CURSO ORDEM JURÍDICA E MINISTÉRIO PÚBLICO O POSICIONAMENTO CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO ENTRE OS “PODERES” DO ESTADO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 Aluno: FRANKE JOSÉ SOARES ROSA BRASÍLIA 2009 2 FRANKE JOSÉ SOARES ROSA O POSICIONAMENTO CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO ENTRE OS “PODERES” DO ESTADO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 Monografia apresentada à Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, sob a orientação do Professor Paulo Gustavo Gonet Branco, como requisito parcial para a conclusão do Curso de Pós-Graduação lato sensu Ordem Jurídica e Ministério Público. BRASÍLIA 2009 3 RESUMO A Constituição da República de 1988 tratou o Ministério Público com riqueza inédita, o que acirrou no Brasil o debate a respeito da natureza jurídica do Ministério Público: enquanto alguns o consideram um órgão ligado ora ao Poder Executivo, ora ao Judiciário, outros tantos defendem constituir ele um “Quarto Poder” do Estado, ao lado daqueles explicitados na Constituição. O presente estudo visa analisar, com rigor científico, o posicionamento constitucional do Ministério Público entre os “Poderes” do Estado a partir da Constituição da República de 1988, inclusive o Ministério Público que atua junto ao Tribunal de Contas da União e, por simetria, os que oficiam perante os Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Palavras-chave: Monografia; Direito Constitucional; Ministério Público; Natureza Jurídica; Poderes do Estado; Funções do Estado; Quarto Poder. 4 SUMÁRIO Introdução .................................................................................................................................. 6 CAPÍTULO I – Viver em Sociedade: Função e Poder Político ..............................................11 1) Sociedades Políticas ..................................................................................................................... 11 2) Por que o homem vive em sociedade? ........................................................................................ 12 3) Função e Poder Políticos: Conceito, Surgimento e Desenvolvimento HistóricoErro! Indicador não definido. 3.1) O Poder Político nas Sociedades Remotas.............................................. Erro! Indicador não definido. 3.2) O Poder Político com o Surgimento do Estado Moderno ....................... Erro! Indicador não definido. 4) Exercício das Funções do Estado ............................................................................................... 22 Capítulo II – Da Separação Dos Poderes ................................................................................25 1) Diferença entre Distinção de Funções do Poder Político e Separação de Poderes ................ 25 2) Elementos Fundamentais da Separação de Poderes.......................Erro! Indicador não definido. 2.1) Critérios de distinção de Funções do Estado ........................................................................................ 29 3) A Teoria da Separação dos Poderes de Montesquieu............................................................... 33 3.1) O Contexto Histórico da Teoria de Montesquieu ................................................................................. 34 3.2) Montesquieu e a Tripartição dos Poderes em Sistema de Freios e Contrapesos ................................... 36 4) Poder Constituinte como Pressuposto da Teoria da Separação Dos Poderes ........................ 40 5) Sistema de Freios e Contrapesos: apenas uma das formas de Limitação do Poder .............. 41 6) O Princípio da Separação dos Poderes na Constituição Federal de 1988: Poder Político e Poder Constituinte........................................................................................................... 43 6.1) As Cláusulas Parâmetros do Princípio da Separação dos Poderes ........................................................ 44 6.1.1) A Independência e a Harmonia entre os Poderes................................. Erro! Indicador não definido. 6.1.2) A Cláusula da Indelegabilidade ......................................................................................................... 48 6.1.3) A Cláusula da Inacumulabilidade de Funções ................................... 4Erro! Indicador não definido. 6.2) Poder Legislativo .................................................................................. 5Erro! Indicador não definido. 6.2.1) A Atividade Legislativa ................................................................................................................ 51 6.2.2) A Atividade Fiscalizatória (Função Executiva) ............................ 5Erro! Indicador não definido. 6.3) Poder Executivo .................................................................................................................................... 56 6.4) Poder Judiciário .................................................................................................................................... 61 6.4.1) Princípio do Amplo Acesso ao Judiciário ..................................................................................... 63 6.4.2) Princípios da Imparcialidade e Inércia .......................................................................................... 67 6.5) Princípio da Separação dos Poderes como Cláusula Pétrea .................................................................. 69 Capítulo III – Do Ministério Público.......................................................................................70 1) Conceito ........................................................................................................................................ 70 2) Histórico ....................................................................................................................................... 71 2.1) Origens Remotas e Próximas do Ministério Público ............................................................................ 71 2.2) As Origens do Ministério Público Brasileiro e o seu Posicionamento Constitucional ......................... 73 3) Ministério Público na Constituição de 1988 .............................................................................. 76 3.1) Ministério Público: Instituição Permanente e Essencial à Função Jurisdicional do Estado (CF/88, Art. 127, caput, 1ª parte) ................................................................................................................ 77 3.2) O Ministério Público e a Defesa da Ordem Jurídica, do Regime Democrático e dos Interesses Sociais e Individuais Indisponíveis (CF/88, Art. 127, Caput, 2ª Parte) ....................................................... 79 3.2.1) A Defesa da Ordem Jurídica ......................................................................................................... 79 3.2.2) A Defesa do Regime Democrático................................................................................................ 81 3.2.3) Defesa dos Interesses Sociais e Individuais Indisponíveis ............................................................ 82 3.2.4) O Interesse Público Motivador da autação do Ministério Público: órgão agente e interveniente ............................................................................................................................................ 85 3.3) Princípios Institucionais do Ministério Público (CF/88, Art. 127, § 1º) ............................................... 86 5 3.3.1) Princípio da Unidade..................................................................................................................... 86 3.3.2) Princípio da Indivisibilidade ......................................................... 8Erro! Indicador não definido. 3.3.3) Princípio da Independência Funcional .......................................................................................... 88 3.3.4) Princípio do Promotor Natural ...................................................................................................... 89 3.4) Garantias e Vedações do Ministério Público ...................................................................................... 100 3.4.1) Garantias da Instituição: Autonomia Funcional, Administrativa e Financeira (CF/88, Art. 127, §§ 2º e 3º) ...................................................................................................................................... 100 3.4.2) Garantias dos Membros: Vitaliciedade, Inamovibilidade e Irredutibilidade de Subsídio (CF/88, Art. 129, § 5º, I) ....................................................................................................................... 103 3.4.3) Das Vedações (CF/88, Art. 128, § 5º, II) .................................................................................... 105 3.5) As Funções Institucionais do Ministério Público ............................................................................... 105 3.6) Do Ministério Público que atua junto ao Tribunal de Contas ............................................................. 108 3.7) O Ministério Público e os Elementos Fundamentais da Separação de Poderes11Erro! Indicador não definido. 3.7.1) O Ministério Público possui Especialização Funcional? 11Erro! Indicador não definido. 3.7.2) O Ministério Público possui Independência Orgânica? 118 Conclusão........................................................................................... Erro! Indicador não definido. Referências Bibliográficas ................................................................ Erro! Indicador não definido. 6 INTRODUÇÃO Algumas das funções até pouco tempo exercidas pelo Ministério Público se identificam, em certa medida, com as que eram atribuídas a antigos funcionários e magistrados, sendo alguns deles, por isso mesmo, freqüentemente apontados como a origem remota do Ministério Público.1 Prevalece, entretanto, o entendimento segundo o qual o Ministério Público – ao menos nos moldes mais próximos do que o conhecemos hoje - teria surgido na França. Quanto ao Ministério Público brasileiro, a sua origem direta é lusitana e as principais fontes citadas a respeito são as Ordenações Manuelinas e Filipinas2, estas últimas com período de vigência até maior no Brasil do que em Portugal. Em 1609, quando foi criada a Relação da Bahia, a função de Promotor de Justiça era atribuída ao Procurador da Coroa e da Fazenda, somente surgindo a institucionalização do Ministério Público brasileiro – e ainda assim de forma bastante incipiente - com advento do Decreto n. 848/1890 (que organizou a Justiça Federal) e do Decreto n. 1.030/1890 (que organizou a Justiça do Distrito Federal). O fato é que, a partir de então, o Ministério Público ganhou cada vez mais importância3: em que pese a Constituição Imperial de 1824 sequer o mencionar e a Constituição da República de 1891 se restringir à forma de escolha do Procurador-Geral da República (art. 58, § 2º)4, a institucionalização do Ministério Público foi constitucionalmente reconhecida já em 1934, até que, entremeio a outras disciplinas constitucionais, sobreviesse a Constituição da República de 1988 – hoje em vigor -, que o define como uma “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput). Conforme asseverou o Ministro Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal, a Constituição de 1988 tratou o Ministério Público com riqueza inédita, “seja sob o prisma da organização e da autonomia e independência da instituição em relação 1 MAZZILLI, Hugo Nigro, Regime Jurídico do Ministério Público. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 42 e 50. 2 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 47 3 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., pp. 55-57. 4 Idem, ibidem. 7 aos Poderes do Estado, seja sob o do estatuto básico das garantias e das atribuições de seus órgãos de atuação”5, de modo que, se consideradas as constituições anteriores, nenhuma instituição do Estado saíra tão fortalecida e prestigiada. Na Constituição de 1988 também houve a preocupação em transferir para outros órgãos estatais uma função tradicionalmente atribuída ao Ministério Público, qual seja, a defesa dos interesses secundários do Estado. Nesse contexto, chegou-se a acirrar no Brasil o debate a respeito da natureza jurídica do Ministério Público: enquanto alguns o consideram um órgão ligado ora ao Poder Executivo, ora ao Judiciário, outros tantos defendem constituir ele um “Quarto Poder” do Estado, ao lado daqueles explicitados na Constituição da República.6 Levantaram-se vozes recordando Alfredo Valadão, que em momento anterior chegara a afirmar que, “se Montesquieu tivesse escrito hoje o Espírito das Leis, por certo não seria tríplice, mas quádrupla, a Divisão dos Poderes”.7 O presente estudo visa justamente analisar, com rigor científico, o posicionamento constitucional do Ministério Público entre os “Poderes” do Estado a partir da Constituição da República de 1988. Cumpre ressaltar que, além do Ministério Público comum, a presente pesquisa tem como objeto o Ministério Público que atua junto ao Tribunal de Contas da União (art. 73, § 2º, I, da Constituição da República) e, por simetria, os que oficiam perante os Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.8 Justifica-se a pesquisa, uma vez que, embora a partir da Constituição da República de 1988 tenha surgido um novo Ministério Público brasileiro que, de um lado, rompe a sua tradição de defesa dos interesses secundários do Estado, e, de outro, 5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 147, janeiro de 1994, p. 129; 6 CF/88. “Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. 7 BRASIL. Tribunal de Justiça e Tribunal de Alçada de São Paulo. Revista dos Tribunais, v. 225, ano 43, julho de 1954, pp. 38-39. 8 Conforme será abordado mais adiante, embora constitua instituição própria, de feição constitucional, este Ministério Público especial está ligado ao respectivo Tribunal de Contas onde atuam seus membros, de tal forma que, a exemplo de muitas argüições de inconstitucionalidades propostas na Suprema Corte brasileira, é inválida a designação de membros de quaisquer Ministérios Públicos comuns para atuarem junto a Tribunais de Contas (cf., entre outros, o julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.068/MG, Relator Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 15/12/1999 e publicado no Diário de Justiça de 25/02/2000). 8 adquire um acréscimo significativo de poderes e garantias necessárias para a concretização da parcela substancial das funções políticas que lhe foram incumbidas, poucos trabalhos doutrinários se preocuparam em analisar especificamente se o Ministério Público poderia ser considerado efetivamente um “Quarto Poder” do Estado. Talvez seja intuitivo que, a rigor, cuida-se de uma questão de pouco relevo prático, mas parece inegável a sua utilidade científica, a começar pela circunstância de que há uma forte ligação desse Ministério Público com a vitória das idéias iluministas encampadas pela Revolução Francesa, entre as quais a defesa de um sistema de freios e contrapesos. No Brasil, notadamente a partir da Constituição de 1988, o Ministério Público surge como um dos atores fundamentais do sistema de freio e contrapesos adotado, reunindo parcela tão significativa da função política que, passados mais de vinte anos, os embates sobre os limites de seu poder de atuação ainda permanecem candentes. Daí que, ainda hoje se arrastem nos Tribunais, sobretudo na Suprema Corte, diversos processos nos quais se discutem questões basilares sobre o Ministério Público, de que é exemplo mais expressivo a questão quanto aos seus poderes de investigação criminal. De fato, questões dessa natureza tendem a ser pacificadas somente com o passar do tempo, até porque um Estado Democrático de Direito não é algo que simplesmente se proclama, mas algo que se constrói paulatinamente. O que não se pode por em dúvida é que, nesse processo contínuo de democratização, o Ministério Público tem exercido um papel de iniludível importância, e os estudos sobre o posicionamento constitucional do Ministério Público entre os “Poderes” do Estado somente tende a contribuir positivamente. O que se se propõe é estudar a idéia central da separação funcional do Poder Político e, com base em um dos principais critérios doutrinariamente apresentados, verificar se a Constituição da República vigente, ao dar um tratamento sui generis ao Ministério Público comum e ao Ministério Público especial, a) os erigiram à categoria de um “Quarto Poder”; b) os subordinaram a algum dos Poderes do Estado; c) apenas os vincularam a algum deles; ou, ainda, d) se os desvincularam de qualquer um dos Poderes do Estado. 9 Do debate acerca do tema proposto, concernente ao posicionamento constitucional do Ministério Público, emerge a vexata questio que constitui problema principal dessa pesquisa: a partir da Constituição da República de 1988 o Ministério Público pode ser considerado um “Quarto Poder” do Estado, ao lado dos “Poderes” Executivo, Legislativo e Judiciário? As seguintes hipóteses relativas a esta questão podem ser visualizadas: 1) Se independência orgânica e especialização funcional são elementos fundamentais do Poder, então o Ministério Público comum e o Ministério Público especial constituem um Quarto Poder do Estado; 2) Se a natureza jurídica da atividade do Ministério Público comum é executiva, então ele pertence ao Poder Executivo; 3) Se a natureza jurídica da atividade do Ministério Público especial, cujos membros atuam perante o Tribunal de Contas (CF/88, art. 130) é executiva, então ele pertence ao Poder Executivo; 4) Se o Ministério Público comum é instituição permanente e indispensável à função jurisdicional do Estado (CF/88, Art. 127, caput), então a supressão ou alteração das funções e garantias ministeriais fere o Princípio da Separação dos Poderes; 5) Se a supressão ou alteração substancial das funções constitucionais do Ministério Público comum fere o Princípio da Separação de Poderes, então essas funções e garantias constituem cláusulas pétreas; 6) Se o Ministério Público comum possui independência orgânica, então a questão de seu posicionamento constitucional é meramente teórica, de poucos efeitos dogmáticos-jurídicos; 7) Se o Ministério Público especial estabelece vínculos de subordinação com o Tribunal de Contas onde oficiam seus membros, então ele se vincula à respectiva Corte de Contas; 8) Se o Tribunal de Contas pertence ao Legislativo, então o Ministério Público especial também faz parte do Poder Legislativo; 9) Se existe Tribunal de Contas Municipais, então existe o Ministério Público especial municipal; Para testar essas hipóteses, a metodologia empregada será a pesquisa legal, doutrinária e jurisprudencial. A análise legal - pautada nos critérios hermenêuticas - dará enfoque à Constitucional da República de 1988, sem se descuidar da análise, sempre que necessária, da legislação infraconstitucional pertinente. 10 A pesquisa doutrinária se primará pela consulta direta aos textos, evitando-se, tanto quanto possível, as chamadas “citações indiretas”. Para tanto, recorrer-se-á não só aos principais clássicos da literatura política e jurídica que tratam do tema, como aos textos modernos, sem se descuidar dos aspectos históricos pertinentes a cada tópico.9 Assevere-se, por fim, que o trabalho será estruturado em três capítulos: o primeiro versará sobre a Função e Poder Políticos, cujos conceitos são a base desta pesquisa; o segundo capítulo tratará da Separação de Poderes, buscando os elementos fundamentais que qualificam um órgão ou conjunto de órgãos como “Poder do Estado”; no terceiro e último capítulo será analisado o Ministério Público comum, notadamente o seu regime jurídico básico e a feição institucional do Ministério Público especial, dando-se ênfase às disposições constitucionais em vigor, bem como a interpretação destas pelo Supremo Tribunal Federal. 9 Nas ciências sociais de um modo geral, e no Direito de um modo particular, o estudo dos aspectos históricos possui uma importância significativa, seja porque o Direito tem campo de observação limitado aos fenômenos espontâneos, seja porque essa postura auxilia sobremaneira a compreensão do assunto. José Carlos Moreira Alves, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, ao discorrer sobre a utilidade do estudo atual do direito romano, enquanto instrumento de educação jurídica, nos trás a seguinte lição, válida para todo estudante que pretende aprofundar-se no estudo das ciências sociais e, por conseguinte, no do Direito: “Nas ciências sociais, ao contrário do que ocorre nas físicas, o estudioso não pode provocar fenômenos para estudar as suas conseqüências. É obvio que não se pratica um crime nem se celebra um contrato apenas para se lhe examinarem os efeitos. Portanto, quem se dedica às ciências sociais tem o seu campo de observação restrito aos fenômenos espontâneos, e o estudo destes, na atualidade, se completa com o dos ocorridos no passado. É por isso que, se o químico, para bem exercer sua profissão, não necessita de conhecer a histórica da química, o mesmo não sucede com o jurista” (ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Vol. 1: História do Direito Romano – Instituições de Direito Romano, parte geral e especial: direito das coisas. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, p. 14). 