático da popularização de Jânio e sua campanha: “o homem da vassoura vem aí”. Com este mote Jânio concorria com o Marechal Teixeira Lott, “o homem da espada”. No pensar do poeta, a vassoura, com a mesma eficácia de varrer o terreiro, varreria a podridão nacional: 93 Com a vassoura em ação Varre os trustes estrangeiros Varre o lixo Brasileiro Que contamina a nação. O que causa infecção Lança fora e passando Pra todo setor olhando Exterminando a desordeem O Brasil só terá ordem Jânio Quadros governador (SANTOS, 1960) A LÍGA CAMPONESA E A RESPOSTA A JULIÃO Folheto assinado com o pseudônimo Testa de Ferro, tamanho tradicional (11 X 15,5 cm), impresso em papel jornal e a capa em papel manilha verde. A primeira capa apresenta fotografia de Padre Cícero do Juazeiro, título, nome do autor e preço de cada exemplar, tudo dentro de uma moldura em sofisticado recurso gráfico. A segunda capa apresenta as cinco estrofes finais constituindo a página dezessete, sendo o conteúdo distribuído em 83 estrofes em sextilhas de sete sílabas. O folheto, nas primeiras estrofes (1 - 7) evoca, como de praxe, a inspiração divina e já se define como um discurso autoritário de extrema direita. O poeta faz uma síntese da história do Brasil, do ponto de vista autoritário, partindo da colonização até a gênese da Liga Camponesa: Agora as Ligas Camponesas tomando as propriedades, rasgando as escrituras humilhando as autoridades praticando injustiças crimes e barbaridades (TESTA DE FERRO, 1965). As estrofes subseqüentes (8 a 15) são dedicadas ao deputado Julião, vindo do inferno para criar a Liga Camponesa, enganado o “povo tolo” contra a ordem natural e santa querida por Deus: 94 Deus quer os homens assim um do outro diferente um rico e outro pobre um manso e bem decente um branco e outro preto um quieto e outro contente . (TESTA DE FERRO, 1965) A partir de então, estrofes 16 a 25, faz uma leitura dos evangelhos para justificar a desigualdade e as diferenças sociais como expressão da vontade de Deus a quem o comunismo se contrapõe: Jesus que falou assim mostrando a desigualdade e como esse comunismo? só quer mostrar a igualdade quer ser mais do que Deus? Desmentindo a sua verdade?. (TESTA DE FERRO, 1965) Em seguida, tem-se uma apologia do autoritarismo e um escárnio a Julião “agitador dos camponeses” (estrofes 26 a 43). Os políticos democratas e libertadores são considerados com inspirados no demônio (estrofes 44 a 63) porque Fidel Castro é bisneto de Lúcifer: Julião foi escolhido como Judas Iscariotes Judas para vender Jesus e Julião vende os magotes de brasileiros que se levantam contra a Igreja e sacerdotes. A prova é que ele leva Todo mundo que quizer de graça ir p´ra Cuba tanto homem como mulher visitar o Fidel Castro bisneto de Lúcifer (TESTA DE FERRO, 1965) 95 As estrofes seguintes (64 a 68) contêm um apelo do poeta ao governo federal brasileiro no sentido de tomar posição contra Julião, conter o avanço democrático porque a Liga Camponesa é satânica: E você o nosso Governo? com seu braço potentado não está vendo seu país ficando desmoralizado?... porque não acaba com isso e deixa o povo descançado? Essa Liga Camponesa é da parte de Satanaz quem estiver dentro dela esse não se salva mais está perdido para sempre até os restos mortais (Idem). Depois de satanizar a Liga Camponesa, nas últimas estrofes (69 a 83), o poeta traça o perfil do socialismo de modo que nada de humano, nem de justo aparece porque o próprio Julião é encarnação de Satanaz: Primeiro mata os padres e todo povo cristão pra não ficar na terra sinal de religião é o poder de Satanaz na pessoa de Julião (Idem). O PADRE HENRIQUE E O DRAGÃO DA MALDADE Folheto de autoria do cearense Patativa do Assaré7, publicado em 1969, com 16 páginas, formato 16 X 12 cm, ilustrado com clichê, moldurado em retícula, título em caixa alta vazada; capa em papel manilha amarelo, o conteúdo impresso em papel jornal, totalidade 7 PATATIVA DO ASSARÉ é o pseudônimo de Antônio Gonçalves da Silva, conforme aparece em assinatura, em manuscrito, na segunda capa do folheto, para que se justifique o apelativo recebido. 96 sessenta e três estrofes de sete sílabas. Conforme informação da página 16, o folheto foi divulgado pela Arquidiocese de Olinda e Recife8. Nas cinco primeiras estrofes, o poeta justifica a sua ligação ao tema quando se apresentou como homem das letras populares, um cantor dos sentimentos alheios, dos casos bonitos e feios; amigo da família humilde, ele canta a mágoa e a tristeza. Literalmente, diz: “... e canto o pobre que chora/ pelo pão de cada dia [...] e canto as injustiçados/ que vagam no mundo afora”. Da estrofe seis a vigésima primeira, notifica-se a tragicidade do assassinato de Padre Henrique (27/05/1969) com riqueza de detalhes. Justifica o título de sua obra contextualizando o conflito entre a Igreja católica e o poder repressor, onde Dom Helder Câmara aparece como o verdadeiro alvo a ser atingido pela força do dragão da maldade: Por causa do seu trabalho que só o que é bom almeja o espírito da maldade que tudo estraga e fareja fez tristes acusações contra Dom Helder e a Igreja. Os dito telefonemas faziam declarações de matar 30 pessoas sem ter dó nem compaixão que tivesse com Dom Helder amizade ou ligação. Veja bem leitor amigo quanto é triste esta verdade o que defende os humildes mostrando a luz da verdade vai depressa perseguido pelo dragão da maldade (PATATIVA DO ASSARÉ, 1969). 8 Em uma conversa mantida com Patativa do Assaré, em 1976 na Casa Juvenal Galeno, em Fortaleza, confessava o autor a propósito do folheto: “Fiz o folheto na minha solidarização, no manuscrito de caderno presenteei ao bispo Padre Helder, lá no dia da missa de requiem do Padre assassinado, a diocese imprimiu e me mandou assinar na capa dois, não mexeram em nada do verso, mas deu ao povo a posição da gente. 97 Prossegue o poeta, nas estrofes vinte a trinta e um, fazendo uma reflexão, à luz da teologia popular, sobre a posição da Igreja em favor dos pobres e contra os poderosos. Em dezessete estrofes (da 32ª à 49ª), contextualiza o fato, citando e comentando a invasão do DCE (Diretório Central dos Estudantes) da Universidade Católica; o seqüestro do estudante Cajá que, segundo o poeta, foi acusado de comunista com argumentos falaciosos. Após um comentário ao conceito de comunismo, com muita autoridade, contextualiza a práxis libertadora da Igreja dentro da conjuntura latino-americana: Mostrando a mesma verdade de Jesus na Palestina o movimento se estende contra a opressão domina sobre os nossos irmãos pobres de toda América Latina. Por este motivo a Igreja nova posição tomou, dentro da América Latina a coisa agora mudou o bom cristão sempre faz aquilo que Deus mandou. Pois vemos o estudante Pelo poder perseguido, o operário agricultor, o nosso índio querido e o negro? Pobre coitado! é o mais desprotegido (Idem). Na questão da opressão ao negro, cita o Navio Negreiro de Castro Alves quando o evoca, como argumento de autoridade, para a sua crítica sócio-política. As estrofes cinqüenta a cinqüenta e dois concentram a desculpa do poeta, com um diálogo com o leitor, por ter interrompido a narrativa com a conscientização sócio-política. Retoma, nas estrofes cinqüenta e três até o final, a tragicidade do assassinato do padre, trata do velório, descreve o séqüito processional até o sepultamento mediado pelo estribilho cantado pelo povo: “Prova de amor maior não há/ que doar a vida pelo irmão!” 98 PORQUE O MUNDO É ASSIM!? O folheto é de autoria de José Francisco de Souza, formato tradicional (10, 5 X 15, 5 cm), ilustrado com xilografia de J. Barros, denotando um escritório burocrático, capa impressa em papel manilha amarelo, trazendo na segunda capa reclame de propaganda de outras produções do autor. O folheto foi impresso pela Tipografia Pontes, rua Prof. Manuel Simões, 20 em Guarabira (Pb), num total de oito páginas com trinta e duas estrofes em sextilhas de sete sílabas. O poema começa com o vate justificando o seu texto constituído de reflexões pessoais sobre a desigualdade social que o possibilita, nas estrofes de um a cinco, ver o mundo como realidade cósmica e como relações sociais, encerrando grandes contradições: “aliás! o mundo é bom/ mas o povo é desumano”. Nas estrofes seis a nova, questiona a burocracia das instituições, evidenciando o joguete dos dignitários a quem são submetidos os pequenos e subalternos: Se ouve a voz do gerente com seu feroz linguajar a secretária inda diz faça favor de sentar ou asentado ou de pé que ele vai demorar. Esse ele é o gerente por mais muito importante traçando planos injustos de roteiros estravagantes só afim de humilhar o outro seu semelhante (SOUZA, 1969). Como um notabilizado poeta barroco, no culto do contraste, faz declinar as antíteses das relações sociais no teor das estrofes dez a dezoito. Com este recurso, desenha a sociedade 99 marcada pela competição e pela tentativa de fazer valer a injustiça como normalidade. Neste contexto, faz uma crítica pertinente ao poder legislativo na conjuntura da contradição: Os criadores das leis têm as fúrias dos leões fazem ardilosamente com segundas intenções somos vários Pintanhinhos entre ágeis gaviões. Se um luta pela paz o outro prefere a guerra Se um chora quando peca o outro rir quando erra é isso que a gente ver aqui no planeta Terra (Idem). Nas estrofes dezenove a vinte e quatro, critica e lamenta a falta de decisão política para a solução das desigualdades sociais que se sustenta com a hegemonia militar. Conclui, a partir da estrofe vinte e cinco até a final, com a convocação à mudança. Evoca o filósofo Santo Agostinho, como modelo de reflexão filosófica, para a solução da questão da desigualdade e, a um tempo, confessa sua co-responsabilidade pela situação, mas racionaliza a sua culpa ao fazer um auto-julgamento. Fecha o folheto o mesmo questionamento motivador do tema, o que corresponderia, numa abordagem científica e letrada, às considerações finais: E o que falta no povo primeiro falta união segundo falta respeito terceiro, compreensão quarto boa vontade quinto educação. Quem me dera um dia ser Igual a Santo Agostinho nas suas filosofias ensinando com carinho porém meus erros são graves só, que não erro sozinho. 100 Parece ir muito longe tudo cheio de pasquim precisa de corrigenda pra tudo isso ter fim ninguém se livra do esmo eu pergunto a mim mesmo porque o mundo é assim? (Idem). QUEM É? QUEM É? O poeta Tertuliano Silva de quem não se dispõe de informações biográficas, produzira o folheto em 1970, sem indicação do local de publicação, em sete páginas, com doze estrofes de quatorze versos em decassílabos. Cada estrofe se desenvolveu em torno do mote “Minha gente, é o Partido/ Comunista do Brasil”. A impressão em papel A4, sendo a capa amarela com ilustração em desenho a nanquim, retratando uma assembléia do Partido Comunista do Brasil, sobressaindo o braço forte do operário, a presença feminina na luta e os símbolos do partido impressos em flâmulas tremulantes. As três primeiras estrofes mostram que a militância no Partido Comunista do Brasil assombra a Ditadura e preserva a vida porque quem luta junto é classe operária não vê a força adversária e amedronta os “donos do fuzil”. Quem junto à classe operária luta na frente do povo que sendo velho é novo não vê força adversária e nunca foge da raia, quem na floresta Araguaia depositou a semente da grande luta da gente pela pátria libertada, quem já não teme a mais nada pois ao contrário é temido pelos donos do fuzil? Minha gente, é o Partido Comunista do Brasil! (SILVA, 1970) 101 As estrofes seguintes (4 a 9) fazem uma leitura da presença real ou virtual do Partido Comunista do Brasil nas lutas operárias universitárias e sindicais. A linguagem trabalhada cita líderes da luta no Araguaia como mostram as estrofes abaixo: Quem é o sábio partido da nossa revolução que tem sempre combatido contra toda exploração, qual o rumo que não muda de João e de Arruda de Maurício e de Pomar, quem tem a força do mar a destreza de um raio a beleza de uma balaio de verdura preenchido quem é assim como um rio? Minha gente, é o Partido Comunista do Brasil! Quem luta contra o governo dos generais terroristas e a ele por um termo não perde nunca de vista, quem tem estado presente seja de noite ou de dia na batalha permanente contra a triste carestia por um aumento de ordenado por trabalho e moradia junto do povo oprimido enfrentando todo ardil? Minha gente, é o Partido Comunista do Brasil! A sempre e mesma pergunta, que separa os doze versos do mote que responde a cada pergunta em cada estrofe, destaca o caráter pedagógico do poeta fazendo educação popular. Neste escopo, as estrofes finais (10 a 12) explicitam a doutrina e a eficácia do Partido Comunista do Brasil nas lutas nacionais. A utopia do partido aparece muito próxima da vida do leitor (na barriga e no coração = fome e amor) como lê-se na última estrofe: Quem e a voz do futuro desta era sem ter peia onde a barriga é cheia 102 onde o ar é sempre puro onde o lume que clareia clareia tudo igualmente, onde o bem comum a gente por todos é repartido, quem é a voz desse tempo em que o amor sopra no vento quando tudo é permitido ao seu povo varonil? Minha gente, é o Partido Comunista do Brasil! (Idem) 3.2 Folhetos de 1971 a 1979 - Quem foi o agricultor e o que está sendo hoje em dia, de Humberto Gualberto Brandão. - Os sem terra, de zé Izidro. - Direitos Humanos, de Homero do Rego Barros. - Desabafo ao Presidente, de Manoel Farias. - A volta de Prestes, de Rafael de Carvalho. - A Light deu a luz e o Brasil pagou o parto, de Rafael de Carvalho. - Cordel pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, de Paulo Teixeira de Souza. QUEM FOI O AGRICULTOR E O QUE ESTÁ SENDO HOJE EM DIA Cordel escrito por Humberto Gualberto Brandão8. Humberto é pseudônimo de Francisco, como explica o autor na página nove do texto, editado pela organização sindical Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Assaré. Folheto de 16 páginas, conteúdo impresso em papel jornal, capa em papel manilha azul; tamanho padrão (11 x 16 cm). A primeira capa ilustrada com xilogravura de Dinda, retratando um lavrador em traje típico ao lado do dono da 8 O poeta Humberto é cearense, sindicalista da comunidade Vila de Caiçara, em Assaré (Ce). 103 terra exibindo um cheque; ao fundo uma casa rústica e cavalos na cocheira, com moldura de retícula; na parte superior indicação do autor e título em negrito; na parte inferior um subtítulo: “A organização sindical e o trabalhador rural antigamente e hoje” e “Meu adeus ao Sindicato”. Na segunda capa, aparece o clichê do autor, acróstico e propaganda para a distribuição do folheto, via sindicatos e atendendo.pedidos pelos correios. A primeira parte, da página um a oito, contendo 24 estrofes em sextilhas e septilhas de sete sílabas; as páginas nove e dez contêm três parágrafos em prosa informando sobre a vida sindical do autor (delegado sindical, suplente de secretário, secretário interino e eleito tesoureiro na chapa do presidente Djalma Alves Pereira). A segunda parte, da página onze a dezesseis, contém doze estrofes em dez moderno com versos de sete sílabas. O poeta, nas estrofes de um a nove, apresenta a situação do homem do campo antes da criação dos sindicatos, sem amparo, isolado, sem representação, sem organização e vítima de despejos e execuções injustas: Não faz nem muito tempo que o trabalhador Rural não tinha nenhum amparo e nem era social pois isto acontecia sem movimento sindical. Sem ter organização era de tudo isolado somente com a.família trabalhando no roçado muitas vezes acontecia que injustamente sofria quando era executado. De nada era consciente sem nenhuma evolução vivendo muito isolado sem nenhuma proteção vivendo nos matagais igualmente os animais não tinha representação (BRANDÃO, 1976). 104 O texto cresce apresentando a gênese do sindicalismo, a função dos sindicatos lamentando a situação de quem não é sindicalizado (estrofes 10 a 15), apresenta como se tornar sindicalizado (16-17), a estrutura dos sindicatos (18-19) e os benefícios trazidos ao trabalhador rural pelos sindicatos (19-25,28 e 30). As estrofes 26,27 e 32 apresentam a função educativa dos sindicatos dentro dum processo contínuo de conscientização: O Sindicato procura se organizar e crescer e isto é muito simples, só basta o povo entender se reunir e ter coragem união e a melhor vantagem para tudo se resolver. Ajudando a esclarecer cada um aprende mais é um dever pagar em dia as obrigações sociais e a contribuição sindical que é base fundamental nas vivências sindicais (I (BRANDÃO, 1976) A segunda parte, nas estrofes 1 a 6, o poeta se despede da direção sindical com clara consciência democrática da renovação do corpo dirigente; prossegue manifestando confiança na diretoria eleita, conclamando o apoio dos associados (estrofes 7 e 8) e conclui com uma apologia do sindicalismo, colocando-se disponível com os seus serviços ( 9-12): Quem trabalha em Sindicato precisa ter bom talento pra ser companheiro exato e dividir o sofrimento eu não sei do que mereço mas com gosto ofereço pra quem de mim precisar de tudo que eu aprendi estou pronto para servir em assunto particular (Idem). 105 OS SEM TERRA Folheto de autoria de Zé Izidro Sobrinho, poeta potiguar nascido em Lages, cantador-repentista, apresenta tamanho 11,5 x 16 cm, capa azul em papel manilha e o seu conteúdo impresso em papel jornal, num total de dez páginas. A produção final, do Projeto Chico Traíra, n° 27, da Fundação José Augusto, é constituído de 18 sextilhas em sete sílabas e mais seis estrofes em martelo agalopado9, contendo uma crítica de pertinência sócio-política ao poder econômico dominante. A ilustração em xilogravura de Francico de Assis, Trajano, potiguar de Ceará-Mirim (RN), retrata uma família sem terra como descreve a seguinte estrofe: Os sem terra não têm nada telefone é um grito, Seu transporte e uma carona Guarda-roupa um cambito Sofre cada violência Que as vezes não acredito (IZIDRO, 1977). Três grande momentos constituem a obra, nas estrofes um a doze, o poeta descreve os sem terra na busca de espaço para trabalhar. Exaltando José Rainha como líder, faz uma reportagem da vida nômade marcada pela violência, luta e resistência à opressão: Quanto sangue derramado Quantos corpos estendidos E dos canos dos revólveres Só se ouve os estampidos Homens morrem, mulher chora Só se vê os alaridos. Eu não vou dizer o nome De quem apanha na cara Nem vou citar a fazenda Aonde a arma dispara A violência no campo Há muito tempo não para (Idem). 9 Martelo agalopado é um gênro poético peculiar dos poetas-repentistas de complexa composição em decassílabo. 106 O segundo momento (estrofes 13 a 18) é constituído de um paralelo entre os Sem terra e os seu teto, aqui o poeta aproxima estes dois. seguimentos num mesmo movimento. Finalmente, no terceiro momento, desenvolve o mote TERRA BOA NO MUNDO TEM SOBRANDO, O QUE FALTA É QUEM FAÇA DIVISÃO (19-23), reclamando Reforma Agrária, especialmente cita o Pará, Piauí e o Maranhão, meio a uma consistente crítica ao poder econômico. Não escapa à crítica do vate os mais eloquentes projetos do país: Vive o pobre sofrendo na enxada Sobra terra pro rico plantar cana O Pro-alcóol, Braz Fruta exige grana Deixam o pobre sem ter direito a nada Quando existe uma terra irrigada Só tem vagas para uns e outros não Porque nem no Projeto Boqueirão Tem lugar para quem vive mendigando! TERRA BOA NO MUNDO TEM SOBRADO O QUE FALTA É QUEM FAÇA DIVISÃO (Idem). DIREITOS HUMANOS No tamanho tradicional (15,5 X 16 cm), folheto escrito em sextilhas de sete sílabas, num total de 32 estrofes distribuídas em oito páginas, de autoria do poeta Homero do Rego Barros, pernambucano, conhecido como trovador de Olinda e Recife. Publicação registrada sob o número 21, na Ordem Brasileira do Poetas da Literatura de Cordel. A primeira capa impressa em papel manilha azul, ilustrada com xilogravura de Marcelo, retratando um cidadão ajoelhado diante um militar sob a legenda “Respeite os Direitos Humanos!”; na parte superior o nome do autor e na inferior o preço de venda do folheto. A segunda capa traz o anúncio de cinco folhetos a serem publicados pelo autor. O conteúdo, impresso em papel jornal, conclui-se com o acróstico denotando a assinatura do poeta: Homero. Nas estrofes um a oito, o poeta evidencia a atualidade do tema, discute a contradição entre as expressões “direito da força” versus “força do direito”, fazendo sob este binômio uma 107 reflexão ético-antropológica. Em doze estrofes (de 9 a 20), reclama garantia para os Direitos Humanos depois de tê-los relacionado à democracia que se constitui pela paz, que não é senão a ausência da discriminação, da carestia e da desilusão: Sim, os Direitos Humanos Carecem de garantia Injustamente se prende Ou se mata, à revelia... Sem vigilância total Não tem o povo harmonia (BARROS, 1978). Em seguida, situa a contradição entre a propaganda dos Direitos Humanos e a práxis política do governo no trato com os cidadãos (21-28). Ao final do texto (29-32), o poeta se desculpa, num diálogo com o leitor, por não ser político, mas se sabe crítico dando um parecer sobre a situação nacional: Honesto por natureza O meu parecer dar quis Mas os Direitos Humanos Estão nas mãos do país Rabisco estrofes, porém O presidente é o juiz (Idem). DESABAFO AO PRESIDENTE Folheto de autoria do cearense Manoel de Farias (Chagas), tamanho padrão (11,5 X, 16 cm) com 14 páginas num total de 35 estrofes em sextilhas de sete sílabas. Editado pela Nação Cariri, com o apoio da Livraria Gabriel, tem a capa ilustrada com o desenho de Neto, visualizando a caricatura de um lavrador e do presidente João Figueredo. Os dois aparecem de pé num chão rachado pela seca e ornado com caveira de animal de grande porte, cavalo ou jumento. Sem prescindir da tradição, a capa é impressa em papel manilha róseo e o conteúdo em papel jornal sob a garantia de Aguiar Junior como editor. 108 O folheto é aberto com o endereçamento do seu teor ao Presidente da República de então, João Figueredo, que desde a primeira estrofe até a décima segunda, apresenta apelo ao chefe da nação a perceber a situação do homem do campo. Justifica os saques a supermercados não pela maldade ou bandidagem humanas, mas pela determinação da situaçãolimite de fome e miséria. Sabendo que a responsabilidade não é de Deus, mas do governo, suplica melhores salários, austeridade administrativa e direito ao voto direto: Por favor sua Excelência Num vá se aborrecer De nós viver perturbando A cabeça de vós micê, Pois nós todos aqui sabe Que o senhor tem o poder. É só o senhor querer Miora essa situação Pois vós micê é a força Dessa imensa nação Faça essa caridade Pra nós aqui do sertão! Nós num quer muita coisa Apenas o principá Comida pro nosso povo Aumento salariá E que nós tenha direito De pra presidente vota . Só o Senhor tem recurso Pro nosso sertão amparar Excelência e home forte É governo pra mandar É só apertar o Delfim E a inflação vai acabar (Idem). O poeta prossegue, nas estrofes l3 a 20, tipificando o dual cansaço do povo nordestino: o físico pelo trabalho e a fome; o moral pela confiança depositada nos políticos e a decepção diante promessas não cumpridas: Mas com o passar do tempo A coisa foi crariando O João que era santo 109 Pecador foi se tornando E a fome no interior Depressa foi aumentando (Idem). Da ironia religiosa da estrofe citada, o poeta, nas estrofes 21 a 35, desculpa-se por seu falar simples, contundente, mas verdadeiro; revisa a posição eleitoral do povo nas “eleições indiretas”, promete e compromete o voto não mais com o presidente, mas com a justiça. O poeta termina ressaltando que seu folheto é a sua leitura da situação nacional: Tudo isso é a visão Que mostra o nosso país O povo continua triste Cada vez mais infeliz E o Senhor Excelência Nunca cumpre o que diz. Por favor seu Presidente Ampare o nosso sertão Desculpe de não falar Certas coisas com precisão Apenas nós desabafa As magoas do coração”. A VOLTA DE PRESTES Folheto impresso em papel ofício branco, tamanho tradicional (11,5 X 15 cm); capa ilustrada com desenho em nanquim figurando, em primeiro plano, Luis Carlos Prestes de perfil, militantes em vários pontos e, aos fundos, um cavalo em tamanho destacável. A primeira página contém um texto, uma estrofe de Pablo Neruda exaltando Prestes, na página três outro desenho de Prestes; na página cinco, uma espécie de folha de rosto, o conteúdo tem início na página sete. Num total de 15 páginas, contendo 16 estrofes, cada uma concluindo-se com o mote A VOLTA DE PRESTES E/ NOSSA ESPERANÇA VOLTANDO. A autoria do folheto, mesmo tendo sido editado em São Paulo, é do paraibano Rafael de Carvalho, 110 radicalizado em São Paulo há anos e que durante algum tempo usou o pseudônimo Misael Borborema, usando hoje o acróstico RAFAEL. O poeta abre o folheto invocando não a musa do Paranaso, mas a musa revolucionária para declamar o retorno de Prestes, trazendo esperanças para a mãe trabalhadora, para os pobres pescadores nordestinos, para as crianças e para os operários em luta (estrofes 1 a 10). A metáfora .que marca o texto (estrofes 11 a 16) é a de exaltação ao comandante revolucionário como mito que atende à súplica do povo: Prestes, assuma o seu posto -nós o estamos delegando Os oprimidos perguntam: Oh! companheiro até quando? Que seja a sua presença Nossa esperança voltando! (CARVALHO, 1979) A LIGHT DEU A LUZ E O BRASIL PAGOU O PARTO Folheto também de autoria do poeta Rafael de Carvalho, tamanho tradicional (15,5 X 16 cm), capa dura amarela, ilustrada com desenho a nanquim de um polvo cuja cabeça é uma lâmpada. Contendo dez páginas, portando cem estrofes em sextilhas de sete sílabas, publicado em maio de 1979 em São Paulo. Sob o influxo da mitologia ideológica do autor, nas estrofes um a cinco, evoca a “musa operária”, compõe seu público alvo: operários, crianças, companheiros. Para este auditório é que declama o seu poema que é um sonho com a democracia. A sua grande aspiração é a inversão da lógica dominante (estrofes 6 a l3) pela tomada do poder até então retido pela minoria privilegiada e dominante. Nas estrofes l4 a 16, o poeta se apresenta como tal preparado e militante do movimento de libertação, denunciando a situação de autoritarismo no país. Como ponto condutor, a corrupção da Light orquestrando políticas corruptas e novos corruptos seguidores, permeia todo o texto. Destaca no seu trabalho, João Mangabeira como 111 corajoso e subversivo dentro da visão do sistema opressor (17 a 27). Protesta sobre as taxas exorbitantes do Truste (28 a 31) para, em seguida, declinar momentos de manipulação da economia e da política administrativa do país sob interferência da Light e em detrimento do povo brasileiro (32-65). As estrofes 66 a 76 possibilitam o poeta relacionar a Light à custódia nacional dos governos militares cuja hegemonia fica insuportável. Para tal situação, o poeta reclama democracia e liberdade de comunicação: Por isso este povo irmão Terá que se libertar Da tutela de governos Sempre a nos intimidar Com suas metralhadoras Pra ninguém poder falar. Viveu a Light a roubar Desde a sua implantação Para ela não tinha povo Leis ou Constituição E dela São Paulo é vítima De enchente e inudação Arrebenta o coração A gente ter que pagar Pelo mal que ela nos fez Francamente e de lascar! Tem que haver democracia Pra gente denunciar! (CARVALHO, 1979b) O poeta, nas estrofes 79 a 90, faz, uma nova leitura da Light do ponto de vista do oprimido, em seguida conclui criticando o autoritarismo (91 a 100): Ministro. .. nós concordamos Em sorrir com alegria, Sabendo que alguém nos deu Com tanta sobranceria Um tesouro sem ferir A nossa soberania! Só que a gente desconfia E acompanha interessado 112 O desfecho que o Congresso Ordenará com cuidado Mostrando a toda Nação Que o povo não foi lesado. Nosso povo organizado Cobrará com valentia Uma prestação de contas Dos “home” esta alegria Quando a gente passa fome, E faz greve todo dia (Idem). CORDEL PELA ANISTIA AMPLA, GERAL E IRRESTRITA Paulo Teixeira de Souza, nordestino nascido em região serrana, como declara na estrofe 29, residente no Rio de Janeiro, muito popular na Feira de São Cristóvão na década de 70 do século passado ao lado do poeta Santa Helena. O folheto na forma tradicional (1l X l6 cm), composto em 11 páginas com 31 estrofes em dez, moderno. Na segunda metade da página 11 até a página 12, aparece uma propaganda em versos, divulgando um folheto a ser publicado pelo autor. A capa impressa em papel manilha amarelo e o conteúdo em papel jornal. A ilustração da primeira capa, em xilogravura de J. Borges é uma gaiola com uma janelinha aberta por onde escapa um pássaro. A segunda capa traz reclames comerciais patrocinando a impressão. Como os clássicos do Cordel, o poeta evoca a inspiração por ter que versar um tema de grande importância: a anistia. Desde a primeira até a nona estrofes questiona a lei e a ética nacionais que tiram a liberdade dos questionadores e críticos do sistema dominante, para assegurá-la aos corruptos: os subversivos são presos, mas o bajulador está sempre em liberdade. Por esta postura o poeta teme perder a sua liberdade e se defende: Senhores donos da Nação não me coloque na grade estou falando a verdade nesta minha narração sou um poeta cristão 113 abençoado por Deus escrevendo os versos meus dentro da democracia emplorando a anistia em favor dos irmãos meus (SOUZA, 1979). Nas estrofes seguintes (10 a 19) a luta que o poeta assume pela anistia é sua e de sua esposa; trata-se de uma luta animada por personalidades da história do país e da sua história familiar: Carlos Prestes, Tiradentes; o seu pai um operário engajado e comprometido com a categoria; o seu avô, um ambulante esclarecido e, finalmente, uma enfermeira de quem omite qualquer informação. As estrofes finais (de 20 a 31) apresentam, a sua indignação com os órgãos públicos, as instituições de.gestão e contra a fiscalização ineficiente do governo. É muito forte o seu protesto contra a desigualdade social: “Não sou um poeta letrado só estudei o primário como simples operário vou vivendo atribulado em vê tanto troço errado em meu amado torrão olho a grande ambição uns em lindos aposentos outros sobre os relentos dormindo no frio chão (SOUZA, 1979). 3.3 Folhetos de 1980 a 1984 - A Crueldade dos donos de Terra para com os pobres lavradores, de Rodolfo Coelho Cavalcante. - É Hora de união: a conversa entre um camponês, um operário e um sertanejo, de Zé da Feira. - É bom votar consciente, de Eugênio Dantas de Medeiros - Margarida, Flor de Briga da Campanha Trabalhista, de José Flávio. 114 - Cz$ Cruzado UM foi trambique e Cz$ Cruzado DOIS é tragédia, de Chico Vê Tudo. A CRUELDADE DOS DONOS DE TERRA PARA COM OS POBRES LAVRADORES Folheto de autoria do chamado Trovador Brasileiro, Rodolfo Coelho Cavalcante, alagoano (1919-1986) de Rio Largo, tendo vivido a maior parte de sua vida em Salvador da Bahia. O folheto segue o padrão normal (11 X 15,5 cm); conteúdo impresso em papel jornal, em septilhas de sete sílabas, num total de 32 estrofes em oito páginas e a capa impressa em papel manilha verde. A primeira capa ilustrada em xilogravura mostrando o encontro entre um lavrador e um dono de terra, ladeados por três cães; a segunda capa traz uma foto do poeta e uma mensagem de Natal e Ano Novo referente a 1980-1981 respectivamente. As primeiras estrofes do folheto (1 a 8) partem da lamentação a Deus pelo conflito de terra envolvendo fazendeiros, lavradores e grilheiros. O ponto convergente da narrativa é a Fazenda Penedo da Lagoa Abaeté situada na gestão administrativa do prefeito Mário Kertesz em Salvador. Salvador é o ponto de partida para uma abordagem mais ampla: Se um caso desse acontece Hoje em nossa Capital Avalie no interior Em toda zona rural. O camponês se aterra Com os tais donos de terra Pela maneira brutal (CAVALCANTE, 1980). As estrofes seguintes (6 a 16) apresentam a situação dos lavradores, sustentando a narrativa no argumento de autoridade do jornal; destacando a posição política do bispo da 115 Diocese de Juazeiro, o defensor dos humildes camponeses. Como crítico da realidade, o poeta tem clara convicção: Só se ler pelos jornais A triste realidade Da ambição e do crime De pior perversidade, De ricaços Fazendeiros Vão expulsando os roceiros Sem a menor piedade. Não é querer se tomar A propriedade alheia Porém merece respeito Quem não tem barriga cheia, Se há Lei pro trabalhador E por que o Agricultor Por recompensa: é cadeia?... (Idem) Nas estrofes 17 a 25 o poeta faz uma leitura panorâmica da realidade conflitiva, crítica a ineficiência da legislação nacional para comentar sobre o êxodo rural causando a situação de marginalidade urbana: Não pode continuar Essa terrível opressão Contra os pobres camponeses Que perdem seu próprio chão... Sem terras para lavrarem E nem Lei para se apegarem Têm que deixarem o sertão. O que acontece leitores É o êxodo infernal Dos lavradores correndo Diretos pra Capital Não há Urbe que suporte Tudo por hora da morte E a onda de marginal (Idem). 116 A parte conclusiva (estrofes 26 a 32) trata da superlotação urbana causada pelo êxodo rural forçado pelas expulsões. As duas últimas estrofes reafirmam a postura de resistência à opressão e o manifesto de protesto em favor do povo: Eu não quis neste folheto Através de minha critica Defender Autoridades Nem também fazer política Ao rimar um livro novo Olho o problema do povo Que tanto se sacrifica. Respeito o dono de terras O chamado Fazendeiro Desde que ele seja humano Olhando para o roceiro Lavro aqui o meu protesto Folheto que é um manifesto O mais tudo é verdadeiro (Idem). É HORA DE UNIÃO: A CONVERSA ENTRE UM CAMPONÊS, UM OPERÁRIO E UM SERTANEJO Folheto composto em sextilhas, com quarenta e três estrofes, num total de 16 páginas. Impresso em papel jornal, a primeira capa ilustrada com desenho a nanquim, mostrando um camponês, um operário e um sertanejo, cada um com o seu instrumento de trabalho, de braços entrelaçados, como que em desfile, numa estrada e sob um sol causticante. Apesar de uma narrativa, o folheto é caracterizado, segundo a norma de classificação do Cordel, como pertencente a categoria “peleja” por se tratar de um encontro entre três profissionais para um debate sobre sindicalismo. Do ponto de vista da literatura erudita, é um auto trabalhista onde o poeta, de pseudônimo Zé da Feira, é o narrador. Sob o enfoque da epistemologia, faz-se um seminário sobre educação popular. Nas primeiras estrofes (1 a 3) o narrador situa, históricamente, cada personagem a entrar em cena, no contexto ideológico “hora de união”. As estrofes 4 a 6 constituem-se da 117 auto-apresentação dos atores ( operário, camponês e sertanejo) nas expressões “Sou pobre operário/ Sofredor desta Nação”; “Já eu sou trabaiadô/ Da zona canavieira” e “Eu é que sou sofredô/ Sertanejo do sertão”. Nas estrofes seguintes (7 a 15) o operário abre o diálogo e o camponês introduz os temas sindicalismo e escolaridade de modo que na fala dos três o operário se sobressai como detentor de escolaridade e de saber. A conclusão é que os três se sabem unidos pelo sofrimento e pela resistência ao autoritarismo de modo que o sertanejo, na condição de educando popular, na prática pedagógica, pergunta ao operário: O cumpanhêro operário Que aqui está presenti E faiz parte duma crasse De homens inteligenti Me diga: por quá.motivo Se toma terra da genti? (FEIRA, 1980) A resposta é progressiva numa profunda discussão para a compreensão do que seja latifundio. A conversa, que conduz dialeticamete à conclusão, se faz a nível e aprendizagem popular como lê-se nas falas seguintes do operário e camponês respectivamente: Latifundio é um mal Que já ganhou proporções Acabando brutalmente Com inúmeras plantações Deixando pro agricultor Somente lamentações. Se isso é latifundio Não precisa inteligença Pra sabê que essa coisa Acaba curn quarquer crença Pro rico e força e pudê Pro pobre é fome e doença (Idem). No bloco estrófico seguinte (de 27 a 40), o camponês quer saber qual a saída para a libertação do autoritarismo dos latifundiários: “Me diga: pra acabar com isso/ Quá é o caminho certo?” O diálogo prossegue em torno dos temas sindicato e pelegagem até a 118 conclusão de que a união garante a resistência, a luta e a vitória, possibilitando a formação da consciência crítica e da disposição para a luta na fala do camponês e do sertanejo: O operário amigo inteligenti e letrado Espricô pra nois certinho Cuma é qui anda o babado Só resta a gente se unir Contra os pelogos safado. E vamo todo se unir Prá lutar cum valentia Por uma Reforma Agrária Certa cuma a luz do dia E cuma a luz da lua Que a noite a terra alumia (Idem). Nas estrofes 41 a 43, o operário avalia o encontro e, declarando felicidade pelo mesmo, convoca os dois à resistência e à luta para acabar a exploração. A conclusão do folheto, na voz do poeta-narrador é um grito de ordem do poeta alagoano em Maceió: E terminado o papo Desses nossos três irmãos Como nós trabalhadores Sofredores da Nação Só resta agora lutarmos Em busca da Salvação (Idem). É BOM VOTAR CONSCIENTE O folheto é uma das últimas produções do extinto Movimento de Educação de Base (MEB) do Ceará, de autoria do poeta popular e coordenador do MEB, Eugênio Dantas Medeiros, composto e impresso pela equipe do MEB/Nacional em Brasília no ano de 1981. Com um total de 12 páginas, constituído de 48 estrofes em sextilhas, foi impresso em papel ofício de cor amarela. A ilustração é constituída apenas pelo título em caixa alta, ao centro, 119 em duas linhas. Na parte superior, o nome do autor e na inferior a indicação do ano e local de publicação, envolve a ilustração uma moldura em dois traços paralelos. A introdução (estrofes 1 a 7) apresenta uma súplica de inspiração a Jesus que, a um tempo, é profeta e modelo de governante; apresenta o objetivo do texto: orientar os eleitores durante o ano pré-eleitoral; noções básicas do homem como animal político, de governante e governados; formas de governo; tipos de poder e sobre partidos políticos como ilustram as seguintes estrofes: Há os partidos que querem pelo voto conquistar os altos postos políticos para poder governar uns desejando servir outros para se aproveitar. A forma de um partido uma Nação governar deve ser na eleição pelo voto conquistar e o governo assumir por vontade popular (MEDEIROS, 1981). As estrofes 8 a 12 tratam da lei eleitoral: idade de habilitação para o voto, voto livre, título eleitoral e seriedade da eleição como um exercício da democracia. As estrofes 13 a 39 constituem a parte mais intensa de abordagem por tratar dos crimes eleitorais. O elenco de crimes vai desde a venda e compra de voto, passando pela pressão ao eleitor, ameaça de demissão, abuso do poder econômico e político; uso da máquina administrativa, difamação de candidatos e o sigilo do voto. Neste contexto lê-se as estrofes seguintes: O abuso do poder econômico que existe e poder de autoridade você sabe que consiste em rico pensar que pobre ao dinheiro não resiste. Não pode a autoridade 120 perseguir oposição usar de prerrogativas para fazer opressão demitir funcionários sem um pingo de razão. Também é corrupção desvio de autoridade prefeito soltar os presos dentro de sua cidade também dispensar impostos como forma de bondade (Idem). Prossegue o poeta, nas estrofes 40 a 45, caracterizando o eleitor esclarecido e consciente, define e caracteriza os partidos políticos na democracia, para explicitar que somente um povo consciente pode mudar o país: Na democracia é regra alternância de poder por isso existe eleição para o povo escolher; só pode ser reeleito quem de fato merecer. Se o povo for consciente ele será soberano tem poder de decisão pra livrar-se do tirano votando em quem pr´o Brasil de salvação tenha um plano (Idem). Nas estrofes 46 a 48 está o recado final do poeta ao eleitor para superar a alienação, acreditando ter feito educação popular em matéria de política: Por isso, eleitor amigo com estes versos que fiz dar uma orientação foi tudo aquilo que quis pra ver se votando certo a gente salva o país (Idem). 121 MARGARIDA: FLOR DE BRIGA DA CAMPANHA TRABALHISTA Folheto impresso em papel A4 branco, em tamanho tradicional (11 X 16 cm), em oito páginas. A ilustração da primeira capa é constituída pela foto da líder sindical Margarida Maria Alves com moldura simples; na parte superior o título e, sobreposta à foto, a data do assassinato da líder sindical. A segunda capa apresenta um reclame da Campanha Trabalhista dos canavieiros da Paraíba e a indicação do apoio logístico ao folheto dado pelo Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural (CENTRU). O convênio e a forma de composição poética se relacionam dialeticamente numa bipolaridade: em 17 septilhas de sete sílabas lê-se a Campanha Trabalhista e, em nove décimas, em martelo agalopado, lê-se a história da morte da líder sindical Margarida Maria Alves como introduz a seguinte estrofe: E o que hoje eu lhe trago é a história verdadeira da CAMPANHA TRABALHISTA na zona canavieira e a HISTÓRIA DA MORTE/ de uma grande mulher forte que é sua companheira (FLÁVIO, 1983). Metodologicamente, decidiu o poeta intercalar décimas entre as septilhas sem nenhuma indicação de mudança, dificultando a leitura linear do tema. Tal postura, no contexto da censura, é uma estratégia do “eu” lírico para preservação do poeta e garantia da editoração. O bloco de septilha apresenta uma seqüência de temas trabalhistas que incidem na práxis canavieira na Paraíba: carteira de trabalho, participação sindical, 13° salário, hora extra e a condição de subsistência do trabalhador: 122 Quem já não ouviu falar no ABONO DE NATAL? ou no décimo terceiro? É um salário mensal que eu digo sem engano: UM SALÁRIO A MAIS POR ANO é seu direito legal. RECEBE 2 HECTARES das mãos do proprietário todos os canavieiros que trabalham por salário Essa terra é pro sustento PRA PLANTAR O ALMENTO que lhe seja necessário (Idem). O bloco de décimas apresenta a narração do assassinato da líder sindical com detalhes da espreita do assassino; narra as ameaças, cita pessoas questionadas como mandantes e a doutrina pregada por Margarida Alves. Conclui com um ensinamento que pode ser lido sinteticamente nas seguintes estrofes: Onde está o senhor BRANCO PEREIRA? Onde está o senhor LINO MIRANDA? O doutor AGNALDO onde é que anda? ONDE ESTÁ A JUSTIÇA BRASILEIRA? Quem mandou recados pra companheira? e quem a ameaçou de frente a frente? Onde diabo socou-se esta gente que juraram de morte Margarida? A JUSTIÇA TERÁ DE SER CUMPRIDA desta vez contra a classe dirigente. Margarida brigava por SALÁRIO e pelas OITO HORAS de jornada pra ver a CARTEIRA ASSINADA pra que o pobre tivesse o necessário Era contra esses latifundiários e a favor do trabalhador rural que não tem seu REPOUSO SEMANAL HORA-EXTRA, nem FÉRIAS, nem ROÇADO Porque pelo patrão ele é roubado do salário ao ABANO DE NATAL! DESSA BRIGA NINGUÉM DEVE FUGIR todos devem é nela meter peitos Se você não buscar os seus direitos roubam tudo sem nem você sentir 123 MAIS QUE TUDO É PRECISO SE UNIR Companheiro, jamais você desista! Margarida morreu, mas nessa lista quem entrar termina ganhando a vida QUE EM VOCÊ NASÇA UMA MARGARIDA PRA BRIGAR NA CAMPANHA TRABALISTA! (Idem) Cz$ CRUZADO UM FOI TRAMBIQUE E CR$ CRUZADO DOIS É TRAGÉDIA A presença do pseudônimo CHICO VÊ TUDO e a não indicação de local e ano de publicação do folheto indicam a atitude de resistência à Ditadura por parte do poeta10. Contudo, tem-se um trabalho em 55 estrofes em septilhas nas 14 páginas. Mais cinco páginas apresentam um anexo ao tema central. Em tamanho tradicional (11,5 X16 cm), impresso em papel jornal, capa amarela. Na primeira capa, vêem-se caricaturas do Presidente José Sarney, com um revolver engatilhado, ao lado do ministro Funaro criador do Cruzado II. Adornam as figuras textos informativos sobre os caricaturados e sobre a pseudo democracia. A segunda capa, nas duas faces, encontram-se estrofes sobre Tancredo Neves, o Presidencialismo, o Parlamentarismo e sobre a Constituição Federal completando o anexo referido acima. As estrofes de abertura (1 a 5) fazem uma evocação a Deus chamando-o “Protetor dos humilhados/ Amparo dos desvalidos/ E opressor dos exaltados”, e a Jesus Cristo pede talento para falar ao povo. Já falando é muito convincente: Cr$, Cruzado Um foi trambique e Cr$, Cruzado Dois é tragédia Porque ele atacou Às classes pobres e média; A classe rica avatenta Pra ganhar tudo ela inventa 10 A prática de anonimato e o uso de pseudônimo são freqüentes na Literatura de Cordel durante as situações de perseguição. Na Ditadura de Vargas e após o Golpe Militar de 1964, muitos poetas se preservaram nesta prática. O texto em estudo é uma impressão já de 1987 em Teresina no, Piauí. 124 No jogo da intermédia. A classe rica é quem faz O jogo da divisão Pra tirar grande proveito Causando a separação Entre a média e a pequena A classe rica envenena Provocando a infração (Carestia) (VÊ TUDO, 1984). As estrofes seguintes (6 a 34) contêm um humor político-econômico pornográfico que o poeta, nas páginas 16 a 17, justifica o uso para uma sátira estética e lírica, tipicamente nordestinas, aos que se contaminaram com a “sarna” do “Zé Sarnento”, contra a qual o poeta já fora vacinado pela consciência crítica: Graças a Deus estou livre Da sarna de “Zé Sarney Porque antes de votar Me vacinar procurei; Afirmo como poeta Sua sarna não me afeta Pois dela eu já me livrei (Idem). Nas estrofes 35 a 43, o poeta critica a Assembléia Constituinte que fez a Constituição de cima para baixo; não poupa o Plano Cruzado e o gatilho salarial com argumento de autoridade dado por Leonel Brizola, para ele, um cientista político: O patriota Brizzola (Dr.) É quem estar com a razão Antes ele já previa Essa negra traição; Além de ser brasileiro É um profeta certeiro Com sua larga visão. Por isso é que Brizzola Está sempre na vanguarda, Ele não quer que a Nação Trilhe só na retaguarda; D´aquela gente estrangeira Que quer ver nossa bandeira Sempre desvalorizada (Idem). 125 Numa postura dialética, nas estrofes quase barrocas (44-54) de culto do contraste, para o poeta que VÊ TUDO, a tese é divina e a antítese Sarneyana que a mediação do vocábulo Natal lê-se, dentre outras, as seguintes estrofes: O Natal de Deus menino É de saúde e de paz E esse de “Zé” Sarney Com as multinacionais Foi uma grande tragédia Atingiu a classe média Mulher, menino e rapaz. O Natal que Jesus quer É um Natal de verdade Não com pompa e fantasia Onde só reina maldade; Deus quer um Natal fiel E não um “Papai Noel” Explorando a humanidade (Idem). A grande síntese não é nem a tese divina, nem os dois Planos Cruzados de Sarney e Funaro. A solução será, partindo da falsa democracia orquestrada pelo “monstro capitalismo”, a chegada ao socialismo: A falsa democracia Do monstro capitalismo A nós sonega a justiça Contraria ao cristianismo; Só há uma solução É se fazer coligação Com o bom socialismo (Cristão)11 11 Por ocasião do décimo aniversário da Casa do Cantador (1995), em Teresina, no Piauí, o poeta diziame ao entregar este folheto de Cordel: “Meu livro, prof. Matuzalém, é a minha crítica à Ditadura que ainda não se acabou, ... o senhor acredita?” (18/06/1995). 126 4 DIALÉTICA DE LEITURA A dialética de leitura, como instrumento de leitura, aproximará do objeto de estudo tendo como pressuposto para um conhecimento. Neste compreender é que o vocábulo autoritarismo se apresenta como conceito fundante suscitando as categorias da dialética dita instrumento exógeno.12 Autoritarismo é compreendido pelos lexicógrafos como sendo uma qualidade dos indivíduos, dos sistemas ou dos governos autoritários que se caracterizam pelo uso do poder forte e absoluto, pelo abuso da autoridade, pelo despotismo e pela arbitrariedade. No autoritarismo, a autoridade ao invés de servir aos súditos, passa a servir-se deles, coagindo-os pela demagogia ou corrompendo-os com uma parcela dos resultados da exploração. Distinguem-se dois tipos de autoritarismo: ativo e passivo. O autoritarismo ativo dos exploradores e dos agentes instrumentos da exploração corresponde o autoritarismo passivo dos exploradores, doutrinados para acatar os argumentos autoritários como a melhor razão e para rejeitar os argumentos da razão como a pior autoridade. Isto significa que a exploração vigente num sistema (político, social e/ou religioso) gera uma disposição para a exploração ativa ou passiva nos sujeitos que a compõem. A exploração caracterizante do autoritarismo, gerando uma disposição de auto-reforço, tem sido uma constante como mostrara Platão ao introduzir, em “A República” (2001), sua exposição sobre as quatro formas corrompidas da autoridade, caracterizando os 12 A verdade é sempre, para a filosofia escolástica, um pressuposto do discurso científico que aponta para o que é aceitável em ciência: a razão e a observação. (JOLIVET, 1968, p. 130-133; PADOVANI et CASTAGNOLA, 1962, p. 169-197). 127 tipos de homem a saber: o homem timocrático, o homem oligárquico, o homem tirânico e o homem democrático.13 Em busca de uma lectio veritatis apresenta-se a seguinte Dialética de Leitura como via et ratione aliquid faciend. Esta dialética de leitura aparece na tensão dialética entre componentes autoritários e democráticos, constituindo a perspectiva de leitura da realidade (1964 a 1984) feita pelos cordéis, elucidando a cosmovisão, o comportamento, as estratégias e os meios de resistência ou não ao autoritarismo. Sob a mediação dos indicadores, vocábulos cordelinos, chega-se à tensão dialética de postura ora autoritária, ora democrática que mediante os dados quantitativos dos vocábulos indicadores, sob a elucidação das expressões significantes14, condutores da ideologia e da contra-ideologia, chegar-se- á à predominância da postura da Literatura de Cordel. O quadro seguinte, visualizando a dialética de leitura, abre o horizonte de abrangência tendo a cosmovisão apontando para a totalidade de compreensão, o comportamento compreendendo o conjunto de reação e estímulos enquanto acessíveis à observação exterior; as estratégias denotando o conjunto coerente de ações destinadas a produzir certo resultado e, finalmente, os meios persuasivos e dissuasivos para o alcance dos objetivos compatíveis à cosmovisão autoritária e democrática para o detectar da diferencia e predominância pertinentes. 13 Platão explicita que os subalternos têm a mesma consciência do autoritarismo gerada pela educação do governo autoritário; os subalternos apludem e ampliam a força autoritária de modo que tanto o homem timocrático, como o oligárquico e o tirano, como governantes, vêem a multidão já pronta ou em vias de perfeição a obedecer sem questionamentos, ao contrário do democrático (PLATÃO, 2001, n° 549ª551,544) 14 Ver item 4.5. Os indicadores de leitura estão nos anexos. 128 129 130 4.1 Cosmovisão Qualquer conceituação não pode prescindir do que é mais elementar como designando visão de mundo. Significa que o vocábulo aponta para a soma geral de conhecimentos, organizada, sistematicamente ou não, como uma espécie panorâmica geral de todo o conhecimento, formando uma totalidade de visão, uma coordenação de opiniões entrelaçadas entre si. Esta complexidade possibilita formular não só uma opinião geral de todo o acontecer, mas também compreender e relacionar um fato individual com a visão geral formada do todo. Esta visão geral do universo pode ser estabelecida por um indivíduo ou um grupo social, maior ou menor, inclusive por um ciclo cultural, ou uma era. 4.1.1 Elitista A compreensão da categoria elitista evoca a teoria das elites ou elitista (possibilidade de elucidação do vocábulo elitismo) como a teoria segundo a qual, em toda a sociedade, existe, sempre e apenas, uma minoria que, por várias formas, é detentora do poder, em contraposição a uma maioria que dele está privada. A teoria das elites nasceu e se desenvolveu por uma especial relação com o estudo das elites políticas, ela pode ser redefinida como a teoria segundo a qual, em cada sociedade, o poder político pertence sempre a um restrito círculo de pessoas: o poder de tomar e de impor decisões válidas para todos os membros do grupo, mesmo que tenha de recorrer à força em última instância. A formulação dessa teoria, hoje tomada classicamente, foi dada por Gaetano Mosca em Elementi di scienza política, em 1836 (ABBAGANNO, 1982, verb. elite), já o termo elite remonta a Pareto, que alguns anos após, por influência de Mosca, enunciou na Introduction aux Systemes Socialiste (1902) a tese segundo a qual em toda sociedade há uma classe 131 superior que detém geralmente os poderes políticos e econômico à qual se deu o nome de aristocracia ou elite. Contribuiu muito para esta teoria Pareto (1902; 1916), chamando a atenção para o fato de que “sendo os homens desiguais em todo o campo de suas atividades, dispõe-se, em vários níveis, que vão do superior ao inferior”. Chamou de elites aqueles que fazem parte do grau superior, deteve-se particularmente sobre os indivíduos que, ocupando os graus superiores da riqueza e do poder, constituem a elite política ou a aristocracia.15 Aristocracia Aristocracia16 é uma das três formas clássicas de governo e precisamente aquela que tem o poder (krátos = domínio ou comando) está nas mãos dos melhores, que não equivalem necessariamente à casta dos nobres, mesmo se, normalmente os segundos sejam identificados com os primeiros. As mais clássicas definições de aristocracia, entendida como forma de governo, achamo-las em Platão e Aristóteles17. Aristóteles fala da oligarquia como um desvio da aristocracia à medida que, na oligarquia, os poucos governam no interesse dos ricos e não da comunidade, ao contrário do que acontece na aristocracia (ARISTÓTELES, 1971: III, 8). Na república ideal, delineada por Platão (2001), o termo ´aristocracia` vem carregado de valores do mundo grego onde a sabedoria e o conhecimento constituem o valor dos melhores para governar: 15 Vilfredo Pareto, Mosca e Michele são considerados os precursores da teoria das elites (BOBIO, et al., 1995, verb. elite). 16 Aristokracia, do grego aristo = excelente + kratos = poder: o governo dos melhores. É o regime político idealizado por Platão (427-347 a C) em sua obra “A República” (2001). 17 Já no século V aC. podemos encontrar em Heródoto, no logos tripolitikós ou “agonia dos políticos” (as histórias III, 80-83) s primeira classificação historicamente documentada da teoria de tripartição das formas de governo (de um, de poucos e de muitos) que tanto sucesso teria no pensamento antigo e não só nele (BARKER, 1978, p. 320-326). 132 Compete, na verdade, aos melhores, aos sapientes, aos sábios enquanto perfeitos, conhecedores e possuidores da verdade, guiar o Estado ético, para alcançar o verdadeiro bem. (PLATÃO, 2001: V). Tanto para Platão como para Aristóteles, também uma constante para o pensamento político grego, os aristocratas são moral e intelectualmente os melhores e estes não podem ser senão aqueles que pertencem às classes mais elevadas da sociedade. Sobretudo em Aristóteles há uma oposição entre ricos e pobres: classe aristocrática e classe popular, possibilitando compreender-se que o calor ético-pedagógico vem se identificar com uma precisa situação econômico-social. Hoje, contudo, o significado mais comum de aristocracia é de um grupo privilegiado por direito de sangue. Coronelista Expressão derivada de coronel (do francês coronel), usada para definir a estrutura de poder dos grandes proprietários e das oligarquias agrárias entre o fim do império e o começo da República no Brasil imperial e na Primeira República, qualquer potentado rural comprava com facilidade o título de coronel da Guarda Nacional. Esses coronéis exerciam um domínio político despótico sobre os que deles dependiam economicamente e sobre a clientela dos apaniguados. Eram eles quem ditavam os nomes dos candidatos nos quais cada um devia votar. A esta demoninação da política local exercida pelos senhores rurais se deu o nome de coronelismo. São os coronéis que garantem a eleição de candidatos dos governos federal e estadual durante a República Velha. Eles fazem a propaganda dos candidatos oficiais, controlam o voto não-secreto dos eleitores e a apuração, chegando quase ao resultado esperado (cf. JANOTTI, 1981, p. 28-66). 133 Por extensão o termo coronelismo18 4.1.2 Popular A compreensão da categoria popular, no contexto epistêmico da dialética de leitura, aparece como antítese à cosmovisão autoritária, possibilitando ao termo ter o seu campo específico de significação nas iniciativas e nos contextos teóricos concernentes às estruturas de dominação. Neste horizonte epistêmico, comenta Melo Neto (2004, p. 157): [... ] popular adquire uma plasticidade conceitual, exigindo, para os dias de hoje, uma definição que, rigorosamente, passa por movimentos dialéticos intrínsecos ao próprio conceito, inserido no marco teórico da tradição e atualizado para as atuais exigências . Os campos teóricos que evidenciam os elementos constitutivos do conceito de popular são os seguintes: origem, metodologia e posicionamento político-filosófico acrescidos dos aspectos éticos e utópicos. Todos estes elementos, dialeticamente relacionados, visualizam algo sendo popular por ter sua gênese nos esforços e no trabalho do povo, das maiorias (classes), que ganha significado com o conhecimento do para onde que é apontado por algo que se postula popular. Numa palavra, “lago é popular se tem origem nas postulações dos setores sociais majoritários da sociedade ou de setores comprometidos com suas lutas, exigindo-se que as medidas a serem tomadas beneficiam estas maiorias” (MELO NETO, 2004, p. 157). Na segunda dimensão conceitual, a política, ser popular é ter clareza da existência de um papel político dessa definição: dimensão voltada à defesa dos interesses de setores das classes majoritárias. “As ações constitutivas desta volta à defesa das maiorias são, necessariamente, reativas às formulações ou políticas que são ou deverão ser impostas a tais 18 Os coronéis têm diferentes denominações a saber: coronel candílio nas coxilhas do Sul; coronel de barranco nos rios amazônicos do Norte; coronel donatário dos sertões do Nordeste e coronel empresário na cafeicultura do Sudeste. Os nomes variam mas a estrutura de poder é a mesma (cf. PANG, 1960). 134 maiorias”. Ser popular, sem prescindir da reatividade, significa estar relacionando as lutas políticas com a construção da classe trabalhadora (maiorias), mantendo o seu constituinte permanentemente, que é a contestação. Ser popular é externar-se através da resistência às políticas de opressão, adicionadas às políticas de afirmação social. Em conseqüência, deverão emergir da resistência ações objetando contribuir para a construção da direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político. A metodologia, que confere autenticidade popular a algo, tem o sentido de promover o diálogo entre os partícipes das ações, contribuindo com isto para o exercício da cidadania. 19 A metodologia dita popular rege-se por princípios éticos emanados das exigências do trabalho. Sob esta metodologia ser popular é estar dirigido por princípios voltados às maiorias, possibilitando reafirmar-se como fundamental o princípio do diálogo, oferecendo possibilidades de promoção de outros princípios como solidariedade e a tolerância, preservando-se do relativismo ético sob o escopo do bem coletivo. O conceito de popular arrasta para si definições envolvendo as utopias, tão emergentes para os dias atuais, de modo que, ser popular é tentar alternativas, é estar realizando o possível, mas que ao se realizar, abre, contraditoriamente, novas possibilidades de utopias, cuja negação terá os elementos já efetivados e tentativas de novas realizações, garantindo dinamicidade à segunda dimensão constituinte do popular. Neste universo das dimensões fundamentais do vocábulo popular, a utopia da democracia tem um valor permanente e deve ser vivida sem qualquer entrave na tensão dialética entre autoritarismo e ação democrática. A utopia é a qualidade do ser humano ainda não embrutecido pela sua fraqueza ou pela realidade tremenda. É a liberdade que o homem se reserva de opor, às situações decepcionantes e injustas, uma força contraditória: a esperança (GUARESCHI, 2004, p. 162). Esperança de que não é, não existindo agora, pode vir-a-ser, tornando realidade precisa 19 Cidadania comenta Melo Neto (2004, p.159), “não se esgota na análise. É preciso também que o indivíduo se prepare para a ação, para desenvolver metodologias que exercitem o cidadão para a crítica e para a cão”. 