11 CAPÍTULO I VIVER EM SOCIEDADE: FUNÇÃO E PODER POLÍTICOS 1) SOCIEDADES POLÍTICAS Num sentido bem amplo, ou seja, sem distinção quanto aos seus integrantes ou suas finalidades, entende-se por sociedade todo “agrupamento de seres que vivem em estado gregário”10. Interessa-nos, entretanto, considerado o objetivo específico da presente pesquisa, o conceito - bem mais restrito - do que se entende por sociedades políticas, que consiste no agrupamento de seres humanos para fins gerais11. DALMO DE ABREU DALLARI, levando em conta este aspecto finalístico, sustenta que o traço característico dos agrupamentos humanos que os qualifica como sociedades é a realização de atividades ordenadas que, submetidas a um poder, busca um fim próprio. DALLARI, após afirmar que esta finalidade social, globalmente considerada, é o bem comum, tece as seguintes considerações: “Em linguagem mais direta, e considerando as respectivas finalidades, podemos distinguir duas espécies de sociedades, que são: a) sociedades de fins particulares, quando têm finalidade definida, voluntariamente escolhidas por seus membros (...) e b) sociedades de fins gerais, cujo objetivo, indefinido e genérico, é criar as condições necessárias para que os indivíduos e as demais sociedades que nela se integram consigam atingir seus fins particulares (...) As sociedades de fins gerais são comumente denominadas sociedades políticas, exatamente porque não se prendem a um objetivo 10 AURÉLIO, Buarque de Holanda Ferreira. Dicionário Aurélio Eletrônico. Versão 2.0. Autor do software Márcio Ellery Girão Barroso. São Paulo: Fronteira, 1997 11 Ficam excluídas desse conceito, por exemplo, as sociedades compostas de animais irracionais, bem como as sociedades de pessoas com fins determinados, como a sociedade comercial. 12 determinado e não se restringem a setores limitados de atividades humanas, buscando, em lugar disso, integrar todas as atividades sociais que ocorrem no seu âmbito. (...) Entre as sociedades políticas, a que atinge um círculo mais restrito de pessoas é a família, que é um fenômeno universal. Além dela existem ou existiriam muitas espécies de sociedades políticas, localizadas no tempo e no espaço, como as tribos e clãs. Mas a sociedade política de maior importância, por sua capacidade de influir e condicionar, bem 12 como por sua amplitude, é o Estado (...)” . Acrescente-se que, embora este ainda seja um conceito relativamente amplo, sempre que aqui se falar em sociedade, estas compreenderão, como gênero, todas as sociedades políticas, cujas espécies são as mais variadas formas já existentes de associações humanas de fins gerais. 2) POR QUE O HOMEM VIVE EM SOCIEDADE? Há uma razão específica que teria levado o homem a viver em sociedade? Sem embargo dos que sustentam que o motivo pelo qual o homem passou a viver em sociedade se perdeu em suas origens13, destacam-se duas correntes que procuraram enfrentar a questão, que há milhares de anos intriga a todos: a) Teoria do Impulso Associativo Natural (corrente dominante) e b) Teoria Contratualista . A Teoria do Impulso Associativo Natural possui como principais defensores ARISTÓTELES, CÍCERO, SANTO TOMÁS DE AQUINO e RANELLETTI, que sustentam que a sociedade é uma necessidade natural, ou seja, uma condição essencial de vida14. De fato, o autor de A Política foi quem inicialmente sustentou que a sociabilidade é qualidade imanente do homem (zoom politikon). Em suas palavras, o homem é “um animal cívico, mais social do que as abelhas e os outros animais que 12 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, pp. 39-41 13 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 3. 14 FRIEDE, Reis. Curso de Teoria Geral do Estado. Teoria Constitucional e Relações Internacionais. São Paulo: Forense Universitária, 2000, p. 2 13 vivem juntos”, de tal modo que, “aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto”15. Para ARISTÓTELES as qualidades e características humanas somente surgem quando o homem vive em sociedade, pois é se vendo diante de seu semelhante que ele passa a ter consciência de sua qualidade humana. Nesse sentido aparecem em Roma (séc. I a. C) as idéias de CÍCERO e, na idade medieval, as de SÃO TOMÁS DE AQUINO16. Aliás, vale ressaltar que SÃO TOMÁS DE AQUINO visualizava apenas três casos em que o homem poderia viver isolado dos demais: a) caso da natureza excelsa (excellentia naturae), ou seja, o do indivíduo dotado de natureza divina, vivendo em comunhão com a própria divindade, como Jesus em seu retiro no deserto; b) caso de natureza doentia (corruptio naturae) doenças que impediriam o convívio social, tais como as esquizofrênicas; e c) caso da má sorte (mala fortuna), ou seja, de acidentes, como, por exemplo, um naufrágio ou queda de uma aeronave.17 Modernamente, a doutrina de ORESTE RANELLETTI sustenta que há uma necessidade natural que conduz o homem à vida gregária, ao lecionar que: “(...) só na convivência e com a cooperação dos semelhantes o homem pode beneficiar-se das energias, dos conhecimentos, da produção e da experiência dos outros, acumulados através de gerações, obtendo assim os meios necessários para que possa atingir os fins de sua existência, desenvolvendo todo o seu potencial de aperfeiçoamento, no campo intelectual, moral e técnico”.18 Vale mencionar, a título exemplificativo, as teorias matriarcal e patriarcal, espécies da Teoria Familiar e baseadas na Teoria do Impulso Natural, que defendem qual teria sido a primeira espécie de formação social. A teoria matriarcal sustenta que o primeiro estágio da evolução social teria sido a horda, comunidade extremamente rudimentar, caracterizada pelo nomadismo, pela 15 ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 05. 16 FRIEDE, Reis. Curso de Teoria Geral do Estado. Teoria Constitucional e Relações Internacionais. São Paulo: Forense Universitária, 2000, p. 2. 17 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, I, XCVI, 4 apud ACQUAVIVA, Marcus Cládio, op. cit., p. 1301. 18 RANELLETTI, ORESTE. Instituzioni di Diritto Pubblico, apud FRIEDE, Reis, op. cit., p. 3. 14 “promiscuidade sexual” e pela ausência de comando institucionalizado, onde o reconhecimento de vínculos de parentesco constituiria uma fase muitíssimo posterior ao seu aparecimento, sendo principal conotação de tais vínculos a filiação materna, uterina, enfim (mater semper certa est)19. Para os adeptos da teoria patriarcal, a seu turno, a célula social primeira teria sido a família, grupamento cujos componentes são aparentados pelo sangue e cuja autoridade máxima é confiada a um chefe varão. A própria origem do Estado estaria na união de diversas famílias, após sucessivas fases de transformação: gens – tribos – nação - Estado20. Assim também pensa FRIEDE, para quem a identidade entre duas pessoas fez com que nascesse um “liame evolutivo natural, no qual a Sociedade, como agrupamento humano, deixa de auferir esta condição básica para traduzir agrupamentos mais complexos, numa escala natural: Sociedade Simples, Sociedade Complexa, Nação e Estado”21. Ainda nas lições desse autor, a identidade natural que compele o homem a aproximar-se de outros é, num primeiro momento, de vínculos comuns, tais como a identidade racial (independe de uma mínima convivência) e, num segundo momento, já estabelecida uma certa convivência, identidades lingüísticas, religiosas (de crenças) etc22. Portanto, para a Teoria do Impulso Natural, o homem possui como característica ou qualidade imanente a sociabilidade, que o compele à formação de vínculos sociais. A Teoria Contratualista, por sua vez, sustenta que são fatores provocados e externos ao homem que o levam a viver em sociedade, ou seja, os vínculos sociais não surgiram por um impulso natural. Possui como principais defensores PLATÃO, THOMAS HOMAS MOORE, TOMMASO CAMPANELLA, THOMAS HOBBES e ROUSSEAU23. DARCY 19 ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro Acquaviva. 7ª edição. São Paulo: Jurídica Brasileira, 1995, p.1107. 20 Idem, ibidem. ARISTÓTELES, de forma semelhante à teoria patriarcal, reconhece a família como principal sociedade natural, sem, contudo, a qualificar como a primeira delas. ARISTÓTELES. A Política, op. cit., pp. 3/4. 21 FRIEDE, Reis, op. cit., p. 14. 22 FRIEDE, Reis, op. cit., p. 4. 23 FRIEDE, Reis, op. cit., p. 3 15 AZAMBUJA acrescenta ainda os nomes de SPINOSA, GROTIUS, PUFFENDORF, TOMASIUS e LOCKE24. Veja-se, por exemplo, THOMAS HOBBES, para quem o homem, em seu estado natural, não pode viver em sociedade. Segundo seu pensamento, o homem é lobo do homem, sendo o contrato social a única forma de possibilitar a vida em sociedade. Cabe ao Estado, de um lado, a tarefa de evitar a morte violenta de seus membros e, a estes, de outro, se submeterem ao poder absoluto e despótico do Estado. Assim, entende ele que o homem é um ser anti-social e que vive em grupo apenas por necessidade, ou seja, a sociabilidade seria um fator extrínseco e impositivo.25 Nesta mesma linha contratualista, AZAMBUJA leciona que para LOCKE o contrato baseava-se, diversamente, no consentimento de todos, que desejavam criar um órgão para fazer justiça e manter a paz, enquanto para TOMASIUS a causa do contrato é o amor nacional. Já para ROUSSEAU, o contrato deve ter sido geral, unânime e baseado na igualdade dos homens, de tal forma que a “associação defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, no entanto, senão a si mesmo e permaneça livre como antes”26. Assim, a resposta para qual teria sido o motivo que levou o homem a viver em sociedade depende da teoria que se adote. De qualquer forma, seja considerando esse motivo como uma característica humana que o impulsiona naturalmente ao convívio social (teoria do impulso natural), seja entendendo que a vida em sociedade é determinada por fatores exógenos (teoria contratualista), para esse estudo importa especialmente a constatação histórica do homem viver em sociedade desde quando se tem notícia, por motivos que, de fato, constituem interesses comuns a todos e a cada um em particular27. 24 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 36ª ed., São Paulo: Globo, 1997, p. 99 Thomas Hobbes (1588-1679) defendia que o homem é um ser anti-social por natureza e dizia que “o homem é lobo do homem” (homo homini lupus). A vida social somente se dava por exclusiva necessidade e requeria um aparato gigantesco para que a ordem fosse imposta: o Estado, que denominava “Leviatã”, palavra bíblica referente a um monstro mitológico que habitava o rio Nilo e que devorava as populações ribeirinhas. (ACQUAVIVA, Marcus Cláudio, op. cit., p. 1108). 26 AZAMBUJA, Darcy, op. cit., pp. 99 e 100 27 A este respeito também nos trás uma lição ARISTÓTELES, para quem a razão de vivermos juntos, mesmo que não se tratasse de uma necessidade, estaria no interesse comum de, unidos, vivermos melhor. Para ele, este é o nosso fim principal, comum a todos e a cada um em particular (ARISTÓTELES, op. cit., p. 53). 25 16 3) FUNÇÃO E PODER POLÍTICOS: CONCEITO, SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO Função política é o conjunto de atividades necessárias para a condução da vida social, sendo que essas atividades, de modo geral, diversificaram-se à medida que as sociedades tornaram-se cada vez mais complexas. Já o poder político, conforme lição de CELSO RIBEIRO BASTOS, é a autoridade necessária em qualquer organização ou sociedade para tornar possível realizar os fins sociais exigidos.28 Como se vê, função e poder políticos são faces de uma mesma moeda, uma vez que, para o cumprimento da função política é imprescindível, em contrapartida, o poder político, que é a autoridade capaz de interferir nas relações sociais. Em outras palavras, as sociedades políticas possuem fins gerais que se traduzem, de uma maneira global e moderna, na realização do bem comum, que se busca alcançar por meio de um conjunto de atividades (função política), que somente podem ser desempenhadas se existente uma autoridade capaz de interferir, de modo decisivo, nas relações sociais (poder político). Eis, inclusive, a distinção entre finalidade, função política e poder político. Daí também se pode extrair que é a partir do momento em que se formam os primeiros vínculos sociais que se diz que surgem função e poder políticos, pois desde então será necessária a condução daquela espécie de sociedade que se formou29. 28 BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., p. 14. Para HOBBES, conforme exemplo anteriormente citado, a função política do Estado era evitar a morte violenta e, para tanto, gozava de uma autoridade absoluta. 29 Se função e poder políticos surgem quando aparecem os vínculos sociais, caso se considere, por exemplo, que estes vínculos já existiam para os adeptos da teoria matriarcal ou patriarcal, desde então existirão a função e poder políticos. O ponto de toque da questão é saber que a função e poder políticos surgem concomitantemente com os vínculos sociais, seja entendendo que estes vínculos foram determinados por um impulso natural ou por fatores externos, seja adotando-se as espécies de teoria familiar ou não. 17 Cumpre asseverar que o poder político, embora de característica instrumental, nem sempre foi assim compreendido ou legitimamente invocado por quem o detinha. Aliás, sob o aspecto do desenvolvimento histórico do poder político, parece necessário divisar as sociedades em pelo menos dois momentos: as sociedades remotas e o surgimento do Estado Moderno. É o que se fará adiante, em brevíssimas linhas. 3.1) O PODER POLÍTICO NAS SOCIEDADES REMOTAS O poder político nas sociedades remotas, num primeiro momento, era exercido transitoriamente através da imposição ou escolha de um líder, um chefe que se destacasse de alguma forma para exercer a autoridade na condução da vida social. Inicialmente, era líder aquele que possuísse qualidades úteis ao grupo social, tal como a força, habilidade, inteligência, experiência etc., especialmente pelo fato de, nos tempos remotos, o modo de sobrevivência ser bastante rudimentar. Se em certo momento histórico esse líder possuía o poder de direção do grupo social em caráter transitório, numa fase posterior, aquele que detinha o poder político passou a consolidá-lo. Conforme leciona ACQUAVIVA, “quando [o chefe] morresse, sua posição seria imediatamente ocupada por outro, institucionalizando-se o poder após a sua individualização, com a aquiescência expressa ou tácita do grupo social”30. Destarte, a função política sempre se manifestou de alguma forma no meio social, sem que, contudo, nas sociedades mais remotas, o poder político necessário para exercer esta função fosse institucionalizado31. Num momento posterior o líder passou a consolidar o exercício da função política e o grupo social passou a reconhecer o seu poder político correlato, quando, aí sim, este foi institucionalizado. Luiz Roberto Barroso sintetiza: 30 31 ACQUAVIVA, Marcus Cládio, op. cit., p. 1106. Este é o caso, por exemplo, daqueles que adotam a Teoria Matriarcal. 18 No princípio era a força. Cada um por si. Depois vieram a família, as tribos, a sociedade primitiva. Os mitos e os deuses – múltiplos, ameaçadores, vingativos. Os líderes religiosos tornam-se chefes absolutos. Antiguidade profunda, pré-bíblica, época de sacrifícios humanos, guerras, perseguições, escravidão. Na noite dos tempos, acendem-se as primeiras luzes: surgem as leis, inicialmente morais, depois jurídicas. Regras de conduta que reprimem os instintos, a barbárie, disciplinam as relações pessoais e, claro, protegem a propriedade. Tem início o processo civilizatório. Uma aventura errante, longa, inacabada. Uma história sem fim.32 3.2) O PODER POLÍTICO COM O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO O que se denomina Estado Moderno, todavia, surge num dado momento desse processo civilizatório sem fim, quando o poder político institucionalizado, necessário para o exercício da função política, ganha uma característica peculiar num dado território: a de soberania. A doutrina, como sói de acontecer, também não é uníssona quanto a acepção do termo Estado, principalmente pelo fato de surgirem correntes em vários campos do conhecimento que tentaram defini-lo. Sobrelevam importância, todavia, os aspectos políticos, administrativos e jurídicos, que FRIEDE condensa e integra ao conceito de Estado, para defini-lo como “a organização político-administrativo-jurídica do grupo social que ocupa um território fixo, possui um povo e está submetido a uma soberania”33. Assim, apegando-se aos seus elementos, pode-se dizer que surge o Estado, na acepção moderna, no momento em que um povo, num território seu, passa a ter um poder político soberano. 32 BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 3. 33 FRIEDE, Reis, op. cit., pp. 8 e 9. 19 Com efeito, as formas de organização social anteriores a este período - tal como as polis gregas, o Império Romano, as unidades de poder da Idade Média espalhadas pela Europa - chegaram a desenvolver, com certa densidade, algumas instituições políticas e idéias que ainda hoje presentes, mas não constituíam o que se entende por Estado Moderno, já que, embora institucionalizadas, o poder político não era soberano, não se admitindo, nalguns casos, a ingerência do Poder Político nas relações interpessoais. A expressão Estado Moderno, portanto, é utilizada para diferenciar de outras formas de organizações sociais do ocidente existentes antes do século XVI. A este respeito cabe uma observação de GONZALEZ CASANOVA: “(...) O Estado, portanto, é uma formação social histórica, organizada como unidade política, que tem traços estruturais característicos e que se vai constituindo a partir da sociedade européia ocidental dos séculos XIII e XIV. Falar, pois, de Estado Moderno é uma redundância, já que, por definição, o Estado é a forma de organização política da modernidade, se por ela entendermos a época histórica que se inicia no pré-Renascimento”.34 Por isso que, quando se falar em Estado Moderno, quer se expressar uma modalidade específica de organização social, cujo traço característico é a concentração do poder político soberano. Visualiza-se, assim, um marco histórico que divide as sociedades em antes e depois da concentração soberana do poder político. Se o poder político sempre existiu como necessidade premente para o exercício da função política, mesmo que, nas sociedades remotas, ainda fosse difundido, sua crescente autonomia foi surgindo com progressivas centralizações, até se tornar soberano em um dado território, dando origem ao que se denomina Estado Moderno. MIGUEL REALE resume este pensamento ao dizer que a história do Estado Moderno é, de forma especial, uma história de integrações crescentes e de progressivas reduções à unidade. Para este autor o Estado Moderno nasceu quando um povo, com poder que, pela força e pelo direito, se organizou para a sua independência e de seu território, surgindo a soberania como expressão de uma nova unidade cultural, indicando a forma especial que o Poder assume quando um povo alcança um grau de 34 CASANOVA, Gonzalez. Teoria del estado e derecho constitucional, apud BASTOS, Celso Ribeiro. op. cit., p. 10. 20 integração correspondente ao Estado Nacional. E finaliza dizendo que soberania caracterizava o Estado Moderno, como a autarquia havia caracterizado a polis e a civitas, e a autonomia havia sido o elemento distintivo das comunas medievais.35 Luiz Roberto Barroso condensa em breves linhas todo um período a partir do século V, especificamente da queda do Império Romano, foram surgindo diversas formas de organização social, até o surgimento do Estado moderno, com o seu traço característico da soberania, que lhe permitiu se afirmar, inclusive, sobre o feudalismo, a Igreja e o Império romano-germânico, verbis: Nos séculos imediatamente posteriores à queda do Império Romano, em 476, a Antiguidade Clássica defrontou-se com três sucessores: o Império Bizantino, continuação reduzida do Império Romano, com imperador e direito romanos; as tribos germânicas invasoras, que se impuseram sobre a cristandade latina; e o mundo árabe do Islã, que se expandiu a partir da Ásia, via África do Norte. Pelo milênio seguinte à derrota de Roma, os povos da Europa integravam uma grande multiplicidade de principados locais autônomos. Os únicos poderes que invocaram autoridade mais ampla eram a Igreja Católica e, a partir do século X, o Sagrado Império Romano-germânico. A atomização do mando político marcou o período feudal, no qual as relações de poder se estabeleciam entre o dono da terra e seus vassalos, restando autoridade mínima para o rei, duques e condes. Já pela alta Idade Média e por conta de fatores diversos – que incluem a reação à anarquia da pluralidade de poderes e a revitalização do comércio -, começa esboçar-se o processo de concentração do poder que levaria à formação dos Estados nacionais como organização política superadora dos modelos muito amplos e difusos (papados, império) e dos muito reduzidos e paroquiais (tribos, feudos). O Estado moderno surge no início do século XVI, ao final da Idade Média, sobre as ruínas do feudalismo. Nasce absolutista, por circunstância e necessidade, com seus monarcas ungidos por direito divino. O poder secular liberta-se progressivamente do poder religioso, mas sem lhe desprezar o potencial de legitimação. Soberania 35 REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 42 a 44. 