135 acontecer. A “utopia é a imaginação criadora, exigente, que faz presente o futuro real, a partir do presente possível de ser transformado e melhorado”. A imaginação utópica sempre esteve presente na história dos homens a ponto de se objetivar nas formas de pensamento. 20 No bojo das produções utópicas, tanto na literatura erudita como na popular de Cordel, registramse as afirmações seguintes: - a abolição da propriedade privada, vista como a fonte de muitos males para a maioria delas; - a igualdade entre os sexos, com idênticas possibilidades para ambos na comunidade; - educação para todos: educação não aparece como a tentativa de enfiar na cabeça do educando algumas coisas para que ele as vomite depois, apodrecidas, mas como criação de condições para que a pessoa descubra, por si só, seu caminho; - a justiça não seria a fria, mecânica e quantitativa dos códigos burocráticos, mas algo derivado do sentimento moral interior. De povo Etimologicamente, o vocábulo vem do Latim (populus), denotando conjunto de indivíduos que formam uma nação, uma tribo ou conjunto similar de humanos. Do ponto de vista sociológico, denota conjunto composto de grupos associados de maneira estrita, que tem tradições e um passado comum e ocupam um país ou um território determinado; significa, também, parte modesta de uma nação. Politicamente considerado, o vocábulo aparece em dois sentidos: no sentido ativo designa substância mesma do corpo político; pessoas que constituem uma sociedade política ou vivem unidos sob leis; no sentido passivo, multidão regida e governada. 20 Podem ser chamados de utópicos livros como “A República”, de Platão; os “Atos dos Apóstolos”, da Bíblia; a “Utopia”, de Thomas More; “A Cidade do sol”, de Campanella; “Icaria”, de Cabet dentre outros que criaram projetos utópicos para suas épocas (cf. GUARESCHI, 2004, p. 165). Na Literatura de Cordel os “marcos” delineiam o utopismo popular como em “O castelo da cidade flor mimosa”, de Manuel Vieira Paraíso; “Marco do meio do mundo”, de João Martins de Athayde; “O forte de Guarabira ou castelo universal”, de José Camelo de Melo Rezende; “Viagem a São Saruê”, de Manoel Camilo dos Santos dentre muitos (ALMEIDA et ALVES SOBRINHO, 1981). 136 Do ponto de vista filosófico, Kant argumenta: “pelo termo povo (populus), entende-se a massa dos homens reunidos numa determinada região, desde que constitua um todo. Esta massa a quem se atribui uma origem comum, permite reconhecer-se como unida numa totalidade” (KANT, 1964, 154). Contudo, para ater-se à significação política da palavra povo diz Maritain (1965, p.24): Basta dizer que o povo é a multidão de pessoas humanas que, unidas sob leis justas, por uma amizade recíproca e para o bem comum de sua existência humana, constitui uma sociedade política ou um corpo político. Na perspectiva da filosofia política do século XX, a noção de povo é uma categoria ativa de cada nação: categoria quantitativa, pois – na ausência do Estado-, não só seus aparelhos, por definição ausentes ou estrangeiros, denotam que as amplas massas subjugadas é que libertam e consolidam a nação; categoria quantitativa porque na falta da nação – o Estado se legitima mediante o apoio popular, que o erige em entidade para si em face do outro denominado autoritarismo. A noção de povo permite, com efeito, integrar nacionalmente duas classes sociais subestimadas ou elimináveis pelo marxismo: burguesia e proletariado. Não foi sem mais que o sovietismo cubano tenha exaltado o papel do povo na revolução: “um dia o povo se ergueu contra a tirania; um dia o povo se uniu e um dia o povo venceu; mas essencialmente, o povo operário, o povo camponês, o povo estudante”. Vale destacar que, “depois de vinte e cinco anos de luta corajosa e ininterrupta, o PDG (Partido Democrático de Guiné) na África, conseguiu unificar todas as federações da Guiné para transformá-las num único povo consciente e desperto [...]; sem povo não há nação”, declarava Seku Touré para revisar a teoria marxista do Estado (CHÁTELET et KOUCHNER, 1983, p. 391-408). 137 De associação O vocábulo aponta para a ação coletiva, evocando outro vocábulo – cooperação – que em seu sentido etimológico, estrito, denota ação conjunta. A partir de então, compreende-se tanto associação quanto cooperação como um processo cujos indivíduos nem sempre têm consciência clara, mas onde houver algum consenso a respeito de metas culturalmente legítimas, valores e crenças coletivas, há cooperação. Da relação correlata dos vocábulos possibilita dizer-se que o movimento cooperativo denota associação de pessoas trabalhando juntas para a produção e distribuição de bens; as cooperativas têm assumido uma variedade de formas em diferentes contextos. No cerne desta variabilidade de formas, percebe-se que a cooperação, sobretudo em nível macrossocial, nem sempre reflete o consenso a respeito de metas e valores, crenças e normas, além do que a cooperação pode resultar da existência de interesses e objetivos diferentes, mas complementares como tende a ocorrer entre as classes sociais. A burguesia empresarial tem como principal objetivo de sua ação a obtenção de mão-de-obra, ou seja, do operariado. Os trabalhadores agem em função da sobrevivência, da resistência e da elevação de seus padrões de consumo, porém, para alcançar tais objetivos, precisam vender a sua força de trabalho à burguesia empresarial. Os interesses e objetivos dessas amplas categorias sociais são inegavelmente diversos e os movimentos reivindicatórios, de superação da dominação ou da acomodação, impetrados pelos trabalhadores resultam, portanto, antes, do altíssimo grau de insatisfação das suas necessidades e dos seus interesses que eficazmente ser realizam na práxis associativa (cf. BECKER, 1977, p. 10-12; GIDDENS, 1998, p. 115-117, 127-130). Denota-se, pois, que a principal função das associações profissionais é proporcionar a coordenação moral apropriada, nos pontos modais da relação da sociedade dividida em classes, a promover a solidariedade orgânica de resistência e luta. 138 As associações profissionais desempenham um papel vital de poder intervir no processo político do Estado se este representa diretamente a “vontade do povo”. Neste sentido é que se entende a proposta de Durkheim para uma retomada das associações profissionais, dentro do quadro geral de qualquer autoritarismo, que têm afinidades precisas com o solidarismo e a capacidade de influência nos indivíduos, pela relação próxima e direta com os interesses políticos dos movimentos populares. Uma característica comum das associações sempre foi o impulso ético e idealista. Desde o início, a cooperação foi encarada como um meio de construir uma alternativa ao capitalismo, de baixo para cima, substituindo o individualismo burguês por uma sociedade baseada na reciprocidade e na solidariedade sociais. Na tensão dialética, veiculando a cosmovisão cordelina no quadro seguinte, pelos itens estilista e popular, mostra que se tomando o indicador presidente, para o item elitista constatar-se 55% de freqüência e o indicador povo para o item popular apresenta 61%, denotando a predominância da cosmovisão popular sobre a elitista. Considerando-se todos os indicadores tem-se 29,8% para a cosmovisão autoritária e 70,2%, para a cosmovisão democrática (cf. 4.5). 139 Elitista Sub Ítem ARISTOCRACIA Avião Carestia Dominadores Governador Governadores Presidente Senadores Deputado Deputados Total 2,5 17,5 5 10 0 55 2,5 7,5 0 Sub Ítem CORONELISTA Autoridade Dono Donos Latifúndio Dominar Força Usineiro Total 16,7 27,3 3 0 7,6 40,9 4,5 0 Deputados Avião Carestia Senadores Dom inadores Governador Presidente Governadores Usineiros Usineiro Autoridade Força Dono Dom inar Donos Latifúndio 139 Usineiros Deputado 140 Popular Sub Ítem DE POVO Povo Gente Camponês Operário Operários Total 39,4 41,9 6,3 11,8 0,6 Sub Ítem DE ASSOCIAÇÃO Povos Governados Total 80 20 140 141 4.1.3 Discriminatória O adjetivo discriminatória que tipifica a ação humana ou o modo de ver a realidade, deriva do vocábulo latino discriminare, significando distinguir, diferençar, separar e extremar. O substantivo discriminação (discrimen, minis) denota separação, apartação, segregação. Todavia, num olhar mais profundo tem-se, em sentido mais geral, o vocábulo denotando o ato de perceber, notar ou fazer distinção entre objetos ou pessoas que, como categoria deste instrumento exógeno de análise, liga-se à categoria patriarcalismo no discernir ontologicamente mulher e homem, branco e não-branco, jovem e idoso, na práxis das relações humanas. Quanto à relação de gênero, o vocábulo representa o aspecto social das relações entre os sexos e, a um tempo, é um conceito que se distingue do conceito biológico de sexo, mas que se constrói e se expressa em muitas áreas da vida social. Inclui a cultura, a ideologia e as práticas discursivas, mas não se restringe a elas. A divisão do trabalho por gênero no lar e no labor assalariado, a organização do Estado e muitos outros aspectos da organização social contribuem para a construção das relações de gênero. As relações de gênero assumiram formas diversas em diferentes sociedades, períodos históricos, grupos étnicos, classes sociais e gerações. Um aspecto comum é que a diferença de gênero se associa à desigualdade de gênero com os homens exercendo o poder sobre as mulheres.21 A palavra relacionada a este poder é patriarcalismo ou patriarcado, que conceitualiza a desigualdade de gênero como socialmente estruturada. Completa o entendimento desta questão a colocação de Luis Dias Rodrigues (1999) a propósito da tipologização da autoridade: nas sociedades patriarcais, caracterizadas por acentuados preconceitos machistas, 21 Para alguns a superioridade dos homens sobre as mulheres é universal, para outros quase que Universalmente (OUTHWAITE et BOTTOMORE, 1996, verb. gênero). 142 as posições de chefia são raramente ocupadas por pessoas do sexo feminino. Ao contrário, quando se trata de instituições ligadas por sistemas predominantemente matriarcais, são as chefias masculinas que encasseiam.22 Quando Rodrigues (1999, p. 88), anuncia que “resta aos pesquisadores esclarecer se o sexo define ou impõe papéis sociais diversos para homens e mulheres”, evoca-se o filósofo latino-americano Dussel (1997) que, relacionando o erotismo com a pedagogia, assevera : “se o homem se afirma falicamente no mundo, a mulher não se afirma menos ao se adiantar como instituidora ativa de sua carne mamário-clitoriano-varginal”. A mulher, então, não se define a partir de seu ser fálico como um não-ser-castrado. Isso só acontece nos povos machistas, onde se exige que a mulher dependa inteiramente do homem, e que para reprimi-la, define-se sua sexualidade unicamente na atividade masculina, assinalando à mulher a posição passiva de objeto sexual. A ontologia machista aliena colsisticamente a mulher, e por isto, sem dar importância alguma ao orgasmo clitoriano, exalta até o antinatural o orgasmo vaginal (contrapartida passiva de atividade do pênis). Então é necessário começar a descrever a abertura feminina ao mundo (da mulher para o homem), descrição praticamente inexistente pela opressão que pesa sobre a mulher, não é a nível erótico mas também (e por isto) no pedagógico e no político. A injustiça erótica (a mulher objeto sexual) estende-se à injustiça pedagógica – a menina castrada - e à injustiça política – a mulher com o salário menor que o homem (DUSSEL, 1977, p. 85-93). A cosmovisão discriminatória, portanto, é explicitada como tratamento diferencial, favorável ou desfavorável, que se dá às pessoas, segundo as respectivas categorias: tratamento 22 Não só escasseiam as chefias masculinas, mas necessitam de uma intervenção cultural ou política para aparecerem. Como exemplo a figura “pai-de-santo” no Brasil é uma extensão denominativa e substitutiva no culto Dãnh-gbi (Vodu, Orixá ou santo; e não mãe) por força cultural machista patriarcal. O culto original na África só conhece a figura “mãe-de-santo” ou “mãe-de-terreiro” indicando a secerdotisa, do culto Jejê-nagô, dirigindo a educação sagrada das filhas-de-santo ou cavalo-de-santo (o que incorpora a entidade divina), presindindo as cerimônias festivas com indiscutida autoridade que, por isto mesmo, são chamados mulheres ou esposas-de-santo (RODRIGUES, 1945, p. 350). A descrição de um conflito desta inculturação sagrada pode ser lida com profunidade ALVES VELHO, 1977, p. 46-92. 143 este que tem pouca ou nenhuma relação com o comportamento real das pessoas assim tratadas. Outro aspecto aponta para o sentido contemporâneo mais comum, tanto na linguagem corrente, como nas ciências sociais, denotando o tratamento desfavorável dado, arbitrariamente, a certas categorias de pessoas. Neste caso, refere-se a um processo ou forma de controle social que serve para manter a distância social entre duas ou mais categorias ou grupos sociais, através de um conjunto de práticas acarretam a atribuição arbitrária de traços de inferioridade, baseados em razões que pouco têm a ver com o comportamento real das pessoas que são objetos de discriminação. Freqüentemente, tais razões entram em conflito com as idéias aceitas de decência e justiça. Nesse sentido, Berry (1958, p. 72) comenta que “os povos dominadores, em tida parte”, têm recorrido a uma espécie de artifício para restringir econômico, político e socialmente os grupos étnicos e raciais dominados”. O vocábulos comumente aplicado a tais práticas é discriminação, cuja função consiste em isolar os grupos dominantes e subordinados, assim limitar o contato e a comunicação entre eles. É oportuno observar, que no universo da cosmovisão discriminatória, a Sociologia introduz o termo estereótipo (stercos do grego), para significar preconceitos coletivos que se generalizam na consciência do grupo social e em função dos quais os membros do grupo julgam as pessoas, as situações e as coisas. Os estereótipos originam-se sempre de associações acríticas entre idéias, entre sujeitos e predicados, possibilitando generalizações apressadas, pelas quais, a partir de uma ou poucas experiências, o grupo forma um preconceito tenaz a respeito de determinando objeto. Desta forma, os estereótipos se difundem rapidamente num meio homogêneo e transmitem-se de uma geração a outra. Isto é, o que acontece, numa sociedade heterogênea, forma-se a idéia de que o não-branco é indolente, associável e incapaz. No universo da cronologia existencial, o 144 idoso é relegado dos benefícios e das possibilidades da ação, mesmo competente e capaz, perde a identidade e o espaço para a denominação jovem. A racionalização da questão é evidente quando se percebe a discriminação puramente social, ou outro tipo, recentemente a todos os mesmos direitos e o uso conjunto, mas não são oferecidas a todos as possibilidades reais de exercício dos direitos; à educação, ao lazer, à saúde e ao trabalho. No universo do conhecimento, “os portadores do saber e da ciência escolarizados sentem-se olimpicamente superiores a que não passaram pelos equivalentes graus iniciáticos de situação litúrgica introdutória ao templo escolar do saber e da ciência”, a cosmovisão discriminatória, formada pelos portadores do saber oficial, considera de ordem superior o saber e a ciência que detêm. Os dominados julgam-se verdadeiros sábios e cientistas por antonomásia, por competência e por efeito de diploma e história escolares (RODRIGUES, 2003, p. 164-167). A dicotomia epistemológica constitui marca separatista do saber pela postura dominante de contemplação com desdém, polida e comedida, na melhor das hipóteses, da ciência e do saber populares, atribuindo-lhe os qualitativos vulgas, folclóricos, míticos, supersticiosos e não-científicos. Numa palavra, o saber popular, não-científico, é tratado a distância porque seus detentores são leigos e profanos porque jamais subiram ao altar da ciência e do saber sacralizadas pela escolização. 4.1.4 Interacionista Pressuposta ao vocábulo interacionista está a compreensão de que seja interação social, denotando a influência recíproca dos atos de pessoas e grupos, o que geralmente se dá por meio da comunicação. A expressão interação social pode ser tomada em duas dimensões 145 prontamente distinguíveis. A noção mais simples, quando aplicada ao homem, é a da influência recíproca entre pessoas ou forças sociais exemplificada na seguinte definição: “a influência recíproca dos fatores sociais que atuam na natureza humana”. A segunda, usada pela maioria dos sociólogos e antropólogos, especifica que a interação humana é uma variante da influência recíproca, característica de pessoas socializadas. Daí, a interação do modo como se dá nos seres humanos, dever-se-ia chamar interação simbólica23, pressupondo a comunicação cujo efeito é o amplo e inclusivo processo de interação social. Neste compreender, a interação social pode ser definida funcionalmente como a que acontece quando duas ou mais pessoas entram em contato (não forçosamente o físico) e ocorre uma modificação de comportamento. Esta mudança como reforma, no sentido do desenvolvimento da coesão social frente a interesses antagônicos (grupos monopolistas e movimento trabalhistas), fez emergir a corrente sociológica, cujo escopo era estudar o interacionismo (cf. BOTTOMORE et NISBET, 1980; BECKER 1977, p. 10). O interacionismo caracteriza-se pela preocupação de estudar como os indivíduos são coagidos pelas instituições sociais e como transcendem a esta coação. Assim, o comportamento ou a compreensão que busca a superação da coação é, por isto mesmo, interacionista. A cosmovisão interacionista, neste contexto epistêmico, é a maneira de perceber a realidade das relações humanas “como um processo que forma a conduta humana ao invés de ser apenas uma forma de expressar ou realizá-la como tal. Esta noção implica uma visão processual reflexiva, por isto mesmo, dialética (teoria e práxis). Nesta cosmovisão três premissas são basilares: a) que os seres humanos agem tendo por referências coisas com base no significado que as coisas têm para eles; b) que o significado destas coisas é derivado e surge da interação social de atores sociais; c) que esses significados são manipulados e modificados através de um processo interpretativo desenvolvido pelas pessoas em interação 23 A expressão interação simbólica evoca o interacionismo simbólico como uma variante da corrente nteracionista em Ciências Sociais. Esta é uma tradição desenvolvida no início do século XX, a partir dos trabalhos de R. E. e X. B. Thomas, tendo como suporte a filosofia de J. Dewey. 146 (cf. GOHN, 1979, p. 23ss; MACHADO, 1995, p. 87-96, 114-129). Estas premissas configuram uma visão de sociedade como formada por indivíduos ou grupos que se engajam em ações, isto é, em atividades que desempenham ao interagirem uns com os outros. A sociedade é vista como existindo em ação, e os indivíduos ou grupos engajados em ações são percebidos como realidade mais fundamental da vida social. A organização social e a estrutura social, menos que determinantes das ações, derivam delas. A cooperação interacionista não discrimina nem pessoas, nem o saber, isto é, a busca de superação do dualismo dá-se pelo consenso como uma concordância geral de pensamento e sentimento que tenda a produzir ordenamento das ações. Tudo isto sem prescindir da diferença, mas construindo a unidade. Para tanto, consideram-se todos os traços culturais societais como provas do consenso. Sendo o consenso a solução cooperativa do conflito, é a culminância de um processo no qual se preservam as características individuais (idéias, raça, cor, escolaridade) e, sob o ponto de vista cultural, o saber: ninguém é desprovido de saber e cada saber incide sobre a realidade vivencial ou instrumentalizada como objeto de estudo (HABERMAS, 2002, p. 134-137). Significa ainda que as orientações básicas do agir aderem a certas condições fundamentais de reprodução e da autoconstituição possível da espécie humana: trabalho, saber e interação. É por isso que cada uma destas orientações fundamentais não visa à satisfação de necessidades empíricas e imediatas, mas a solução de problemas sistêmicos propriamente ditos (HABERMAS, 1987, p. 217-218). Olhando-se o gráfico seguinte, tomando-se como exemplo de leitura o indicador universidade do item discriminatório e do subitem saber, tem-se a freqüência de 28,6%, e o indicador sertão do item interacionista, do mesmo subitem saber, apresenta superioridade de freqüência com 61,9%. Considerando-se todos os indicadores, tem-se 37,5% para a cosmovisão autoritária contra 62,5% para cosmovisão democrática (cf. 4.5). 147 Discriminação Sub Ítem RACIAL Classes Total 100 Sub Ítem DO SABER Gerente Universidade Coronel Total 28,6 28,6 42,8 147 148 Interacionista Sub Ítem DE PESSOAS Acampamento Barraco Barraca Total 20 60 20 Sub Ítem DO SABER Fraternidade Sertão Total 38,1 61,9 148 149 4.1.5 Maniqueísta O autoritarismo, além de dogmático costuma ser maniqueísta. 24 O maniqueísmo dicotomiza, polariza e antagoniza a realidade. Pela dicotomia, separa a realidade em dois campos. Em matéria de sexo, na sociedade são homens, de um lado, mulheres do outro, ou heterossexuais numa fila, homossexuais na outra; em matéria de cor, são brancos e nãobrancos (negros, amarelos, vermelhos e mestiços); em matéria de religião ou política, a “minha” religião, o “meu” partido, e as religiões, os partidos “dos outros”. Com a polarização o maniqueísmo atribui o bem supremo, todas as virtudes a uma parte da realidade, e o mal absoluto, com o século quito de todos os vícios, a outra. O que não é puramente divino é puramente diabólico. Na há pecado entre os santos, nem mérito entre os pecadores. Nada existe de covardia em heróis, nem de coragem ou fortaleza entre bandidos. As qualidades são mais masculinos ou heterossexuais, dos brancos, dos “meus” correligionários de seita ou de partido político, enquanto aos outros se atribuem as negativas. Finalmente, pelo antagonismo, opõe uma a outra, as partes dicotomizadas e polarizadas da realidade. Os bons, os verdadeiros, os justos, os santos, os heróis, os superiores, os puros devem lutar e prevalecer sobre os maus, os mentirosos, os injustos, os pecadores, os bandidos, os inferiores, os impuros (RODRIGUES, 1999, 88). O maniqueísmo, conforme o aspecto da realidade materializa-se em machismo, racismo, fanatismo etc, tendo em vista que toda concepção do bem e do mal, conhecida como princípios opostos, complementares e eternos, serve ao autoritarismo. 24 Maniqueísmo é a, doutrina de Manes (276 a C.), combinação do velho dualismo persa de Zoroastro com elementos gnósticos e cristãos. O mundo é explicado por dois princípios: um bom, o da luz; quatro mau, o das trevas (da matéria). Deles brotam emanações boas e más e, por fim, a mistura de ambas. No homem habitam uma alma luminosa e uma alma corpórea (BRUGGER, 1999, verb., maniqueísmo). 150 4.1.6 Dialética Como antítese à cosmovisão autoritária manipuladora, a dialética, em sentido mais geral, pretende significar qualquer processo, mais ou menos intricado de conflito, intercomunicação e transformação conceitua ou social, no qual a geração, interpenetração e conflito de oposições passam à sua transcendência em um modo mais pleno, ou mais adequado, de pensamento ou forma de vida. Assim, à luz de Hegel, a cosmovisão dialética apreende as formas em suas interligações sistemáticas, e não apenas em suas diferenças determinadas, concebendo cada evolução como produto de uma fase anterior menos desenvolvida, cuja verdade ou realização necessária ela representa, de modo que há sempre uma tensão, uma ironia latente ou uma surpresa incipiente entre qualquer forma e é, o que ela é, no processo do vir-a-ser (cf. HEGEL, 1981, p. 44-61 ). Tanto isto porque existem duas inflexões da dialética em Hegel: como processo lógico e, como sentido mais restrito, como dínamo do referido processo. Sem prescindir da dialética como processo lógico25, a segunda inflexão – dialética como dínamo do processo lógico – a dialética é concebida de maneira mais restrita, que Hegel chama de “a compreensão dos contrários em sua unidade ou do positivo no negativo”. É o método que permite a cosmovisão dialética observa o processo pelo qual as categorias, noções ou formas de consciências, surjam umas das outras para formar totalidades cada vez mais inclusivas, até que se complete o sistema de categorias, noções ou formas como um todo. Esta cosmovisão dialética, do componente democrático da grade de análise, apreende as formas conceituais em suas interligações sistêmicas, e não apenas em suas diferenças determinadas, isto é, a preservação das diferenças e a busca da síntese, pois tanto as diferenças como a síntese são, ontologicamente tomadas, modos-de-ser-da-realidade. A 25 Dialética, como princípio lógico, liga-se ao princípio do idealismo: de entendimento da realidade como espírito absoluto, unindo a razão (eleata) com o processo (jônica0 e se outorga processo da razão (HEGEL, 1981, P. 52-54). 151 cosmovisão dialética hegeliana é só auto-desenvolvimento do conceito, ela é também a forma mesma como a realidade se desenvolve26. Nesta medida é que a concepção de dialética em Hegel se funda em uma e bem estruturada ontologia. É neste compreendendo que o vocábulo dialético, neste instrumento de trabalho, é usado na sua bipolaridade de preservação das diferenças e busca da síntese. No seguinte quadro, tomando-se como exemplo de leitura o indicador excelência, do item manipuladora e do subitem dicotomizante, tem-se a freqüência de 26,3% e o indicador tristeza, do item dialética e do subitem preservação das diferenças, apresenta superioridade com 28,5% de freqüência. Considerando-se todos os indicadores, têm-se 25,4% para a cosmovisão manipuladora contra 74,6% para a cosmovisão dialética (cf. 4.5). 26 Com a expressão cosmovisão dialética hegeliana se quer significar aqui o elemento constituído (instrumento) e constituinte da dialética de leitura com o qual se lerá as matezes de Cordel, porque tais matizes se fizeram na dialeticidade do modo-de-ser-da-realidade contraditória, vivida pelos poetas populares ocupando diferentes lugares sociais. 152 Manipuladora Sub Ítem DICOTOMIZANTE Senhores Excelência Agitado Burguês Desigualdade Total 42,2 26,3 5,2 5,2 21,1 Sub Ítem POLARIZANTE Agitador Agita Classes Light Total 0 3,5 20,7 75,8 152 153 Dialética Sub Ítem PRESERVAÇÃO DAS DIFERENÇAS Desigualdade Tristesa Burguês Injustiça Total 14,3 28,5 7,2 50 Sub Ítem BUSCA DE SÍNTESE União Luta Sangue Terra Total 7,2 31,7 6,4 54,7 153 154 A freqüência dos indicadores da cosmovisão nos folhetos de Cordel submetidos a esta dialética de leitura, evidencia a tensão dialética entre componentes autoritários e democráticos, denotando um equilíbrio de forças dos contrários. Os indicadores aparecem na seguinte proporção: 26 elitistas versus 20 populares; 9 discriminatórios versus 10 interacionistas e 14 manipuladores versus 19 dialéticos. A totalização dos dados da informação apresenta resultados de paridade com 49 indicadores para os componentes autoritários e 49 para os democráticos. Tal resultado evidencia a tensão no equilíbrio de força entre a ideologia dominante e a contra-ideologia popular como resistência. 155 156 4.2 Comportamento Esta segunda categoria, comportamento27, compreende-se como o conjunto de reações aos estímulos, enquanto são acessíveis à observação exterior, significando, portanto, conjunto de reações de um ser, o conjunto das reações globais de seu organismo tanto das comuns à espécie como as do indivíduo. Toma-se aqui o vocábulo comportamento na acepção de conduta (conducere=levar junto), significando a maneira de atuar de uma pessoa sob o ângulo ético. Assim, compreende-se porque filosoficamente o behaviorismo é uma espécie de materialismo metafísico (SKINNER, 1970). 4.2.1 Dogmático Além de maniqueísta, o autoritarismo costuma ser dogmático. Dogmático, como dogmatismo (doutrina fixada), é um vocábulo etimologicamente derivado de dogma (do grego dógma), significando ponto fundamental e indispensável duma doutrina religiosa e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema. Quando a idéia de dogma é transportada para o campo não-religioso, ela passa a designar as verdades não-questionadas e inquestionáveis: o mundo muda, os acontecimentos se sucedem e o dogmático permanece petrificado nos conhecimentos dados de uma vez por todas. Por temer o novo, o dogmático, não raro, se torna intransigente e prepotente. Quando o dogmatismo atinge a política, assume um caráter ideológico que nega o pluralismo e abre caminho para a imposição da doutrina oficial do Estado ou do partido único, com todas as perversas decorrências, como censura e repressão. Neste contexto epistêmico, 27 O termo comportamento é utilizado para traduzir a palavra inglesa behaviour, significando conduta, comportamento. Decorre daí uma linha de pensamento chamada comportamentismo, conhecida mundialmente pelo nome de behaviorismo, constituindo o pensar predominante na Psicologia acadêmica desde as publicações de Waston (1924), que se tornaram notáveis (cf, SKINNER, 1982). 157 dogmas são proposições – pouco importante que sejam falsas ou verdadeiras – gratuitamente impostas sem demonstração na forma ativa do dogmatismo, ou docilmente aceitas sem compreensão, na forma passiva do dogmatismo (HESSEN, 1978, p. 37-40; REALE, 1994, p. 119-121). O comportamento dogmático, polarizando os personagens da realidade social entre elite e massa, evidencia uma práxis na qual a elite autoritária é que decide e impera comportando-se de modo dogmático, exigindo, da massa de manobra submissa, o retroalimentar dogmático passivo, por considerá-la mentalmente incapaz de compreensão, por suposta economia de tempo e esforço, por julgar-se inatingível, por outro tipo qualquer de racionalização ou o que parece mais deplorárvel, por cinismo e inconfessáveis motivos” (RODRIGUES, 1999, p. 88). 4.2.2 Dialógico O comportamento dialógico remete ao vocábulo diálogo (do grego dia + legein = alternância no fazer) que sugere o sentido de uma conversa na qual, pela alternância de observações dos interlocutores, se percorre uma temática que conduza ao conhecimento, ou que viabilize a práxis existencial do dia-a-dia. Neste compreender o comportamento dialógico emerge como condição essencial para a sobrevivência pacífica que, sem prescindir dos conflitos, fundamenta-se na capacidade dos interlocutores de questionar os próprios pontos de vital e de admiti-los passíveis de questionamentos pelo outro, constitui-se experiência dialógica autêntica de superação das situações de morte e de objetivação da resistência pela alteridade (LÉVINAS, 1980). A palavra é que serve de mediação para a experiência dialógica. Trata-se sempre de uma palavra que chama, de uma voz que interpela além da ordem da visão, trans-ontológica, mas que só é efetiva se houver um ouvido que saiba ouvir. Tudo isto como 158 afirmação ôntica de quem não é, em si mesmo, um sistema hermético, mas disponibilidade de silenciar, ouvir e falar: Presta-se ouvido, responde-se e se obedece à palavra que previamente foi recebida na disponibilidade. Tal disponibilidade só se pode produzir no seio de um ser que não forma consigo mesmo um sistema fechado, hermético, no qual nada de novo pode penetrar [...]. Ouvir a voz-do-outro, como outro, significa abertura ética, um expor-se pelo outro que ultrapassa a mera abertura ontológica: é a própria abertura da totalidade (Eu) ao outro (Tu), abertura metafísica. Esta abertura é silêncio, mas não é silêncio interior à fala e sim silêncio da própria fala, silêncio do mundo, aniquilamento e disponibilidade ao outro como outro (DUSSEL, 1977 p. 62-63). Nesta dialeticidade – voz-ouvido/ouvido-voz – acontece a experiência da construção da consciência democrática permitindo aos indivíduos, como advoga Paulo Freire, o direito de participação e de desafio ao dogmatismo pelo exercício da democracia: O direito tem significação precisamente porque os sujeitos dialógicos não apenas conservam sua identidade, mas a defendem [...] por isso não nivela, não reduz um ao outro. Nem é tática manhosa, envolvente, que um usa para confundir o outro. Implica, ao contrário, um respeito fundamental dos sujeitos nele engajados, que o autoritarismo rompe ou não permite que se constitua (FREIRE, 1982, p. 118). A dialeticidade da experiência dialógica está na cumplicidade ética dos sujeitos formando uma consciência ética que emerge do encontro co-implicante, uma analética28 unidade de dois momentos: a voz-do-outro e o ouvido da totalidade. A abertura do ouvido que nos permite ouvir o outro, é possibilitado pelo sim-ao-outro ou amor-de-justiça que irrompe no outro como outro-benevolente. A consciência ética é, então, ouvir-a –voz-do-outro; a voz ou palavra que exige justiça, que exige seu direito já que o outro é, no espaço dialógico 28 Analético, no pensamento dusseliano, quer indicar o fato real humano pelo qual o homem, todo grupo ou povo, se situa para além do horizonte da totalidade. O momento analético é o ponto de apoio de novos desdobramentos (além do negativo da dialética) referindo-se semanticamente ao outro, sua categoria prórpia é de exterioridade; por isso, o ponto de partida de seu discurso metódico (mais científico que dialeticopositivo) é a exterioridade do outro; seu princípio não é o de identidade, mas o da separação, distinção. O momento analético do método dialético metafísico segue uma seqüência própria: em primeiro lugar, a totalidade é posta em questão pela interpretação do outro; em segundo lugar, saber escutar sua palavra é ter consciência ética (incomum ao autoritarismo). Em terceiro lugar, saber dar até a vida afim de realizar as exigências de tal protesto, é lançar-se à práxis do oprimido (ação libertadora), é parte constitutiva do processo do momento analético (DUSSEL, 1977, p. 163-164). 159 existencial, a condição da justiça e o caminho para encontrá-la (LÉVINAS, 1997, p. 269) porque a consciência ética tem diante de si a palavra-do-outo; a consciência não-ética, totalitária, dominadora, que tem a-versão ao outro, tem diante de si uma coisa silenciosa, não porque o seja, mas porque na lógica da dominação, o dominador tem diante de si o silenciado, algo coisificado pela palavra monológica de reafirmação da totalidade fechada (DUSSEL, 1977ª, p. 69). O comportamento dialógico possibilita, no espaço da educação popular, a compreensão de que o silêncio do outro-oprimido como “o outro” é exatamente o contrário do silêncio do “outro-autoritário-dogmático”, que é preciso saber guardar silêncio para ouvir a voz-do-outro; o primeiro é um silêncio significante analético e o segundo é solipsista que não espera ter diante de si nenhum-outro. Dussel (1977a, p. 69), atribui à palavra uma conotação significante neste movimento analético do silêncio: A palavra que tenta não é a dialógica, é a monológica; afirma e reafirma a totalidade-fechada; não é na verdade palavra reveladora mas encobridora, falsa, errante, mentirosa. A palavra do conquistador, colonizador, opressor não pode ser a voz da consciência; é a voz solitária do homem instalado na unívoca totalidade; voz que não espera ter diante de si mesmo ouvido-outro; solipsismo de Caim que há tempo matou Abel. A cumplicidade dialógica possibilita compreender que só pode ouvir aquele que presta ouvidos ao outro, isto é, a audienticidade já pressupõe a alteridade. Somente pode ouvir e falar criativamente aquele que empreendeu a senda da libertação, de modo que saber escutar a voz-do-outro29 é saber dispor-se para que sua interpretação surpreenda a gente, a instalação e o mundo que nos rodeia como um clamor perigoso e inquietante de justiça, equivalendo à consciência ética porque 29 A notação de libertação implica a sua compreensão como processo, possibilitando um ir-saindo-da-totalidade enquanto fechada, um abri-se ao outro e um constituir-se, por isso mesmo, em outro da própria totalidade fechada, correspondendo ao homem como consciência ética (DUSSEL, 1977b, p. 174-185). 160 o homem com consciência ética, ao ouvir a voz-do-outro, se transforma, mesmo que seja contra a sua vontade, em testemunho, testemunho do outro-oprimido diante da totalidade-fechada totalitariamente (DUSSEL, 1977a, p. 70). O comportamento dialógico, plasmado pela consciência ética, torna-se espaço favorável à experiência sócio-política de libertação: o homem que tiver consciência ética ouvirá a voz da mulher oprimida numa cultura patriarcal; o pai e o mestre ouvirão a voz do filho e do discípulo, ao se ter libertado da pedagogia dominadora; o irmão libertando-se ouvirá a voz do irmão oprimido, do pobre e do povo alienado que exige justiça (DUSSEL, 1997ª, p. 71). A consciência ética é então o encontro da voz-do-outro que interpela e exige justiça a partir de sua exterioridade distinta, encontro dialógico de tal voz com aquele que sabe ouviro-outro, possibilitando a objetivação da lógica da alteridade (LÉVINAS, 1997, p. 273). Na tensão dialética veiculando o comportamento, como categoria de leitura cordelina da realidade, tomando-se do quadro seguinte o indicador cidade do item dogmático e do subitem elite, tem-se 48,3% de freqüência e o indicador companheiro, do item dialógico e do subitem entre líderes e liderados, apresnta-se superante com 94,5% de freqüência. Entretanto, considerando-se todos os indicadores, tem-se 72,6% para o comportamento dogmático contra 27,4% do comportamento dialógico (cf. 4.5). 161 Dogmático Sub Ítem ELITE DECIDE Arrocho Ordem FMI Governante Cidade Brutalidade Sarney Sarnento Sub Ítem MASSA OBEDECE E CUMPRE Respeitar /Respeito Resignação Obrigar /Obrigação Total 1,6 9,8 1,6 9,8 48,3 4,8 19,3 4,8 Total 71,5 0 28,5 161 162 Diálogo Sub Ítem NAS DECISÕES Democracia Comando Vote Total 56,6 36,3 9,1 Sub Ítem ENTRE LÍDERES E LIDERADOS Companheiro Cooperativa Total 94,5 5,5 162 163 4.2.3 Manipulador O vocábulo manipulador, como adjetivo qualificante do comportamento autoritário, traduz o Francês (manipulateur) derivando do verbo manipuler, e não do Latim (manipulare), denotando imprimir forma, engendrar, forjar. Na perspectiva da patologia social, o comportamento manipulador é um tipo de manifestação e o exercício do poder pelo qual a autoridade, que o detém, influencia o comportamento das pessoas, sem tornar explícito o tipo de comportamento que tem em mira ser por elas executado. A manipulação pode ser exercida através de símbolos ou pelo desempenho de determinados atos. A propaganda é a principal forma de manipulação por símbolos. O desconhecimento do ato de poder pelos indivíduos tira à manipulação qualquer caráter de legitimidade, o que não exclui a possibilidade de uma autoridade legítima utilizar-se dela para fins não explícitos. Em sociologia política, o manipulador é o agente da forma de violência psicossocial e institucional posta em prática por meios físicos ou institucionais e inaugurada pelos regimes totalitários contemporâneos de esquerda e de direita, para melhor enquadrar as massas dentro dos interesses e aspirações de suas ideologias e de seus tipos de Estado (BENEDICTO et al. 1996, verb. manipulação). A manipulação pressupõe uma situação de condicionamento e com ela se indentifica. Suas raíezes ideológicas são encontradas no condutismo psicológico e na sociologia mecânica, coercitiva e antipersonalista que reduz o encontro a um contato mecânico, todo homem a um feixe de estímulo e respostas e a sociedade a uma máquina social: os indivíduos são colocados em situação de minoria social no estado de subsistência30 e maioria social na condição de subserviência. Para compreender-se a categoria subserviência da maioria, no contexto epistemológico de tipologização do comportamento 30 Os mais vulneráveis à manipulação incluem os iletrados, detentos, as crianças, os indígenas, os mais pobres, os adolescentes dentre outros. 164 autoritário, evoca-se a seguinte afirmação de Rodrigues (1999): “o autoritarismo dos chefes se esvaziria, no plano social, se não encontrasse ressonância nos súditos que o suportam. Aqueles que se sentem impelidos pela necessidade neurótica dos superiores. O paraíso dos sádicos situa-se no édem dos masoquistas” (RODRIGUES, 1999, p. 120). A maioria (súditos) sustenta a minoria dominante na hegemonia, significando a objetividade do que se pode afirma: “para que alguns dominem, oprimam e matem, faz-se necessário que outros temam, obedeçam e se deixem matar”. A superioridade é imposta na forma de tratamento que os dirigentes costumam exigir dos subalternos. Esta prática arraigou-se profundamente nos costumes dos povos por força de tradição milenar. Vênias, prosternações, salamaleques, beija-mãos, beija-pés, beija-anéis, posição de sentido, continência e outros tantos gestos de humilhação devem ser ritualmente manifestados pelas pessoas, ao se aproximarem das autoridades. Por sua vez, o tratamento verbal compreende vocabulário sumamente e enaltecedor da preeminência dos chefes: Alteza, Majestade, Santidade, Excelência, Eminência, Magnificência invariavelmente precedidos dos possessivos Vossa e Sua, exemplificam a longa relação dos substantivos elogiosos procedidos dos lábios das pessoas que falam ou se referem às autoridades31. Considerando-se os países em que a ditadura golpeou e substituiu a democracia32, ocorreu um fato comum significativo. Antes do golpe, numerosos líderes, aclamados pela maioria da massa eleitoreira, proferiam solenes e públicas profissões de fé nos valores democráticos e nos direitos humanos. Durante o golpe e sobretudo depois deste, não tergiversaram em compactuar com golpistas dominantes, e em bajulação, em justificar, legitimar e instrumentalizar abertamente o direito da força, em detrimento da força do direito33. 31 32 33 Os adjetivos correspondentes devem empregar-se invariavelmente em grau superlativo absoluto: Eminentíssimo, Excelentíssimo, Meretíssimo, Sereníssimo etc. Bolívia em 1964; Argentina em 1966 e em 1973 Uruguai e Chile. O Brasil quando viveu o golpe militar de 1964 e o período posterior ao de repressão, apresentara um memorial de sobrevivência da maioria incapaz e indecisa (ver BERG, 2002, p. 121-150; SADER, 1999, p. 74-91). 165 Na ótica do autoritarismo, a espécie humana é ambivalemte e contraditória, o que justifica fazer sobreviver a massa de incapazes e indecisos. A humanidade em sua maior parcela de representantes, não passa de abieto esterco, indispensável porém, para servir de adubo e fertilizante a ser sugado pelas sublimes árvores. O esterco é formado pela vatíssima legião dos fracos (incapazes) e tolos (indecisos), as sublimes árvores pelos fortes (detentores do poder) e pelos espertos (prosélitos), dando tonalidade ao centralismo do poder autoritário e a força ao estado subordinante do dominador. 4.2.4 Facilitador O comportamento facilitador é o que incide diretamente no fazer pedagógico por constituir-se ato, ou efeito, de por alguma coisa à disposição, ou ao alcance, de alguém, possibilitando se compreender facilitador como comportamento que torna fácil, removendo obstáculos de modo que aquele indivíduo, ou comunidade, prontifica-se a si mesmo, presta-se com facilitação ao que lhe é o outro ser-sendo34 nas condições democráticas dadas: Entendo pois que o processo educativo é a passagem da desigualdade à igualdade. Portanto, só é possível considerar o processo educativo em seu conjunto como democrático sob a condição de se distinguir a democracia como possibilidade no ponto de partida e democracia como realidade no ponto de chegada (SAVIANI, 1983, p. 81). O facilitador não prescinde de que os homens sejam essencialmente diferentes e que tais diferenças têm de ser respeitadas: ... há aqueles que têm mais capacidade e aqueles que têm menos capacidade; há aqueles que se interessam por isso e os que se interessam por aquilo (SALVIANI, 1983, p. 45). 34 Noutros termos, realiza-se a lógica da alteridade objetivada no fazer-se condições de possibilidade ao fazerdo-outro na comunidade, na escola, no partido, no movimento popular, em suma, na experiência democrática. 166 Em meio a essa diversidade, considerando-se o processo de transformação da realidade, todos têm um papel a desempenhar. Contudo, diante de tantas coisas a serem feitas, não há um ponto de gênese absoluta no processo de mudança, de tal forma que se pudesse dizer com toda certeza “primeiro tem de mudar tal aspecto”, são lutas simultâneas. E neste espaço de luta, o comportamento facilitador advoga: Quem acordou, quem está desejando mudar, quem resolveu se comprometer, tendo a visão de conjunto, pautado numa ética, num projeto emancipador, pode atuar onde for possível (VASCONCELOS, 2003, p. 131). Presume-se, pois, que em cada momento histórico, em cada contexto, pode-se priorizar uma luta, mas articulando-se com as demais de modo que as instâncias básicas sejam estimuladas a assumir e reassumir seus papéis na experiência democrática como explicita Delors (2003, p. 222): Assim, a solidariedade e o novo espírito comunitário podem ressurgir naturalmente como princípio orgânico e organizador de vida, como alternativa à exclusão e à desvitalização suicida do tecido social. Neste quadro, as instâncias básicas e estáveis de socialização como as famílias e a escola são reconvocadas a reassumir o seu papel nuclear na implantação dos alicérceres duradouro da sociedade do futuro. O comportamento facilitador vislumbra, entre outras, as seguintes linhas de ação de superação do comportamento manipulador: Buscar clareza das responsabilidades dos diferentes agentes; assumir a parte que lhe cabe; articular-se; facilitar a tomada de consciência dos diversos setores sociais; ampliar os focos de pressão e lutar pela mudança das estruturas (VASCONCELOS, 2003, p. 131-133). Em suma, vislumbra-se que os diferentes atores35 mobilizem criticamente as suas energias em vez de se refugiarem em teorias defensivas e de justificação, que negam a resistência e desqualificam os atores da posição de sujeitos históricos. 35 Diferentes atores tipifica aqueles que constituem as minorias de cuja história tem sido, com freqüência silenciada, pobres e mulheres, deficientes e negros, indígenas e os que cedo abandonaram a escola. 167 Para leitura do seguinte quadro demonstrativo, tomando-se, como exemplo o indicador patrão do item manipulador e do subitem, centralismo, tem-se 60% de freqüência e o indicador líder, do item facilitador e do subitem reconhecimento das capacidades, apresentase superante com 61% de freqüência. Entretanto, considerando-se todos os indicadores, temse 64% para o comportamento manipulador contra 36% facilitador, evidenciando predominância do autoritarismo (cf. 4.5). 168 Manipulador Sub Ítem CENTRALISMO Ditadura Protetor Patrão (ões) Proprietário (s) Usineiro (s) General (ais) Total 5,7 5,7 60 11,4 86 8,6 Sub Ítem SUBORDINANTE Escravo (s) Crime (s) Pistoleiro (s) Polícia Total 9,1 68,2 9,1 13,6 168 169 Facilitador Sub Ítem RECONHECIMENTO DAS CAPACIDADES Líder Responsável Desemprego Injustiçado (s) Sub Ítem OPROTUNIODADE PARA TODOS Justiça Reunião (ões) Total 61,6 0 30,8 7,6 Total 84,2 15,8 169 170 4.2.5 Bajulador O vocábulo bajulador denota um comportamento autoritário, aquele que faz bajulação. Tal vocábulo tem o mesmo radical de bajulação que vem do Latim (bajulatio, do verbo bajulo-bajulares = carregar nas costas), possibilitando compreender-se bajulador denotando comportamento pelo qual se lisonjeiam os poderosos na intenção, mesquinha e interesseira, de captar os seus favores. O bajulador está sempre disposto” a lamber os pés dos que lhe estão acima”, chegando a espezinhar seus inferiores ou iguais, utilizando-os como degraus de sua própria ascensão desde que, com isto julge poder atingir seus objetivos (ÁVILA, 1982: verb. bajulação e adulação). Correlato ao vocábulo está o termo adulação (do Latim adulor = fazer carícia, adular e fazer a alguém) denotando a exploração sistemática e interesseira da vaidade alheia, supervalorizando as qualidades de outrem e minimizando suas deficiências, tendo como objetivo obter favores indevidos. Quem usa da bajulação, acaba descobrindo que os resultados obtidos representam uma diminuição de sua própria dignidade. O adulador, ou bajulador, é quase sempre mal visto no grupo social porque seus esforços por agradar, acabam provocando repulsa. Em uma palavra, a expressão bem objetiva do comportamento bajulador é a homenagem à elite. O vocábulo homenagem vem do léxico provençal (omenatge) denotando promessa de fidelidade do vassalo ao senhor feudal, protesto de veneração e respeito, também preito. Por esta promessa de fidelidade, o vocábulo em discussão evoca o vocábulo triunfalismo como “ a atitude de um grupo, ou de uma pessoa, certo de razão, ou atitude daqueles que dão provas de uma confiança exagerada neles mesmos, nas próprias teorias. Ainda, ostentação, mais ou menos espalhafatosa, da posse verdadeira ou falsa da autoridade, de poder ou da supremacia”. A homenagem, portanto, não se compreende senão em conexão com a finalidade do autoritarismo: busca da autoridade e do poder, a todo custo, sobre os outros. Por isto mesmo, 171 a homenagem tem conexão com o triunfalismo que é, a tendência para a exibição de qualquer superioridade real ou pretensa. Esta acepção do termo liga-se à palavra triunfo, da qual deriva. Com efeito, o triunfo nada mais é que uma manifestação pública de força, de glória e de superioridade, a exaltação exuberante e apoteótica de um indivíduo sobre a multidão e, indiretamente, de uma nação, de uma sociedade, de um grupo sobre os demais (RODRIGUES, 1999, p. 170). A crença na infabilidade das próprias opiniões e na excelência dos próprios valores caracteriza o pensamento triunfal, distinguindo-o das demais formas de pensamento. Ela se manifesta variando do fanatismo cego, da ufania simplória até à dúvida de auto-crítica36. A homenagem à elite, sempre feita pelos subalternos, pode ser verbal, justificando ou colocando o detentor do podem em posição de destaque. Isto porque a necessidade de se mostrar, de se fazer olhar, aprovar e admirar pelos outros é, talvez, a característica mais fundamental da personalidade triunfalista. Os apelativos de aplausos nas manifestações públicas, slogans de campanhas políticas; exibição de fotografias (nas repartições públicas, municipais, estaduais e federais) e ou estátuas e práticas análogas, funcionam como o suprir da dita necessidade. A verbalização da homenagem à elite dá-se, além de aplausos, na difusão ufanista triunfante, pelos súditos-prosélitos, com atraentes cartazes, páginas em periódicos, programas radiofônicos e chamadas publicitárias na televisão. Os artigos, reportagens e entrevistas com autoridades e partidários do regime se sucedem nos meios de comunicação coletiva, exaltando a coragem, a abnegação patriótica dos heróis que neutralizam o perigo democrático e propiciam maior apropriação do poder. 36 Estas características receberam comentários substanciais feitos por Luis Dias Rodrigues de modo a explicitar o autoritarismo, a competição e o triunfalismo que podem aparecer juntos com traços do desejo genérico de poder (RODRIGUES, 1999, p. 170-171). 172 A ostentação das cerimônias triunfalistas, o culto aos símbolos triunfais e o próprio pensamento triunfal articulados são expressões de proclamação e exaltação do comportamento dogmático autoritário, como descreve Le Bom (1981, p. 4), com conotação místicas e similarmente religiosas: “O herói que a multidão aplaude é verdadeiramente um Deus para ele... os fundadores das crenças ou políticas fundaram-nas apenas porque souberam impor às turbas estes sentimentos de fanatismo que fazem o homem encontrar a própria felicidade na adoração, impelindo-as a sacrificar a própria vida por seu ídolo. A exaltação pela posição de destaque dada à elite, pelos súditos ou prosélitos, pode ser associando a sabedoria à autoridade (arquétipo de Salomão): os dirigentes autoritários se proclamam competentes. Deste modo, a proclamação da competência dos chefes autoritários, ecoando na aceitação da ignorância e incapacidade dos súditos, acarreta uma centralização tentacular e um asfixiante estado de permanente tutela. Outro momento de destaque ou homenagem feita à elite dominante emerge nas cerimônias religiosas, civis e militares. Nestas ocasiões, os súditos escolhem sempre as autoridades para o papel de padrinhos, testemunhas, patronos ou paraninfos em batizados, casamentos, festas de formatura, solenidades de colação de grau, recepções de medalhas e títulos honoríficos conferidos a si mesmos, aos filhos ou a outros membros da família. É notória ainda a presença de fotografias de dirigentes autoritários, afixados em salas especiais, em lugar de destaque, com o escopo de fazer ou preservar a imagem hegemônica dos donos do poder, de maneira camuflada no que aparece explicativamente: uma justa homenagem. No mesmo contexto estão as flâmulas distribuídas, placas afixadas solenemente e estátuas erigidas como objetivantes da destacada posição dada à elite. 173 4.2.6 De liderança O vocábulo liderança pode ser definido de forma bastante simples como a qualidade que permite uma pessoa comandar outras. Isto implica que a liderança é uma relação mútua entre líder e liderados, indivíduos e grupo. A palavra também indica ação. O líder e o grupo fazem alguma coisa juntos. Por fim, liderança é evidentemente uma relação baseada na aquiescência, não em coerção. O comportamento de liderança existe quando o reconhecimento dos membros se dá espontaneamente de modo que o líder, embora tenha a situação de destaque no grupo, seja também um servidor das normas do grupo37, isto vale para a liderança democrática implicando [...] comportamento característico de um líder que procura despertar a maior participação de todos os membros na determinação dos métodos, procura distribuir as responsabilidades, estimula os contatos interpessoais e procura evitar uma estrutura de grupo na qual predomina privilégios especiais e distinções entre os membros (AVILA, 1982, verb. liderança). A liderança cujo comportamento seja democrático leva a um moral do grupo mais elevado e, como conseqüência a um maior rendimento porque a qualidade de liderança é inerente não a um indivíduo, mas a um papel desempenhado dentro de um sistema social específico: O líder frequentemente inicia a ação pelo grupo, sem esperar sugestões dos liderados, por outro lado, um liderado pode originar ação pelo líder num acontecimento dual; mas não origina ação pelo líder e outros liderados ao mesmo tempo, isto é, não origina ação num acontecimento plural que inclua o líder38 (SILVA, 1986, verb. líder). 37 38 Colocar-se a serviço do comportamento de liderança significa que um grupo, de qualquer índole, sempre atua dentro de determinada situação. O termo situação significa aqui o conjunto de valores e atitudes com que o indivíduo ou o grupo tem como suporte basilar no processo de sua atividade ( SILVA, 1996, vrb. liderança). Acontecimento dual quer conotar o que ocorre entre duas pessoas e acontecimento plural indica o que ocorre entre mais de duas pessoas. 174 A eficácia do comportamento de liderança tem influência central por estar sempre relacionado à ação coletiva, o que explicita a liderança envolvendo a interação social. Na leitura do quadro seguinte, tomando-se como exemplo o indicador igeneral item bajulador, e subitem destaque, tem-se 60% de freqüência e o indicador sindicato do item de liderança, do subitem debate e discussão, apresenta-se superante com 60,7% de freqüência. Considerando-se todos os indicadores, tem-se 7,5% para o comportamento bajulador contra 92,5% do comportamento de liderança (cf. 4.5). 175 Bajulador Sub Ítem EXALTANTE Vós-Mincê Elogiar Total 0 100 Sub Ítem DETAQUE Magnatas Elogio General Total 40 0 60 176 De Liderança Sub Ítem VITALIZADA A DÚVIDA Democrata Confusão Total 20 80 Sub Ítem DEBATE E DISCURSÃO Voto Sindicato (s) Total 39,3 60,7 176 177 4.2.7 Proselitista O autoritarismo, além de comportamento dogmático, manipulador, bajulador, revestese, de atributos proselitistas. O proselitismo consiste numa espécie de necessidade neurótica de multiplicar incessantemente o número de adeptos, iniciados, fiéis, clientes, eleitores, conforme se trate de uma doutrina, de uma crença, de uma empresa, de um partido. O proselitismo contém, assim, o germe do expansionismo, sustentado pela propaganda, e do imperialismo, na perseguição obstinada de converter e de reduzir todos à condição de súditos obedientes ao sistema monoliticamente autoritário. Não é apenas a expansividade que garante a hegemonia do autoritarismo, mas cada recém-convertido ou neófito deve transformar-se em novo prosélito39, numa espécie de reação reducionista em cadeia, alastrando-se em progressão geométrica, e em crescimento exponencial até toda massa. A propaganda ocupa, neste processo, papel bastante eficiente. A propaganda é o suporte de sustentação do fazer e do sustentar prosélitos sustentantes do autoritarismo. Como postura comportamental, a propaganda pode ser definida como a tentativa deliberada de uns poucos de influenciar as atitudes e o comportamento de muitos, pela manipulação da comunicação simbólica. Ainda hoje a propaganda é amplamente considerada um expediente para abalar credibilidade de adversários políticos e/ou ideológicos. Em outras palavras, a propaganda exerce eficiente controle ideológico40. No caso específico do Brasil, durante a ditadura militar aberta em 1964, o professor e publicitário Armando Sant´Ana (apud GARCIA, 1980, p. 48) faz a seguinte consideração: “A obrigatoriedade das estações de televisão em passar dez minutos por dia de anúncios do governo é exaustiva”. 39 40 Prosélito é aquele que, além de abraçar uma religião, uma doutrina, uma idéia ou um sistema, faz-se adepto com a diligente atividade de fazer ampliar os adeptos e crescer a doutrina, ou incindicional militante quando se trata de partido político (AVILA, 1982, verb. autoridade). Durante a ditadura militar no Brasil documentou-se o seguinte: “Sob controle quase absoluto, todos os meios e recursos de comunicação foram utilizados na propaganda realizada oficialmente” (GARCIA, 1980, p. 77). 178 Seja qual for a inclinação ideológica ou a causa defendida, três elementos-chave são comuns a toda propaganda: - a propaganda é algo consciente ou deliberadamente feita para atingir determinadas metas; - a propaganda tenta afetar o comportamento através da modificação de atitudes, em vez de recorrer ao emprego direto da força, da intimidação ou do suborno; - a propaganda é de interesse político e sociológico por ser, essencialmente, um fenômeno elitista. (OUTHWAITE et BOTTOMORE, 1996: verb. propaganda) No contexto epistêmico do comportamento autoritário, a propaganda é a tentativa de uns poucos, que têm acesso à mídia, como diseminadores, de influenciar os muitos que só têm acesso a ela como público ouvinte, telespectador e leitor. Neste compreender a memória nacional não esquece que o regime implantado em 1964, gradativamente, ia adquirindo condições de atingir, pela propaganda, todo o país porque, para tanto, era necessário que a expansão do sistema autoritário se realizasse sob o controle permanente de Estado autoritário (GARCIA, 1980, p. 76). 