21 é o conceito da hora, concebida como absoluta e indivisível, atributo essencial do poder estatal. Dela derivam as idéias de supremacia interna e independência externa, essenciais à afirmação do Estado nacional sobre os senhores feudais, no plano doméstico, e sobre a Igreja e o Império (romano-germânico), no plano internacional. Com Jean Bodin e Hobbes, a soberania tem seu centro de gravidade no monarca. Com Locke e a Revolução Inglesa, ela se transfere para o Parlamento. Com Rousessau e as Revoluções Francesa e Americana, o poder soberano passa nominalmente para o povo, uma abstração aristocrático-burguesa que, com o tempo, iria democratizar-se. 36 Cumpre, entretanto, fazer uma observação: o fato de existir o poder político soberano, antes de excluir, pressupõe a existência de outros poderes sociais subordinados, tais como o poder econômico, o poder religioso, o poder sindical, o poder familiar, entre outros.37 A este respeito, vale transcrever as seguintes lições de JOSÉ AFONSO DA SILVA: “(...) o poder político é superior a todos os outros poderes sociais, os quais reconhece, rege e domina, visando ordenar as relações entre esses grupos e os indivíduos entre si reciprocamente, de maneira a manter o mínimo de ordem e estimular um máximo de progresso à vista do bem comum. Essa superioridade do poder político caracteriza a soberania do Estado (...), que implica, a um tempo, independência em confronto com todos os poderes exteriores à sociedade estatal (soberania externa) e supremacia sobre todos os poderes sociais interiores à mesma sociedade estatal (soberania interna)”.38 Em suma, da noção antes expendida de poder político, se acresce, com o surgimento do Estado Moderno, o traço de soberania, que o qualifica como a potência ou força capaz de conduzir a vida social, sobrepondo-se a qualquer outra manifestação de poder, seja pela coação, seja pelo respeito dos membros da sociedade. Assim que 36 BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 8/10. 37 BASTOS afirma que “o poder político não é outro senão aquele exercido no Estado e pelo Estado. Há inegavelmente algumas notas individualizadoras do poder estatal. A que chama mais atenção é a supremacia deste poder do Estado sobre todos os demais que se encontram no seu âmbito jurídico. A criação do Estado não implica a eliminação desses outros poderes sociais: o poder econômico, o poder religioso, o poder sindical etc. Todos eles continuam vivos na organização política. Acontece, entretanto, que esses poderes não podem exercer a coerção máxima, vale dizer, a invocação da força física por autoridade própria. Eles terão, sempre, de chamar em seu socorro o Estado. Nessa medida são poderes subordinados” (BASTOS, Celso Ribeiro. op. cit., p. 14). 38 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 111. 22 MAQUIAVEL, o primeiro a indicar a essência do Estado Moderno39, apontava duas opções ao príncipe: ou se conduz pelo amor ou pelo temor.40 Ressalte-se, por fim, que, nos Estados democráticos, o poder político somente é legítimo quando invocado em benefício do povo. 4) EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES DO ESTADO Da clássica lição de ARISTÓTELES, para quem “o governo é o exercício do poder supremo do Estado”41, cabe reiterar a observação de que a razão de ser do poder político está na própria necessidade de se exercer a função política. Por isso, enquanto o poder político é potência, governar é ação, exercício da função política42, tudo em busca daqueles fins gerais que qualificam o agrupamento de pessoas como sociedades. Mas através de quem se exercerá as funções do Estado? A resposta a esta questão é dada por PAULO CÉZAR PINHEIRO CARNEIRO, para quem “(...) as funções do Estado são exercidas através de seus órgãos, que são os 39 Apesar de não dar propriamente uma definição à palavra Estado, MAQUIAVEL foi o primeiro a compendia-la, demonstrando sua essência. Diz este renomado autor no intróito de O Príncipe: “Todos os Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridades sobre os Homens, foram e são ou repúblicas ou principados” (grifo nosso) MAQUIAVEL. MACHIAVELLI, Nícoló Di Bernardo Dei. O Príncipe. Tradução de Roberto Grassi. 12ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 5. 40 MAQUIAVEL, que viveu longe do espírito democrático de nossos dias, indaga se, para o príncipe manter unidos e leais seus súditos, “(...) é melhor ser amado que temido ou o contrário. A resposta [diz Maquiavel] é de que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado. Isso porque dos homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, desde que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando esta se avizinha, porém, revoltam-se (...) e os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que se faça amar do que a quem se faça temer (...) [o príncipe] deve apenas empenhar-se em fugir ao ódio (...)”. MAQUIAVEL. MACHIAVELLI, Nícoló Di Bernardo Dei, op. cit., pp. 95/98. 41 ARISTÓTELES, op. cit., p. 105. 42 ACQUAVIVA sustenta que “(..) O poder é potência, o governo é ação. Quem exerce ativa o poder, governa, enfim. Os governantes são a encarnação do poder. A própria etimologia da palavra governo (do latim: conduzir, dirigir, administrar) transmite-nos esta idéia” (ACQUAVIVA, Marcus Cládio, op. cit., p. 1106). 23 instrumentos dos quais o Estado se vale para este fim” e que “funcionam como verdadeiros centros de competência para o desempenho de suas funções estatais”.43 Dito de outra forma, o órgão estatal exerce em nome do Estado uma parcela da função política, denominada, em sentido amplo, competência (atribuição)44, de tal forma que, a rigor, quem está agindo é o próprio Estado. Entretanto, o Estado e os órgãos que o compõem não possuem vida própria, são, por si sós, inanimados, ou seja, quem lhes dá vida são as pessoas (agentes). Eis o motivo pelo qual PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO alerta para a importância em distinguir “o órgão do cargo, e este do agente que o ocupa”.45 Essa distinção também é feita por HELY LOPES MEIRELLES, verbis: “(...) ÓRGÃOS PÚBLICOS são centros de competência instituídos para o desempenho de funções estatais, através de seus agentes, cuja atuação é imputada à pessoa jurídica a que pertencem. São unidades de ação com atribuições específicas na organização estatal. (...) para a eficiente realização de suas funções cada órgão é investido de determinada competência, redistribuída entre seus cargos, com a correspondente parcela de poder necessária ao exercício funcional de seus agentes (...) assim, os órgãos do Estado são o próprio Estado compartimentado em centros de competência, destinados ao melhor desempenho das funções estatais. Por sua vez, a vontade psíquica do agente (pessoa física) expressa a vontade do órgão, que é a vontade do Estado, do Governo e da Administração (...) AGENTES PÚBLICOS são todas as pessoas físicas incumbidas, definitiva ou transitoriamente, do exercício de alguma função estatal (...) CARGOS (...) são apenas os lugares criados no órgão para serem providos por agentes que exercerão as suas funções na forma legal. O cargo é lotado no órgão e o agente é investido no cargo”.46 (destaques nossos) Portanto, o Estado, responsável pela função política geral, se manifesta através de seus órgãos, responsáveis por parcelas dessa função política. Os cargos são ocupados 43 CARNEIRO, Paulo Cezar Carneiro. O Ministério Público no Processo Civil e Penal. Promotor Natural Atribuição e Conflito. 6ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 4 44 ACQUAVIVA define competência, em sentido estrito, como sendo “o alcance da jurisdição de um magistrado. É o âmbito de seu poder de dizer o direito. Por isso, um juiz competente para causas trabalhistas poderá não ser competente para questões penais, não porque ele não conheça direito penal, mas porque a lei estabelece que o juiz não pode invadir a competência, o raio de ação de outro” (ACQUAVIVA, Marcus Cláudio, op. cit., p. 342). Tecnicamente, portanto, já que o termo “competência”, nesse contexto, ficou reservado ao Judiciário, fala-se que o Ministério Público possui atribuição. 45 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 5. 46 MEIRELLES, Helly Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26ª edição. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 62-71. 24 por pessoas, denominadas agentes públicos, que, quando agem, são os próprios órgãos e, em última análise, o próprio Estado quem está agindo. 25 CAPÍTULO II DA SEPARAÇÃO DOS PODERES 1) DIFERENÇA ENTRE DISTINÇÃO DE FUNÇÕES DO PODER POLÍTICO E SEPARAÇÃO DE PODERES Primeiramente, deve-se assinalar que, exclusivamente sob o aspecto técnicojurídico, não seria correto utilizar o termo “separação de poderes”. De fato, o que se pode distinguir e separar são as categorias de funções do Poder Político, uma vez que, com o surgimento do Estado Moderno, o Poder Político passou a ser compreendido com as características da unidade, da soberania e da conseqüente indivisibilidade.47 De outro lado, deve-se deixar bem clara uma diferença elementar, sob pena de comprometimento da busca pela resposta ao problema proposto no presente estudo: não se pode confundir distinção de funções do poder político com o que comumente se denomina separação de poderes. A este propósito, alerta JOSÉ AFONSO DA SILVA que: “Cumpre, em primeiro lugar, não confundir distinção de funções do poder com divisão ou separação de poderes, embora entre ambas haja uma conexão necessária. A distinção de funções constitui especialização de tarefas governamentais à vista de sua natureza, sem considerar os órgãos que a exercem; quer dizer que existe sempre distinção de funções, quer haja órgãos especializados para cumprir cada uma delas, quer estejam concentradas num órgão apenas. A divisão [ou separação] de poderes consiste em confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes, que tomam os nomes das respectivas funções, menos o Judiciário (órgão ou poder Legislativo, órgão ou poder 47 Assim, importante a advertência de CELSO RIBEIRO BASTOS para quem “(...) qualquer que seja a forma ou conteúdo dos atos do Estado, eles são sempre fruto de um mesmo poder. Daí ser incorreto afirmar a tripartição de ‘poderes’ estatais, a tomar essa expressão ao pé da letra. É que o poder é sempre um só, qualquer que seja a forma por ele assumida. Todas as manifestações de vontade emanadas em nome do Estado reportam-se sempre a um querer único, que é próprio das organizações políticas estatais”( BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., p. 53). Aqui, contudo, ao se falar em separação de “poderes”, leia-se, indistintamente, separação de “funções”. 26 Executivo e órgão ou poder Judiciário). Se as funções forem exercidas por um órgão apenas, tem-se concentração de poderes”.48 Distinguir as funções, portanto, é visualizar categorias de atividades que guardam entre si traços de uniformidade, não importando a qual órgão está incumbido o seu exercício. Separar as funções é uma tarefa que vai além, consistente em atribuir cada uma das categorias identificadas a um órgão independente ou a um grupo de órgãos que, mesmo que subordinados entre si, sejam independentes em relação aos demais. Quem primeiro fez esta distinção de funções foi ARISTÓTELES, ao reconhecer que a atividade estatal é suscetível - tendo em vista as diferenças que possui - de ser dividida em três categorias, agrupando, cada qual, aqueles atos do Estado que apresentam, entre si, traços de uniformidade.49 É o que também defende MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, ao afirma que ARISTÓTELES apenas distinguiu em três funções do Estado, quais sejam: a) deliberante (consistente na tomada de decisões fundamentais), executiva (que consistia na aplicação pelos magistrados das decisões tomadas pela função deliberante) e judiciária (consistente em fazer justiça), mas “sem cuidar de sua separação, sem sugerir, ainda que de longe, a atribuição de cada uma delas a órgão independente e especializado”.50 Em outras palavras, no exercício da função política, existem atividades que podem ser identificas de acordo com algumas características que lhes são peculiares, como, por exemplo, as atividades consistentes em julgar os conflitos ou criar leis: separar funções, nestes casos, implica dizer quem será incumbido de julgar e quem terá competência para legislar. Em princípio esta separação de poderes é rígida, muito embora, histórica e geograficamente, sofra um temperamento cada vez maior.51 48 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 112. ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 127/145. 50 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 26ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 132. 51 A este respeito aduz JOSÉ AFONSO DA SILVA que “(...) hoje, o princípio [da Separação de Poderes] não configura mais aquela rigidez de outrora. A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da separação de poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário, tanto que atualmente se prefere falar em colaboração de 49 27 2) ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DA SEPARAÇÃO DE PODERES Compreendido que distinguir funções é visualizar as várias categorias de atividades exercidas e que separar funções significa dizer quem exercerá aquelas categorias de funções, o passo seguinte é identificar os elementos fundamentais para que se entenda configurada a separação de poderes. Sobre esta questão, JOSÉ AFONSO DA SILVA, com a hodierna propriedade, tece as seguintes considerações: “(...) A divisão [ou separação] de poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função; assim, às assembléias (Congresso, Câmara, Parlamento) se atribui a função Legislativa; ao Executivo, a função executiva; ao Judiciário, a função jurisdicional; (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação. Trata-se, pois, como se vê, de uma forma de organização jurídica das manifestações do Poder”.52 Ou seja, somente se pode falar em separação de poderes quando se encontram, concomitantemente, dois elementos fundamentais: a especialização funcional e a independência orgânica. Portanto, o primeiro passo para se saber quantos são os “poderes” ou funções estatais é individualizar o objeto, ou seja, considerar uma dada sociedade no tempo e no espaço. Feito isso, devem ser identificadas quantas categorias de atos de uma mesma natureza podem ser visualizadas nesta sociedade. Isso por uma questão lógica: não será possível separar mais funções do que existe. Com efeito, se em determinada sociedade há apenas três categorias de funções (função executiva, legislativa e jurisdicional, por exemplo), como separa-las em quatro?53 poderes, que é a característica do parlamentarismo, em que o governo depende da confiança do Parlamento (Câmara dos Deputados), quanto, no presidencialismo, desenvolveram-se as técnicas da independência orgânica e harmonias dos poderes” (SILVA, José Afonso da, op. cit., pág. 113). 52 SILVA, José Afonso da., op. cit., p. 113. 53 Repita-se, distinguir funções é pressuposto inarredável para a posterior separação de funções. 28 Uma vez feita essa distinção de funções, o próximo passo será verificar se: a) as categorias de funções estatais encontradas são exercidas por apenas um órgão - caso em que, conforme alerta MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, ocorrerá “unidade de exercício do poder, ou sua concentração”54; ou b), se essas funções são exercidas por órgãos distintos e independentes. Nessa última hipótese – exercício de funções por órgãos diferentes e independentes – pode-se falar em separação total ou parcial de poderes. Ocorrerá separação total quando cada categoria de funções é exercida tipicamente por um órgão independente ou a um grupo de órgãos, mesmo que subordinados entre si, mas independentes em relação aos demais. Ou seja, deve-se verificar se em relação ao órgão há pelo menos dois elementos fundamentais, quais sejam: especialização em relação à função que lhe foi incumbida e a independência deste órgão. Assim, suponha-se que numa dada sociedade foram distinguidas as funções “A”, “B” e “C”, distribuídas aos órgãos “1”, “2” e “3”, respectivamente. Nesse caso, cada órgão exercerá uma função específica: “1-A”, “2-B” e “3-C”. Essa é a separação total de funções. Tem-se separação parcial de poderes, por sua vez, em duas hipóteses: a) quando, feita a distinção de poderes, descobre-se que algum órgão acumule mais de uma categoria de funções, mesmo que se trate de órgãos independentes.55 Ex.: funções “A”, “B” e “C” exercidas pelos órgãos “1” e “2”, da seguinte forma: “A” e “B” pelo órgão “1” (“1-AB”) e função “C” para o órgão “2” (“2-C”); ou b) quando entre os órgãos há relação de subordinação. Assim, mesmo que as funções “A”, “B” e “C”, sejam distribuídas aos órgãos “1”, “2” e “3”, respectivamente, mas entre os órgãos exista subordinação (não sejam independentes). Ex.: “1-A” subordinado ao órgão “2-B” e, “3-C”, não subordinado aos demais. Neste caso também haverá apenas dois “poderes”, 54 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves, op. cit., p. 129 Se quando todas as funções são exercidas por um órgão há concentração total de poderes, quando apenas algumas forem exercidas por determinado órgão, ocorrerá concentração parcial de funções. 55 29 sendo que os órgãos “1-A” e “2-B” compõem um dos “Poderes” e o órgão “3-C”, o outro. Para efeito de “separação de poderes”, portanto, sempre que existir relação de subordinação entre órgãos, ambos serão considerados pertencentes ao mesmo “Poder”. Por outro lado, mesmo que sejam independentes, mas exerçam tipicamente a mesma categoria de funções, também comporão um mesmo “Poder”. Assim, se o órgão “A” possui função típica cuja natureza é a mesma de outro órgão “B”, entre os dois não há especialização funcional e, deste modo, não há separação delas. Insta acrescentar, por fim, que na hipótese de faltarem a um determinado órgão ou conjunto de órgãos os dois elementos, ou seja, não possuírem especialização funcional e não possuírem independência orgânica, prevalecerá o vínculo de subordinação para fins de se determinar a qual Poder ele pertence. 2.1) Critérios de Distinção de Funções do Estado. A respeito dos critérios de distinção das funções do Estado, colhe-se da fina pena de Celso Antônio Bandeira de Mello: Os critérios até hoje apresentados para caracterizar as ditas funções do Estado, em última instância, podem ser reduzidos, fundamentalmente, a apenas dois: A) um critério ‘orgânico’ ou ‘subjetivo’, que se propõe a identificar a função através de quem a produz e B) um critério ‘objetivo’ que toma em conta a atividade, vale dizer, um dado objeto (não um sujeito). Esse segundo critério, de seu turno, divide-se em dois: a) um critério (objetivo) material ou substancial, que busca reconhecer a função a partir de elementos intrínsecos a ela, isto é, que se radiquem em sua própria natural tipologia. Os que defendem tal critério (objetivo) material usualmente afirmam que a atividade característica da função legislativa se tipifica pela expedição de atos gerais e abstratos; a função administrativa por ser ‘prática’, ou então por ser ‘concreta’, ou por visar de modo ‘direto e imediato’ a realização da utilidade pública, e a atividade jurisdicional por consistir na solução de controvérsias jurídicas b) um critério (objetivo) formal, que se apega essencialmente em características ‘de direito’, portanto, em atributos especialmente deduzíveis do tratamento normativo que lhes corresponda, independentemente da similitude material que estas ou aquelas atividades possam apresentar entre si. Por este critério, o próprio da 30 função legislativa seria não apenas a generalidade e abstração, pois sua especialidade adviria de possuir o predicado de inovar inicialmente na ordem jurídica, com fundamento tão só na Constituição; o próprio da função administrativa seria, conforme nos parece, a de se desenvolver mediante comandos ‘infralegais’ e excepcionalmente ‘infraconstitucionais’, expedidos na intimidade de uma estrutura hierárquica; o próprio da função jurisdicional seria resolver controvérsias com a força jurídica da definitividade.56 Celso Antônio entende que o critério orgânico não subsiste a uma análise crítica, já que, como não há exercício exclusivo de atividades, “jamais se poderia depreender, com segurança, se uma atividade é legislativa, administrativa ou jurisdicional pelo só fato de provir do corpo Legislativo, Executivo ou Judiciário”.57 De outro lado, afirma que também não se pode “sufragar o critério objetivo material, pois, em Direito, uma coisa é o que é por força da qualificação que o próprio Direito lhe atribuiu, ou seja, pelo regime que lhe outorga e não por alguma causa intrínseca, substancialmente residente na essência do objeto”58, concluindo que “o critério adequado para identificar as funções do Estado é o critério formal, ou seja, aquele que se prende a características impregnadas pelo próprio Direito à função tal ou qual”59,assinalando, ainda, que: Assim, função legislativa é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de normas gerais, normalmente abstratas, que inovam inicialmente na ordem jurídica, isto é, que se fundam diretamente e imediatamente na Constituição. Função jurisdicional é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de decisões que resolvem controvérsias com força de ‘coisa julgada’, atributo este que corresponde à decisão proferida em última instância pelo Judiciário e que é predicado desfrutado por qualquer sentença ou acórdão contra o qual não tenha havido tempestivo recurso. Função administrativa é a função que o Estado, ou quem lhe faça as vezes, exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos a controle de 60 legalidade pelo Poder Judiciário. 56 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 21ª edição. São Paulo: Malheiros, 2006, pp. 32-33. 57 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 34. 58 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 34-35. 59 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 35. 60 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., pp. 35-36. 31 Menciona, por fim, que há atividades de cunho político ou de governo, que não se enquadram precisamente em nenhuma das clássicas três funções do Estado, verbis: Assim, a iniciativa de leis pelo Chefe do Poder Executivo, a sanção, o veto, a dissolução dos parlamentos nos regimes parlamentaristas e convocação de eleições gerais, ou a distinção de altas autoridades por crime de responsabilidade (impeachment) no presidencialismo, a declaração de estado de sítio (e no Brasil também o estado de defesa), a decretação de calamidade pública, a declaração de guerra são atos jurídicos que manifestamente não se encaixam na função jurisdicional. Também não se enquadram na função legislativa, como é visível, até por serem atos concretos. Outrossim, não se afeiçoam à função executiva nem de um ponto de vista material, isto é, baseado na índole de tais atos, nem de um ponto de vista formal. Dela diferem sob o pondo de vista material, porque é fácil perceber-se que a função administrativa, ao contrário dos atos citados, volta-se, conforme a caracterização que lhe deram os autores adeptos deste critério, para a gestão concreta, prática, direta, imediata e, portanto, de certo modo, rotineira dos assuntos da Sociedade, os quais, bem por isto, se acomodam muito confortavelmente dentro de um quadro legal pré-existente. In casu, diversamente, estão em pauta atos de superior gestão da via estatal ou de enfraquecimento de contingências extremas que pressupõem, acima de tudo, decisões eminentemente políticas. Diferem igualmente da função administrativa do ponto de vista formal, que é o que interessa, por não estarem em pauta comportamentos infralegais ou infraconstitucionais expedidos na intimidade de uma relação hierárquica, suscetíveis de revisão quanto à legitimidade. Tais atos, ao nosso ver, integram uma função que se poderia apropriadamente chamar de função ‘função política’ ou de ‘governo’, desde que se tenha a cautela de dissociar completamente tal nomenclatura das conseqüência que, na Europa, se atribuem aos atos dessarte designados. É que, em vários países europeus, sustenta-se que os atos políticos ou de governo são infensos a controle jurisdicional, entendimento este verdadeiramente inaceitável e que, como bem observou o eminente Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, é incompatível com o Estado de Direito, constituindo-se em lamentável 61 resquício do absolutismo monárquico. O critério aqui utilizado, proposto por José Afonso da Silva, não é apenas de distinção de funções do Estado, este, como visto, destinado exclusivamente à identificação dessas funções, segundo critérios científicos que, como visto, sequer consegue confortar satisfatoriamente toda a pleura de atividades estatais. Por certo, não será infalível, muito menos deve ser tomado como verdadeiro dogma, o critério segundo o qual a independência orgânica e especialização funcional 61 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. op. cit., pp. 36-37. 32 constituem elementos necessários e indissociáveis para que se considere existente um “poder” do Estado. Ocorre que, se se pretende estabelecer diferenças entre distinção e separação de funções estatais, deve-se exigir algo mais do que a mera identificação das categorias de funções do Estado. Essa identificação pode ser feita por quaisquer dos critérios tão bem explanados por Celso Antônio Bandeira de Mello, nenhum deles, obviamente, imune a críticas severas, embora realmente o critério objetivo-formal seja o mais preciso. Ocorre que, tendo em vista o problema proposto no presente estudo, é necessário um critério que permita avançar, analisando como a Constituição da República reparte as funções estatais entre os órgãos do Estado. Há que se partir da análise das funções tradicionais e do modo como elas foram repartidas para formarem o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, que constituem, inquestionavelmente, “Poderes” do Estado. Nesse contexto, e considerando que cada qual exerce funções típicas preponderantes que possuem características próprias, e, de outro lado, que o fazem com independência, o critério que exige, para a qualificação do Ministério Público brasileiro como um outro “Poder” do Estado, a presença de especialização funcional (exercício de uma função típica preponderante com características próprias), conjuntamente com a independência orgânica, parece ser o que tem maiores condições de refletir, sob o aspecto jurídico-político, a sua verdadeira realidade institucional. 3) A TEORIA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES DE MONTESQUIEU Em sua obra, o Espírito das Leis62, o barão de Montesquieu63 formulou a teoria que, segundo Paulo Bonavides64, revolucionou a ciência política, fazendo com que os 62 MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de. O Espírito das Leis. Tradução por Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1993, pp. 169/202. 33 teóricos do liberalismo a transladassem com entusiasmo para as suas Constituições, transformando-a em símbolo aferidor da liberdade nas organizações do poder político. Certo, MONTESQUIEU não foi o criador da Teoria ou Princípio da Separação dos Poderes, mas apenas quem lhe deu um caráter científico65 e sistematizado66, pois conforme adverte JOSÉ AFONSO DA SILVA, “o princípio da separação de poderes já se encontra sugerido em ARISTÓTELES, JOHN LOCKE e ROUSSEAU”, em suas respectivas obras A Política, Ensayo sobre el gobierno civil e Du contrat social.67 Estas observações demonstram que ARISTÓTELES (para alguns, PLATÃO68), plantou a semente que, regada pelas idéias de LOCKE e ROUSSEAU, germinaria em O Espírito Das Leis uma das principais contribuições ideológicas e intelectuais à Revolução Francesa e que influenciaria dali por diante quase todas as constituições do Mundo69. 63 O barão de Montesquieu chamava-se Charles-Louis de Secondat. Nasceu no ano de 1.689 no castelo de La Brède, perto de Bordéus, na França. Em 1.705 ingressou na Universidade de Bordéus, onde estudou Direito. Formou-se em 1.708 e partiu para Paris com o objetivo de completar sua instrução jurídica. As duas principais obras de Montesquieu foram Cartas Persas e O Espírito das Leis, publicadas respectivamente em 1.721 e 1.748. Esta última em especial, pois revolucionou a ciência política com a doutrina da “Tríplice Separação dos Poderes”. (MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, O Espírito das Leis. Tradução por Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. XLIII a XLV). 64 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 157. 65 Ressalte-se que tem sido travado um longo debate a respeito da existência ou não de cientificidade no Princípio da Separação dos Poderes, pelo menos nos moldes defendidos por Montesquieu. A este respeito, conferir: FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves, op. cit., p. 132 66 De fato, assinala FLÁVIA VIVEIROS DE CASTRO que “Montesquieu não foi o inventor da doutrina e do princípio da separação dos poderes (...), no entanto, a versão pelo mesmo desenvolvida é inovatória em relação às anteriores”, destacando, ainda, que “as raízes históricas remotas da Princípio da Separação dos Poderes aparecem como tema recorrente do pensamento ocidental desde a Antiguidade Clássica, na idéia de constituição mista, cuja concepção prevalente é aquela do equilíbrio de forças sócio-políticas diversas. Para ela, quem desenvolveu essa idéia foi ARISTÓTELES (embora alguns pensadores defendam tenha sido inicialmente elaborada por Platão) que, ao estudar as diferentes formas de governo, concluiu que o poder político, ao invés de estar nas mãos de uma única parcela constitutiva da sociedade é comum a todas. Esclarece ainda que “na visão de Aristóteles acerca da constituição mista, pode-se observar a idéia base que estará associada à doutrina da separação de poderes em sua vertente sóciopolítica, qual seja a do equilíbrio ou balanceamento das classes sociais através de suas participação (sic) no exercício do poder político, viável mediante o acesso à orgânica constitucional”. Segundo esta mesma autora, as raízes históricas próximas encontram-se nas doutrinas contratualistas de JOHN LOCKE e ROUSSEAU” (CASTRO, Flávia Viveiros de. Os Princípios da Constituição de 1988. O Princípio da Separação dos Poderes. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001, pp. 139-145). 67 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 111. 68 BASSI, F. Il Princípio de la Separazione dei Poter”, Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, 1965 apud CASTRO, Flávia Viveiros de, op. cit., p.139. 69 PAULO BONAVIDES, a respeito da influência da obra de MONTESQUIEU nas constituições, assim relatou: “Na Constituição americana sua presença o rodeia do prestígio que domina depois os documentos constitucionais de todo o século XIX. Entra nas cartas francesas da Restauração e da Revolução Liberal de 1814 e 1830, respectivamente, como entrará também nas constituições da Alemanha, após haver tido 34 Antes, contudo, de se adentrar na Teoria de MONTESQUIEU propriamente dita, mister se faz uma passagem, mesmo que breve, pelo contexto histórico em que ela surgiu. Este cuidado, somado ao que já foi dito sobre o poder político, servirá de auxílio à uma escorreita compreensão do assunto. 3.1) O CONTEXTO HISTÓRICO DA TEORIA DE MONTESQUIEU Embora MONTESQUIEU tenha afirmado no prefácio de O Espírito das Leis que se aquela obra tivesse sucesso devê-lo-ia muito à majestade de seu assunto70, alguns indicativos demonstram que o contexto histórico em que suas idéias surgiram contribuiu decisivamente neste sentido. Com efeito, o estudo das várias contribuições de historiadores e juristas que se dedicam ao tema convergem sobre alguns pontos do processo que vai da decadência do feudalismo até o surgimento do que se denominaria Terceiro Estado71, momento em que surgiu a Teoria da Tripartição dos Poderes de MONTESQUIEU. Sabe-se que o feudalismo, mesmo depois de iniciado o seu processo de decadência, foi um obstáculo aos interesses burgueses na expansão do comércio e conseqüente fortalecimento do seu poder econômico. De fato, como a burguesia poderia fazer comércio livre pelos feudos se, além das dificuldades encontradas pela própria disposição territorial destes, em cada qual, o senhor feudal colocava óbices? Uma aliança com a monarquia foi uma maneira encontrada pela burguesia para acabar com os feudos e, por conseguinte, comercializar com maior liberdade. acolhimento em constituições quais as da Bélgica, Holanda, Espanha, Áustria, Itália, Dinamarca e Noruega. Faça por toda a Europa seu passeio triunfal, solenizando a reforma das instituições”. (BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 157) 70 MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op. cit., p. 7 71 ANDERSON DE MENEZES assim aduz sobre a expressão “Terceiro Estado”: “Pelo medievo e pela era moderna, encontram-se o emprego da palavra Estado para designar as classes do reino. São os três estados: 1) clero, 2) nobreza e 3) povo, os quais na França se chamavam ‘Estados Gerais’, na Inglaterra ‘Parlamento”, na Alemanha ‘Dieta’ e na Espanha e Portugal ‘Corte do Reino’”. (MENEZES, Anderson de. Teoria Geral do Estado. 7ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1995, pp. 41-43). 35 Foi um pacto. A monarquia, conhecedora do inevitável crescimento do poder econômico da burguesia e de olho na preservação de suas regalias, aliou-se à burguesia que, com a colaboração do monarca, viabilizava a comercialização pelos feudos. Se, de um lado, a burguesia se agigantava cada vez mais e dominava o poder econômico, inclusive se aliando à monarquia, esta, por sua vez, concentrava cada vez mais em suas mãos o domínio do poder político. Essa situação fez despertar os verdadeiros anseios da “classe emergente”: deter não apenas o poder econômico, mas também o poder político, outrora disseminado, em parte substancial, pelos feudos, e, depois, concentrando-se paulatinamente com o rei, mas, em qualquer dos casos, sem que dele os burgueses pudessem desfrutar diretamente. De fato, até então a burguesia era oprimida politicamente, apesar de seu incontestável poder econômico. Mas somente uma revolução, não só de armas, mas principalmente cultural, poderia dar à burguesia o poder de condução da vida social. E não era qualquer revolução. Se os valores do povo não fossem transformados conforme os interesses burgueses, jamais seria possível legitimar o “novo poder político” que se desejava implantar. PAULO BONAVIDES, assim resume: “A burguesia sempre se sentiu politicamente oprimida e politicamente espoliada debaixo da monarquia absoluta. Os monarcas de direito divino governavam com a aristocracia territorial e o clero, numa sociedade regida por privilégios (...). A fim de alforriar-se politicamente, isto é, a fim de resolver a contradição entre o poder econômico auferido e a sujeição política a que ficara reduzida é que a burguesia conspirou, se fez revolucionária, empunhou armas e se volveu contra a realeza absoluta, até promover-lhe a queda fragorosa, mediante atos de ferocidade e violência, quais foram os episódios marcados no calendário de sangue da Revolução de 1789”.72 Ainda nas palavras de BONAVIDES, “(...) o pensamento de liberdade no século XVIII foi o protesto da consciência social abafada por muitos séculos de opressão e aviltamento da condição humana”.73 72 73 BONAVIDES, Paulo, op. cit., pp. 67 e 68. BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 162. 36 Para provocar uma revolução cultural, conforme pretendia a burguesia, nada melhor que a bandeira pela liberdade levantada por MONTESQUIEU, reivindicando o fim das regalias do clero e nobreza. As idéias de MONTESQUIEU foram tão úteis à burguesia que somente quando efetivamente se concretizaram, inserindo-se nas constituições após a queda de cada trono, tornou-se lícito dizer que, historicamente, surgiu o Terceiro Estado, como detentor do poder econômico e político74. O Espírito das Leis, portanto, não fez sucesso simplesmente pela majestade do assunto, mas também por ser uma obra oportuna e conveniente aos ideais liberalistas. Em apertada síntese, é neste contexto histórico que a teoria de MONTESQUIEU ganha espaço, encaixando-se como uma luva aos ideais revolucionários do liberalismo, uma revolução de armas e livros.75 3.2) MONTESQUIEU E A TRIPARTIÇÃO DOS PODERES EM SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS Pelas próprias características do Estado Moderno, as categorias de atos estatais tornaram-se mais perceptíveis, o que não escapou da arguta observação de Montesquieu, o qual chegou 74 assinalar que “os antigos, que não conheciam a A este respeito anota PAULO BONAVIDES que “(...) de todas essas reflexões acerca do comportamento burguês que afiançou ao terceiro estado o poder político, sobreleva de imediato a conclusão válida desta verdade histórica: onde quer que se inaugure no Ocidente o momento de limitação constitucional da autoridade, daí por diante se há de contar licitamente a formação do Estado burguês, liberal-democrático (...) desde que haja um poder limitado nos termos da Constituição, escrita ou costumeira, sufragada pelo povo ou outorgada pelo príncipe, aí, sobre as bases do sistema representativo, principia então a idade de hegemonia do terceiro estado (...) cada trono que ruísse ou cada príncipe que jurasse uma Constituição, aí entrava pelas mãos da História o poder político do terceiro estado”. (grifo no original) (BONAVIDES, Paulo, op. cit., pp. 75 e 76) 75 PAULO BONAVIDES aduz que “a Revolução da burguesia em armas servira apenas de epílogo militar à revolução intelectual que dantes lavrara nas consciências, arrastando em seu cortejo à nova ordem os melhores espíritos de França, aliciando ao sufrágio de suas teses o escol das inteligências que fizeram do século XVIII o século filosófico e político por excelência, o século das luzes, do reexame crítico da autoridade, da contestação religiosa, do dissídio entre a razão e o passado. Politicamente, deitava a burguesia raízes de apoio na aliança com fidalgos da mais alta e esclarecida linhagem, aquela de onde saiu Montesquieu com o Espírito das Leis, Mirabeau com a sua oratória sediciosa, o abade Sièys com o elogio histórico do terceiro estado e a teoria do poder constituinte e Felippe Égalité com o seu fatal, entregando ao cadafalso a cabeça do rei de França, o desventurado Luís XVI” (BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 68). 37 distribuição dos três poderes no governo de um só, não podiam ter uma idéia clara da monarquia” 76. Mais do que isso, o barão de MONTESQUIEU percebeu que a concentração de todas as categorias de atos estatais e o correspondente apossamento do poder político soberano, nos moldes existentes nalgumas monarquias absolutas, feria a liberdade política dos cidadãos. No capítulo de O Espírito das Leis denominado Idéia Geral, dizia Montesquieu77: “Eu distingo as leis que formam a liberdade política em sua relação com a constituição daquelas que a formam em sua relação com o cidadão”78. Montesquieu tomou uma concepção filosófica (exercício da vontade, fazer o que se quer) e uma concepção política de liberdade, essa se subdividindo em relação ao cidadão (segurança ou opinião que se tem de segurança) e em relação à constituição (formada por certa distribuição das funções políticas)79. A grande perspicácia daquele pensador francês talvez tenha sido perceber que os conceitos de liberdade política se completam. Nesse sentido e interpretando uma passagem de O Espírito das Leis80, anota Bonavides que o regime de “separação de poderes” complementa de tal modo aquela concepção de liberdade política do cidadão (segurança ou juízo que cada homem faz sobre a sua segurança), que Montesquieu assinala, categoricamente, dever o governo organizar-se, segundo tais preceitos, de tal modo que nenhum cidadão possa temer o outro cidadão81. 76 MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op cit., p. 172. Cujo título é: “DAS LEIS QUE FORAM A LIBERDADE POLÍTICA EM SUA RELAÇÃO COM A CONSTITUIÇÃO”. 78 MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op cit., p. 167. 79 MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op. cit., p. 203. 80 A passagem da obra de Montesquieu que Bonavides interpreta é a seguinte: “A liberdade política, em um cidadão, é essa tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se tenha essa liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão” (MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op. cit., p. 172). 81 BONAVIDES, Paulo, op. cit., p 159. 77 38 Em outras palavras, Montesquieu sustentou que o cidadão só é livre, politicamente, quando é obrigado a fazer apenas o que a lei estabelece82. Mas, de nada adiantaria isso, se não houvesse instrumentos que impedissem o abuso do poder. A solução proposta consistiu na autolimitação do poder pela sua própria disposição, de forma tal que se resguarde a liberdade política em relação ao cidadão, ou, nas palavras de Montesquieu “(...) que ninguém seja obrigado a fazer as coisas a que a lei não obriga e a não fazer aquelas que a lei permite”.83 Esclareceu Montesquieu: “(...) Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ser a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares (...). [E complementa dizendo que] os príncipes que quiseram tornar-se despóticos sempre começaram por reunir em sua pessoa todas as magistraturas”.84 Assim, sob o fundamento de um necessário autocontrole do poder, a Teoria de MONTESQUIEU não é senão um sistema tripartido de freios e contrapesos, assim disposto: a) poder legislativo; b) poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes; e c) poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Como esclarece o seu autor, a este último denomina-se poder de julgar e ao anterior simplesmente poder executivo do Estado.85 82 São exemplos consagrados constitucionalmente os princípios da legalidade e da reserva legal, que, sob o aspecto jurídico-político, dão aquela segurança ou certo juízo a respeito dela. O Princípio da Reserva Legal, também chamado por alguns de Princípio da Legalidade, é tão importante, que não só foi disciplinado pelo Código Penal Brasileiro em seu art. 1º, como também consagrado no art. 5º, inciso XXXIX, da atual Constituição Federal como direito fundamental. Em ambos dispositivos há o mesmo texto: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. O dispositivo contém, na verdade, dois princípios: o da Reserva Legal e o da Anterioridade da Lei. Assim, o primeiro seria “não há crime sem lei que o defina, não há pena sem cominação legal”, ao passo que o Princípio da Anterioridade da Lei corresponde aos termos “anterior” e “prévia”, que, positivados da maneira que foram, transmitem a velha máxima “nullum crimem nulla poena sine praevia lege”. 83 MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op cit., pp. 169 e 170. 84 MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op cit., pp. 172 e 173. 85 MONTESQUIEU. SECONDAT, Charles-Louis de, op cit., pp. 171 e 172. 