4.2.8 Educação política A expressão educação política, comportamento democrático, pode parecer, inicialmente, paradoxal, em que a relação entre os dois vocábulos parece ceder a uma dicotomia irreconciliável. Contudo, a expressão como antítese ao comportamento proselitista do autoritarismo aponta para a inseparabilidade e a busca permanente de compreensão das especificidades, que de cada um decorre, e da não redutibilidade semântica de um ato em relação ao outro, mas sim da proximidade, da cumplicidade e influência recíprocas. Significa que a politicidade do ato educativo é concomitante à educabilidade do ato político. 179 No compreender de Freire (1985), a politicidade do ato educativo é concomitantemente a educabilidade do ato político, o que significa que a educação é sempre política e atividade política educa. A prática educativa não contém apenas aspectos políticos, mas se mostra política integralmente em todos os instantes e detalhes (VANNUCH, 1983, p. 17, 111-112). Saviani (1983), ao discutir a inseparabilidade dos atos educativos e atos políticos, faz compreender que a politicidade do ato educativo é concomitante à educabilidade do ato político, significando a não neutralidade, mas reciprocidade: a educação é sempre política e a atividade política educa: Entendendo que a educação e política embora inseparáveis não são idênticas. Trata-se de práticas distintas, dotadas cada uma de especificidade própria. [...]. Entretanto, se se trata de práticas distintas, isso não significa que sejam independentes, dotadas de autonomia absoluta. Ao contrário, elas são inseparáveis e mantém íntima relação (SAVIANI, 1983, p. 85). A cumplicidade epistêmica dos vocábulos, da expressão inseparáveis – educação política-, desvela-se na especificidade de um deles que, como tal, não inibe a presença do outro. A especificidade do político estaria no vencer (os antagônicos), enquanto a especificidade da pedagogia estaria no convencer (os não-antagônicos). Nesta visão, o vencer (político) passa, inevitavelmente, pelo convencer (pedagógico). Esta passagem possibilita à política permear-se do pedagógico e, a um tempo, o convencimento (pedagógico) se revestir do político no quotidiano: O ato político, para mim, para nós, é vencer as classes dominantes, sem dúvidas nenhuma [...] e participar, com as massas populares, de sua mobilização aprendendo e ensinando. É esse o momento eminentemente pedagógico do político, um momento do convencimento no ato político para buscar a vitória [...]. A vitória, enquanto ato político, é mediada pelo convencimento enquanto ato pedagógico (FREIRE, 1985, p. 33). Na cotidianidade do ato unitário (político-pedagógico/pedagógico-político) é que se pode perceber uma relação dialética que o constitui como tal: 180 Primeiramente é preciso considerar a existência de uma relação interna, isto é, toda prática educativa, enquanto tal, possui uma dimensão política assim como toda prática política possui, em si mesma, uma dimensão educativa (SAVIANI, 1983, p. 88). O entendimento conduz para a existência de manifestações de duas modalidades específicas de uma mesma prática: prática social: Ora, em sua existência histórica nas condições atuais, educação e política devem ser entendidas como manifestações da prática social própria da sociedade de classe (Idem, p. 89). Ao tomar-se a expressão educação política, como uma objetivção do comportamento democrático, a greve surge como indicador de sua hegemonia: A greve é uma escola para a classe trabalhadora. Sob o ângulo político têm igualmente as greves sempre um saldo positivo: revelam a capacidade de uns e a incapacidade de outros na condução política. Novos líderes se formam na luta (GADOTTI, 1998, p. 194). O atendimento ou não às reivindicações salariais não pode ser considerado como o único indicador de sucesso da greve. A educação popular mediada pela greve possibilita a formação da consciência crítica. Neste sentido, Gadotti (1998, p. 195): Quanto ao trabalhador, este se educa tomando consciência de sua situação, de seus direitos. Luta por eles. Ao saber da humilhação à qual é submetido diariamente, conscientiza-se, ´pela e na greve`, da necessidade e da responsabilidade de ultrapassar os seus limites. A educação política possibilita ações comunitárias e uma intelecção crítica das mesmas como ato-político-educativo. Tomando como referencial a greve, compreende-se que nela [...] se estabelece uma relação capaz de quebrar o individualismo que o modelo de produção capitarlista criou e impõe [...]. A recusa em contribuir é também um ato educativo para ambos. Implica a decisão, essência do ato pedagógico, da parte daquele que se recusa, sejam quais forem os motivos. Educar-se é tomar posição, ser partidário. A educação é obra do partido. Por isso, uma greve educa mais do que os próprios grevistas poderiam supor (GADOTTI, 1998, p. 195). 181 A greve como um ato político é, por isto mesmo, um ato pedagógico no qual os grevistas fornecem ocasião para muitos se educarem. A greve é, neste contexto epistêmico, a prova de que um passo de educação política está sendo dado e cada um se sabe com sua história na mão. Em suma, dizer que a educação é sempre um ato político não significa outra coisa senão sublinhar que a educação possui sempre uma dimensão política, independente de se ter ou não consciência disso porque: - a explicitação da dimensão política da prática educativa está condicionada à explicitação da especificidade da prática educativa; - a explicitação da dimensão educativa da prática política está, por sua vez, condicionada à explicitação da especificidade da prática política(SAVIANE, 1983, p. 92). A partir do exposto, depreende-se que a importância da educação política reside na sua função de socialização do conhecimento e, realizando-se nisto que lhe é próprio, cumpre a sua função política no que se explicita paradoxal e dialeticamente: Toda prática educativa contém inevitavelmente uma dimensão política. Toda prática política também contém, por sua vez, inevitavelmente, uma dimensão educativa (SAVIANE, 1983, p. 92). Na leitura do quadro seguinte, tomando-se como exemplo o indicador pelegage(m), do item proselitista e subitem expansionista, tem-se 33,4% de freqüência e o indicador luta, do item educação política e subitem ações comunitárias apresenta-se superante com 51,8% de freqüência. Considerando-se todas os indicadores, tem-se 13,1% para o comportamento proselitista contra 86,9% para o comportamento de educação política, evidenciando preponderância democrática sobre o comportamento autoritário (cf. 4.5). 182 Proselitista Sub Ítem DE PROPAGANDA Telefonema (s) Sub Ítem EXPANCIONISTA Propriedade Multinacionais Grileiro (s) Pelegage Total 100 Total 47 11,7 5,9 35,4 182 183 Educação Política Sub Ítem FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA CRÍTICA Liberdade Governados Salário Sangue Sujeição Total 20,9 2,3 53,5 18,6 4,7 Sub Ítem AÇÕES COMUNITÁRIAS Greve Luta Tragédia Canto Lavoura Tiradentes Brizola Total 3,8 51,8 4,9 25,9 4,9 4,9 38 183 184 O tema comportamento visto pela freqüência dos indicadores, em cada um dos 17 folhetos de Cordel lidos, na tensão dos pares da dialética de leitura, percebe-se o que se pode chamar de empate técnico na seguinte proporcionalidade: 22 dogmáticos versus 13 dialógicos; 21 manipuladores versus 17 facilitadores; 4 bajuladores versus 10 de liderança e 6 proselitistas versus 27 de educação política. Contudo, somando-se a freqüência de comportamento autoritário tem-se 53 indicadores contra 67 indicadores democráticos, denotando predominância da resistência popular à ditadura militar. 185 186 4.3 Estratégias Etimologicamente o termo estratégia vem do grego (strategia) conotando a arte de quem dirige. O vocábulo sendo constitutivo do universo militar, aponta para a condução da guerra e de suas operações. Num segundo aspecto, significa conjunto coerente de ações destinadas a produzir certo resultado, a eliminar o adversário ou superar obstáculos. Empregase a palavra estratégia, inicialmente, para designar a escolha dos meios empregados para chegar a um fim. Trata-se da racionalidade posta em prática para atingir um objetivo. No contexto político, fala-se de estratégia-do-poder como o conjunto de meios postos em prática para fazer funcionar ou manter em funcionamento um dispositivo de poder. Compreende-se melhor o conceito de estratégia em se olhando a moralidade pública e ostensiva dos chefes autoritários e dominadores. Em público, demonstram devoção para freqüentarem as festas populares e religiosas das massas; proclamam-se intérpretes dos valores populares para manter os dominados como tais, fazendo valer o princípio: “tudo sacrificar para manter aqueles que nos sustentam como tais”. Este princípio é que alimenta a produção de meios de sustentação do poder. O estrategista do autoritarismo segue a risca o princípio de sabedoria política formulado por Gracian (1647, p. 46 apud RODRIGUES, 1999, p. 98-99): Sábio é Prometeu, que é santo com os santos, doutor com os doutores, sério com os sérios e jovial com as pessoas alegres. Este é o meio certo de ganhar todos os corações, pois a semelhança é o laço que prende a benevolência. Discernir bem os espíritos e mediante uma transfusão política, penetrar no humor e no caráter de um, eis um segredo absolutamente necessário para aqueles que dependem dos outros. O dominador precisa do dominado e para mantê-lo, mantendo-o como tal, usa esta estratégia graciana, que dita em linguagem popular é assim: “em terra de sapos de cócoras com eles”. 187 4.3.1 Neopotismo Nepotismo é a prática pela qual uma autoridade pública nomeia um ou mais parentes próximos para o serviço público, ou lhes confere outros favores, a fim de promover o prestígio da família, aumentar a renda familiar ou ajudar a montar uma máquina política, em lugar de cuidar da promoção do bem-estar social. O aspecto familiar distingue nepotismo de termos mais amplos porém intimamente relacionados, pistolão e empreguismo. Pistolão (de pistola + ão), aumentativo de pistola, originado do tcheco (pistal), passando pelo alemão (pistole) e pelo francês (pestole) significando espécie de fogo de artifício. Além do primeiro sentido – arma de fogo -, significa “canudo de fogo de artifício”, que serve para anunciar a manifestação intensa de júbilo. Aí se trata de engenho pirotécnico que estoura no ar (rojão) em festas de ocasiões de regozijo, e consta de um tubo de papelão cheio de pólvora e dotado punho de apoio. O punho serve de apoio de proteção para quem aciona a pistola (hoje conhecido como foguete), que atua em virtude da explosão dos gazes da combustão da pólvora, quando se ateia fogo ao pavio. O resultado é o clarão sinalógico de glóbulos luminosos, expressando alegria pelo sucesso, pela vitória ou outro sentimento comprovadamente contagiante. No horizonte estritamente social, pistolão significa influência, poder, prestígio para tutelar benesses, favores, empregos, contratos. Neste contexto, é o próprio agente, detentor do poder político, econômico, profissional, e até religioso, de cujos “pedidos são ordens”, como se costuma dizer para valorizar o prestígio do pistolão. No Brasil o exercício de cargos públicos, sob o poder de influência, chamou-se regime de pistolão. Daí, o exercício funcional, no regime de pistolão pressupõe o intermédio na concessão de favores objetivada no preenchimento de cargo de confiança, funções de assessoramento e outras que independem de concurso (SILVA, 1996, verb. Nepotismo, pistolão). 188 O nepotismo não é um fenômeno de governo restrito a um período específico da história porque nas democracias modernas essa prática está freqüentemente associada ao empreguismo. O nepotismo, em suma, é aplicado à autoridade pública que coloca parentes e aderentes na folha de pagamento, a fim de promover o prestígio da família e aumentar a renda familiar. 4.3.2 Promoção por mérito Promoção41 por mérito é a expressão que se vincula à práxis política que, como estratégia contraposta ao nepotismo autoritário, emerge da interação de sujeitos agindo democraticamente porque o ético emerge na interação de sujeitos, mas aponta para a superação de qualquer particularism: só se pode falar propriamente de norma moral se se leva em conta a pretensão de validade universal (OLIVEIRA, 1993, p. 19: cf. HABERMAS, 2004ª, p. 227-265). O ético diz respeito a um espaço de possível reconhecimento recíproco entre sujeitos de igual dignidade o que possibilita a experiência comunitária e nela o reconhecer cada homem em seu direito fundamental de tornar-se parceiro numa práxis comunicativa, o que significa reconhecer sua autonomia, seu auto-possuir-se, numa palavra, reconhecê-lo como agente livre (OLIVEIRA, 1993, p. 148). Do ser-reconhecido como agente livre e, por isto mesmo, engajado no processo comunitário, fica bloqueada a prática do nepotismo porque o mérito de cada um emerge da autoridade da pessoa, cuja presença se fundamenta no crescimento pessoal e do grupo e serve de fundamento, como explicita o personalismo, ao referido crescimento: 41 O vocábulo promoção tem duas origens: do inglês (promotion) e do latim (promocione), a primeira denota impulso publicitário, a segunda denota ato ou efeito de promover alguém, dar acesso a cargo ou a uma categoria superior. Toma-se aqui a conotação latina. 189 Em sua experiência interior, a pessoa é uma presença orientada para o mundo e para as outras pessoas, misturando-se com elas no espaço universal. As outras pessoas não a limitam; ao contrário, elas possibilitam ser e crescer. Portanto, a pessoa só existe em relação aos outros, só se encontra no reconhecimento dos outros (MOUNIER, 1976, p. 63-64). O ato promocional emerge do “tu” que implica o “nós” porque o “tu” precede o “eu’, ou pelo menos, o acompanha. Significa que a pessoa, através do movimento, que corresponde ao seu ser-comunitário, se expõe a si própria como disponibilidade para. É, portanto, comunicável por natureza e tem necessidade de se comunicar. Deve, pois, partir deste fato todo e qualquer merecimento (HABERMAS, 2004c, p. 22-32). Promover é entrar em relação com o outro para construir um sentido comum, é situarse na alteridade que se constitui o espaço de múltiplas significações: O sentido da alteridade, tal como descreve a fenomenologia, está além do caráter humano particular, caráter constituído da consciência num mesmo gesto que dá consciência de si e do outro. Esta existência torna-se o lugar de uma nova autonomia, num mundo aberto e irresoluto que se trata de repensar através da complexidade (MORANDI, 2002, p. 125). O outro aparece como dimensão da existência, elo formador e lugar constitutivo de valores, valores de si mesmo, de “si mesmo como o outro”. Neste sentido, a educação popular é um percurso ao centro no qual a relação com o outro se constitui e, neste constituir-se, fundamenta a promoção pessoal e/ou comunitária por mérito e não por apadrinhamento, porque é numa ação orientada que os partícipes da práxis democrática buscam princípios fundamentais de eticidade promorcional: É num trabalho incessante de interpretação da ação e de si mesmo que se prossegue a busca da adequação entre o que nos parece o melhor para o conjunto de nossa vida e as escolhas preferenciais que governam nossas práticas [,,,]. Entre nossa visada da vida boa e nossas escolhas particulares, delineia-se uma espécie de círculo hermenêutico [...] como de um texto no qual o tudo e a parte se compreendem um pelo outro (RICOEUR, 1996, p. 202-227). 190 Nesse espaço hermenêutico democrático não há ruptura da relação dialética, mas partilha, distribuição que tende a realizar, pela idéia de igualdade, uma visada da justiça. Estes elementos traçam um campo de experiência ética, sua dinâmica e seu objeto para a educação popular, que Habermas (2004, p. 298-299), chama de princípio de soberania popular: O princípio da soberania popular expressa-se nos direitos à comunicação e participação que asseguram a autonomia dos cidadãos [...]. A autonomia política dos cidadãos deve tomar corpo na auto-organização de uma comunidade que atribui a si mesma suas leis, por meio da vontade soberana do povo [...], porque à legitimidade dos direitos humanos se deveria os resultados de um autoentendimento ético e de uma autodeterminação soberana de uma coletividade política. Prosseguindo, é da auto-organização que, em última palavra, emerge princípios norteadores da promoção por mérito em conformidade com a igualdade de chances: Esses direitos, aos quais cabe garantir a cada um esforço por alcançar os objetivos de sua vida privada em igualdade de chances, têm um valor intrínseco, ou eles ao menos não se diluem no valor instrumental de si mesmos em prol da formação democrática da vontade (HABERMAS, 2004b, p. 300). Na tensão dialética veiculando as estratégias, no quadro seguinte, pelas itens nepotismo e promoção por mérito, mostra que em se tomando o indicador parente(s) do item nepotismo e do subitem parentes, constata-se 28,5% de freqüência e o indicador forte(s) do item promoção por mérito e do subitem pessoal, apresenta 36,1%, denotando a predominância das estratégias democráticas sobre as autoritárias. Considerando-se todos os indicadores, temse 27,6% para as estratégias nepotistas contra 72,4% para as de promoção por mérito, sobrepondo-se as estratégicas democráticas (cf. 4.5). 191 Nepotismo Sub Ítem PARENTES Herdeiro (s) Compadre Perente (s) Sub Ítem ADERENTES Classe (s) Ricasso Amigo Total 57,2 14,3 28,5 Total 38,8 0 61,2 191 192 Promoção por Mérito Sub Ítem PESSOAL Direito (s) Valente Forte (s) Total 58,1 5,8 36,1 Sub Ítem COMUNITÁRIA Indulto Iguais Igualitários Total 17,2 75,9 6,9 192 193 4.3.3 Uniformização A universalização ou uniformização, estritamente ligada ao comportamento proselitista42, é outra atitude que acompanha o autoritarismo. O objetivo velado daqueles que preparam prosélitos, e deles se servem, é a estruturação e efetivação do processo de universalização para a uniformização. Os prosélitos, por sua vez, ignorando os objetivos inconfessáveis e interesseiros daqueles que os manipulam, agem ingenuamente na condição de inocentes úteis, de forma ostensiva e ufanista, como se fossem “salvadores da pátria”, ao defenderem a seita, a ideologia ou doutrina de que são meros porta-vozes inconscientes. Isto lembra o Evangelho de Mateus, quando Jesus recrimina fariseus e escribas moldadores de prosélitos manipulados: “Ai de vós escribas e fariseus hipócritas que percorreis mares e continentes para granjear um só prosélito, e, quando o conquistastes, o tornais duas vezes mais digno da geena que vós!” (Mt. 23,15). Os universalizadores padronizam idéias, linguagem, sentimentos, movimentos e até mesmo indumentária. Não apenas as vestes devem ser iguais e “uniformes”, mas também a maneira de pensar, de sentir e de agir. O ideal da uniformização universalizante é que todos se transformem em fotocópias do modelo vigente, perdendo, cada um, a individualidade, a originalidade e a própria identidade no processo de massificação das pessoas. Nos regimes autoritários, freqüentemente, uma censura inviabiliza a circulação espontânea das idéias e das opiniões na imprensa falada, escrita e televisada, uniformizando e universalizando, assim, o comportamento cognitivo, afetivo e psicomotor: certa monitoração do modo de vida e de ser-sendo. O controle dos correios e dos outros meios de comunicação impossibilitando o diálogo franco dos indivíduos através de cartas, ligações telefônicas etc. Nas ruas, escolas, empresas, clubes, igrejas e em todas as organizações pululam agentes 42 O vocábulo universalização é tomado aqui como ato ou efeito de universalizar com o objetivo que se liga ao proselitismo (vide proselitismo no item 4,2). 194 disfarçados do autoritarismo, sempre atentos e de prontidão para denunciar e punir todos aqueles que eles imaginam haver blasfemado contra a suposta perfeição do regime. 4.3.4 Diversidade A realidade contemporânea é interpretada como uma sociedade em que desapareceu a unidade de sentido da vida humana (BOBBIO, 1995b, p. 35, 102-106) e, consequentemente, como perpassada por uma concorrência ilimitada de sentidos regionais e limitada portanto, como uma sociedade estruturalmente pluralista. O pluralismo sinonimiza o vocábulo diversidade que, aqui se contrapõe, como estratégia democrática, à universalização autoritária camuflando a diversidade pela uniformização dos modos de pensar e de agir. Tomando a diversidade para a sua própria compreensão como alternativa à uniformização ou uniformidade, a nova perspectiva é a de totalidade constituída pela própria diversidade. Tal compreensão passa pela ontologia heideggeriana para desembocar no universo da cultura popular como produção de saber e de eticidade democrática. Heidegger (1979), em “Identidade e diferença”, quando tematiza a identidade entre ser e pensar, ser e homem, introduz a expressão comum-pertencer cujo o sentido é determinado a partir da unidade entre ser e pensar, ser e homem. Fundado na diversidade tangível entre ser e pensar, ser e homem, não se pode prescindir da comum--unidade que se lhe significa. Nesta complexidade significante do diverso-unidade e unidade-diverso, emerge o significado de pertença: Neste caso ´pertencer` significa: integrado, inserido na ordem de uma comunidade, instalado na unidade de algo múltiplo, reunido para a unidade do sistema, mediado pelo centro unificador de uma adequada síntese (HEIDEGGER, 1979, p. 181) . 195 Em Heidegger o comum-pertencer pode também ser pensado como comum-unidade, isto é, a comunidade é determinada a partir do pertencer43. O determinante da comunidade toca também o homem como a sua condição de possibilidade, apontando para o que Heidegger chama acontecimento-apropriação. O acontecimento-apropriação, segundo um apelo historial do ser e do homem, é também da comunidade que, a um tempo preserva a diversidade e estabelece a unidade: A palavra acontecimento-apropriação dirige seu mediato apelo para o nós, o mais próximo daquele próximo em que já estamos repousando [...]. O acontecimentoapropriação é o âmbito dinâmico em que o homem e ser atingem unidos sua essência, conquistam, no “nós”, seu caráter hitorial (HEIDEGGER, 1979, p. 185). Significa que o acontecimento-apropriação apropria o homem e ser em sua essencial comunidade, de modo que a essência da identidade é a propriedade do acontecimentoapropriação historial pelo(s) sujeito(s) e pela comunidade. Heidegger é bastante claro ao determinar que é a palavra o material de construção do acontecimento-apropriação superante da uniformidade e promulgante da unidade na diversidade: Pensar o acontecimento-apropriação significa trabalhar na edificação deste âmbito dinâmico, O material de construção vem da linguagem [...]. À medida que nossa essência está entregue à linguagem como propriedade, residimos no acontecimentoapropriação (HEIDEGGER, 1979, p. 185-186; cf. 2003, p. 121-136). A linguagem é, pois, um processo de interação social, e poder usar a linguagem significa, então, ser capaz de inserir-se num processo de interação social simbólica de acordo com suas regras específicas, que são estabelecidas através das interações históricas. Precisamente, este conjunto de regras estabelece o quadro das ações possíveis dos indivíduos e abre o horizonte para a criatividade, já que a linguagem não é algo simplesmente pronto, mas é fruto da criação das comunidades humanas históricas. Por esta razão, as conexões 43 Permanece aberta a questão do significado de “pertencer” que só será classificada relacionando-se homem e comunidade, onde tanto o homem quanto a comunidade formam a unidade e a diversidade no comumpertencer (cf. HEIDEGGER, 1985). 196 simbólicas só são inteligíveis a partir dos diferentes contextos de interação, que são fundamentalmente diferentes entre si, constituindo uma diversidade insuperável que, segundo Habermas (2001), compreensível na unidade do mundo-da-vida: O mundo-da-vida é, por assim dizer, o lugar transcendental em que o falante e ouvinte vão ao encontro um do outro; em que podem colocar reciprocamente a pretensão de que as suas emissões concordem com o mundo (objetivo, subjetivo e social); e em que podem criticar e exibir os fundamentos dessas pretensões de validez, resolver seus desentendimentos e chegar a um acordo (HABERMAS, 2001, p. 179). O mundo-da-vida, como a forma-de-vida em Wittgenstein (1979), é o ancoradouro da diversidade como algo que é dado e, por isto mesmo, fundante da nossa historialidade, envolvendo não só a dimensão biológica, mas principalmente a cultural e política44. Neste contexto, Oliveira (2001) deixa compreender que dentro do processo comunicativo levanta-se a exigência do reconhecimento de cada agente comunicativo e da sociedade solidária, perfazendo a unidade na diversidade: Entrar em processo comunicativo significa, então, reconhecer a inviolabilidade de cada sujeito humano, portanto, como alguém portador de um direito originário, a autonomia, de onde emerge a exigência de construir uma sociedade solidária que torne efetivamente possível o reconhecimento mútuo dos sujeitos entre si (OLIVEIRA, 2001, p. 268). Com isso, a práxis humana revela-se não apenas como fazer, mas fundamentalmente como “agir”, isto é, como construção ética do ser humano. Na eticidade humana construída é que se ouve o poeta cordelino Patativa do Assaré, na documentação de Feitosa (2003), falando de adjunto para o agir diverso na unidade do mundo-da-vida: Chama-se de adjunto a reunião de várias pessoas que se ajudam mutuamente. No sertão cearense, os adjuntos são comuns no preparo da terra quando agricultores e donos de terra se juntam para preparar as terras uns dos outros, economizando despesas com a concentração de trabalhadores remunerados. A mesma união 44 Sobre forma-de-vida como o lugar da unidade na diversidade, cuja compreensão aparece mediada pelo ato-de-fala, ver Sousa (2005, p. 47-75) e Wittgenstein (1979, p. 221). 197 acontece quando das colhetas. Na Serra de Santana, os adjuntos acontecem para o plantio e colheta de lavoura de arroz (FEITOSA, 2003, p. 43). Na leitura do quadro seguinte, tomando-se como exemplo o indicador denúnica, do item uniformização e do subitem linguagem, tem-se 66,7% de freqüência e o indicador liderança, do item diversidade e subitem preservação das diferenças, apresenta-se com freqüência de 5,2%, denotando superioridade hegemônica do autoritarismo. Considerando-se todos os indicadores, detecta-se 57,5% para as estratégias de uniformização contra 25,5% para a diversidade, explicitando a hegemonia das estratégias autoritárias. (cf. 4.5). 198 Uniformização Sub Ítem DE IDÉIAS Lei (s) Proibição Total 100 0 Sub Ítem DE LINGUAGEM Mentira Censura Denúncia Total 33,3 0 66,7 198 199 Diversidade Sub Ítem CONHECIMENTO DA PLURALIDADE Partido (s) Representação Situação Oposição Sub Ítem PRESERVAÇÃO DAS DIFERENÇAS Liderança Sertanejo Operário (s) Agricultor (es) Total 65 15 17,5 2,5 Total 5,2 17,3 50 27,5 199 200 4.3.5 Fisiologismo O termo fisiologismo aponta para a palavra ou expressões conexas como relação de vizinhança: corporal, fisiológica, material, orgânica; relação de dependência: natureza e realidade material (cf. RUSS, 1994, verb. Fisiocracia, prova físioteológica e, comentário à luz de Emanuel Kant). O vocábulo remete para o seu correlato, fisiocracia, que caracteriza o modo de pensar e explicar a vida econômica, constituindo a primeira escola econômica chamada escola fisiocrática ou, como forma de pensamento ou ideologia, fisiocracia. Começando pelo seu fundador, Francisco Quesnay45, a escola fisiocrática sustenta a existência de uma ordem natural, governada por leis férreas e objetivas, tanto físicas como morais, incumbido ao bom legislador não criar leis positivas a seu talento, mas apenas reconhecer as leis naturais e, conseqüentemente, promulgar leis positivas que se conformem, o mais possível, com a natureza. Os fisiocratas julgam ser a ordem natural também uma ordem providencial, isto é, desejada por Deus para a felicidade dos homens. “As leis são irrevogáveis”, escreve Mercier de la Rivière, “emanam da essência dos homens e das coisas, são a expressão da vontade de Deus”. O que merece ser sublinhado nesta concepção, é a noção de harmonia daí deduzida pelos fisiocratas: harmonia entre interesse individual e geral, que servirá de base ao liberalismo. Deste modo, a noção providencial da ordem natural está intimamente ligada à de liberdade. Esta liberdade é para os fisiologistas a base do progresso econômico social: “obter o máximo aumento possível de satisfação com a máxima redução possível de dispêndio, eis a conduta econômica perfeita” (HUGON, 1969, p. 94-95). 45 Dr. François Quesnay (1694-1764), descendente de família rural, autodidata, médico do rei Luis XV, depois de articulista da Grande Enciclopéida Francesa, escreveu sua principal obra “Tableau Économique” (1760), seguido pelo Marquês de Mirabeau (1715-1789), Macier de la Riviere (1721-1793), o abade Baudeau (17301829) e Dupont de Nemours (1739-1817), verdadeiro secretário-geral d´École Physiocratique, quando publicou “Oeuvres économiques et philosophiques” de Quesnay, que serviu posteriormente (1768) para denominação da escola: “La Physioratique” (cf. HUGON, 1969, p. 89-90). 201 Para os adeptos, a fisiocracia era “a ciência”; para os adversários, “uma ceita”. O neologismo refletia a aspiração a uma visão científica, universal, da história acontecida e por acontecer, a confiança num modelo natural que era preciso descobrir, um modelo que fosse possível adaptar-se: o melhor possível, por ser o único capaz de propiciar a máxima e harmoniosa satisfação dos interesses da autoridade soberana e das classes que compõem o país. A noção de ordem natural é afirmada como verdade evidente e sempre exata, tanto no tempo, como no espaço. Dentre as diversas considerações a respeito da ordem natural, eis duas fundamentais: - convém observar que constitui a ordem natural e providencial, para os fisiocratas, uma concepção que ultrapassa o campo de aplicação da economia: nela vêem a base da organização de toda a sociedade; - há pois, uma ordem natural, essencial e geral, que contém em si as leis constitutivas e fundamentais de todas as sociedades, ordem da qual não podem as sociedades afastar-se sem perder um pouco do que são, sem adquirir o estado político de menos consistência, sem se encontrarem seus membros, mais ou menos, desunidos e em situação de violência; uma ordem, enfim, impossível de ser inteiramente abandonada sem provocar a dissolução da sociedade e, dentro em pouco, a destruição absoluta da espécie humana (DUPONT DE NEMOUR, apud. HOGN, 1969, p. 96-97). No bojo dessas considerações, “os monarcas hereditários são os únicos soberanos em cujos interesses podem estar ligados os das nações através da co-propriedade de todos os produtos líquidos e territoriais sujeitos à sua soberania. Trata-se, segundo a fisiocracia, de um despotismo legal, decorrente da evidência da ordem natural e, por isto mesmo, objetiva-se como práxis justificada pela afinidade política e econômica. Neste contexto, o fisiologismo aparece, como estratégia do autoritarismo, buscando explicação racional e lógica do 202 mecanismo da vida econômica para a forma despótica e absoluta de governo, camuflada na formulação exposta: “as leis são irrevogáveis, emanam da essência dos homens e das coisas e são expressões da vontade de Deus”. 4.3.6 Capacitação Em contraposição ao fisiologismo, alijamento das possibilidades de acesso aos bens de produção, a capacitação é a antítese emergente dos componentes democráticos estratégicos de educação e mudança. Entretanto, uma capacitação que se confine na habilitação técnica seria instrumental do ponto de vista sócio-político de mudança. Neste sentido, adverte Touraine (2004, p. 173-174). [...] a escola, por sua vez, deve questionar-se acerca da transmissão do conhecimento, em vez de se questionar a cerca da utilização desse conhecimento e, portanto, estar centrada sobre aquele a quem chamamos aluno. Em vez de incutirlhe normas e prepará-lo para ocupar uma certa posição na organização social, conviria tratá-lo como um agente de comunicação, de compreensão dos outros e de mudança (TOURAINE, 2004, p. 173-174). A capacitação deverá revelar ao ser humano a unidade dos opostos que constitui o seu ser: em primeiro lugar, sua finitude originária. Seu ser é fundamentalmente marcado pelo que ele mesmo não criou e, antes constitui o quadro básico do seu agir no mundo: marcado por determinada configuração corporal-biológica, pelo contexto sócio-hitórico, pela língua, pela cultura gestada pelas gerações que o precederam, pelas formas de garantir sua reprodução material e pelo mundo simbólico que interpreta seu existir. Capacitar significa possibilitar ao homem tomar posição em relação a sua situação originária, o que se manifesta pelo ato de perguntar, de questionar. A pergunta é um ato inicial de transcendência sobre o 203 contexto de nossa inserção46 e traz, em seu bojo, a chance de um alargamento de perspectivas e de possibilidades (OLIVEIRA, 2001, p. 279). A capacitação é, por conseguinte, a primeira condição para que um ser possa assumir um ato comprometido, sendo capaz de agir e de refletir. Em outras palavras, a primeira condição para que um ser possa exercer um ato comprometido é a sua capacidade de atuar e refletir: capacidade de atuar, de operar, de transformar a realidade de acordo com as finalidades propostas pelo homem, fundada na sua práxis como realidade que o condiciona como sujeito histórico. Neste perfil, Freire (1981, p. 17) explicita o capacitado: Somente um ser que é capaz de servir de seu contexto, de “distanciar-se” dele para ficar com ele; capaz de admirá-lo para, objetivando-o, transformá-lo e, transformando-o, saber-se transformado pela sua própria criação; um ser que é e está sendo no tempo que é o seu, um ser histórico, somente este é capaz, por tudo isto, de comprometer-se. Capacitação é, no horizonte epistêmico democrático, o que implica abrir espaço para que as ações das pessoas possam realizar-se em coerência com a totalidade da realidade, ou seja, em sintonia com o particular maior do que o indivíduo (família, sociedade civil, Estado) e com o universo como um todo. Capacitação se propõe à configuração de um mundo humano enquanto possibilitador do espaço de liberdade, que é o chão-da-vida. Neste sentido, a capacitação é um ato-de-resistência à dominação como educação integral: Uma educação integral terá de partir do próprio chão da vida humana: o ser humano é um ser vivo e, portanto, com a necessidade de reproduzir-se, o que significa dizer que o processo de autoconstrução começa com a luta pela conquista das condições materiais de vida, o que faz com que o fim básico da atividade econômica seja a busca da qualidade de vida (OLIVEIRA, 2001, p. 288-289). A qualidade de vida é que respalda a qualificação, impedindo que a sociedade programada (TOURAINE, 2004, p. 95-117), determine o critério da capacitatividade: 46 A capacidade de se espantar e de se admirar é a capacidade de perceber o espaço da construção em aberto e de saber-se inacabado (FREIRE, 2002, p. 78-79). 204 o critério para o estabelecimento de habilitações e a escolha da profissão não será mais ditado pelo mercado de trabalho e as empresas produtoras, mas pelo bem-estar da população e a qualidade de vida de todos os cidadãos (REZENDE, 1982, p. 64). Em suma, a capacitação deve conduzir cada um à conquista de sua subjetividade, de tal modo que cada um possa fazer-se sujeito de seu desenvolvimento, de sua própria formação, pela construção da solidariedade universal, cósmica e social. Para a leitura do seguinte quadro demonstrativo, tomando-se, como exemplo, o indicador afilhado, do item fisiologismo e do subitem político, tem-se 2,5% de freqüência e o indicador trabalhador, do item capacitação e subitem dos iguais, apresenta-se superante com freqüência de 44,2%. Considerando-se todos os indicadores, tem-se 43,3% para o fisiologismo contra 56,7% de freqüência da capacitação, denotando a preponderância das estratégias democráticas (cf. 4.5). 205 Fisiologismo Sub Ítem POLÍTICO Proteger Afilhado Poder (es) Poderosos Total 2,5 2,5 95 0 Sub Ítem ECONÔMICO Cruzado Explorador(es) Exploração Gatilho Inflação Truste Total 27,7 11,1 16,7 5,6 22,2 16,7 205 206 Capacitação Sub Ítem DOS IGUAIS Trabalhador (s) Trabalhar Estudante(s) Roceiro (s) Agricultor(es) Total 44,2 18,2 10,2 10,2 17,2 Sub Ítem DOS DIFERENTES Classe (s) Sertanejo (s) Governados Eleitor (es) Total 50 35,7 3,6 10,7 206 207 4.3.7 Censura Abordar a censura, no horizonte do autoritarismo, passa pela tipologia da palavra47 e sua importância. Palavra é a possibilidade de comunicação constituindo uma das experiências mais admiráveis da condição dos seres humanos que, através desta, comunicam as idéias mais abstratas e os sentimentos mais sutis, daí por que, é um aviltamento da dignidade humana impedir o uso da palavra a qualquer homem. A censura (do Latim censura, ae) designando o cargo de censor, passando depois a significar juízo crítico, é, no sentido vulgar, sinônimo de repressão. Em psicanálise o termo denota “a função que interdita o acesso à consciência dos desejos inconscientes e reprimidos” (AUSS, 1994, verb. censura), razão pela qual não se pode fugir da compreensão da censura como tolhimento da comunicação que eufemisticamente é chamada, pelo autoritarismo, “controle de informação”. Esse controle da informação deriva da capacidade de comunicação dos líderes. Com ele o autoritarismo monopoliza a comunicação, atrelando-se à propaganda da ideologia dominante e aos interesses de dirigentes tirânicos. Centrado no complexo de interesses, o autoritarismo controla a informação em quatro níveis: no setor da coleta de dados, no estágio da seleção dos dados e comentários publicáveis, nas maneira de interpretar os acontecimentos e dados públicos e, finalmente, o controlar a informação na tarefa de abafar as vozes divergentes (RODRIGUES, 1999, p. 98-99). A censura não é, portanto, parte do complexo aparelho montado por aqueles que detêm o poder, para controle da sociedade. Aparelho que, de posse do conhecimento, muitas vezes profundo, dos valores presentes na consciência coletiva, recria a verdade a seus moldes, como se faz referência e, segundo seus interesses e necessidades, segundo posicionamento de Arendt (1989, p. 86): 47 Para uma compreensão mais substancial da hegemonia da palavra sob o ponto de vista da Filosofia da linguagem, dois caminhos são pertinentes: WITTGENSTEIN em Investigações filosóficas e Da certeza; HEIDEGGER em A caminho da linguagem. 208 De fato, o totalitarismo, ao monopolizar a expressão da verdade, procura, através da propaganda e do controle dos meios de comunicação, assegurar a versão oficial dos fatos, desfigurando-os para adequá-los à sua ideologia48. O que a censura faz, além de atingir a ação e a fala, é exercer um papel fundamental no sistema de controle ideológico e, conseqüentemente, da propaganda. Todos os assuntos, temas e fatos que possam contradizer ou mesmo gerar dúvidas em relação às afirmações dadas pela propaganda oficial, veiculada pelos órgãos oficiais e os outros controlados, ora pela interdição, ora pela concessão de reclames patrocinadores de programação em emissoras, têm sua divulgação proibida49. No Brasil, durante o período da Ditadura Militar, experimentou-se um desdobramento da censura em dois níveis: a censura prévia (Decreto-lei 1.077 de 26/02/1970) e a autocensura. Esta última, comenta Garcia (1900, p. 88), é a conseqüência mais grave das sanções e, certamente, constava nos objetivos do governo: “cansados e atemorizados pelas punições, empresários, jornalistas, artistas, atores, escritores, todos que estavam ligados às comunicações e às artes passaram, tentando interpretar os critérios da censura oficial, a aplicálos sobre si mesmos” nesta linha de pensamento, o compositor Chico Buarque de Holanda faz um desabafo importante sobre a autocensura: Muitas vezes paro no meio de uma música, porque eu sei que não vai ser possível gravar. Isto é uma auto-censura, é claro, um entrave sério. É inevitável que a gente crie uma auto-censura. Eu já tenho a minha” (apud BERG, 2002, p. 1400)50. 48 49 50 A propósito da censura Foucaut (1970) caracteriza bem a censura no contexto ocidental ao dizer: “Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interpretação. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância [...]. Por mais que o discurso seja aparente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder” (FOUCAULT, 1999, p. 9-10). Para uma compreensão profunda da hegemonia da censura no Brasil durante 20 anos de autoritarismo, dois textos são elucidativos: GARCIA, Nelson, 1980 e BERG, Creuza, 2002. A auto-censura é estudada como resistência ao autoritarismo (CALVEZ, 1977, p. 69-71). 209 A autocensura autoritária, politicamente, corresponderia ao conceito psicanalítico freudiano do super-ego, enquanto introjeção irracional de costumes, tradições e valores culturais. Nesse caso, o indivíduo que exerce a auto-censura considera-se politicamente incorreto por pensar de modo diferente daquele utilizado no processo de doutrinação política da qual foi vítima. Evidentemente, esta modalidade de autocensura, que anda longe daquela que se atribui ao compositor Chico Buarque, nada tem de resistência, mas de uma mera concordância com o autoritarismo. Já na outra modalidade de auto-censura, o pensador, artista ou político discorda frontalmente da doutrinação que lhe fora imposta por dirigentes autoritários. É aí que o artista, jornalista e comunicador usam a “persuasão figurativa”, como observam Ataulfo Alves e Felisberto Martins (apud CUNHA, 2004, p. 2006-2007), durante a ditadura de Vargas: o destinador tenta fazer com que o destinatário reconheça na canção uma situação de locução possível na vida cotidiana. Em outras palavras, a persuasão entre o destinador e destinatário se verifica através da impressão de que não só a situação relatada é possível (parece realidade), como está sendo vivida no exato momento em que a canção se desenrola [...]. O destinatário autoritário fica cônscio da acomodação do compositor, enquanto o destinatário oprimido percebe a mensagem de luta e persistência no processo de libertação no qual sempre é possível falar e ser entendido. 4.3.8 Liberdade A liberdade, como estratégia democrática, contrapondo-se a censura, estratégia autoritária, funda-se na dignidade da pessoa humana que emergiu como ponto de partida de referência última de toda a vida econômica, reclamando a conquistabilidade como postura para a sua experiência. A conquista da verdadeira liberdade implica a eliminação de qualquer forma de negação da alteridade enquanto alteridade, o que efetiva nas diversas formas de violência e de discriminação que degradam a existência humana; numa palavra, a identidade própria do ser humano se produz pela mediação de uma sociabilidade que torna real o reconhecimento de todos os seres autônomos, portanto como sujeitos livres e conscientes (OLIVEIRA, 2001, p. 310-311). 210 A consciência de sujeitos livres é peculiar a um ser que tem um sentido absoluto, dignidade, e é isto o que nossa tradição ocidental denominou pessoa, isto é, aquele portador de dignidade e, portanto, não pode simplesmente ser apenas usado como instrumento para algo, embora em tudo, nos interpela a ser considerado em si mesmo, em função de si mesmo, com o fim em si mesmo. Neste sentido, o personalismo estabelece com precisão a relação pessoa-liberdade: Uma vez que a liberdade é a afirmação absoluta, nada a poderá limitar, é total sem limites, simplesmente porque é [...]. A liberdade do homem é a liberdade de uma pessoa, desta pessoa, assim constituída e situada em si própria, no mundo e perante os valores (MOUNIER, 1976, p. 112-113). A liberdade assim compreendida não se perde num solipsismo51, ela só é efetiva na medida em que se produz em suas obras: a liberdade é no mundo pela mediação das obras, pois a liberdade se efetiva na medida em que se produz em suas obras: a liberdade é no mundo pela mediação das obras, pois a liberdade se efetiva na medida em que ela dá origem a uma obra, alcança uma configuração e precisamente nela chega a si. Dada a configuração, o homem é a tensão permanente entre o horizonte da infinitude e a efetividade de suas mediações históricas. Assim, sua história, lugar das escolhas e das decisões, é a permanente luta pela passagem da infinitude de horizontes para a fiinitude das realizações contingentes (HEGEL, 1997, tome II, p. 45-49). Nesta passagem vislumbra-se a verdade da liberdade como fonte viva do ser pessoa e do ser comunidade: A liberdade da pessoa cria à sua volta liberdade, por uma como que leveza contagiosa donde só serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me rodeiam, homens e mulheres, forem livres (MONIER, 1976, p. 114-115). 51 Uma liberdade puramente interior, liberdade pura de pensamento, é ilusão: o poder exprimir-se, manifestarse é essencial para a liberdade. Hegel, superando a redução da ação ética à esfera da ação interior (Kant, Fichte), supera a contraposição entre mundo da experiência e o mundo da razão (HEGEL, 1977, Tomo II, p. 27-30). 211 O tornar-se livre tem implicabilidade com a liberdade dos outros. Neste sentido, liberdade é também fundamentalmente escolha porque as novas configurações, no contexto de uma história comunitária, constitui-se essencialmente relação, lugar da efetivação da liberdade: A liberdade é efetiva através da escolha destas meditações e sua efetivação na história: todo homem, implicitamente, situa diferentes escolhas da vida de cada dia no horizonte de uma escolha fundamental: a escolha de uma forma de ser, o que implica igualmente a escolha de seu mundo, uma vez que toda forma é forma num mundo de formas: da arte, da religião, do político, do educacional etc. (OLIVEIRA, 1995b, p. 72). No espaço das configurações, a posição que o homem toma em relação a si mesmo implica uma tomada de posição frente ao mundo onde se situa. Esta tomada de posição, como liberdade de escolha ou liberdade de decisão, edifica a pessoa porque [...] a escolha, a opção, aparece primeiro como poder daquele que opta. Por ter ousado, por me ter exposto, por ter arriscado na obscuridade e na incerteza, encontrei-me um pouco mais, sem ainda me ter propriamente procurado. A decisão é criadora, rompendo fatalidades, jogos de forças para criar. Só pela decisão criadora o mundo avança e se forma (MOUNIER, 1976, p. 121-122). O homem, nesse sentido, é livre e suas configurações são configurações da liberdade e liberdade não é simplesmente a posse autárquica e solitária de si mesma, mas significa fundamentalmente a construção de um mundo comum onde os sujeitos criam relações recíprocas de reconhecimento com o outro mundo, o qual nunca é apenas expressão singular de nós mesmos, mas do comum. Neste sentido, liberdade é imaginação criativa: o que está em jogo é abrir o espaço histórico para o jogo da liberdade criativa em que a pessoa se situa e aí imaginativamente, procurar descobrir as configurações da liberdade que a façam nesta situação. A efetivação da liberdade criativa é uma luta, é uma luta pela sobrevivência, uma luta natural e, num segundo momento se dá, propriamente, a luta pela configuração de si mesmo e 212 do mundo. A ausência desta efetivação, para Freire (1980, p. 42) é destemporalização, desenvolvimento que desumaniza porque toda vez que se suprime a liberdade, fica ele (o homem) um ser meramente ajustado ou acomodado. E é por isso minimizado e cerceado, acomodado a ajustamentos que lhe sejam impostos, sem o direito de discuti-los, o homem sacrifica imediatamente a sua capacidade criadora. Em suma, a razão de ser de nossas ações na história passa pela produção de nós mesmos sujeitos livres cuja tarefa fundamental é a construção, correta, e sempre em contextos históricos diferenciados, das relações que nos constituem como seres humanos. Na leitura do quadro seguinte, tomando-se como exemplo, o indicador ameaças do item censura e subitem da ação, tem-se 9,5% de freqüência e o indicador reuniões do item liberdade e subitem da ação, apresenta-se com freqüência superior de 75%, denotando predominância da estratégia democrática. Considerando-se todos os indicadores, detecta-se 45,5% para as estratégias de censura contra 54,6% das estratégias de liberdade para predominância democrática. 213 Censura Sub Ítem DA AÇÃO Ameaças Injustiça Arma (s) Total 9,5 33,4 57,1 Sub Ítem DO DISCURSO Juiz Controle Maldade Total 26,3 0 73,7 213 214 Liberdade Sub Ítem DA AÇÃO Reuniões Revolução Agricultura/Agricurtura Sub Ítem DA PALAVRA Liberdade Discussão Discurso / Fala Total 75 25 0 Total 25 0 75 214 215 As estratégias autoritárias e democráticas aparecem, nos folhetos de Cordel submetidos à dialética de leitura, explicitando a predominância dos componentes democráticos populares num nível crescente de superação da alienação. Neste contexto, têmse os seguintes dados dos indicadores: 17 nepotistas versus 25 de promoção por mérito; 17 uniformizadores versus 19 de diversidade; 21 fisiologistas versus 20 de capacitação e 19 indicadores de censura versus 15 de liberdade. Somando-se os dados. têm-se 74 informações do autoritarismo contra 79 informações de estratégias democráticas, possibilitando detectar-se a resistência do Cordel à ditadura militar. 216 217 4.4 Meios Retomando-se o comportamento dogmático do autoritarismo, recorda-se que nele não se admitem dúvidas, questionamentos e contestações, inação, desobediência ou reação no que tange ao estrito cumprimento das atividades proselitistas e uniformizadoras que costuma ditar52. Para evitar tais comportamentos solapadores da hegemonia que lhes é peculiar, recorre-se a todos os meios persuasivos e dissiasivos a seu alcance, entre eles a corrupção, a tortura, o exílio e a morte. Não se prescinde, contudo, de que o comportamento democrático também conte com seus meios dialeticamente antitéticos. 4.4.1 Corrupção Corrupção53 designa o fenômeno pelo qual um funcionário público é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em troca de recompensa. Distinguem-se três tipos de corrupção: a prática da peita ou uso da recompensa escondida para mudar a seu favor o sentir de um funcionário público; o nepotismo, ou concessão de empregos ou contratos públicos baseados não no mérito, mas nas relações de parentela; o peculato por desvio ou apropriação e destinação de fundos públicos ao uso privado. Corrupção significa transação ou troca entre quem corrompe e quem se deixa corromper. Trata-se normalmente de uma promessa de recompensa em troca de um comportamento que favoreça os interesses do corrupto; raramente se ameaça com punição a 52 53 Aqui se põe sucintamente o já elucidado no item 4.2 quando se tematizou o comportamento autoritário. Corrupção, que vem do latim (cum+rumpere), romper com, designa ação de romper pelo meio, rasgar em partes iguais, determinando a desintegração de um ser. Corrupção significa a progressiva desintegração de um ser mediante a ação de fatores internos e externos tendentes à sua destruição total. É um processo lento, nocivo, penetrante, proliferador e de ação destruidora. 218 quem lese os interesses dos corruptores. Contudo, a corrupção é uma alternativa de coerção posta em prática quando as duas partes são bastante poderosas para tornar a coerção muito custosa, ou são incapazes de usá-la. Outro aspecto relevante da questão é que a corrupção não está ligada apenas ao grau de institucionalização, à amplitude do setor público e ao ritmo das mudanças sociais, está também relacionada com a cultura das elites e das massas. Depende da percepção que tende a variar no tempo e no espaço. A corrupção pode ser usada, quando se faz valer a lei contra transgressores no sentido de visar à fuga das sanções legalmente previstas. Neste contexto, são sujeitos da corrupção os parlamentares, o governo, a burocracia e a magistratura (BOBBIO et PASQUINO, 1995, verb. corrupção), No universo do autoritarismo, quanto mais ameaçados se sentirem seus protagonistas, tanto mais a elite recorrerá a meios ilegais e à corrupção para se manter no poder. Ainda neste universo, tanto as pessoas com as instituições tornam-se agentes da corrupção. Em uma palavra, a corrupção quer surja em um sistema em expansão e não institucionalizado, quer em um sistema estável e institucionalizado, é um modo de influir nas decisões que fere no íntimo o próprio sistema. De fato, este tipo privilegiado de influência, reservado àqueles que possuem meios de exercê-los, muitas vezes somente financeiros, conduz ao desgaste do mais importante dos recursos do sistema, sua legalidade. O corrupto não tem escrúpulos morais nem respeito aos direitos alheios. Tudo vale para realizar seus desejos insaciáveis até o momento em que se rompe o equilíbrio interior e começa inexoravelmente a destruição. A corrupção administrativa é, dada a presença do corrupto, o aproveitamento sistemático do cargo público para a satisfação de interesses pessoais, comumente de natureza pecuniária, ou a tentativa de suborrar a autoridade, com o mesmo objetivo. 219 4.4.2 Honestidade A honestidade54, componente antitético à corrupção, denota probidade, decoro e decência. Na sua origem latina tinha um sentido amplo, a ponto de compreender todas as virtudes de uma vida pautada segundo a razão natural. Hoje o termo tem um sentido mais restrito e refere-se, principalmente, à veracidade da palavra e à lisura nas relações de justiça. A complexidade da veracidade e lisura como eticidade é que cria um mundo surge das ações a legitimidade do outro (o outro da relação comunitária) na convivência sem discriminação, sem abuso sistemático. Maturana (2002, p. 75) ao falar da democracia como espaço político, não prescinde da honestidade: Se quisermos uma convivência em que não surjam pobreza e o abuso como instituições legítimas55 do viver nacional, nossa tarefa é fazer da democracia uma oportunidade para colaborar na criação quotidiana de uma convivência fundada no respeito que reconheça a legitimidade do outro num projeto comum, na realização da qual a pobreza e o abuso são erros que podem e devem ser corrigidos. A democracia, comenta Maturana, é uma obra de arte político-cotidiana que exige atuar no saber que ninguém é dono da verdade, e que o outro é tão legítimo quanto qualquer um. Significa que, no cerne da experiência democrática e da educação popular, o honesto é aquele que não mente, que respeita a palavra dada, incapaz de apropriação indébita em seus negócios e no exercício de suas responsabilidades públicas ou privadas (ÁVILA, 1982, verb. honestidade). Nessa linha de pensamento, a honestidade é uma virtude moral e cívica sem a qual é impossível a superação do subdesenvolvimento, da dependência e da alienação. Faz-se 54 O vocábulo honestidade vem do latim honestitas, da raiz “honor” ou “honos = honra”, por isto o termo é sinônimo de honradez. 55 Ao dizer-se “instituições legítimas” da pobreza e do abuso de poder, diz-se do processo de legitimação do empobrecimento das categorias discriminadas e do reforçamento da opressão como modos legítimos de vida (cf. HABERMAS, 2004b. 300ss). 220 necessário colocar-se que o conceito de virtude, como hábito de superação de si mesmo, de bem fazer-se permanecer é basicamente o mesmo desde a antiguidade grega quando foi teorizado. Ao tomar-se a honestidade como virtude, sob o enfoque ético, evoca-se Aristóteles (1979), possibilitando entender-se que as “virtudes não são capacidades inatas”, mas adquiridas através do exercício no qual” o homem virtuoso será aquele capaz de ultrapassar o horizonte subjetivo da mera satisfação pessoal momentânea e entregar-se às exigências de sua realidade integral (cf. ARISTOTELES, 1979, p. 33). A honestidade como virtude adquirida na experiência democrática funda-se no veredicto da educação popular como resistência aos regimes totalitários, de direita ou de esquerda, que acabam sempre por gerar administradores corruptos, porque, independendo do que já foi exposto, veredicto popular têm então as maiores garantias de impunidade. A resistência mediada pela honestidade realiza a passagem da eticidade meta-física à moralidade ôntico--ontológica pela relação inalienável da totalidade-alteridade como processo de resistência e libertação. (cf. HEBERMAS, 2004a, p. 227-265; BATALHA, 1995, p. 320321). Na tensão dialética, veiculando os meios democráticas e autoritários, de sustentação de uma cosmovisão, pela mediação das categorias corrupção e honestidade. Tomando-se o indicador prefeitura, do item corrupção e subitem instituições, tem-se 82,5% de freqüência e o indicador partido, item honestidade e subitem das instituições, apresenta 37,3% de freqüência, denotando corrupção pertinente na instituição governamental. Considerando-se todos os indicadores, tem-se 43,3% de incidência da corrupção contra 56,7% da honestidade, evidenciando preponderância dos meios democráticos sobre os autoritários (cf. 4.5). 221 Corrupção Sub Ítem DAS PESSOAS Suborno Fazendeiro (s) Corrupção Total 16,6 50 33,4 Sub Ítem DAS INSTITUIÇÕES República Prefeitura Governo Trambique Total 5 5 82,5 7,5 221 222 Honestidade Sub Ítem DAS PESSOAS Margarida Responsável(eis) Honestidade Total 87,5 0 12,5 Sub Ítem DAS INSTITUIÇÕES Comunidade Constituição Partido Igreja Eleição Total 5,1 5,1 37,3 25,4 27,1 222 223 4.4.3 Tortura O vocábulo tortura vem do Latim (totura, ae), denotando o ato ou efeito de torturar, dobrar, curvatura, cujos termos são torturar como submeter (alguém) à tortura; torturador significando que ou quem tortura e torturante adjetivo denotando o causador da tortura. São correlatos os substantivos angústia, dor, sofrimento, suplício e tormento. Deste último advém a compreensão de tormento que se infligia a um acusado para dele conseguir certas respostas ou denúncia. Em Direito Penal, tortura denota imposição deliberada e sistemática de sofrimento físico ou mental, promovido por uma ou mais pessoas, as quais, agindo por conta própria ou a mando de quem quer que seja, procura forçar alguém a dar informações, confessar, denunciar outrem ou proceder de modo a satisfazer os institutos do agente (Academia BRASILEIRA DE LETRAS JURÍDICAS, 2001). Em virtude do regime militar no Brasil pós 1964, a prática da tortura, segundo pesquisas, revelou quase uma centena de modos diferentes de tortura, violando o artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos que reza: “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” (LEPARGNEUR et al. 1978, p. 61). Um relato prefeciado por Dom Paulo Evaristo Cardeal Arns (1985), apresenta, mediante depoimentos de vítimas, os principais modos e instrumentos de torturas adotados pela repressão no Brasil: o pau-de-arara, o choque elétrico, a pimentinha e dobradores de tensão; o afogamento, a cadeira-do-dragão e a geladeira dentre outros56. O pau-de-arara consiste numa barra de ferro que é atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, sendo o “conjunto” colocado entre duas mesas, ficando o corpo o torturado pendurado a cerca de 20 ou 30 centímetros do solo. Este método quase 56 Para uma leitura descritiva, com gosto de sangue, ler CARDEAL ARNS, D. Paulo Evaristo. Brasília: Nunca Mais: um relato para a história (1985). 224 nunca é utilizado isoladamente, seus “complementos” normais são eletrochoques, a palmatória e o afogamento. A cadeira-do-dragão constitui-se de uma cadeira extremamente pesada, cujo assento é de zinco, e na parte posterior tem uma proeminência para ser introduzida em um dos terminais da máquina de choque chamado magneto e, além disto, a cadeira apresenta uma travessa de madeira que empurra as pernas para trás, de modo que a cada espasmo de descarga as pernas batem na travessa citada, provocando ferimentos profundos, dores e câimbras. A geladeira é descrita como um cubículo com as seguintes características: sua porta de tipo frigorífico, medindo cerca de dois metros por um e meio; suas paredes pintadas de preto, possuindo uma abertura gradeada, ligada a um sistema de ar frio e, no teto da sala existia uma lâmpada fortíssima; a porta ao ser fechada ligava produtos de ruídos, cujo som variava de barulho de uma turbina de avião a uma estridente sirene de fábrica57 Na verdade, embora a tortura seja instituição antiga no país e no mundo, ela ocupou no Brasil, a condição de instrumento rotineiro nos interrogatórios sobre atividades de oposição ao regime, especialmente a partir de 1964 até a consolidação do Estado autoritário e a sua debilitação (1979), com a posse do general Figueiredo na presidência da República, juntandose ao crescimento das pressões democráticas. 