39 Aos olhos desavisados esse sistema parece ser simples, mas talvez ainda hoje seja uma das questões mais delicadas nas cortes constitucionais dos Estados que o adotaram.86 Tanto melhor que seja assim, pois se o que se propõe é uma limitação de poderes, que as questões sejam resolvidas por quem deverá dar a palavra final, ou seja, o Judiciário, o que, aliás, antes de por em xeque o sistema de separação de poderes, confirma que ele está em pleno funcionamento. Um outro aspecto importante que há de ser ressaltado é que, à época de sua formulação por Montesquieu, os obstáculos para a implementação de um sistema de freios e contrapesos eram bem maiores, já que, para tanto, sequer havia um arcabouço teórico-jurídico consolidado. Tornou-se indispensável o acolhimento ou a formulação de outras teorias, que em seu conjunto serviriam de substrato de algo muito maior: o Constitucionalismo, que, conforme leciona Luis Roberto Barroso, “significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de direito, rule of the law, Rechtsstaat)”87. Dentre esse verdadeiro plexo de teorias, uma delas é a do poder constituinte, que permite, de um lado, sustentar o discurso de que o Poder Político emana do povo, ficando nele latente a possibilidade de, a qualquer momento, fazer uma nova 86 A este respeito MARIA LÚCIA DE PAULA OLIVEIRA leciona que, no Brasil, “(...) dentre as várias decisões do Supremo Tribunal Federal que invocam como fundamento o princípio da separação dos poderes, temos as que cuidam do processo legislativo estadual e de sua estrita submissão ao modelo federal (PETMC nº 494-RJ, julgada em 27/02/1992; ADI nº 805/RS, julgada em 17/12/1998; ADI nº 774/RS, julgada em 10/12/1998 e ainda ADI nº 98/MT, julgada em 7/8/1997). Também a vedação de delegação legislativa em matéria de reserva absoluta de lei (ADIMC nº 1.296/PE, julgada em 14/0/6/1995, ADIMC nº 1296/PE, julgada em 14/06/1995). Ao reverso, vedando a intromissão do Legislativo em competências do Executivo, o RE nº 170.204/SP, cujo relator foi o Min. Marco Aurélio e ainda a ADIMC nº 1.703/SC, julgada em 27/11/1997. O maior número de decisões judiciais (...) é aquele que questiona a utilizado de medidas provisórias (dentre as quais, ADIMC nº 1.204/DF, julgada em 15/2/1995; ADIMC nº 1.207/DF, julgada em 15/2/1995, ADIMC nº 1.1214/DF, julgada em 15/2/1995, ADIMC nº 1.215/DF, julgada em 15/2/1995, ADIMC nº 1.216/DF, julgada em 15/2/1995, ADIMC nº 293/DF, julgada em 6/6/1990). Envolvendo o Poder Judiciário, temos significativos acórdãos que cuidam da aplicação da Súmula nº 339 do Supremo Tribunal Federal, que proíbe a extensão de vantagens pecuniárias a servidores pelo Poder Judiciário (RMS nº 21.662/DF, julgada em 5/4/1994; AGRAC nº 185.106/RJ, julgada em 8/4/1997). O AGRAC nº 138.344/DF, julgada em 2/8/1994 não acolheu postulação de extensão de benefícios isencionais tributários via poder judiciário. Há ainda acórdãos discutindo a legalidade da intromissão do Poder Judiciário na análise do trâmite de processo administrativo disciplinar (MS nº 20.999/DF, julgada em 21/3/1990; bem como na correção de prova em concurso público (AGRAC nº 171.342/RJ, julgado em 12/03/1996)”. OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula. Os Princípios da Constituição de 1988. Princípio da Separação dos Poderes e Jurisdição Constitucional: A Experiência Brasileira. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001, pp. 164 e 165. 87 BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 5. 40 Constituição, e, de outro, abrigar idéias aparentemente antagônicas, quais sejam, de um poder político uno e soberano que, ao mesmo tempo, se separa entre órgãos interdependentes e harmônicos entre si. Eis, inclusive, a importância do estudo do poder constituinte sob o aspecto ora em foco, pois ele, ao que parece, configura verdadeiro pressuposto lógico da Teoria da Separação dos Poderes, conforme destacado adiante. 4) PODER CONSTITUINTE COMO PRESSUPOSTO LÓGICO DA TEORIA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES A matéria primeira que uma Constituição visa disciplinar é o Poder. Deve a Constituição dizer, por exemplo, quem é o titular do poder, quem o exerce e de que forma, quais os seus limites. Estes são verdadeiros preceitos fundamentais em qualquer Constituição. Se ao Estado coube a satisfação do bem comum, entendido este como os anseios legítimos de determinada sociedade num dado momento histórico, e se, para cumprir tão complexa função política, goza de um poder político soberano, como fundamentar a separação das funções estatais e a conseqüente divisão dos poderes que lhes são correlatos sem dissolver a característica da unidade desse poder soberano? A forma encontrada foi criar poderes constituídos, também subordinados ao poder político soberano. Em outras palavras, somente o poder político soberano, ilimitado e inalienável, poderia disciplinar o próprio poder, através de uma constituição. Isso permite que coexistam categorias de funções estatais com as respectivas doses de autoridade, subordinados ao poder que os constituiu, mas que continua, ipso facto, uno e soberano. Se para o exercício de cada categoria de funções é necessária certa medida de poder, este é apenas poder constituído, subordinado ao poder político soberano, que o 41 constituiu. Ou seja, a rigor, a autoridade é do poder político, manifestado sobre a veste de Poder Constituinte. JORGE REINALDO VANOSSI, nesta linha de raciocínio e com base nos ensinamentos de SIEYÈS, afirma que a função do Poder Constituinte está justamente na viabilização do Princípio da Separação dos Poderes defendida por MONTESQUIEU. No dizer de VANOSSI, “(...) na noção que a partir do Abade Sieyès tem-se difundido, é evidente que o mais importante é o descobrimento da função do Poder Constituinte. Este conceito aparece nos momentos em que o Racionalismo e os começos do Constitucionalismo impõem a idéia da Separação dos Poderes. Era óbvio que não podia haver uma distribuição do Poder sem a pressuposição da existência de um poder superior, que praticasse essa distribuição, isto é: para poder falar de diversos poderes, das diversas funções do poder que estavam repartidas e distribuídas, havia-se que supor a existência prévia, lógica e cronologicamente falando, de um poder supremo que realizasse essa repartição, que levasse a cabo essa distribuição; portanto, a noção do Poder Constituinte aparece como algo absolutamente necessário para poder compreender-se o tema da distribuição do Poder”.88 Assim aparece a noção de Poder Constituinte como pressuposto lógico para a Teoria da Separação dos Poderes89, compondo ambas um projeto maior: o Constitucionalismo, que, como visto, condensa as idéias de supremacia da lei e limitação do poder. 5) SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS: APENAS UMA DAS FORMAS DE LIMITAÇÃO DO PODER Não há, obviamente, um modelo universal de separação de poderes, que varia de Estado para Estado. 88 VANOSSI, Jorge Reinaldo. Revista de Direito Constitucional, 1:12-3, apud BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., pp. 23 e 24. 89 Por outro lado, se a autolimitação do poder pelo sistema de separação dos poderes mostrou-se instrumento de concretização dos ideais burgueses, tanto que somente quando ocorreu sua efetiva implementação pode ser considerado nascido o Terceiro Estado, natural e necessária a exigência da inclusão da “separação dos poderes” como elemento de qualquer constituição, nos moldes do art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que dispõe que qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição. 42 Esses variados modelos de separação de poderes, tão diversificados quanto são os Estados que os adotam, estruturam-se ao lado de outras formas de autolimitação do Poder, como, por exemplo – anota Manoel Gonçalves Ferreira Filho90 - a circunscrição do campo de ação do Estado relativamente às liberdades públicas negativas91. Na verdade, na esteira dos ensinamentos sempre didáticos de Luis Roberto Barroso, em um Estado constitucional o sistema de freios e contrapesos constitui apenas uma das formas de limitação do poder, que são de três ordens. Leciona Barroso, verbis: “Em um Estado constitucional existem três ordens de limitação do poder. Em primeiro lugar, as limitações materiais: há valores básicos e direitos fundamentais que hão de ser preservados, como a dignidade da pessoa humana, a justiça, a solidariedade e os direitos à liberdade de religião, de expressão, de associação. Em segundo lugar, há uma específica estrutura orgânica exigível: as funções de legislar, administrar e julgar devem ser atribuídas a órgãos distintos e independentes, mas que, ao mesmo tempo, se controlem reciprocamente (cheks and balances). Por fim, há as limitações processuais: os órgãos do poder devem agir não apenas com fundamento na lei, mas também observando o devido processo legal, que congrega regras tanto de caráter procedimental (contraditório, ampla defesa, inviolabilidade do domicílio, vedação de provas obtidas por meios ilícitos) como de natureza substancial (racionalidade, razoabilidade-proporcionalidade, inteligibilidade). Na maior parte dos 90 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 26ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 130. 91 Lecionou o eminente Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal: “Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) - que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais - realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) - que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas - acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade” (Mandado de Segurança n. 22.164, Rel. Ministro Celso de Mello, julgado pelo Plenário em 30.10.2005, e publicado no DJ de 17.11.1995). 43 Estados ocidentais instituíram-se, ainda, mecanismos de controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público.”92 Cabe agora analisar, especificamente, o sistema de separação de poderes adotado pela Constituição da República de 1998. 6) O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988: PODER POLÍTICO E PODER CONSTITUINTE Do que até aqui foi visto, constata-se que a noção de Poder Constituinte é apenas uma forma de manifestação do próprio poder político, eis que esse é uno, soberano e indivisível. Isso ocorre de tal forma que, a rigor, o poder político está se autolimitando.93 No caso específico da Constituição da República de 1988, decidiu-se pela adoção da já clássica fórmula de autolimitação do poder de MONTESQUIEU, embora não mais com a rigidez de outrora e, para tanto, preservou-se a noção de Poder Constituinte. Na visão de VANOSSI, de outra forma não poderia ser, pois, segundo ele, “(...) se considerarmos que no Estado Constitucional, democrático, social, contemporâneo, é necessário manter a distribuição do Poder, embora com outros alcances, com outras características, mas mantê-la, é evidente que também temos que conservar o conceito de Poder Constituinte, de tal forma que, a partir do funcionamento deste, poderse-á entender a divisão do Poder”.94 92 BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 5. 93 A Constituição Federal vigente, em seu Artigo 1º, parágrafo único, assim dispõe: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A expressão “nos termos desta Constituição” quer significar que a interpretação deste dispositivo deve ser feita sistematicamente, especialmente porque a própria Constituição irá delimitar a forma de exercício do poder, especialmente nos artigos 14; 27, § 4º; 29, XIII; 60, §4º, II e 61, § 2º, além é claro das normas regulamentadoras infraconstitucionais, como por exemplo a Lei 9.709/98, que regulamenta o art. 14 da CF/88. 94 VANOSSI, Jorge Reinaldo. Revista de Direito Constitucional, 1:12-3, apud BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., pp. 23 e 24. 44 Assim, se para viabilizar as idéias de MONTESQUIEU foi necessário implementar a noção de Poder Constituinte, para preserva-las, embora de forma mais temperada, conservou-se também os conceitos de Poderes Constituinte e Constituídos. 6.1) AS CLÁUSULAS PARÂMETROS DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES Segundo ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAS, nas constituições presidencialistas, tal como a Constituição Federal de 1988, três cláusulas-parâmetros usualmente informam a aplicação do princípio da separação dos poderes, quais sejam: a) a da “independência e a harmonia” entre os poderes; b) a da “indelegabilidade de poderes”95; e c) a da “inacumulabilidade” de funções de poderes distintos”96. Consideram-se cláusulas-parâmetros para a aplicação do princípio da separação dos poderes aquelas em que figuram como condição necessária para consecução da idéia-fim do princípio, de tal forma que a ausência de uma delas não permite que a separação de poderes alcance seu objetivo. A doutrina contemporânea reconhece uma atenuação crescente dessas cláusulas, cujas leituras devem considerar as peculiaridades de cada sistema jurídico. 6.1.1) A Independência e a Harmonia entre os Poderes No presidencialismo, predomina o princípio da divisão dos Poderes, que devem ser independentes e harmônicos entre si, enquanto no parlamentarismo o sistema de governo baseia-se na colaboração entre os Poderes Executivo e Legislativo.97 95 Defende-se, sob determinado enfoque, que essa cláusula não continua sendo cláusulas-parâmetro do princípio da separação dos poderes, conforme será visto ao se tratar dela especificamente. 96 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Conflito Entre Poderes: O Poder Congressual de sustar atos normativos do Poder Executivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, pp. 14/15 45 Assim, no presidencialismo, o Presidente da República exerce as funções de Chefe de Estado e Chefe de Governo, com mandato fixo e não dependendo da confiança do Poder Legislativo para sua investidura ou exercício do cargo, nem o Legislativo pode ser dissolvido pelo Executivo. O mesmo não ocorre no parlamentarismo, que ao invés de uma separação dos poderes, de forma independente e harmônica, opera o sistema de colaboração de poderes, onde o Poder Executivo divide-se na figura do Chefe de Estado (Presidente da República ou Monarca) e Chefe de Governo (Primeiro Ministro ou Conselho de Ministros). O Primeiro Ministro só permanece no cargo se o Parlamento nele confiar, caso contrário será ele exonerado, formando-se um novo governo, já que os membros do Governo não possuem mandato, mas apenas investidura por confiança. A recíproca tem sua dose de verdade, pois se o Governo também perder a confiança no Parlamento, possível será a dissolução da Câmara dos Deputados, situação que provocará eleições extraordinárias para a formação de outro Parlamento que lhe dê sustentação.98 Assim, é a forma que se inter-relacionam os poderes que caracterizará o regime de governo, dos quais se destacam o parlamentarismo e presidencialismo.99 O Brasil, que optou pelo sistema presidencialista de Governo, inseriu a cláusulaparâmetro da “Independência e harmonia” dos poderes de forma expressa no art. 2º da Constituição Federal de 1988, in verbis: “Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ considera que, nas constituições presidencialistas, a cláusula parâmetro por excelência para a aplicação do princípio da separação de poderes é a da “independência e harmonia”. No dizer dessa autora, cujas palavras valem ser transcritas, essa cláusula significa que 97 SILVA, José Afonso da., op. cit., p. 113 ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente. Direito Administrativo para Concursos. Série provas e concursos. Rio de Janeiro: Impetus, 2002, p. 15 99 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves, op. cit., p. 130 98 46 “(...) no desdobramento constitucional do esquema de poderes, haverá um mínimo e um máximo de independência de cada órgão de poder, sob pena de se desfigurar a separação, e haverá, também, um número mínimo e máximo de instrumentos que favoreçam o exercício harmônico dos poderes, sob pena de, inexistindo limites, um poder se sobrepor ao outro poder, ao invés de, entre eles, se formar uma atuação “de concerto. Destarte, quaisquer exceções ao parâmetro do princípio formalmente consagrado em uma Constituição, consubstanciado na ‘cláusula de independência e harmonia’ dos poderes, só se justificam se voltadas, sempre, para o fim originalmente visado pelo princípio de separar para limitar. Por isso mesmo, enquanto se mantiver o princípio da separação de poderes como base do esquema de organização de poderes num estado determinado, impõe-se manter a delimitação de zonas de atuação independente e harmônica dos poderes políticos. A flexibilização da regra-parâmetro, fato indisputável no direito constitucional contemporâneo, encontra, pois, limites na idéia-fim do princípio: limitação do poder. De outro lado, a interferência de um poder sobre outro somente será admissível, em tese, quando vise a realizar a idéiafim, seja para impedir abusos de poder, seja para propiciar real harmonia no relacionamento entre os poderes, seja ainda para garantir as liberdades e assegurar o pleno exercício das funções próprias. A interferência jamais poderá, ainda que de modo disfarçado, ter por objetivo a dominação de um poder sobre o outro poder”.100 Por outro lado, embora já se tenha defendido que as funções do Estado deveriam ser rigorosamente separadas, JOSE AFONSO DA SILVA adverte que o Princípio da Separação dos Poderes não configura mais aquela rigidez de outrora, tendo em vista a ampliação das atividades do Estado contemporâneo e o surgimento de novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário.101 A respeito dessas mudanças que atenuam o Princípio da Separação dos Poderes, MARCELO ALEXANDRINO e VICENTE PAULO assim lecionam: “(...) no Brasil, não há exclusividade no exercício das funções pelos Poderes, vale dizer, não há uma rígida, absoluta, divisão de Poderes, mas sim preponderância na realização dessa ou daquela função. Assim, embora os Poderes tenham suas funções precípuas (funções típicas), a própria Constituição autoriza que também desempenhem funções que normalmente pertenceriam a Poder diverso (funções atípicas). São as chamadas ‘ressalvas (ou exceções) ao princípio da 102 separação dos Poderes.” 100 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha, op. cit., p.14 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 113. 102 ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente, op. cit., p. 14 101 47 ANNA CÂNDIA DA CUNHA FERRAZ colaciona importante contribuição, ao afirmar que as ressalvas ao Princípio da Separação dos Poderes devem ser sempre “razoáveis” e conectadas ao fim da perseguido, eis que, “(...) Se se quiser manter o princípio da separação de poderes, com vistas a se perseguir a idéia-fim que o gerou, é preciso, pois, ter em mente que a ampliação desmesurada e inconseqüente de exceções à cláusula-parâmetro [da independência e harmonia] vai tornando cada vez mais tênues as linhas da separação dos poderes, esvaziando cada vez mais o seu conteúdo, tornando ‘quase’ meramente nominal o princípio e, por conseqüência, gerando ‘quase’ uma confusão de poderes, que vai distante da formulação clássica do Barão de La Bréde, propugnadora de ‘poderes separados’, ‘moderados’ e 103 ‘institucionalizados”. O critério de preponderância ocorre justamente para possibilitar que um poder não se sobreponha ao outro, pois não existe “exclusividade em cada um dos poderes na prática dos atos que lhe são típicos”.104 Destarte, embora a função típica do Poder Legislativo seja legislar, ele exerce função atípica jurisdicional quando, por exemplo, o Senado Federal processa e julga o Presidente da República ou os Ministros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade (CF, art. 52, I e II) e função atípica executiva quando trata da organização de seus serviços e de seu pessoal (CF, arts. 51, IV e 52, XIII). O Poder Judiciário, a seu turno, possui como atividade típica a jurisdicional, mas excepcionalmente, tanto legisla, como por exemplo, ao elaborar os regimentos internos dos Tribunais (CF, art. 96, I, “a”), quanto pratica atos de natureza executiva, ao organizar os serviços e seu pessoal (CF, art. 96, I, “a”, “b”, “c”). O mesmo se diga em relação ao Poder Executivo, que exerce preponderantemente a função executiva e, de forma atípica, a função legislativa, quando, por exemplo, edita medidas provisórias (CF, art. 62) e leis delegadas (CF, art. 68) e julga, nos chamados contenciosos administrativos. Portanto, a separação de funções, nos moldes determinados pela Constituição Federal de 1988, não é absoluta. O Poder Legislativo exerce tipicamente a função legislativa, o Poder Judiciário a função jurisdicional e o Poder Executivo a função 103 104 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha, op. cit.,p. 15 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 03. 48 executiva, mas não com exclusividade, de modo que a função típica de um Poder é função atípica de outro. Esse modelo, embora não tão rígido como o proposto por MONTESQUIEU, é uma exigência do Estado Contemporâneo e, se bem dosado, ao invés de prejudicar, auxilia a eficiente aplicação de freios e contrapesos sem que se engesse a atividade estatal. Ademais, a leitura da cláusula-parâmetro da “independência e harmonia” já está sendo feita como “interdependência e harmonia” das funções do poder político, tornando-se relativa a especialização inerente à “separação”.105 6.1.2) A Cláusula da Indelegabilidade Num primeiro momento, na forma propugnada por MONTESQUIEU, não se permitia que ocorresse delegação de funções estatais. Por isso a não-delegação de funções constituía verdadeira cláusula-parâmetro do princípio da separação dos poderes. Todavia, até mesmo para que não ocorresse uma estagnação da atividade estatal, houve temperamento gradativo dessa cláusula, até que se culminasse na possibilidade de delegação. Em razão disso, tem-se sustentado que a indelegabilidade não mais constitui cláusula-parâmetro do princípio da separação dos poderes, pois, ao se admitir a delegação, permite-se, em certa medida, uma concentração de funções, o que iria de encontro com a lógica do princípio da separação dos poderes. ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, nesse sentido, aduz que “Durante longo tempo, a cláusula vedatória da delegação de poderes, ‘the non-delegation power’, inscrita ou não nos textos constitucionais, foi, também, considerada cláusula-parâmetro da aplicação do princípio da separação de poderes. Delegar funções próprias, na visão clássica do princípio, era ferir de morte a ‘separação’ de poderes. Todavia, ao longo da evolução dos tempos, (...) a delegação cuja vedação que vinha sendo, por primeiro, atenuada, é, posteriormente, amplamente admitida, de tal sorte que não constitui cláusula- 105 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves, op. cit., p. 133. 