4.4.4 Preservação Preservação, termo tomado como ato ou efeito de preservar (-se), é a antítese democrática à tortura como meio autoritário de persuadir à acomodação e ao silêncio as classes subalternas. O vocábulo é derivado do verbo preservar (do latim preservare) 57 Os três exemplos referidos são respaldados pelos depoimentos de José Milton Ferreira de Almeida (engenheiro), Manuel Cirilo de Oliveira (estudante). Marlene de Souza Soccas (dentista) e José Mendes Ribeiro (estudante) no Rio de Janeiro e São Paulo (cf. CARDEAL ARNS, 1985, p. 34-37). 225 denotando livrar de algum mal, manter livre de corrupção, perigo ou dano; conservar, livrar, defender e resguardar. Preservar evoca, para esta reflexão, o pensar heideggeriano em Ser e Tempo (1993) sobre o ser-aí, explicitando o ser-do-homem como “ser-aí-com os outros”, “ser com o cotidiano” e “ser-em-si-mesmo” livre com o “a gente”58. O “ser-com a gente” é espaço da experiência democrática contraposta à destruição do indivíduo e dos grupos constituídos pela unidade na diversidade59. O ser-com “a gente” preserva o homem da tortura do isolamento por constituir-se a maneira que, ontologicamente, lhe é apropriada: Um “eu” isolado, sem os outros, também está de imediato, especialmente distante de ser presentado [...]. Nossa tarefa é a de tornar fenomenologicamente visíveis os modos de ser-aí-com que pertencem ao ser-aí encerrado em sua cotidianidade, explicitando-os de uma maneira ontologicamente apropriada (HEIDEGGER, 1993, § 25). Preservar é, pois, uma tarefa democrática de presentação de cada homem e de todos da experiência do que ontologicamente se lhes apropria: a co-presença. Portanto, aí a presença (do eu) encontra, de saída, “a si mesma” naquilo que ela empreende, usa, espera, resguarda no que está imediatamente à mão no mundo circundante, em sua ocupação. Este modo de ser é mesmo o da preservação onde, considerando-se a alteridade, o outro vem ao encontro em sua co-pre-sença no mundo, conforme explicita Heidegger: Não se deve, contudo, desconsiderar que usamos o termo co-pre-sença para designar o ser em função do que os outros são liberados dentro do mundo. Dentro do mundo, essa co-pre-sença dos outros só se abre para uma pré-sença e assim também para os co-presentes, visto que a pre-sença é em si mesam, essencialmente ser-com (HEIDEGGER, 1993, § 26). 58 59 Heidegger, na sua ontologia, situa o “ser-do-homem” no existencial como aquele que se desvela, no revelar-se do ser, como totalidade na quotidianidade. O que o especifica são os “entes-envolventes”, o envolvimento mesmo com eles como presença simples e objetivada, sem toturas, com o “a gente” (cf. HEIDEGGER, 1993, § 25 a 27) Vide nota 34. 226 Em Heidegger ser-com é sempre uma determinação da própria pre-sença; ser copresente caracteriza a presença de outros à medida que, pelo mundo da pré-sença, libera-se a possibilidade para um ser-com, isto é, a experiência sem qualquer tipo de tortura60. O mundo da presença, já interpretado por Heidegger como mundanidade (1993, § 18), é compreendido como totalidade referencial da significância. Em outras palavras, o contexto referencial da significância ancora-se no ser da pre-sença para o seu ser mais próprio, a ponto de, essencialmente, não poder ter alguma conjuntura (posse de conjuntura), sendo o ser-dohomem garantido pela própria pré-sença na co-pre-sença como a é como tal. Neste contexto epistêmico, a preservação é uma antítese à tortura como um fazer educativo: Na estrutura da mundanidade do mundo reside o fato de os outros não serem, de saída, simplesmente dados como sujeitos soltos no ar, ao lado de outras coisas. Eles (homens) se mostram em seu ser-no-mundo, empenhados ns ocupações do mundo circundante, a partir do ser que, no mudo, está na mão (HEIDEGGER, 1993, § 26). Ter às mãos a mundanidade, a pre-sença e a co-pre-sença é preservação compatível à práxis comunitária e, por isto mesmo mediação da experiência democrática como educação popular porque na concepção de Gadotti (1981, p. 157): [...] a educação não consiste em “esperar” que o mundo seja dividido com justiça entre os homens. Ela deve desde já, operar para que a instauração desse mundo se torne possível, mesmo pela luta, quando isso for necessário. Na leitura do quadro seguinte, tomando-se como exemplo o indicador terror, do item tortura e do subitem psicológica, tem-se 22,2% de freqüência e o indicador valente, do item preservação e subitem psicológico, apresenta 45,5%, denotando predominância democrática. Considerando-se todos os indicadores, tem-se 49,2% para os meios de tortura contra 50,8% dos indicadores de preservação, objetivando preponderância democrática (cf. 4.5). 60 Vide o item tortura e nota 37. Também é ilustrativo BRANCA ELOYSA (1987, p. 21-37). 227 Tortura Sub Ítem FÍSICA Chibata Opressor (es) Violência Prisão Total 21,5 21,5 28,5 28,5 Sub Ítem PSICOLÓGICA Terror Terrorismo Fúria (s) Infeliz Tortura (s) Total 22,2 11,1 16,7 50 0 Preservação 227 228 Sub Ítem FÍSICA Camponês Esforço Floresta Total 68,1 9,2 22,7 Sub Ítem PSICOLÓGICA Valente Perseguido (a) Favela (s) Total 45,5 36,3 18,2 228 229 4.4.5 Exílio Exílio vocábulo advindo do latim (exsilium, de ex = fora, de + solim = o solo, chão pátrio) significando expatriamento forçado ou voluntário por razões de saúde, de emigração ou conseqüência de crimes políticos. Desde as civilizações mais antigas, o exílio já era constitutivo do ostracismo como pena imposta aos atenientes na antiguidade grega. Contudo, observa Ávila (1982), que o exílio é diferente do degredo, é sempre motivado por crime infamante, e do desterro, que também resulta de penalidade imposta. O exilado, diversamente do imigrante, conserva o desejo de voltar à própria pátria, apenas cessem os motivos que dela o afastaram. O Direito Internacional protege contra a extradição o exilado político; este, porém, assume determinadas responsabilidade para com o país que o acolhe, no sentido de não prejudicar as relações deste com o seu próprio país de origem. Daí, compreender-se o vocábulo exílio denotando o lugar onde reside o exilado. O autoritarismo tem o exílio como outro meio de manter-se distante de quem o incomoda. Aquele, que o incomoda e representa perigo ao administrador autoritário, é expulso de sua pátria, banido da convivência nacional para assegurar a hegemonia do sistema autoritário. 4.4.6 Inclusão social Em contraposição ao exílio, componente autoritário de opressão, a reflexão democrática compreende que na ”totalidade fechada” há a-versão ao “outro” porque o homem perfeito é o que tem mais em detrimento de uma maioria excluída. Na alteridade, antítese da “totalidade fechada”, a dialética é outra: 230 Na alteridade dá-se a conversão ao outro; o homem perfeito é o que é mais. A alteridade põe a realização do homem no serviço e a justiça é o seu modo de ser (DUSSEL, 1977a, p. 48). O modo de ser democrático possibilita mais e mais a inclusão social, permitindo aos partícipes percorrerem um caminho com vistas a que tudo se realize com sucesso: estabelecem metas, realizam o trabalho, avaliam o que fizeram, fazem de outro jeito, se reconhecerem necessário sentam-se de novo para avaliar o já feito, refletindo sobre que aspectos necessitam ser aperfeiçoados. É notória a seriedade com que exercitam a avaliação e a auto-avaliação, possibilitando perceber-se o próprio ciclo da práxis dialética: ação-reflexãoação compatível à educação popular de resistência ao autoritarismo porque [...] a práxis é a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la, transformandose a si mesmos. É a ação que, para se aprofundar de maneira mais conseqüente, precisa da reflexão, do auto-questionamento, da teoria; e é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio seus acertos e desacertos, cotejando-os com a prática (KONDER, 1992, p. 115). O desafio que se coloca preponderante é garantir a incorporação de todos ao sistema estabelecido na práxis comunitária como experiência e aprendizagem. É neste fazer que do ponto de vista coerentemente progressista, portanto democrático, as coisas são diferentes do autoritarismo pela melhora da qualidade de vida mediada pela formação contínua porque [...] a formação permanente se funda na prática de analisar a prática, naturalmente com a presença de pessoal altamente qualificado (pela inclusão) , que é possível perceber embutida na prática uma teoria não percebida ainda, pouco percebida ou já percebida mas pouco assumida (FREIRE, 2003, p. 72). Na leitura do quadro seguinte, tomando-se como exemplo o indicador cadeia, do item exílio e do subitem ostracismo, tem-se 30% de freqüência e o indicador sindicato, do item inclusão social e subitem entre indivíduos, apresenta 48,9%, denotando predominância democrática. Considerando-se todos os indicadores, tem-se 18,4% para os meios da categoria 231 exílio contra 81,6% dos indicadores de inclusão social, objetivando a predominância democrática (cf. 4.5). 232 Exílio Sub Ítem OSTRACISMO Processado Grade Cadeia Total 10 60 30 Sub Ítem EXPULSÃO Bomba Latifundiário (s) Expulsão Total 37,5 37,5 25 232 233 Inclusão Social Sub Ítem ENTRE INDIVÍDUOS Comunista (s) Camarada (s) Sócio (s) Sindicato (s) Enxada Ferramenta Total 25,6 4,3 12,1 48,9 8,1 1,3 Sub Ítem ENTRE GRUPOS Comunidade Companheiros Camponeses Enxadas Ferramentas Total 18,7 43,8 12,5 12,5 12,5 233 234 4.4.7 Morte Etimologicamente, o vocábulo morte tem no Latim a sua origem (mors, mortis = morte), denotando, no sentido usual, fim da vida, cessação física da vida; no sentido clínico, fim das funções do cérebro61 definido por um eletroencefalograma. O vocábulo tem termos e expressões conexas: na relação de dependência: alma, corpo, e evolução, indivíduo, religião e tempo; na relação de oposição: imortalidade, vida; na relação de vizinhança: falecimento, fim trespasse. Em qualquer uma das relações de conexidade ditas anteriormente, o medo aparece como o vocábulo de mediação reflexiva para o fenômeno morte. Isto é, se por um lado a morte fática, como fim do existir ou a síndrome da morte, passaram despercebidas, conseqüenciando uma negligência para com a vida. No contexto de autoritarismo, as situações de morte62 , a que são submetidos os dominados, revelam o medo dos dominadores de perderem a posição autoritária. Neste medo, é que a morte aparece como meio pelo qual os dirigentes autoritários a usam no processo de aniquilamento dos governados e no processo de sustentação da peculiar hegemonia autoritária. Neste aspecto é que Hegel (1941) possibilita compreender a morte como temível e, como tal, é usável para superação do próprio medo domina e mata para sustentar a hegemonia autoritária: “... a morte, se quisermos chamar assim esta irrealidade, é a coisa mais temível [...]. Não é esta vida que recua de horror diante da mesma, que é a vida do espírito”63, que se 61 62 63 No contexto epistemológico do autoritarismo, a morte do cérebro é que constitui o escopo dos detentores do poder. Isto é, os dominados não podem pensar nem questionar. Em outros termos, o cérebro vivo é que desobedece, incomoda, tem hesitações e não se permite moldar à uniformização. Situações explicitadas nos itens tortura e exílio. No prefácio de Fenomenologia Hegel (1941, II. 29) o vocábulo irrealidade, comenta Garaudy (1971), não é senão “que Hegel conceba assim a relação do fenômeno com o conceito como relação do finito com o infinito, não sendo mais que o movimento pelo qual o finito se ultrapassa a si. O infinito não existe senão no finito, como o finito não existe e não tem sentido senão no infinito que o anima e o contém” (GARAUDY, 1971, p. 53). Significa que a vida na sua totalidade está, portanto, para além do indivíduo e este não exprime a presença dela senão ultrapassando-se, negando-se a si próprio. Neste aspecto a irrealidade nega o que a negatividade da morte dá ao conceito morte e sua vitalidade diante a qual o homem medra (GARAUDY, 235 objetiva, como espírito absoluto, na consciência falsa do dirigente tirano, déspota que mata por medo de perder sua hegemonia64. A morte, portanto, como meio de defesa e manutenção do autoritarismo, esteve presente nos anos duros da ditadura militar, iniciada em 1964, no Brasil de modo que o Projeto Brasil: Nunca Mais registrou e imortalizou uma série de documentos: certidões e óbito, declarações de sobreviventes, laudos de exames necroscópicos do Instituto Médico Legal e mortes sobre torturas consignadas em processos penais, como foi o caso de Odija Carvalho de Souza (1971), torturado e assassinado em Recife (CARDEAL ARNS, 1985, p. 253-254). A morte como instrumento de sustentação da hegemonia autoritária, que no Brasil durou mais de vinte anos, implantou o terror de uma ditadura que condenou cidadãos sem direito de defesa, executou, sumariamente, nas ruas; torturou nos porões dos quartéis, sustentando na aparência o “milagres brasileiro” e a copa do mundo, enquanto a Nação mergulhava na mais grave crise econômica e política de sua história. A morte, como meio de sustentação da hegemonia autoritária, inclui tanto a execução como o suicídio de presos políticos. Este e aquele são faces da mesma moeda! 64 1983, P. 59). Nesse sentido, comenta Melo Neto (2001)” [....] a verdade e o saber estão na consciência e são os parâmetros de chegada de Hegel ao absoluto, o saber verdadeiro (na questão, a morte fática). Trata-se de um processo que não é a soma dos distintos momentos, pois não existe oposição entre esses momentos (irrealidade X realidade). Assim é que a partir de qualquer momento, pode-se iniciar esse movimento da dialética. Hegel denomina esses três momentos, respectivamente, como: intelectual, dialético especulativo ou positivo, racional. Assim, a dialética não é apenas a lei do pensamento, mas (é a lei da realidade). Os seus resultados não são meros conceitos puros ou conceitos abstratos, mas pensamento concreto” (MELO NETO, 2001, p. 19-20). O vocábulo em questão (irrealidade) deve ser entendido no escopo mesmo da filosofia hegeliana, que vê, em todos os lugares, tríades do tipo tese, antítese e síntese (morte-fática, morte-irreal e conceito de morte). Ao analisar-se esse movimento, tríade da dialética, coloca-se que em cada síntese, os momentos anteriores estão suprimidos (negados), mas ao mesmo tempo integrados numa forma superior: a terceira visão hegeliana. Pode-se conferir, toda a abordagem Hegel (1990, § 21,104, pp. 260-261) que mereceu o comentário de Hipolite (1995, p. 102-104). Vale a pena observar que Hegel, na sua filosofia da religião, presente na Enciclopédia das Ciências, trata do espírito absoluto, à luz da revelação bíblica, a propósito de sua objetivação, que tematiza a pessoa de Jesus Cristo como alteridade, como libertador, objetivação constituída diferentemente da manifesta no déspota que oprime e que mata (HEGEL, 1936, § 564-571; EMÍLIO BRITO, 1983, p. 196-248). 236 4.4.8 Vitalização O vocábulo vitalização denota o ato de vitalizar e o verbo vitalizar (vital + izar) denota restituir a vida; dar nova vida, dar força e vigor como antítese à morte. Assim, vitalização evoca o verdadeiro e radical enunciado do princípio supremo da ética, conforme tematiza Dussel (1977, p. 46-47): Não mates o Outro, ame-o com amor-justiça. Não o mates porque então permanecerás “só”; a solidão do único é panteísmo, idolatria, totalitarismo, guerra, morte. Não só deves deixá-lo viver, mas superar as situações de morte. Situações de morte também ditas síndrome da morte65 compreende uma série de fatores que conduzem à morte e até a antecipam, por situações criadas nas quais o homem, sob desespero, mergulha no mar de angústias causado pela inversão de valores, capaz de caracterizar grupos humanos de mortos abulantes ou rostos da morte. Assim, se por um lado, a morte fática como fim da existência histórica assusta e angustia, por outro, situações mortíferas, ou a síndrome da morte, passam despercebidas conseqüenciando uma negligência para com a vida. A síndrome da morte se nos aparece assim: - feições de jovens desorientados que não encontram seu lugar na sociedade e frustrados, sobretudo nas zonas rurais e urbanas marginalizadas, por falta de oportunidades de capacitação e ocupação; - feições de operários, com freqüência mal remunerados que têm dificuldades de se organizar e defender seus próprios direitos (SOUSA, 2001, p. 47-48). Somam-se a isto as angústias produzidas pelo abuso do poder típicas do regime de força, pela repressão sistemática ou seletiva. Neste quadro é que a vitalização se nos aparece como condição de possibilidade de superação formativa das situações de morte para a situação de vida como querer humano: 65 Ver uma substancial tematização sobre a síndrome da morte em Sousa (2001, p. 47-50). 237 Quero um mundo em que meus filhos cresçam como pessoas que se aceitam e se respeitam, aceitando e respeitando outros num espaço de convivência em que os outros os aceitem e os respeitem a partir do aceitar-se e respeitar-se a si mesmo [...]. É fácil recobrar-se a vida vivendo-se esse espaço de convivência (MATURANA, 2002, p. 30). Neste contexto epistêmico-experiencial é que se dá a tarefa democrática de vitalização. A tarefa democrática é sair das situações de morte, que se opõem à vida, ao criar um domínio de convivência no qual a pretensão é ter um acesso a uma cultura de vida pela cooparticipação e possibilitação de vida onde se possa perceber que o central na convivência humana é o amor-justiça, as ações que constituem o outro como o legítimo outro na realização do ser social que tanto vive na aceitação e respeito por si mesmo, quanto na aceitação e respeito pelo outro (MATURANA, 2002, p. 32). Vitalização, no bojo da educação popular de resistência às situações de morte, é ensinar aprendendo e aprender ensinando a apropriação significativa da vida como testemunha Freire (2003, p. 88): Não posso me acomodar às estruturas injustas da sociedade. Não posso, tirando a vida, dendizê-la. Ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos pouco na prática social de que tomamos parte.. Na leitura do quadro seguinte, tomando-se como exemplo o indicador fome, do item morte e do subitem suicídio, têm-se 4,5% de freqüência e o indicador leis do item vitalização e do subitem dos grupos e comunidades, apresenta 63,8%, denotando preponderância democrática. Considerando-se todos os indicadores, têm-se 32,3% para os meios de morte contra 67,7% dos indicadores de vitalização, objetivando preponderância democrática. 238 Morte Sub Ítem ASSASINATO Crime(s) Guerra Tiro(s) Revólver(s) Canhão(ões) Bala(s) Fuzil(is) Espada Metralhas Total 33,3 19,2 7,4 3,5 1,7 22,8 5,2 1,7 5,2 Sub Ítem SUICÍDIO Morte(s) Favela(s) Fome Fraco(s) Desespero Total 38,5 5,2 43,5 7,6 5,2 238 239 Vitalização Sub Ítem DA PESSOA Morador Consumidor Lavrador Lutador Redenção Respeito Sofredor Anistia Total 12,1 6,1 12,1 3,1 9,1 21,2 15,1 21,2 Sub Ítem DOS GRUPOS E COMUNIDADES Movimento(s) Moradores Lavradores Partidos Roça Lei(s) Esperança Total 3 0,8 3 5,4 9,6 63,8 14,4 239 240 Os instrumentos da mediação, tanto para a hegemonia autoritária, como para a práxis democrática são apresentados quando os indicadores apontam o nível de maturidade da Literatura de Cordel no processo de educação popular. Da dialética de leitura tem-se os seguintes dados indicadores: 15 de corrupção versus 11 de honestidade; 16 de tortura versus 17 de preservação; 15 de exílio versus 20 de inclusão social e 30 de morte versus 29 de vitalização. Totalizando as informações, têm-se 76 indicadores autoritários contra 77 democráticos de resistência à ditadura militar. 241 4.5 Síntese dialética de leitura COSMOVISÃO IND % ARISTOCRACIA 40 38 TOT% 105 CORONELISTA 65 62 TOTAL / 100 DE POVO 242 97,9 29,8 247 DE ASSOCIAÇÃO 05 2,1 TOTAL / 100 RACIAL 08 53,3 70,2 15 46,7 TOTAL / 100 04 16 INTERACIONISTA 07 DE PESSOAS MANIPULADORA DO SABER DICOTOMIZANTE POLARIZANTE 29 60,5 TOTAL / 100 DIALÉTICA DISCRIMINAÇÃO POLULAR ELITISTA ÍTENS PRESERVAÇÃO DA DIFERENÇAS 14 9,9 37,5 25 DO SABER 21 84 TOTAL / 100 19 39,5 62,5 48 25,4 141 BUSA DE SÍNTESE 127 90,1 TOTAL / 100 74,6 COMPORTAMENTO IND % ELITE DECIDE 62 80,5 MASSA OBEDECE E CUMPRE 15 19,5 TOTAL / 100 NAS DECISÕES 11 37,9 ENTRE LÍDERES E LIDERADOS 18 62,1 TOTAL / 100 CENTRALISMO 35 61,4 TOT% 77 72,6 29 27,4 57 SUBORDINANTE 22 38,6 TOTAL / 100 RECONHECIMENTO DAS CAPACIDADES 13 40,6 OPORTUNIDADE PARA TODOS 19 59,4 TOTAL / 100 01 20 64 BAJULADOR 32 EXALTANTE DESTAQUE 04 80 TOTAL / 100 DE LIDERANÇA FACILITADOR MANIPULADOR DIALÓGICO ÍTENS DOGMÁTICO 242 VITALIZA A DÚVIDA 05 8,1 36 7,5 72,6 DEBATE A DISCURSSÃO 56 91,9 TOTAL / 100 PROSELITISTA DE PROPAGANDA 02 10,5 ESPANCIONISTA 17 89,5 TOTAL / 100 EDUCAÇÃO POLÍTICA 61 FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA CRÍTICA 45 36 AÇÕES COMUNITÁRIAS 80 64 TOTAL / 100 92,5 19 13,1 125 86,9 ESTRATÉGIAS IND % PARENTES 08 18,2 LIBERDADE CENSURA CAPACITAÇÃO FISIOLOGISMO DIVERSIDADE UNIFORMIZAÇÃO PROMOÇÃO POR MÉRITO ÍTENS NEPOTISMO 243 TOT% 44 ADERENTES 36 81,8 TOTAL / 100 PESSOAL 86 74,7 COMUNITÁRIO 29 25,3 TOTAL / 100 DE ÍDEIAS 121 90,9 27,6 115 72,4 133 DE LINGUAGEM 12 9,1 TOTAL / 100 RECONHECIMENTO DA PLURALIDADE 40 40,8 PRESERVAÇÃO DAS DIFERENÇAS 58 59,2 TOTAL / 100 POLÍTICO 39 52 ECONÔMICO 36 48 TOTAL / 100 DOS IGUAIS 70 71,4 57,5 98 42,5 75 43,3 98 DOS DIFERENTES 28 28,6 TOTAL / 100 DA AÇÃO 21 52,5 DO DISCURSO 19 47,5 TOTAL / 100 DA AÇÃO 04 8,3 DA PALAVRA 44 91,7 TOTAL / 100 56,7 40 45,4 48 54,6 MEIOS IND % DAS PESSOAS 12 23 DAS INSTITUIÇÕES 40 77 TOTAL / 100 DAS PESSSOAS 08 11,7 DAS INSTITUIÇÕES 60 82,3 TOTAL / 100 FÍSICA 14 43,7 VITALIZAÇÃO MORTE INCLUSÃO SOCIAL EXÍLIO PRESERVAÇÃO TORTURA HONESTIDADE ÍTENS CORRUPÇÃO 244 TOT% 52 43,3 68 56,7 32 PSICOLÓGICA 18 56,3 TOTAL / 100 FÍSICA 22 66,6 PSICOLÓGICA 11 33,4 TOTAL / 100 OSTRACISMO 10 41,6 EXPULSÃO 14 58,4 TOTAL / 100 ENTRE INDIVÍDUOS 74 69,8 ENTRE GRUPOS 32 30,2 TOTAL / 100 ASSASSINATO 57 59,3 SUICIDIO 39 40,7 TOTAL / 100 DA PESSOA 34 16,9 DOS GRUPOS E COMUNIDADES 167 83,1 TOTAL / 100 49,2 33 50,8 24 18,4 106 81,6 96 32,3 201 67,7 245 A tabela apresentada, sob o título síntese dialética de leitura, faz a comparação dos indicadores dos itens nas suas subdivisões com as referidas percentualidades. A um tempo, faz a comparação dos itens para detectar a percentagem de pertinência dos indicadores nas matrizes de Cordel. Como exemplo tome-se, da cosmovisão, os itens elitista (105 indicadores, perfazendo 29,8% dos indicadores dados) e popular (247 indicadores perfazendo 70,2% dos indicadores dados), num total de 100% de pertinência. O mesmo cálculo repete-se nos demais itens da cosmovisão, passando pelo comportamento, pelas estratégias até os meios utilizados pela força da ditadura militar durante os primeiros 20 anos, e pela resistência da Literatura de Cordel no mesmo período. Em síntese, os dados apresentados sustentam o que se pretende objetivamente: leitura do discurso da Literatura de Cordel do Brasil como expressão de resistência à ditadura militar. Sob este escopo é que as expressões significantes garantirão a esta dialética de leitura a não interferência de uma analítica sustentada pelo estatístico. 4.6 Indicadores de leitura e expressão significantes66 Compreende-se, aqui, indicadores como vocábulos usados na literatura filosófica, nas ciências humanas e nas matizes de Cordel com designação comum, possibilitando a descodificação para além da forma utilizada, por exemplo “companheiro” e “cumpanhêro”; “pelegagem” e “pelegage”; “salário” e “salaro”. Os vocábulos, considerando-se seus pares, são advindos dialeticamente do universo culto e do universo popular respectivamente, designando sempre a realidade sentida, apreendida, vivida e comunicada. A indicabilidade dos vocábulos possibilitará a leitura porque o essencial na tarefa de leitura (descodificação) não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto cocreto e preciso, compreender sua significação numa enunciação particular (BAKHTIN, 1997, p. 93). 66 Os indicadores e expressões significantes estão anexos. 246 O enunciado particular para os indicadores de leitura é a resistência ao autoritarismo que, em meio à tensão dialética de produção lingüística entre a dominação e a possibilidade de libertação, possibilita o assentimento de que “não é o espaço que define a língua, mas a língua que define o seu espaço” (BOURDIEU, 1998, p. 21). O espaço definido pelos indicadores, dialeticamente emanados do universo erudito e do popular, é o autoritarismo para uma possibilidade do discurso fundado na experiência democrática. Os indicadores apontam para o uso ideológico da língua no contexto explicitado: A língua, no seu uso prático, é inseparável, de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida. Para se separar abstratamente a língua de seu conteúdo ideológico, do vivencial é preciso elaborar procedimentos particulares não condicionados pelas motivações do locutor (BAKHTIN, 1997, p. 96). Não se pretendendo a ruptura dos indicadores do contexto peculiar, é que as “expressões significantes” ganham pertinência, pela dialética que as constituem, nesta dialética de leitura. As expressões significantes “generais terroritas” e “vivência sindical”; “governo dos generais” e “governo popular” entre outras, com a mesma origem dos indicadores de leitura, farão a mediação hermenêutica da leitura por assegurar o contextoepistêmico-deológico da resistência e/ou da dominação em conformidade aos indicadores porque o elemento que torna a forma lingüística um indicador não é a sua identidade como sinal, mas sua mobilidade específica; da mesma forma que aquilo que constitui a descodificação da forma lingüística não é o reconhecimento do sinal, mas a compreensão da palavra no seu sentido particular, isto é, a apreensão da orientação que é conferida à palavra por um contexto e uma situação precisas, mas orientação no sentido da evolução e não do inobilismo (BAKHTIN, 1997, p. 94). As palavras, indicadores de leitura, estão carregadas de um conteúdo e de um sentido ideológico ou vivencial. A busca desta compreensão, mediada pelas expressões significantes, chegar-se-á ao que virá a nós: ressonâncias ideológicas ou cencernentes à vida. (Vide anexo) 247 5 CORDEL: ESCOLA DE RESISTÊNCIA No início dos anos 60 do século passado, alguns setores mais intelectualizados do Brasil envolviam-se num movimento de arte engajada, de caráter essencialmente político1. Havia uma postura de vanguardismo, predominando a visão de que o operariado, deixado por si só, não era capaz de avançar na luta política, tornando-se necessária a intervenção, como liderança conscientizadora, de membros de outras classes sociais2. Os Centros Populares de Cultura (CPCs) foram desmantelados com o golpe militar de 1964. A música popular brasileira (MPB), seguindo os mesmos passos, teve um envolvimento político bastante intenso e significativo. Festivais foram organizados pelas emissoras de televisão, atraíam imensa massa de jovens estudantes, que gritavam e aplaudiam delirantemente as críticas políticas mais contundentes. Os nomes que mais se destacavam eram João do Vale, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Elis Regina, Chico Buarque de Holanda, Badem Powel, Vera Brasil, Caetano Veloso. Aqui o objetivo era também conscientizar o público a respeito dos problemas sociais. As letras denunciando a presença da ditadura militar, ironizavam os que acreditavam “nas flores vencendo canhões”, para pregar um avanço além dos limites da simples consciência e esperança, afirmando: “Quem sabe faz a hora não espera acontecer”3. A mesma postura, de denúncia e contestação, esteve presente no cinema, literatura, artes plásticas e nas ciências sociais. Na literatura, destacaram-se “A travessia” de Carlos Heitor Cony, “Quarup” de Antônio Calado, “A luta corporal”, “Opinião 65” e “Opinião 66”, 1 2 3 Suas propostas cristalizaram-se com a criação dos Centros Populares de Cultura (CPCs, ligados à União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES)). Essa visão correspondia ao pensamento leninista, segundo a qual os trabalhadores não podiam possuir, ainda, a consciência social-democrata. Ela só podia originar-se do exterior. Quanto a doutrina socialista, ela nasceu das teorias filosóficas, históricas e econômicas elaboradas pelos representantes mais cultos das classes, possuída pelos intelectuais (LENINE, v. I. 1966). Vide capítulo 1, Literatura de Cordel – um contexto. 