49 parâmetro para a aplicação do princípio da separação dos poderes, mesmo nos sistemas presidencialistas”.106 Mas, sob um certo aspecto, pode-se admitir que a não-delegação continua sendo cláusula-parâmetro do princípio da separação dos poderes, qual seja, o de que, se por um lado é permitida a delegação, de outro, essa delegação só é permitida nas hipóteses, condições e limites da delegação, já que, se é a Constituição que separa os Poderes, somente ela pode disciplinar a delegação.107 De fato, se a separação de funções constitui, inclusive, cláusula pétrea da Constituição (CF/88, Art. 60, § 4º, III), não se pode negar que existem óbices instransponíveis para a delegação de funções separadas constitucionalmente, quais sejam: a) vedação constitucional e b) disciplina das hipóteses de delegação possíveis, inclusive quanto à forma de atuação do poder delegado. Em suma, as únicas delegações possíveis são as constitucionalmente previstas, nas condições e limites estabelecidos, sendo que, nas demais hipóteses, o Constituinte considerou indelegável a função e essa vedação constitui, sob esse ponto de vista, uma cláusula-parâmetro do princípio da separação dos poderes. 6.1.3) A Cláusula da Inacumulabilidade de Funções Acumular funções é o caminho oposto ao da sua separação, por isso, se duas ou mais funções forem atribuídas ao mesmo órgão, ocorrerá concentração de poderes e não separação deles. Em outras palavras, a acumulação de funções típicas contrapõe-se à idéia-fim de sua separação. Ou seja, cria a concentração de funções, que ficam subordinadas a um 106 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha, op. cit., p. 16 Anna Cândida. da Cunha Ferraz corrobora com esse entendimento, ao sustentar que “(...) Atualmente, a regra da não delegação de poderes se curva apenas a dois limites: de um lado, a impossibilidade de abdicação do poder ou competência originária constitucionalmente atribuída a determinado poder; de outro, o estabelecimento de condições e limites claros para a atuação do poder delegado. Assim, somente sob essa ótica renovada se pode admitir a não-delegação como cláusula-parâmetro, mesmo nos sistemas presidencialistas” (FERRAZ, Anna Cândida da Cunha, op. cit., p. 17). 107 50 mesmo comando e, por conseguinte, atinge inclusive a cláusula da ‘independência’ dos poderes. Na visão de ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, “A regra da ‘inacumulabilidade’ de funções de poderes diferentes também sempre foi tida como regra-parâmetro dos sistemas presidencialistas. De certo modo tem a característica de cláusulaparâmetro de segundo grau, daí porque se destina a assegurar a concretização da cláusula essencial da ‘independência’, que pressupõe a não subordinação recíproca entre os exercentes de cada poder. Com esta finalidade, ainda é de observância necessária, vez que a sua eliminação ou atenuação se revela extremamente perigosa para a independência entre os poderes. Assim, se a delegação, dentro de limites, não supera a idéia-fim da independência entre os poderes, não ofende ao fim último da “separação” de poderes e pode até favorecer a harmonia entre os órgãos do poder, a acumulação de funções é muito mais propícia a desfazer, de fato, os lindes da separação e a conduzir a uma nominal ‘confusão de poderes’, embora também, em certa medida, possa servir à harmonização ou mesmo coordenação nas relações recíprocas dos poderes”.108 Acrescente-se que, a exemplo da indelegabilidade, somente é possível acumular funções nos termos estabelecidos constitucionalmente, já que apenas o Poder Constituinte originário pode valorar e decidir em que medida essa acumulação harmoniza os poderes. A opção do Legislador Constituinte brasileiro foi possibilitar a acumulação de funções atribuindo uma função típica e algumas funções atípicas, conforme a noção antes expendida ao se estudar a cláusula-parâmetro da “independência e harmonia”. 6.2) PODER LEGISLATIVO A atividade típica do Poder Legislativo, como o seu próprio nome indica, é a legiferante, exercida ao lado das funções atípicas judiciária (cujo exemplo mais comum é o julgamento pelo Senado Federal do Presidente da República ou dos Ministros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade - CF, art. 52, I e II) e executiva (quando, por exemplo, trata da organização de seus serviços e de seu pessoal CF, arts. 51, IV e 52, XIII). 108 Idem, ibidem. 51 Suas atividades principais são, sem dúvidas, ligadas ao processo legislativo, ao lado, é claro, da atividade fiscalizatória, conforme se segue. 6.2.1) A Atividade Legislativa A função legislativa constitue, em essência, a elaboração de normas gerais e abstratas, incluindo-se as emendas constitucionais. No dizer de ANTÔNIo CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO, uma das ordens de atividades que o Estado se vale para regular as relações intersubjetivas é a legislação, com a qual se “(...) estabelece as normas que, segundo a consciência dominante, devem reger as mais variadas relações, dizendo o que é lícito e o que é ilícito, atribuindo direitos, poderes, faculdades, obrigações; são normas de caráter genérico e abstrato, ditadas aprioristicamente, sem destinação particular a nenhuma pessoa e a nenhuma situação concreta; são verdadeiros tipos, ou modelos de conduta (desejada ou reprovada), acompanhados ordinariamente dos efeitos que seguirão a 109 ocorrência de fatos que se adaptem às previsões”. O Poder Legislativo, para cumprir a parcela da função pública que lhe foi incumbido, cria vários instrumentos para proteger os bens da vida, que, uma vez disciplinados, tornam-se bens jurídicos. Esta instrumentalização forma o chamado Direito Objetivo110. 109 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R.. Teoria Geral do Processo. 15ª edição. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 38. Ressalte-se ainda que, a cada momento histórico o Direito teve um comportamento diferente, até mesmo porque o valor-norma-fato que compreende este objeto de estudo se vê fundido intensivamente na sociedade. É o que Miguel Reale denomina “fenômeno histórico-cultural” (REALE, Miguel. Introdução ao Estudo do Direito. 23ª edição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 62). 110 Apenas para que se tenha uma noção bem definida da instrumentalização do Direito Objetivo, tome-se, a título exemplificativo, as normas penais incriminadoras. Com efeito, quando determinada sociedade cria uma norma incriminadora dizendo, por exemplo, que “é proibido matar alguém”, equivale dizer que, naquele momento, para a convivência pacífica ou pelo menos tolerável entre seus membros, mister será repugnar o homicídio através de sanções penais. A Lei Penal lida com a liberdade das pessoas e por isso a Função Legislativa se vale de uma técnica legislativa toda especial, não utilizando expressões tais como “é proibido matar”, mas sim a descrição de uma conduta. Quando alguém pratica uma conduta idêntica à prevista anteriormente na Lei Penal, incide ele na pena correspondente, porque contrariou uma norma implícita na Lei. A Lei torna-se assim um verdadeiro veículo da norma. Um instrumento adequado e impreterível utilizado para inserir determinada norma no Ordenamento Jurídico. Exemplificando, há várias figuras típicas do homicídio. A forma simples é “matar alguém” (art. 121, caput, CP), uma das formas privilegiadas é “matar alguém (...) sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima” (art. 121, §1º, CP), bem como existem formas qualificadas, como p. ex., “matar 52 Assim se traduz a clássica lição de HANS KELSEN, para quem “(...) as normas jurídicas conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos)”111, no sentido de que é o Legislador, ao valorar positiva ou negativamente um fato, quem irá qualifica-lo de lícito ou ilícito, bem como o “grau” dessa ilicitude, ou seja, se ilícito cível, administrativo ou penal. Desta forma, alguns bens são mais e, outros, menos relevantes para a sociedade, de modo que aqueles precisam do instrumento “crime”, capaz, ao menos em tese, de defende-los112. Já os bens menos relevantes não necessitam de instrumentos criminalizantes, bastando, por exemplo, uma mera proteção cível. Nada impede - antes recomenda - que o Direito Objetivo, ao invés de uma sanção penal, atribua uma sanção premial, de modo que os membros da sociedade, visando o benefício legal, passem a agir conforme o interesse da Lei. De fato, além das condutas consideras ilícitas, o Legislador valora positivamente outras tantas (condutas lícitas), seja lhes concedendo uma sanção premial, tal como um alguém (...) por motivo fútil” (art. 121, § 2º, II, CP). Cada uma delas corresponde uma sanção penal diferenciada. Note-se que são “narradas” condutas e suas respectivas sanções, onde implicitamente consta uma norma proibitiva que diz: “é proibido matar”. Estas são normas abstratas e que de modo geral disciplinam as condutas de todos, dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Princípio da Reserva Legal. A medida provisória, emanada pela Função Executiva, embora tenha força de lei, não pode criar crimes ou cominar sanções, pois à Função Legislativa, e somente a ela, incumbe legislar sobre Direito Penal, caso contrário haveria inconstitucionalidade de tais dispositivos emanados de fonte diversa. Assim, somente a fonte formal imediata pode definir o crime e fixar a pena cabível. Acrescente-se, ainda, que compete privativamente à União legislar sobre Direito Penal, podendo os Estados, desde que autorizados por lei complementar, legislar sobre questões específicas (art.22, I e parágrafo único). Mas, para que ninguém seja punido arbitrariamente, não basta que exista expressamente o preceito legal e que atinja somente a fatos futuros, é necessário, como visto, uma técnica legislativa própria para que diminua imperfeições entre a tutela do direito de liberdade do cidadão e o poder punitivo do Estado, exigindo uma adequação precisa do fato para que este se torne típico. Quando um sujeito, com capacidade penal absoluta, pratica uma conduta ilícita prevista em Lei, ferindo a norma que lhe é implícita, nasce o jus puniendi do Estado. Mas, como é inconcebível a liberdade onde o poder é absoluto, o Princípio da Reserva Legal veio para limitar esse direito de punir pertencente ao Estado. Tal poder punitivo, que outrora era absoluto, passou para apenas uma faculdade jurídica de punir, onde o Direito está disciplinando a ação estatal. Isso se dá porque a Função Legislativa obedece a um processo legislativo cujas bases são estabelecidas constitucionalmente, de acordo com a natureza da relação que se quer disciplinar. No caso das normas penais, essas bases são muito mais rígidas, tendo em vista o seu conteúdo. Vale destacar, entretanto, que, em essência, não há diferença entre normas penais e não-penais, no sentido em que ambas são produtos da Função Legislativa. O que ocorre é uma diferenciação de competência e técnica legislativa. 111 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 5 112 Vê-se, assim, que o “crime” nada mais é do que uma das modalidades de ilícito criada pela Função Legislativa, cuja finalidade é proteger bens relevantes e que “convive” concomitantemente ao lado de outras formas de ilícitos. 53 desconto, um benefício, um parcelamento ou dilação no prazo de cumprimento da obrigação etc., seja não lhes imputando qualquer sanção.113 A atividade legislativa consiste, portanto, na elaboração do Direito Objetivo, sendo que, na esfera federal está ela incumbida ao Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Deputados114 e pelo Senado Federal115 (art. 44 da CF/88). O Poder Legislativo Estadual é exercido pela Assembléia Legislativa, que, no Distrito Federal, chama-se Câmara Legislativa. Já o Poder Legislativo Municipal é exercido pela Câmara dos Vereadores, na forma do art. 29, inciso IV, da CF/88. Ambos possuem sistema unicameral. As questões a serem objeto de votação serão deliberadas, necessitando-se, no mínimo, a presença da maioria absoluta dos membros da casa legislativa para que se inicie a votação (art. 47 da CF/88).116 6.2.2) A Atividade Fiscalizatória (Função Executiva) Afora sua função legiferante, o Poder Legislativo exerce, além de uma ampla atividade fiscalizatória de todos os poderes, o controle político do Poder Executivo.117 113 No sentir de KELSEN, “(...) com o termo ‘norma’ se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. É esse o sentido que possuem determinados atos humanos que intencionalmente se dirigem à conduta de outrem. Dizemos que intencionalmente se dirigem à conduta de outrem não só quando em conformidade com o seu sentido, prescrevem (comandam) essa conduta, mas também quando permitem e, especialmente, quando conferem o poder de a realizar, isto é, quando a outrem é atribuído um determinado poder, especialmente o poder de ele próprio estabelecer normas”. Idem, ibidem. 114 A Câmara dos Deputados é formada por representantes do povo, eleitos à base proporcional da população de cada unidade da Federação (Estados e Distrito Federal), por mandatos de 4 (quatro) anos, na forma do art. 45 do Diploma Constitucional. 115 O Senado Federal, por sua vez, representa os Estados e o Distrito Federal, com participação equânime, possuindo cada qual 3 (três) senadores, com 2 (dois) suplentes e mandato de 8 (oito) anos (art. 46 da CF/88). 116 Em regra, as deliberações, uma vez aprovadas, são submetidas à sanção do Presidente da República, embora nalgumas matérias não se exija essa sanção, pois são de competência exclusiva do Congresso, da Câmara ou do Senado (arts. 49, 51 e 52 da CF). 117 Segundo Alexandre de Moraes, “As funções típicas do Poder Legislativo são legislar e fiscalizar, tendo ambas o mesmo grau de importância e merecedoras de maior detalhamento. Dessa forma, se por um lado a Constituição prevê regras de processo legislativo, para que o Congresso Nacional elabore as normas jurídicas, de outro, determina que a ele compete a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Poder Executivo (CF, art. 70). As funções atípicas constituem-se em 54 A atividade fiscalizatória é bastante ampla. Todas as pessoas, físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, que utilizam, arrecadam, guardam, gerenciam ou administram dinheiro, bens e valores públicos, ou que, em nome de órgão público, assuma obrigação de natureza pecuniária, estão sujeitas à prestação e tomada de contas pelo controle externo e pelo sistema de controle interno de cada Poder118. O controle externo é realizado pelo Poder Legislativo, com o auxílio do Tribunal de Contas, que constitui órgão de apoio dos Poderes da República e que auxilia o Poder Legislativo na realização do controle externo da gestão do patrimônio público, possuindo seus membros as mesmas garantias de independência que o constituinte reservou aos membros do Judiciário. Ressalte-se, todavia, que conforme disciplina contida no art. 49, inciso IX da CF/88, no caso do Presidente da República, o julgamento das contas é ato privativo do Congresso Nacional, competindo ao Tribunal de Contas da União tão-somente a elaboração de parecer prévio. No exercício de suas atribuições, o Tribunal de Contas da União pode apreciar, através do controle incidental, a constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público, (verbete nº 347 da Súmula do Supremo Tribunal Federal). O controle externo dos recursos públicos do Estado é feito pelas Assembléias Legislativas com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal. É vedada a criação de tribunais, conselhos ou órgãos de contas municipais (art. 31, § 4.º, da CF), mas os Tribunais de Contas Municipais existentes antes da Constituição Federal de 1988 foram mantidos (art. 31, § 1.º, da CF) e auxiliam as respectivas Câmaras Municipais no controle externo das contas públicas. administrar e julgar. A primeira ocorre exemplificativamente, quando o Legislativo dispõe sobre sua organização e operacionalidade interna, provimento de cargos, promoções de seus servidores; enquanto a segunda ocorrerá, por exemplo, no processo e julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade. No exercício de suas funções, os membros do Poder Legislativo estão resguardados por um protetivo rol de prerrogativas e imunidades; bem como por algumas incompatibilidades (...)”. (MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 375). 118 MORAES, Alexandre de, op. cit. p. 383 55 Onde, todavia, não há esses tribunais, o controle é feito pela Câmara de Vereadores, com o auxílio dos Tribunais de Contas Estaduais da respectiva unidade da federação, ou, no caso específico do Distrito Federal, do TCDFT. Para auxiliar as atividades legislativas o Congresso Nacional e suas casas possuem comissões permanentes e temporárias, na forma do art. 58 da Constituição Federal. Também há previsão de comissões parlamentares de inquérito (CPIs), com poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas. As CPIs são criadas por prazo certo e com objeto de investigação específico.119 O professor ALEXANDRE DE MORAES observa, contudo, que “(...) a necessidade de criação das comissões com objeto específico, não impede a apuração de fatos conexos ao principal, ou ainda, de outros fatos, inicialmente desconhecidos, que surgirem durante a investigação, bastando, para que isso ocorra, que haja um aditamento 120 do objeto inicial da CPI”. As atividades desenvolvidas pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, bem como as atividades fiscalizatórias, que recebem o auxílio do Tribunal de Contas, não possuem natureza legislativa, mas sim executiva. Insta noticiar, ainda, que o art. 130 da Constituição Federal indica a existência de membros do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas. A doutrina diverge quanto a se esses membros comporiam um Ministério Público próprio ou se estariam 119 CF/88. “Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. § 1º. Na Constituição das Mesas e de cada Comissão, é assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa. § 2º. Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe: I - discutir e votar projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a competência do Plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa; II - realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil; III - convocar Ministros de Estado para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições; IV - receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas; V - solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão; VI apreciar programas de obras, planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer. § 3º. As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos no regimento das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores. 120 MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 384. 56 incluídos nos diversos Ministérios Públicos previstos no art. 128 da CF/88, ponto que, no momento, basta apenas noticiar, eis que será abordado especificamente no “Capítulo III”. 6.3) PODER EXECUTIVO O Poder Executivo compreende, de um lado, o governo e, de outro, a administração. Por função governamental, em sentido estrito, entende-se as atividades de condução política da sociedade e, por função administrativa, a responsabilidade pela execução das leis e decisões judiciais. No sistema presidencialista, o Presidente da República acumula as funções de Chefe de Estado, representando-o interna e externamente, e Chefe de Governo, realizando a condução política da sociedade. As atribuições do Presidente da República são enumeradas no art. 84 da Constituição Federal vigente.121 No exercício de seus atos o Presidente da República pode ser responsabilizado, conforme estabelece o art. 85 da Carta Política.122 Além do auxílio dos ministérios, conta ainda o Presidente da República com órgãos superiores de consulta, quais sejam, o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, ambos com composição e competência definidos nos artigos 89 e ss. da CF/88. Os Estados e Distrito Federal possuem como chefe do Poder Executivo os Governadores. Os Municípios, por sua vez, são chefiados pelos Prefeitos. 121 São de interesse específico para este estudo os seguintes incisos: “Art. 84 - Compete privativamente ao Presidente da República: (...) XIV - nomear, após aprovação pelo Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, os Governadores de Territórios, o ProcuradorGeral da República, o presidente e os diretores do Banco Central e outros servidores, quando determinado em lei; (...) Parágrafo único - O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações”. (destaques nossos) 122 Para esta pesquisa possui maior relevo: “Art. 85 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (...); II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; (...)”. 57 Relativamente à natureza jurídica da atividade pública, diz HELY LOPES MEIRELLES ser ela “(...) um múnus público para quem a exerce, isto é, a de um encargo de defesa, conservação e aprimoramento dos bens, serviços e interesses da coletividade”.123 Por múnus público se entende “o que procede de autoridade pública ou da lei, e obriga o indivíduo a certos encargos em benefício da coletividade ou da ordem social”.124 Em outras palavras, pode-se definir a atividade executiva como sendo a aquela que dá concreção às leis, guiada sempre pela supremacia e indisponibilidade do interesse público. Para CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “(...) na verdade, o interesse púbico, o interesse do todo, do conjunto social, nada mais é que a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade (entificada juridicamente no Estado, nisto se abrigando também o depósito intertemporal desses mesmos interesses,vale dizer, já agora, encarados eles em sua continuidade histórica, tendo em vista 125 a sucessividade das gerações de seus nacionais”. Assim, o interesse público não se confunde nem com os interesses dos ocupantes dos cargos públicos, nem com os interesses secundários dos órgãos estatais. A função executiva, neste contexto, é a parcela da função política responsável pela atuação das leis de ofício, cujo fim é o interesse público e, para tanto, quem a exerce, goza de poderes necessários para executar atividades que visem alcança-lo. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO anota ainda que “(..) existe função quando alguém está investido do dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, ‘deveres-poderes’, no interesse público. 123 MEIRELLES, Hely Lopes, op. cit., p. 80 AURÉLIO, Buarque de Holanda Ferreira. Dicionário Aurélio Eletrônico. Versão 2.0. Autor do software Márcio Ellery Girão Barroso. São Paulo: Fronteira, 1997 (Editores, Carlos Augusto Lacerda e Paulo Geiger). 125 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13ª edição. São Paulo: Malheiros, p. 58. 124 58 (...) Assim, ditos poderes são irrogados, única e exclusivamente, para propiciar o cumprimento do dever a que estão jungidos; ou seja: são conferidos como meios impostergáveis ao preenchimento da 126 finalidade que o exercente de função deverá suprir”. Desta forma, a atividade executiva guia-se pelo interesse público indisponível, pré-determinado na Constituição e nas leis. Daí a clássica lição de HELY LOPES MEIRELLES ao dizer que “(..) na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”.127 Sob um aspecto mais técnico, correto afirmar que, no cumprimento da atividade executiva, o exercício de seu poder correlato deve ser visto mais como um dever-poder, sendo que este dever-poder será válido apenas “na extensão e intensidade proporcionais ao que seja irrecusavelmente requerido para o atendimento do escopo legal a que estão vinculados”.128 Sabe-se que, a rigor, toda conduta de governantes e governados num Estado Democrático de Direito deve ser pautada no Ordenamento Jurídico. Os próprios “Poderes Constituídos” encontram sua fonte de validade na Constituição e esta, por sua vez, só é legítima quando em consonância com a vontade do Poder Político soberano, que se encontra latente no povo, de tal forma que até os Poderes Legislativo e Judiciário, ao exercerem sua atividade, também estão cumprindo leis. Assim, numa noção bem ampla, toda a atividade estatal busca a satisfação do interesse público. Tenha-se em mente, porém, que algumas atividades identificam-se com certas categorias de atos, como, por exemplo, a de solucionar conflitos (atribuída ao Judiciário) ou a de criar normas gerais e abstratas (prevalente no Legislativo) ou, por fim, cumprir e lutar pela atuação de ofício das “leis” no interesse público, tal como a Função Executiva. 126 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., pp. 32 e 69. MEIRELLES, Hely Lopes, op cit., p. 82. 128 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 70 127 59 MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO aponta como pressupostos básicos da organização administrativa a distribuição de competências e a hierarquia nos diversos órgãos, cargos e funções, para que assim exista harmonia e unidade de direção.129 A distribuição de competências, na esfera do Poder Executivo, é a atribuição de atividades de natureza executiva aos órgãos que o compõe. Neste contexto, os órgãos nada mais são do que as unidades abstratas que sintetizam esses vários círculos de atribuições do Estado.130 No dizer de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, os órgãos classificam-se, quanto às funções que exercem, em “a) ativos, que são os que expressam decisões estatais para o cumprimento dos fins da pessoa jurídica; b) de controle, que são os prepostos a fiscalizar e controlar a atividade de outros órgãos ou agentes; e c) consultivos, que são os de aconselhamento e elucidação (pareceres) para que sejam tomadas as providências pertinentes pelos órgãos ativos”.131 Além dessa distribuição de competências, o outro elemento que a doutrina coloca como indispensável para que exista harmonia e unidade de direção na organização administrativa é a hierarquia. Celso ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO define hierarquia como sendo “(...) o vínculo de autoridade que une órgãos e agentes, através de escalões sucessivos, numa relação de autoridade, de superior a inferior, de hierarquia a subalterno”.132 Embora pareça existir um pensamento tradicional a respeito da hierarquia como característica do Poder Executivo, o fato é que há vários sentidos em que o termo pode ser empregado.133 129 PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 12ª edição. São Paulo: Atlas, 2000, p. 93. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 106 131 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 107. 132 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit, p. 116 133 Pietro, citando Renato Alessi, assinala três sentidos que podem ser empregados à expressão “hierarquia”, um técnico-político e os outros dois jurídicos, verbis: “(...) a) sob o primeiro aspecto [técnico-político], a hierarquia é um princípio, um critério de organização administrativa, em decorrência do qual um órgão se situa em plano de superioridade com respeito a outros que, por sua vez, se situam na mesma posição em relação a outros mais, e assim por diante, dando lugar a uma característica pirâmide; em seu ápice encontram-se o Chefe do Poder Executivo, de onde emanam as diretrizes para os órgãos inferiores; estes, por sua vez, fornecem os elementos e preparam as decisões dos órgãos superiores; b) sob 130 60 Por outro lado, a hierarquia comporta exceções, seja pela natureza da atividade desempenhada (tal como a consultiva, em que são incompatíveis com uma determinação de comportamento), seja pela própria atribuição legal de uma competência a ser exercida com exclusividade por um órgão executivo.134 Essas exceções ocorrem a tal ponto de se defender que a hierarquia não constitui elemento fundamental e sempre indissociável da atividade executiva, conclusão que não fugirá às ferrenhas críticas de autores de escol, como o próprio Celso Antônio Bandeira de Mello, mas que encontra apoio em outros renomados juristas. O Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, do Supremo Tribunal Federal, corrobora com este entendimento, ao advertir que há “um preconceito de unipessoalidade e verticalidade hierárquica do poder Executivo, que o Estado moderno não conhece mais e que está desmentido pelos fatos”.135 Com efeito, não há na Constituição Federal vigente qualquer impossibilidade de se ver o Poder Executivo composto de órgãos que sejam independentes, desde que, é claro, exerçam atividades tipicamente executivas. Estas observações são importantes para este estudo, eis que constituem inclusive um dos fundamentos teóricos utilizados para se incluir o Ministério Público como instituição pertencente ao Poder Executivo, ponto que será analisado no momento adequado. o segundo aspecto (agora jurídico), a hierarquia corresponde a um ordenamento hierárquico definido por lei e que implica diversidade de funções atribuídas a cada órgão; essa distribuição de competências pode ser mais ou menos rígida, podendo ser concorrente ou exclusiva; dependendo da maior ou menor rigidez, os órgãos superiores terão maior ou menor possibilidade de controle sobre os subordinados; c) sob o terceiro aspecto (ainda jurídico), a hierarquia corresponde a uma relação pessoal, obrigatória, de natureza pública, que se estabelece entre os titulares de órgãos hierarquicamente ordenados; é uma relação de coordenação e de subordinação do inferior frente ao superior, implicando um poder de dar ordens e correlato dever de obediência. Vale dizer que ordenamento hierárquico é fixado pela lei e que desse ordenamento resulta uma relação de coordenação e subordinação, que implica os já referidos poderes da Administração (...) Daí sua definição de hierarquia como ‘vínculo que coordena e subordina uns aos outros os órgãos do Poder Executivo, graduando a autoridade de cada um’” (PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di, op. cit. pp. 92/93). 134 PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, op. cit., p. 92 135 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 147, janeiro de 1994, p. 133; 61 6.4) PODER JUDICIÁRIO Quando foi analisada a Função Legislativa, constatou-se que ela é responsável pela elaboração de normas gerais e abstratas que disciplinam as condutas dos membros da sociedade, estabelecendo-se o que se denomina Direito Objetivo. Tomando-se como exemplo as normas penais, imagine-se um sujeito culpável que tiver praticado uma conduta idêntica á prevista como crime pelo Direito Penal Objetivo, sem que exista qualquer excludente da ilicitude. In casu, o Estado terá o direito de punir o infrator se, ao tempo da prática de determinada conduta, seja ela considerada delituosa. Contudo, assim não procederá sem antes levar sua pretensão punitiva para apreciação jurisdicional136, em face do princípio nulla poena sine judicio.137 Com efeito, quando alguém comete uma conduta idêntica à tipificada na Lei Penal, ele fere a norma implícita no Direito Penal Objetivo, fazendo nascer o Direito Subjetivo do Estado de punir o infrator: o direito de punir passa do plano abstrato para o concreto. Os fatos narrados na denúncia ofertada pelo Representante do Ministério Público, ou na queixa, nos casos de ação penal privada ou subsidiária da pública, são o início de uma tese, que constitui a acusação. O advogado de defesa formula a antítese e, o juiz togado, de forma equânime e de acordo com a sua persuasão racional, redige a síntese, que deverá corresponder ao que mais se aproxima da verdade.138 136 Modernamente a Jurisdição é a função estatal destinada a resolver os conflitos sociais através do devido processo legal e buscando a pacificação com justiça através de decisões tomadas para cada caso concreto por juízes naturais, em juízos ou tribunais previamente fixados, competentes para julgarem as ações levadas a sua apreciação. 137 A este respeito, Antônio C. de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido R. Dinamarco anotam que os preceitos penais “(...) de acordo com o princípio nulla poena sine judicio só podem ser atuados por meio do processo. O processo penal é indispensável para a solução da controvérsia que se estabelece entre acusador e acusdo, ou seja, entre a pretensão punitiva e a liberdade”. (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R., op. cit., p. 339). 138 No Processo Penal impera o Princípio da Verdade Real. O Juiz aprecia livremente as provas carreadas aos autos, bem como pode solicitar a produção de outras se necessário, atribuindo-lhes o valor de acordo 62 Mesmo os Juízes leigos, que compõem o Conselho de Sentença no Tribunal do Júri139, formulam uma síntese. Da mesma forma, quando se pratica uma conduta que a Lei atribui algum benefício, nascerá o direito subjetivo de requerer esse benefício. Suponha-se, assim, que uma Lei específica conceda uma isenção tributária, desde que o contribuinte cumpra algumas condições. Esta norma se dirigirá a todos os contribuintes que se encontrem na mesma situação jurídica, de tal forma que, enquanto ninguém cumprir com todas as condições estabelecidas em Lei, não terão direito ao benefício. Por outro lado, se um, alguns ou todos os contribuintes cumprirem concretamente as condições legais, nascerá o direito subjetivo em relação ao benefício, que, se não concedido espontaneamente, possibilitará o acesso ao Judiciário para que atue a vontade da Lei. Ou seja, nem sempre o Direito Objetivo é cumprido espontaneamente, estabelecendo-se um conflito, que, se levado ao Judiciário, poderá ser por esse dirimido. Se não existisse a função jurisdicional haveria uma série de conflitos que tornariam a vida social insustentável, motivo pelo qual o Estado assume o dever de promover a pacificação social. Conforme sintetiza ANTÔNIo CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO, “(...) O poder estatal, hoje, abrange a capacidade de dirimir os conflitos que envolvem as pessoas (inclusive o próprio Estado), decidindo sobre as pretensões apresentadas e impondo as decisões. com o seu convencimento. Todavia, deverá motivar a sentença, explicitar as razões de sua decisão. O réu tem o direito de se defender, pois, sem a “antítese”, ele será cerceado do seu direito de ampla defesa, desequilibrando os “pratos da balança” que forçosamente penderão para o lado da acusação, o que constitui um tratamento desigual. Nestes moldes nunca se chegará à verdade dos fatos. Afinal, A defesa, “lato sensu”, é a resistência à pretensão punitiva e, processualmente, encontra-se em paridade com a acusação. Assim, tanto poderá objetivar a absolvição do réu, como também um abrandamento da pena, já que o réu tem o direito de ser condenado na exata medida cabível no caso concreto. Mais injusto do que atribuir ao réu uma pena menor do que realmente merece é coloca-lo no cárcere por tempo superior ao que a “justiça” impõe. 139 Estes juízes são membros da sociedade e – argumenta-se -, a conhece melhor do que o juiz togado. Os jurados não se prendem às provas trazidas ao processo, decidem unicamente de acordo com a consciência de cada um, através de votação de quesitos. 63 O que distingue a jurisdição das demais funções do Estado (legislação, administração) é precisamente, em primeiro plano, a finalidade pacificadora com que o Estado a exerce. (...) A pacificação é o escopo magno da jurisdição (...). É um escopo social, uma vez que se relaciona com o resultado do exercício da jurisdição perante a sociedade e sobre a vida gregária dos seus membros e felicidade pessoal de cada um (...). Afirma-se que o objetivo-síntese do Estado contemporâneo é o bemcomum e, quando se passa ao estudo da jurisdição, é lícito dizer que a projeção particularizada do bem comum nessa área é a pacificação com justiça”.140 Embora existam outras formas de composição dos conflitos, sempre passível de análise pelo Judiciário (CF/88, Art. 5º, inc. XXXV), a atividade jurisdicional configura função indissociável da vida em sociedade, falando-se, inclusive, numa “quase absoluta exclusividade estatal no exercício dela”.141 Alguns princípios basilares norteiam a atividade jurisdicional, dos quais destacam-se os Princípios do Amplo Acesso ao Judiciário, da Imparcialidade e da Inércia, por serem diretamente relacionados com o objetivo do presente estudo. 6.4.1) Princípio do Amplo Acesso ao Judiciário Para um efetivo acesso à Justiça, não basta a mera possibilidade de se requerer a tutela estatal. Mais do que isso é necessário a existência de instrumentos que proporcionem o maior número de pessoas demandando sem que, neste intento, a atividade jurisdicional deixe de ser prestada com qualidade. 140 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R., op. cit., pp. 24/25 141 Conforme anota Antônio Cintra, Ada Pellegrini e Cândido R. Dinamarco, “o extraordinário fortalecimento do Estado, ao qual se aliou a consciência da sua essencial função pacificadora, conduziu (...) à afirmação da quase absoluta exclusividade estatal no exercício dela”, muito embora seja cada vez maior a utilização de meios alternativos de pacificação social, idéia que foi gradativamente ganhando corpo, já que “se o que importa é pacificar, torna-se irrelevante que a pacificação venha por obra do Estado ou por outros meios, desde que eficientes”. Dentre esses meios, destacam-se a autotutela, a autocomposição e a arbitragem, que, nos casos legais, não constituem ultraje ao monopólio estatal. (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R., op. cit., pp. 25-29). 64 Na prática, é uma realidade incontestável que muito ainda precisa ser feito nesse sentido. Todavia, também é inegável que houve um significativo avanço, em especial em razão do movimento pela coletivização do processo. Gregório Assagra de Almeida observa que, num primeiro momento, prevalecia no direito processual uma fase sincretista ou privatista - em que havia uma confusão metodológica entre direito material e processual, sendo este estudado sob a óptica do direito privado e considerado um mero apêndice do direito material -, até que, em 1868, Oskar von Bulow apresentou um trabalho doutrinário que revolucionaria o direito processual, no qual demonstrou, de forma sistematizada, que a relação jurídica processual era independente da relação jurídica material. Surgia, assim, a fase autonomista do direito processual, também denominada fase conceitual, tendo em vista o desenvolvimento do direito processual a partir de conceitos elementares, como o de ação, processo e jurisdição142. Assinala o referido autor que, embora nessa fase tenha havido um importante desenvolvimento científico do direito processual, não havia preocupação com questões relativas ao acesso e à efetividade da justiça, verbis: “(...) Na fase autonomista, também conhecida como fase do procedimento científico, os pobres e a coletividade massificada, essa na sua condição de titular dos direitos ou interesses transindividuais, ficavam fora da preocupação e dos estudos dos processualistas. Contudo, com a intensificação da conflituosidade social, a morosidade da justiça, as altas custas judiciais e outras questões sociais relativas ao acesso à justiça passaram a ser objeto de preocupação dos juristas, o que tem início especialmente a partir das décadas de 60 e 70 do Século XX. Com isso, tornou-se necessária a revisitação do direito processual. Surge, assim, uma nova fase metodológica, denominada de instrumentalista. É essa a fase atual do direito processual, também conhecida como fase do direito processual de resultados, ou de fase da efetividade do processo, ou fase do acesso à justiça.”143 Complementa o referido autor, enfatizando que na fase instrumentalista o direito processual passa a ser concebido como meio, como instrumento de realização de justiça por intermédio dos escopos da jurisdição144. 142 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das Ações Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, pp.5-6; 143 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das Ações Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 6. 144 Idem, Idem. 65 De fato, ANTÔNIo CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO destacam que, para que o Judiciário realize plenamente sua missão social de eliminar conflitos e fazer justiça, é preciso ater-se aos seus escopos sociais, políticos e jurídicos, bem como superar os óbices que ameaçam a boa qualidade desta prestação, quais sejam: “(...) a) admissão ao processo, eliminado dificuldades econômicas (art. 5º, inc. LXXIV) e abrindo campo para a defesa de direitos difusos e coletivos (através de instrumentos, como p. ex., a Lei da Ação Civil Pública, que permite ao Ministério Público e às associações pleitear judicialmente em prol dos interesses supraindividuais ou o mandado de segurança coletivo) ; b) o modo-de-ser do processo, observando-se o devido processo legal e contraditório; c) a justiça das decisões, onde o juiz deve pautar-se pelo critério de justiça, seja apreciando a prova, enquadrando os fatos adequadamente, interpretando os textos de direito positivo, optando-se pelo resultado mais justo diante duplo sentido interpretativo; d) utilidade das decisões, dando tudo aquilo e somente aquilo que se tem direito obter”.145 De outro lado, foi nessa fase instrumentalista do direito processual que surgem as chamadas ondas renovatórias do acesso à justiça, assim sintetizadas por Gregório Assagra: “A primeira onda renovatória do acesso à justiça é conhecida como gratuidade da justiça aos pobres; esse primeiro movimento pelo acesso à justiça não foi suficiente, especialmente por tratar o pobre como indivíduo e esquecer da coletividade (direitos massificados). A segunda onda renovatória do acesso à justiça, que aqui nos interessa particularmente, é conhecida como representação em juízo dos interesses difusos e tem início no final da década de 1960 e início da década de 1970 nos Estados Unidos e na Europa (França, Suécia, etc.). A segunda onda é conhecida também como movimento mundial pela coletivização do processo. Entretanto, as duas primeiras ondas renovatórias do acesso à justiça não foram suficientes, o que fez surgir uma terceira onda denominada de um novo enfoque sobre o acesso à justiça. Essa terceira onda renovatória do acesso à justiça possui três dimensões: A primeira dimensão é abrangente das ondas renovatórias anteriores, mais vai além. 145 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R., op. cit., pp. 35/35. 66 Pela segunda dimensão, o acesso à justiça passa a ser visto por intermédio de um novo método de pensamento – como direito ao acesso a uma ordem jurídica justa, o que passa a ser objeto de indagação da filosofia do direito e da teoria geral do direito, de sorte que não há sentido em se falar em direito sem efetividade. Em uma terceira dimensão, esse novo enfoque sobre o aceso à justiça (terceira onda renovatória do acesso à justiça) propõe um amplo e moderno programa de reformas do sistema processual, que se viabilizaria por intermédio: a) da criação de meios alternativos de solução de conflitos (substitutivos e equivalentes jurisdicionais), tais como alguns já implantados no Brasil (arbitragem, a tomada pelos órgãos públicos legitimados às ações coletivas do compromisso de ajustamento de conduta às exigências legais, etc.); b) a implantação de tutelas diferenciadas (podemos citar no Brasil, a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional final pretendida; os juizados especiais; o procedimento monitório, etc.); c) as reformas pontuais no sistema processual, a fim de torna-lo mais ágil, eficiente e justo. (...)”