248 realizadas com sucesso e apoio popular4. Nas livrarias, a grande maioria de obras de sociologia, economia, política, estética, história e filosofia eram elaboradas a partir da metodologia e das teses do marxismo. Toda produção cultural brasileira parecia enveredar por um caminho revolucionário5. Algumas apresentações, altamente críticas, tiveram grande receptividade por parte do público, dentre elas “Morte e vida Severina”, encenada no Teatro da Universidade Católica de São Paulo (1966) e “O coronel de Macambira”, no Teatro da Universidade Católica do Rio de Janeiro (1968). Assim, a década de 60, talvez a mais rica da dramaturgia nacional, ainda testemunha a chegada de um autor revolucionário: Plínio Marcos (1935-1999). Suas peças “Dois perdidos numa noite suja” e “Navalha na carne” trazem os marginalizados para o centro da cena teatral. O autor, que se intitulava maldito, abraça a revolta explosiva despida de colorido político-partidário. Seus textos manifestam uma grande indignação contra a hipocrisia da sociedade brasileira e têm por objetivo desestabilizar a pacata existência burguesa. Pretendiam sensibilizar a população não apenas para as escolas, submetidas a severas intervenções e fiscalização, mas também para os problemas da sociedade como um todo. A Literatura de Cordel que resistia cooptar-se ao poder constituído6, fora reprimida quando veiculando, como diz o poeta popular, “coisas de caráter social”. Os poetas sofriam perseguições quando se apresentavam cantando ou declamando folhetos de resistência em praças públicas. Neste clima de caça à poesia de Cordel-engajada, não foram poucas as produções atiradas no lixo e outras queimadas em vias públicas. Dentre as vítimas desta 4 5 6 Exposições realizadas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Ressalta-se que, paralela à produção revolucionária, sempre esteve circulando a arte a serviço do autoritarismo com refrões ufanistas como “Prá frente Brasil”, “Ninguém mais segura esta país”, “Brasil, ame-o ou deixe-o” para silenciar as vozes inconformadas e os gritos de pavor e medo. Não é toda Literatura de Cordel que toma posição de cooptar-se ao poder constituído. Neste sentido é sintomática a revelação do poeta José Costa Leite (1982): “o poeta popular só arranja pão em seus versos quando sabe agradar ao povo, as queixas e os problemas do povo, hoje em dia, é assunto proibido, Por assim ser é que muitos colegas poetas passam para o lado de lá. Mas isto não é o cordel ou deixa de ser, é a pressão da força, da fome e das coias da ditadura na literatura da gente” (GLOBO, 12/4/1982). 249 repressão política estão “Cartilha do povo” de Raimundo Santa Helena (1975) e “Um arranca rabo em São Paulo” de Jotabarros (1983) que, acentuando o caráter de denúncia de injustiça sociais, mostravam que os poetas, como porta-vozes dos fracos, partiram à frente dos que não anunciava as letras, mas que podiam chegar aos grandes centros, como rudes leitores e ouvintes, mediados pela palavra-escrita-lida e proclamada. A palavra cordelina reunia a muitos ao redor do folheto declamado tanto nas residências como nas praças públicas para resistir à ditadura. As estrofes seguintes apresentam o perfil popular da resistência: Que a lei de Segurança Prenda ladrões-de-cartola Sem coagir cidadãos No trabalho ou na escola Leis de Censura a Imprensa Nesses termos ninguém pensa Livremente sem argola. Nenhum Governo respeita Povão que é desunido O Lobo vira Senhor Do cordeiro encolhido. Quem não se junta perece Mas quem se une merece Um viver evolutivo. Façamos da votação Uma cívica peneira Nosso povão no governo Vai sacudir a poeira Da tempestade de ventos Que nebulou os fundamentos Da família brasileira. (SANTA HELENA, 1975) Enquanto Santa Helena fala com ódio incontido, próprio de quem lutou e luta pela democracia e liberdade, Jotabarros sente e relata a situação do povo com mais cuidado. Tal postura porque, segundo depoimento dado ao jornal Liberal (Teresina-PI, 16/08/1983), porque precisava manter-se vivo para escrever mais folhetos e preparar o povo para a luta: 250 A pena é que esse ódio Prejudica o próprio povo Por isso é que penso muito Pra tais coisa nem me movo Porque o povo é quem paga O preço velho e novo. Vamos ter calma e pedir Usando a diplomacia Meios comunicativos Que nos prometem euforias Procuremos outras melhorias Para o pão de cada dia. (JOTABARROS, 1985). As críticas se chocam de frente com a imagem que o governo criava para legitimar-se como revolução e não como golpe. Neste bater de frente, o Cordel aparece como resistência por ser constituinte do que Habermas chama sociedade comunicativa, objetivando a comunicação intersubjetiva como condição de possibilidade para o interlocutor individual do Cordel, o poeta. Nessa perspectiva, o interlocutor-poeta de Cordel não é um agente livre, mas uma unidade funcional da comunidade de interlocutores que se constitui pelo ato-de-fala7. O ato-de-fala, considerado aqui como palavra-poética, caracteriza, a um tempo tanto a produção da poesia-canção como da poesia de Cordel, reivindicando uma validade que não prescinda da própria estrutura da fala inerente ao ato-de-fala-poética. Sendo esta reivindicação a premissa frontal para se concluir sobre a racionalidade proporcionante da estrutura da fala e do objeto da comunicação, a argumentação de Habermas é pertinente quando diz que [...] toda vez que nos comunicamos com o outro, automaticamente nos comprometemos com a possibilidade de um acordo dialógico livremente alcançado, em que o melhor argumento irá vencer (HABERMAS, 1979, p. 58). 7 O ato-de-fala peculiar às várias modalidades de comunicação (Cordel e poesia-canção) depende de regras emanadas da pluralidade de usuários. Tais regras, para Wittgenstein e Habermas, garantem sentido se o sujeito de linguagem é capaz de seguir pelo menos, com um outro sujeito, uma regra que seja de validade para ambos (HABERMAS, 2004, p. 130-132, 167-175). 251 Na leitura feita do Cordel como contexto8, os agentes tiveram a capacidade de usar suas formas de expressão de um modo tal, que gerou a espécie de compreensão que se fazia necessária para sustentar a interação contínua de fala do conteúdo da realidade, da denúncia e da sobrevivência como melhor argumento de resistência diante da situação de morte. A isto se chama competência comunicativa dependente do desenvolvimento de competência particulares, mas inter-relacionadas nas dimensões da cognição e ação, pela competência de papel cujo escopo é fundar o discurso poético na atitude performativa, isto é, uma consciência do que existe aí, no chão-da-vida, uma linguagem ordinária vital que precisa ser assumida: orientar sua comunicação ao propósito único de chegar a um consenso racional: conhecimento intersubjetivamente compartilhado. Significa que tanto a poesia-canção como a poesia de Cordel falam do centro mesmo do mundo vivido e manifestado: ditadura militar. Quem fala do mundo-da-vida, detém a linguagem ordinária, isto é, peculiar a tal mundo. Do ponto de vista do lugar social do proferente do discurso cordelino, como o da poesia-canção, não há diferença ou dicotomia em relação ao leitor-consumidor pois é o mesmo o mundo-de-vida: Essa poesia, a literatura de cordel, ao longo dos anos sofreu mudanças [...]. Antigamente, ela era portadora de anseios de paz, de tradição e veículo único de lazer e informação. Hoje ela é portadora, entre outras coisas, de reivindicação de cunho social e político. Não somente para os nordestinos e descendentes, mas para todos os habitantes do Brasil (LUYTEN, 1983, p. 64). É esta ligação forte da Literatura de Cordel com o mundo-da-vida que garante, por um lado o entendimento e, por outro, a relação intersubjetiva, mesmo quando o elemento objetivo, portado em suas páginas, vai sendo substituído historicamente. No Cordel o ato-defala é aceito e gera relação interpessoal e, como cultura popular, está lido à vida social: os 8 Todo capítulo primeiro fora uma abordagem paralela da poesia-canção com a poesia de Cordel, que possibilitou o encontro com o contexto histórico da ditadura militar e o contexto intersubjetivo-epistêmico de resistência do discurso e do compromisso do ato-de-fala. 252 conflitos entre as classes sociais; os movimentos sociais9; as instituições da sociedade civil, especialmente a escola e a igreja, onde em larga medida, se forma a consciência e visão de mundo. Tudo isto constitui o duplo nível de competência comunicativa: o objetivamente tematizado (consenso racional) e o objetivamente não-tematizado, mas subjetivamente atingido (relação intersubjetiva) como se pode detectar na leitura paralela da poesia-canção e do texto cordelino seguintes: Só estar perto de Prestes já põe as forças à mostra só pode ver certos gestos quem gosta do ser humano liberto de condições incontestes das posições manifestas de quem viu a paz pelas frestas de quem recusa os poderes que não se promovem honestos de quem repudia os restos que não concilia ou preste está sujeito a estar perto de quem está junto a Prestes. (TAIGUARA, 1979) No Brasil, por toda parte Anda tudo se animando A gente sente no espaço Um invisível comando: A volta de Prestes, é Nossa esperança voltando. Os moradores nas praças Inspirados, discursando Encontraram forças no verbo Quando vão pronunciando: A volta de Prestes, é Nossa esperança voltando. Prestes, assuma o seu posto -Nós o estamos delegando. Os oprimidos perguntam: Oh! Companheiro até quando? Que seja a sua presença Nossa esperança voltando. (CARVALHO, 1979). 9 As questões e movimentos sociais possibilitaram centenas de folhetos de Cordel, a tal ponto que muitas compilações foram elaboradas como sobre Canudos (CALASAS, 1984), sobre preconceito de cor (MOURA, 1976) além de capítulos de livros e de dissertações. 253 Da leitura dos textos acima10 denota-s o critério habermasiano para o estabelecer a validade universal de uma convicção de modo que, em princípio, seja tão válido quanto qualquer outra. Considerando-se que os dois atos-de-fala-poéticos procedem do mundo-davida, se uma das posições, a da poesia-canção de Taiguara, é válida, ela não a é apenas para ele, mas para qualquer um honestamente envolvido na discussão. Como a poesia de Cordel também está envolvida na discussão da ditadura militar, tal posição é também válida para a poesia cordelina de Rafael de Carvalho11 . Numa palavra, é a resistência que emerge da solidariedade epistêmica (visão de mundo) e do vínculo social (submersão do ato-de-fala no oprimido mundo-da-vida) que se fortalece na tomada de consciência da validade das reivindicações de validade encerradas nas expressões poéticas: resistir à ditadura. A isto Habermas chama de consenso duradouro por não se definir como subordinação à manipulação, nem como resultado de alianças ou acordos utilitários12. Significa tudo isto que a arena em que os participantes – poetas e leitores – debatem suas posições já formuladas, a esfera pública, torna-se a moldura dialógica dentro da qual o indivíduo, seus princípios e crenças morais emergem em respostas a uma comunidade de companheiros interlocutores. A arena, como espaço possibilitante das respostas ao mundo-davida, é a própria abstração do que Habermas chama situação-de-fala ideal que a torna princípio regulador e um guia fundante para a conduta humana: resistência questionante. A poesia é a linguagem historial de um povo que, segundo Heidegger (2003), como doação do ser, arranca da existência originária, que o ser mesmo funda, a obra em que a verdade operada é projeção de um destino aberto para os que têm a sua guarda, poetas e leitores. Tal destino é a liberdade. Esta instauração da abertura daria a medida, 10 Não só, mas de toda leitura feita dos cordéis catalogados na cordelteca sob o regime militar, denota-se que todos os poetas estabelecem envolvimento honesto, com o movimento de resistência à ditadura e qualquer autoritarismo. É isto que aparece na dialética de leitura (4,5) o comportamento de educação política como formação da consciência crítica e ações comunitárias resiste com 86,9% de freqüência, a 13,1% de pressão do proselitismo ditatorial. 11 A defesa que Habermas faz do universalismo na teoria ética e política derivada da possibilidade de justificar racionalmente a convicção individual, bem como o consenso público. 12 Este caso de subordinação da-se nos folhetos de encomenda, 254 preliminarmente poética, da história em virtude da precedência da linguagem como poesia originária. Assim Heidegger fala sempre da poesia como grandeza inaugural, como começo irruptivo por sua liberdade no dizer; abertura ao imprevisto e à escuta do existente13. A escuta do existente é a postura da Literatura de Cordel, compilada e explicitada aqui como objetivação da racionalidade comunicativa popular onde poeta e leitor se entendem sobre algo do mundo objetivo, social e subjetivo. Eles se movimentam dentro do horizonte de um mundo-vivido comum e não podem sair dele porque este permanece às suas costas, como um pano de fundo histórico, intuitivamente sabido e não problematizado. Aqui somente uma reviravolta transcendental da linguagem14 , passando-se do foco semântico para a praticidade do dia-a-dia, é que se vai encontrar o não problematizado – resistência – no problematizado pelos cordelistas – a ditadura. A partir da dialética de leitura15, a poesia popular de Cordel explicitou-se como o meio de expressão mais perfeito, a linguagem, que, por sua vez como exteriorização, impulsionouse do belo (arte) em direção ao pensamento conceitual. Deste modo, na poesia, antologada na cordelteca sob o regime militar, expressando tanto o interior subjetivo como a particularidade da existência, veio suscitar uma intuição concreta. Contudo, ela não se dirige, pura e simplesmente, à intuição do sensível de uma exterioridade disponível, mas à intuição espiritual16. É neste sentido que, na poesia de Cordel, apresentam-se como material formador, em lugar do que é sensível (mármore, cor, som etc.), as próprias formas espirituais de modo 13 “A obra de um poeta é poética, mas seu dizer é livre, mais aberto ao imprevisto, mais pronto a aceitá-lo. E, mais puramente, também libera o que diz à atenção sempre mais assídua em aceitá-lo (o pensamento), maior é a distância entre o que é dito e a simples enunciação (HEIDEGGER, 1962, p. 65). 14 Neste sentido é que o método dialético constitui-se condutor de toda construção, objetivada no capítulo Dialética de leitura, permitindo quantificar o tematizado, mediado pelos indicadores fazendo o jogo dialético das palavras iluminadas pelas expressões significantes, possibilitando emergir o não-tematizado: resistência. A dialética é que possibilitou superar o positivismo dos dados para o fenômeno com o que é lido naquilo que é dado. 15 A dialética de leitura possibilitou tomar-se a cosmovisão, o comportamento, as estratégias e os meios autoritários e democráticos na tensão dialética dos opostos, para a síntese: a resistência (ver 4.5). 16 É claro, segundo Hegel, que as representações abstratas não podem ser expressas por relações abstratas, mas diferentes da música, devem receber “uma figura cunhada de aparência externa, o verso, para a intuição interior (HEGEL, 1944, p. 870-872). 255 que as representações e intuições devem, certamente, valer como seu conteúdo e, ao mesmo tempo, como seu material. É neste material, formador e formante de uma totalidade, onde as representações dos conceitos (vide nota 15) são participadas e tornadas compreensíveis, mediante os indicadores, para os outros que não são poetas. Não se trata de uma exterioridade arbitrária, mas plenificando-se de significado pela mediação das expressões significantes como Bem aventurados os pobres; Igreja, governo e nação; Negro comunismo; Direito da força (vide anexos) Constituindo os componentes autoritários de apoio à leitura dos percentuais, por exemplo, da cosmovisão elitista e manipuladora ou dos meios de corrupção e de morte17, superando o que pode parecer esgotar-se no positivismo. Quanto aos componentes democráticos, sob a mediação das expressões significantes como Movimento sindical; Unidade do oprimido Partido comunista Dom Helder Câmara (vide anexos), Constituindo os componentes democráticos de apoio à leitura dos percentuais, por exemplo, da cosmovisão popular e dialética ou dos meios de honestidade e de vitalização18, vão superando o estritamente quantitativo na direção do qualitativo, pelo dialético crescimento da poética popular, veiculando o progresso do pensamento democrático meio à repressão autoritária. 17 Citou-se apenas a cosmovisão autoritária e quatro itens como exemplo do que foi feito em todo o processo dialético de leitura (vide 4,1 e 4.4). 18 Citou-se apenas a cosmovisão democrática e quatro itens como exemplo do que foi feito em todo o processo de leitura (ver 4.1 e 4.4). 256 O imediatamente tematizado, ditadura militar, possibilitou na dialética dos opostos, componentes autoritários e componentes democráticos, a crescente consciência de postura e de resistência nos textos de Cordel no qual a linguagem rimada é o sistema de fala. A significação, dialeticamente conseguida, é aquela em que as sensações, intuições e representações19, alcançaram uma outra existência maior do que aquela que é imediatamente dada, porque trazida à aparência no elemento externo em oposição dialética20, possibilitando a experiência dialógica entre os poetas, porque os vocábulos são comuns e circulam em todos os folhetos, e entre poetas e leitores porque estes últimos, lendo, sabem-se, a si mesmos, mergulhados no mundo-da-vida, mediados pela linguagem originária21 do seu peculiar modo de existir: oprimidos resistindo. Resistir não é mais a postura solipsista do Cordel, mas expressão fática da racionalidade comunicativa habermasiana, culminando-se na unidade intersubjetiva de compreensão recíproca do saber participado, da confiança mútua e do acordo entre poetas e leitores resistindo à ditadura e, como escola popular, ensinando a resistir no processo de produção crescente do consenso sobre a base pressuposta de pretensões reconhecidas de validade22: compreensibilidade, verdade, veracidade e justeza. O comum pertencer a poetas de bancada e leitores, e a poetas violeiros e ouvintes, é que se nos aparece como escola de resistência à ditadura militar como lê-se nas estrofes seguintes de Feitosa Nunes (1978): 19 Sensações de medo, sangue, injustiça, arrocho, ordem, crimes, generais veiculadas por todos os indicadores autoritários de leitura (ver anexos). 20 Intuição de união, povo, justiça, luta, democracia, vida, greve veiculadas por todos os indicadores democráticos de leitura (ver anexos). 21 Linguagem ordinária, para Wittgenstein, é a língua-mãe explicitada e partilhada na conversa quotidiana de uma comunidade. Buscar compreender a língua-mãe (Cordel) na linguagem ordinária é buscar o sentido originário de tais palavras que não está na regulamentação lingüística, mas no jogo de linguagem feito no interior da forma-de-vida (WITTGENSTEIN, 1979, § 68). 22 Se esse fundamento normativo é posto em questão, a ação comunicativa não pode continuar. Os dados advindos da dialética de leitura sustentam a continuidade da Literatura de Cordel e sua resistência à ditadura militar entre 1964 a 1984 do século passado. 257 Na escola do Cordel Aprendi a aprender O que é a resistência Para se sobreviver. Aprendi compreender Com muita disposição A força da oposição Com saber e com ciência O que seja resistência Diante toda opressão Hoje nesta ditadura O povo sabe também Que na força da censura O Cordel não fala bem. Mas nossa cultura ten Poder de persuasão De fazer educação Com toda proficiência Do que seja resistência Diante toda opressão. É na história traçada Do Nordeste brasileiro Do poeta violeiro E da poesia rimada Que a luta é travada Com a poesia na não Contra toda escravidão Deste poder sem clemência No que seja resistência Diante toda opressão Aqui resiste operário Resiste o agricultor Estudante e professor A este poder temerário. Poesia é o temário Fazendo a educação Abrindo a libertação Nos versos da consciência Do que seja resistência Diante toda opressão23. Adequa-se aqui o plural majestário de afirmação: o Cordel também é uma resistência a Ditadura Militar! 23 Estrofes produzidas de improviso na cantoria na resistência de Dr. Pedro Mendes Ribeiro, dia 19 de agosto de 1978, período da realização do V Festival de Violeiros do Norte Nordeste, em Teresina. Nesta manhã de sábado, durante uma baionada para recepcionar os violeiros de fora, foi que gravamos esta cantoria e dela trouxemos estas estrofes de Feitosa Nunes quando cantava o mote com Severino Ferreira (já falecido). 258 CONSIDERAÇÕES O ideal de uma abordagem baseada no discurso para a compreensão de uma postura ética é uma comunidade moral cujas normas e práticas sejam plenamente aceitas por aqueles que a elas estão sujeitos. Esta comunidade forma uma sociedade baseada no acordo de todos os parceiros livres e iguais, da qual tenham sido expurgadas toda imposição e toda manipulação. A comunidade que se constituiu espaço para o “Cordel grito do oprimido”, foi aquela donde a imposição, a manipulação e a repressão ainda não haviam sido expurgadas, portanto, espaço não-tão-ideal para a abordagem tipificada acima. Contudo, espaço da incontestável presença da Literatura de Cordel como fenômeno contemporâneo à Ditadura Militar no Brasil entre 1964 a 1984, solidificando um contexto de repressão e autoritarismo. Assim sendo, é um mundo outro, que não o democrático, que se impõe. Daí poder dizer-se que, enquanto lidamos com problemas dos quais não podemos escapar, temos de pressupor, não só na fala como também na ação, um mundo objetivo que não foi construído por nós e que é, em grande parte, o mesmo para todos nós. Nele o que existem são as linguagens que inventamos a partir de diversos pontos de vista. E, dependendo das linguagens teóricas que escolhemos, pode haver descrições diferentes, capazes de se referir, porém, às mesmas coisas. Aí estão os folhetos de cordéis. Deste modo, o mundo não deve ser concebido como a totalidade dos fatos dependentes da linguagem, mas como a totalidade dos objetos. A esse conceito semântico de mundo como um sistema de referências possíveis corresponde o conceito epistemológico do mundo como a totalidade dos constrangimentos que se impõem implicitamente sobre as diversas maneira pelas quais podemos vir a saber o que está acontecendo no próprio mundo. A Literatura de Cordel é uma maneira pela qual saber-se-ia o que estava acontecendo no mundo delimitado acima. Em outros termos, o problema que se nos manifestou, e que alimentou todo o encaminhamento da pesquisa, foi questionar a Literatura de Cordel como cultura que, como 259 tal, é um fenômeno ambivalente: pode favorecer o ser humano ou prejudicá-lo, pode tecer a humanidade ou esfiapá-la, pode ser antropogenética ou antropofágica. Neste compreender, é equivocado pensar que todo produto cultural, no caso todos os cordéis, seja avanço humanizante. Daí a pergunta frontal: o discurso popular da Literatura de Cordel é uma resistência à ditadura militar entre 1964 a 1984 no Brasil? Para responder tal questionamento, trabalhamos mediados pelas categorias opressão, libertação, contradição e resistência sob o método dialético ora na contraposição dos opostos, ora detectando a evolução do nível de consciência, de luta e de resistência da Literatura de Cordel coletada e mostrada no capítulo cordelteca sob a Ditadura Militar. Desse contexto histórico e epistêmico, coerente com os dados computados, não é toda a Literatura de Cordel resistente à Ditadura Militar e, dentre os folhetos antologados, há uma oscilação de postura entre resistência e cooptação à opressão de modo que, em meio à tensão dialética da leitura, não podemos prescindir das seguintes constatações: - da Literatura de Cordel, posta ao lado da poesia-canção, constatamos uma fidelidade à forma-de-vida peculiar ao povo como espaço de produção e consumo do bem-poético, veiculando as dores e as aspirações profundas de libertação; - do universo da palavra-rimada, desde os gregos, passando pela poesia latina, portuguesa até a brasileira, verificamos uma leitura cordelina estabelecendo um vínculo de resistência ao autoritarismo ora exaltando, ora comentando as posturas revolucionárias do universo detectado e mediado pelas estrofes citadas; - dos dezessete folhetos antologados, todos do centro mesmo da ditadura, posicionando-se como grito do oprimido e como resistência mediante a simbologia do enfrentamento, enaltecendo a coragem dos líderes do povo e a força do próprio instrumento de luta: a poesia de Cordel. 260 Ancorados nos dados, não podemos negar que as reflexos sobre o golpe militar de 1964, e os vinte anos de ditadura, sejam tema central para entender nosso país, nossa realidade atual a partir da ótica do povo pela literatura popular. Aposto que a Literatura de Cordel até então não fora reestudada como expressão de resistência, acreditamos que, a partir do cruzamento de múltiplas expressões poéticas populares, seria possível compreender a postura ideológica dos produtores deste dado particular da cultura do povo enquanto expressão popular. O sentido descoberto, delineado e rimado pelos poetas populares não é apenas para si, mas para poder ser compartilhado, compreendido e aproveitado por outras pessoas e por quem valoriza a experiência política. Penetrando neste sentido, confirmamos o hipoteticamente dado: o discurso da Literatura de Cordel expressa resistência ao autoritarismo da Ditadura Militar no Brasil entre os anos 1964 a 1984. 261 REFERÊNCIAS ABBAGANNO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2 ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982. ABRANTES, Verneck et MEDEIROS, Irani. Belarmino de França: um trovador do Sertão. João Pessoa: Idéia, 2006. ACADEMINA BRASILEIRA DE LETRAS JURÍDICA. Dicionário Jurídico. 7 ed. 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DE POVO Povo - gente - camponês - operário - operários DE ASSOCIAÇÃO Povos - governados RACIAL Classes DO SABER Gerente - DE PESSOAS Acampamento DO SABER Fraternidade - sertão DICOTOMIZANTE Senhores - excelência - agitado - burguês - desigualdade POLARIZANTES Agitador - agita C O S M O V I S Ã O ELITISTA POPULAR DISCRIMINATÓRIA INTERACIONISTA MANIPULADORA universidade - coronel - barraco - barraca - classes - Light PRESERVAÇÃO DIALÉTICA DAS DIFERENÇAS Desigualdade - tristeza - burguês BUSCA DE SÍNTESE União - luta - sangue - terra - injustiça 279 C O M P O R T A M E N T O TEMAS ITENS SUB ITENS ELEITE DECIDE E MANDA DOGMÁTICO MASSA OBEDECE E CUMPRE NAS DECISÕES ENTRE LÍDERES DIÁLOGO E LIDERADOS CENTRALISMO MANIPULADOR SUBORDINANTE RECONHECIMENTO DAS CAPACIDADES FACILITADOR OPORTUNIDADE A TODOS EXALTANTE BAJULADOR DESTAQUE VITALIZA A DÚVIDA DE LIDERANÇA DEBATE E DISCUSSÃO DE PROPAGANDA PROSELITISTA EXPANSIONISTA FORMAÇÃO DA EDUCAÇÃO CONSCIÊNCIA CRÍTICA POLÍTICA AÇÕES COMUNITÁRIAS VOCÁBULOS INDICADORES - /arrocho – ordem – F M I – governante – cidade – brutalidade – Sarney - Sarnento - Respeitar - resignação - obrigação - Democracia - comando - vote - Companheiro - cumpanhêro - cooperativa - Ditadura - protetor - patrão - patrões - proprietário - usineiros - general - generais. - Escravo - escravos - crimes - pistoleiro - pistoleiros - política. - Líder - responsável - desemprego - injustiçado - injustiçados - Justiça - reunião - reuniões. - Vós-mincê - elogiar. - Magnatas - elogio - general - Democrata - confusão - Voto - sindicato(s) - Telefonema - telefonemas - Propriedade - multinacionais - grileiros - peelgagem - pelegage - Liberdade - governados - salário - salaro Sangue - sujeição - Greve - luta - tragédia - canto - servir - lavoura Tiradentes - Brizola - Brizzola. 280 TEMAS I TENS VOCÁBULOS INDICADORES PARENTES ADERENTES - Herdeiro - herdeiros - parente - compadre - cumpade - Classe - ricasso - amigo PESSOAL COMUNITÁRIA DE IDÉIAS DE LINGUAGEM RECONHECIMENTO DE PLURALIDADE PRESERVAÇÃO DAS IDENTIDADES POLÍTICO - Direito - direitos-valente - forte(s) - Indulto - iguais - igualitários - Lei - leis - proibição - Mentira - censura - denúncia PROMOÇÃO POR MÉRITO I A S NEPOTISMO SUB ITENS E S T R A T É G UNIFORMIZAÇÃO DIVERSIDADE FISIOLOGISMO CAPACITAÇÃO CENSURA LIBERDADE ECONÔMICO DOS IGUAUS DOS DIFERENTES DA AÇÃO DO DISCURSO DA AÇÃO DA PALAVRA - Partidos - representação - oposição - situação - Liderança - sertanejo - operário - agricultor - agricutô - Proteger - afilhado - poder - poderes - poderosos - Cruzado - explorador - esprorador - exploração - exploradores Gatilho - inflação - infração - truste - Trabalhador - trabalhadores - trabalhar - estudante Roceiros - agricultores - Classe - classes - crasse - sertanejo - setenejos governados - eleitor. - Ameaças - injustiça - arma - armas - Juiz - controle - maldade - Reuniões - revolução - agricultura - agricutura - Liberdade - discurso - discussão - fala 281 TEMAS ITENS CORUPÇÃO SUB ITENS VOCÁBULOS DAS PESSOAS DAS INSTITUIÇÕES - Suborno - fazendeiro - fazendeiros - corrupção - República - prefeitura - governo - trambique DAS PESSOAS - Margarida - responsável - honestidade - Comunidade - constituição - partido - responsáveis Igreja - eleição - Chibata - opressor - opressores - violência - prisão - Terror - terrorismo - fúria - infeliz - tortura - Camponês - esforço - floresta - Valente - perseguido - favela - Processado - grade - cadeia - Bomba - latifundiário - latifundiários - Comunista - camarada - sócio - sócios - sindicato Sindicá - enxada - ferramenta - Comunidade - companheiros - camponeses - sindicatos Enxadas - ferramentas. - Crime - guerra - tiro - revólveres - canhões - bala Fuzil - espada - metralhas - metralhadoras HONESTIDADE TORTURA M E I O S PRESERVAÇÃO EXÍLIO DAS INSTITUIÇÕES FÍSICA PSICOLÓGICA FÍSICA PSICOLÓGICA OSTRACISMO EXPULSÃO INCLUSÃO SOCIAL ENTRE INDIVÍDUOS MORTE ASSASSINATO ENTRE GRUPOS INDICADORES SUICÍDIO DA PESSOA VITALIZAÇÃO DOS GRUPOS E COMUNIDADE - Morador - consumidor - lavrador - lutador - redenção - respeito salvação - sofredor - sofredô - anistia - Movimento - movimentos - moradores - lavradores - partidos - lei Roça - roçado - leis - esperança 282 E X P R E S S Õ E S COMPONENTES DEMOCRÁTICOS COMPONENTES AUTORITÁRIOS TEMAS S I G N I F I C A N T E S - Bem aventurado os pobres. – Classe rica - Direito da força - José Sarnento. – Dragão da maldade. - Deus quer os homens assim - Repartição pública. – Governo dos generais - Ditadura fascista - Generais terroristas - Poder militarista - Governo incivil - Chibata da noite - Brasil pra frente - Negro comunismo - Dominar o povo - Igreja, governo e nação - Direitos humanos - Golpe de Estado - Leis-do-trabalhador - Mão-de-ferro - Movimento sindical - História de morte - Reforma Agrária - Trabalhador rural - Sem terra - Campanha trabalhista - Vida libertária - Bem comum - Forma de governo - Dom Helder - Padre Henrique - Vivência sindical - Vontade popular - Poeta do mato - Igreja dos pobres - Partido Comunista - Partido Operário - Povo unido - Governo popular - Classe operária - Pátria libertada - Povo pobre e sofrido - Povo oprimido - Unidade do oprimido