.146 Realmente, surgem cada vez mais instrumentos processuais que ampliam o acesso à prestação jurisdicional, tais como a Ação Popular, o chamado Mandado de Injunção Coletivo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade, a Ação Declaratória de Constitucionalidade, a Ação de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, entre outros. Já se pode perceber que o amplo acesso ao Judiciário é algo mais que a simples enunciação de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (CF, art. 5º, inc. XXXV), ou que haverá a prestação de “assistência jurídica integral e gratuita aos que provarem insuficiência de recursos” (CF, art. 5º, inc. LXXIV). Exige-se, além disso, instrumentos jurídicos eficientes, notadamente os que possibilitem, em uma única decisão, alcançar, com qualidade, um grande número de pessoas. O Ministério Público exerce importante papel para que se efetive esses instrumentos, principalmente em relação aos direitos sociais e individuais indisponíveis, que são de controle jurisdicional indispensável147, e na defesa da constitucionalidade das normas. 146 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das Ações Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 8; 147 “As pretensões necessariamente sujeitas a exame judicial para que possam ser satisfeitas são aquelas que se referem a direitos e interesses regidos por normas de extrema indisponibilidade, como as penais e aquelas não-penais trazidas como exemplo (esp., direito de família). É a indisponibilidade desses direitos, sobretudo o de liberdade, que conduz a ordem jurídica a ditar, quanto a eles, regra do indispensável 67 6.4.2) Princípios da Imparcialidade e Inércia Quanto aos Princípios da Imparcialidade e da Inércia, aproveita-se a oportunidade para que se dê um enfoque social, antes mesmo dos aspectos positivistas. Com efeito, o fato da República Federativa do Brasil constituir-se em Estado Democrático de Direito, propugnador da aplicação do Princípio da Igualdade, conduz o Judiciário, enquanto responsável pela pacificação social, a uma postura cada vez mais condizente com esses princípios. Se a igualdade consagrada constitucionalmente revela-se no tratamento equânime entre os iguais e, diferenciado - na medida dessa desigualdade -, com relação àqueles que se encontram em situações jurídicas diversas, então deve o Judiciário pautar-se por esses critérios ao julgar as causas que lhes são afetas, sob pena de ser tornar parcial. Com efeito, se o Estado, representado pelo Magistrado, tratar igualmente pessoas cujas diferenças devem ser consideradas, caminhará em sentido oposto à imparcialidade. Por isso, para que se assegure a imparcialidade do juiz são estabelecidas constitucionalmente garantias e vedações (CF/88, art. 95), proibindo-se, ainda, os chamados juízos e tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII), tudo para que o Estado-juiz haja com imparcialidade na solução das causas que lhe são submetidas.148 O Supremo Tribunal Federal reconheceu não só o Princípio do Juiz Natural como o do Promotor Natural, que caminham juntos para a consecução do Princípio da Imparcialidade.149 controle jurisdicional” (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R., op. cit., p. 31). 148 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido R., op. cit., p. 52. 149 Aliás, o Ministério Público, enquanto defensor da Ordem Jurídica, do Regime Democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, também deve colaborar para uma real imparcialidade, não atuando apenas como um fiscal da lei, mas como um fiscal das leis democráticas. 68 A razão de ser do Princípio da Inércia é a própria necessidade de imparcialidade do Judiciário, traduzidos nos brocardos ne procedat judex ex officio (não procederá o juiz de ofício) e nemo judex sine actore (o juiz não julga sem provocação da parte).150 Nem por isso, autoriza-se a ilação de que o Princípio da Inércia seja absoluto, pois, nos casos previstos em Lei permite-se a iniciativa do Judiciário. Cite-se, como exemplo: a) a execução trabalhista iniciada por ato do Juiz (art. 878 da Consolidação das Leis do Trabalho); b) a execução penal instaurada de ofício, com a expedição de guia para o cumprimento da pena (art. 105 da Lei de Execução Penal); e c) A concessão, de ofício, de Ordem de Habeas Corpus (art. 654 do CPP); Ademais, uma vez instaurado o processo e desde que a Lei assim permita, cabe ao Juiz, tanto na esfera cível como penal fazer com que o processo marche até que se dê definitivamente a tutela pleiteada. É o chamado impulso oficial. Destarte, na esfera cível, o Juiz poderá determinar de ofício as provas necessárias à instrução do processo (art. 130 do CPC, de forma semelhante dispõe os arts. 765 da CLT) e, em qualquer fase processual, inspecionar pessoas ou coisas, a fim de se esclarecer sobre fato que interesse à decisão da causa (art. 440 do CPC). De outra forma não é no processo penal, onde se acentua a busca pela verdade real e, para tanto, também se encontram normas que permitem certa postura ativa do Judiciário, embora cada vez mais mitigada em nome do princípio acusatório. A inércia do Judiciário, pois, ocorre apenas na medida necessária para cumprir sua função de pacificar com justiça, sendo que, nos casos e formas legais, exige-se uma atuação positiva do Magistrado. Portanto, a imparcialidade do Juiz se concretiza apenas quando, ao decidir, ele leva em conta os Princípios da Isonomia e do Estado Democrático, cumprindo assim sua missão de pacificar com justiça. 150 O Código de Processo Civil, em seu artigo 2º, estabelece que “nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou interessado a requerer, nos casos e forma legais”. 69 6.5) PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES COMO CLÁUSULA PÉTREA Dispõe o art. 60, § 4º, III da Constituição Federal vigente que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (...) a separação dos Poderes”. Na lição de MARCUS CLÁUDIO ACQUAVIVA, entende-se por cláusula pétrea o “(...) dispositivo constitucional imutável, não podendo ser alterado nem mesmo pro via de Emenda Constitucional. O objetivo do legislador, neste caso, é o de impedir inovações temerárias em assuntos cruciais para a cidadania ou o próprio Estado”.151 Isto significa que o Princípio da Separação dos Poderes constitui valor fundante do próprio Estado e somente uma nova Constituição poderá suprimi-lo, ou seja, qualquer Lei, ou mesmo uma Emenda Constitucional, que direta ou indiretamente se proponha a abolir a separação dos Poderes, será inconstitucional. Assinale-se que, no Brasil, prevalece o entendimento de que as cláusulas pétreas, “além de assegurarem a imutabilidade de certos valores, além de preservarem a identidade do projeto do constituinte originário, participam, elas próprias, como tais, também da essência inalterável desse projeto”152. 151 ACQUAVIVA, Marcus Cláudio, op. cit., p. 322 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 218. 152 70 CAPÍTULO III DO MINISTÉRIO PÚBLICO 1) CONCEITO A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 127, caput, define o Ministério Público como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Esse conceito é repetido nos artigos iniciais da Lei Complementar Federa nº. 75/93 e da Lei nº. 8.625/93. O Ministério Público abrange o Ministério Público da União (que compreende o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Militar e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios) e os Ministérios Públicos dos Estados (CR/88, art. 128), que possuem funções descritas, em rol exemplificativo, no próprio Texto Constitucional (art. 129). A chefia do Ministério Público da União cabe ao Procurador-Geral da República, membro da carreira, com idade superior a 35 (trinta e cinco) anos, nomeado pelo Presidente da República após autorização da maioria absoluta do Senado, com mandato de dois anos, admitida a recondução (CF/88, art. 128 e § 1º). O Procurador-Geral da República não é demissível ad nutum, ou seja, antes de terminado seu mandato só poderá ser exonerado por iniciativa do Presidente da República se houver autorização da maioria absoluta do Senado Federal, nos termos dos artigos 158, § 2º, e 54, XI da Constituição da República em vigor. A chefia dos Ministérios Públicos dos Estados e do Distrito Federal, por sua vez, cabe ao Procurador-Geral, nomeado pelo Governador, conforme a lista tríplice 71 formulada pela própria Instituição, dentre integrantes do quadro, para mandato de dois anos, permitida uma recondução (CF/88, art. 128, § 3º). A destituição do Procurador-Geral nos Estados e no Distrito Federal pode ser feita pela deliberação da maioria absoluta do Poder Legislativo da respectiva unidade da Federação, na forma da lei complementar (CF/88, art. 128, § 4º). Há ainda, ao lado do Ministério Público comum, outro Especial, cujos membros oficiam junto aos Tribunais de Contas (CF/88, art. 130). Neste “Capítulo III”, após a conceituação e o histórico do Ministério Público (com ênfase em seu posicionamento entre os Poderes do Estado nas Constituições anteriores à de 1988), serão analisados principalmente os elementos essenciais da Seção destinada ao Ministério Público na Constituição Federal de 1988. 2) HISTÓRICO 2.1) ORIGENS REMOTAS E PRÓXIMAS DO MINISTÉRIO PÚBLICO A doutrina diverge quanto às raízes remotas do Ministério Público, das quais destacam-se: a) há mais de quatro mil anos, no magiaí, funcionário real no Egito; b) na Antiguidade clássica; c) na Idade Média; d) no vindex religionis do direito canônico; e) nos procurateurs ou procureurs du roi do velho direito francês; e f) em Pávia ou Piemonte. 153 Conforme já assinalado na introdução do presente estudo, costuma-se afirmar que a origem próxima do Ministério Público está na França, mencionando-se, como fonte normativa primeira, a Ordenança de 25 de março de 1302, de Felipe IV, o Belo, rei da França, que tratava dos procuradores do rei, embora parte da doutrina diga são os 153 MAZZILLI, Hugo Nigro, Regime Jurídico do Ministério Público. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 42 72 textos napoleônicos que instituíram o Ministério Público que a França veio a conhecer na atualidade.154 Na visão de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, o que teria levado muitos autores a se inclinarem a admitir sua procedência francesa, foi porque ali a Instituição se apresentou pela primeira vez com caráter de continuidade.155 Todavia, o Ministério Público, tal como o conhecemos hoje, é realidade recente, sendo que, embora possa ser identificada em alguns funcionários e magistrados antigos uma ou outra das atribuições que ora são conferidas ao Ministério Público, o fato é que essas atribuições foram se ajuntando paulatinamente nas mãos desta Instituição, até ganhar a feição atual.156 TOURINHO FILHO alerta que somente no século XVI a Instituição chegou a um maior desenvolvimento, com as Ordonnances, que culminaria “por conseguir, no ano revolucionário de 1792, as garantias da inamovibilidade e independência em face ao Poder Executivo, se bem que elas durassem pouco tempo”.157 Sob um foco mais específico para esta pesquisa, PAULO SALVADOR FRONTINI relaciona a origem próxima do Ministério Público com o Princípio da Separação dos Poderes, em sistema de freios e contrapesos, apontando como origem da instituição a vitória das idéias iluministas, consagradas na Revolução Francesa. Segundo este autor, “(...) O Estado, que era até então totalitário e arbitrário, viu-se forçado a submeter-se à lei, principalmente à mais graduada delas, a Constituição. Foi nesse momento, também, que os cidadãos, escarmentados da prepotência do Estado absolutista, sujeitando todos os súditos aos caprichos do monarca (L’Etat c’est moi...), impuseram o princípio da separação dos poderes, inspirado na célere fórmula de Montesquieu. Instituía-se o sistema de freios e contrapesos: quem legisla, não administra, nem julga; quem administra, não legisla, nem julga; quem julga, não administra nem legisla; e como quem julga manifesta-se por último, não pode julgar de ofício; há que ser provocado pelo interessado. Aqui estão as raízes do Ministério Público! O Ministério Público é filho da Democracia clássica e do Estado de Direito! Vê-se por aí, quão grandes são as afinidades do 154 A influência francesa foi tanta que foram ali que surgiram as expressões Parquet (assoalho) e magistrature débout (magistratura de pé, que se contrapõe à magistrature assise, seu seja, magistratura sentada), hodiernamente utilizadas. (MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., pp. 43-45) 155 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 20ª edição, vol. 2, São Paulo: Saraiva, p. 334. 156 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 50. 157 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., p. 335 73 Ministério Público com expressivas figuras do Estado de Direito: as garantias individuais; a proteção jurisdicional dos direitos do cidadão; a instrução contraditória e a plenitude de defesa, dentre outros”.158 (destaques nossos) Daí se extrai um dos motivos que culminaram na atribuição ao Ministério Público da defesa da Ordem Jurídica, do Regime Democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF/88, art. 127, caput). 2.2) AS ORIGENS DO MINISTÉRIO PÚBLICO BRASILEIRO E O SEU POSICIONAMENTO CONSTITUCIONAL Também já se assinalou que o Ministério Público brasileiro possui origem lusitana e as principais fontes mencionadas são as Ordenações Manuelinas de 1514 cujos títulos XI e XII do Livro I, cuidavam, respectivamente, “Do Procurador dos Nossos Feitos” e do “Prometor da Justiça da Casa da Sopricaçam” – e as Ordenações Filipinas de 1603, que trataram da instituição de modo ainda mais detalhado.159 Em 1609, quando foi criada a Relação da Bahia, a função de Promotor de Justiça era atribuída ao procurador da Coroa e da Fazenda, mas ainda de modo não institucionalizado, situação que perdurou até o surgimento do Decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890 (que organizou a Justiça Federal) e o Decreto n. 1.030, de 14 de novembro de 1890 (que organizou a Justiça do Distrito Federal), quando então se diz que ocorreu, em sede infraconstitucional, sua institucionalização.160 MAZZILLI afirmar que a partir de então o Ministério Público foi ganhando cada vez mais importância, muito embora a Constituição Imperial de 1824 sequer tivesse mencionado o Ministério Púbico e a Constituição da República de 1891 se referisse apenas ao Procurador-Geral da República, determinando que sua escolha seria feita dentre membros do Supremo Tribunal Federal (art. 58, § 2º).161 158 FRONTINI, Paulo Salvador. Ministério Público, Estado e Constituição apud MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit.,p. 51. 159 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 47 160 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., pp. 55-57. 161 Idem, ibidem. 74 A Constituição de 1934 foi a primeira a reconhecer o Ministério Público como Instituição, ao discipliná-lo no Título I (Da organização Federal), Capítulo VI (Dos órgãos de cooperação nas actividades governamentais), Seção I (Do Ministério Público). Em seu art. 95, norma de eficácia limitada, previu os Ministérios Públicos na União, no Distrito Federal e Territórios, e nos Estados. Determinou ainda que o Chefe do Ministério Público Federal nos juízos comuns era o Procurador Geral da República, nomeado pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, mas demissível ad nutum. A Constituição Federal de 1937 referiu-se à Instituição em breves passagens, no título reservado ao Poder Judiciário. O Procurador-Geral da República continuou sendo de livre nomeação e demissão pelo Presidente da República, contudo, sem a necessidade de aprovação do Senado Federal, prevendo-se ainda a participação dos membros do Ministério Público nos Tribunais Superiores pelo quinto constitucional. A Carta Política de 1946, com alterações pela Emenda Constitucional nº 16, de 26.11.1965, situou o Ministério Público em título específico (Título II - Do Ministério Público), sem ligá-lo expressamente a nenhum dos Poderes do Estado. Quanto à nomeação do Procurador-Geral inovou apenas ao voltar a exigência de aprovação pelo Senado. Já em relação ao “quinto constitucional”, foi prevista para a Justiça Estadual (art. 124, V), reservando-se vagas, para a composição na esfera federal, apenas no Tribunal Federal de Recursos (art. 103). O ingresso na carreira se dava por concurso público, possuindo os membros estabilidade e inamovibilidade (art. 127), garantias que deveriam ser seguidas pelos Ministérios Públicos estaduais (art. 128). A União era representada em juízo pelos Procuradores da República e, nas comarcas do interior, pelos membros do Ministério Público estadual, desde que existente previsão legal nesse sentido. A Constituição Federal de 1967, sem que se alterasse significativamente a disciplina dada pela Constituição de 1946, deslocou novamente o Ministério Público 75 para o capítulo reservado ao Poder Judiciário, colocando-o no Capítulo VIII (Do Poder Judiciário), Seção IX (Do Ministério Público). A Emenda Constitucional nº 1 de 1969 alterou novamente o posicionamento constitucional do Ministério entre os Poderes do Estado, colocando-o no “Capítulo VIII (Do Poder Executivo), Seção VII (Do Ministério Público)”.162 A Constituição Federal de 1988 tratou do Ministério Público em capítulo especial (Seção I - Do Ministério Público”, do Capítulo IV - Das Funções Essenciais à Justiça, do Título IV - Da Organização dos Poderes), sem vincula-lo expressamente a nenhum dos poderes declarados em seu art. 2º (Legislativo, Executivo e Judiciário). No quadro abaixo se encontra resumida a colocação tópica do Ministério Público entre os Poderes do Estado. Sem nenhuma referência à Instituição do • Ministério Público Constituições Federais de 1824 e de 1981 (esta última referia-se apenas ao Procurador-Geral da República, que teria funções definidas em lei). Sem colocação tópica do Ministério Público entre os Poderes do Estado • Constituição Federal de 1946; • Constituição Federal de 1934 (posicionado no “Título I - Da Organização Federal, Capítulo VI Dos órgãos actividades de cooperação governamentaes das (sic)”, Secção I – Do Ministério Público”163 e • Constituição Federal de 1988 no “Título IV - Da Organização dos Poderes), Capítulo IV - Das Funções 162 Assim, retornou ao Poder Executivo, mas a disciplina do Ministério Público necessitava de lei complementar relativamente às normas gerais dos Ministérios Públicos estaduais, o que foi feito com o advento da Lei Complementar nº 40, de 14.12.1981. 163 Apesar de não ter ocorrido uma colocação tópica do Ministério Público expressamente entre os Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, sua disposição como Órgão de Cooperação das Atividades Governamentais, no título que trata da organização federal, está implicitamente colocando-o no Poder Executivo. Tanto é assim que, ao se referirem à Emenda Constitucional nº 1 de 1969, a doutrina fala em retorno “à área do Poder Executivo” (Cf. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Vol. VI. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 3294) 76 Essenciais à Justiça), Seção I - Do Ministério Público”. Com referências à Instituição do Ministério • Constituição Federal de 1937. • Constituição Federal de 1967. • Constituições Federal 1967, com Público no Título do Poder Judiciário, mas sem capítulo ou seção específicos Colocou o Ministério Público no Capítulo que trata do Poder Judiciário, com seção específica Expressamente no capítulo Executivo, com seção específica do Poder alteração dada pela Emenda nº 1/1969. 3) MINISTÉRIO PÚBLICO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Para JOSÉ PAULO SEPÚLVEDA PERTENCE, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, o Constituinte de 1988 tratou com riqueza inédita o Ministério Público, de forma nunca dantes vista no Brasil ou alhures, tanto em termos de abrangência como densidade normativa, sendo que, considerando-se as constituições anteriores, nenhuma instituição do Estado saíra tão fortalecida e prestigiada.164 Todavia, como bem ressalta este mesmo jurista, a disciplina constitucional do Ministério Público foi apenas um “esboço” ou “esquema” de seu regime jurídico. Em suas palavras, “(...) Da abrangência temática ou da pretensão sistemática da vigente seção constitucional do Ministério Público, contudo, não é dado extrair a ilusão da completeza de um estatuto normativo cerrado, do qual se pudesse extrair, por mera subsunção lógica, a solução, pelo menos, de todas as questões fundamentais da sua organização, independentemente da mediação, que ela própria cometeu à instância da decisão política do legislador complementar. O que se tem na Constituição é um esboço do Ministério Público. Esboço, repita-se, de extensão e densidade normativa e pretensões sistemáticas inéditas. 164 Segundo PERTENCE, essa riqueza inédita se deu “(...) seja sob o prisma da organização e da autonomia e independência da instituição em relação aos Poderes do Estado, seja sob o do estatuto básico das garantias e das atribuições de seus órgãos de atuação” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 147, janeiro de 1994, p. 129). 77 Mas é um esquema: não um código, um contexto de regulação completa da instituição (...)”.165 De fato, o regime jurídico básico do Ministério Público é composto também pela Lei Complementar federal nº 75, de 20 de maio de 1993 (LOMPU), pela Lei Federal nº. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (LONMP) e pelas legislações específicas dos Ministérios Públicos dos Estados, em que pese aqui, pelo tema proposto, ser dado enfoque ao Texto Constitucional em vigor, especialmente à Seção destinada ao Ministério Público. 3.1) MINISTÉRIO PÚBLICO: INSTITUIÇÃO PERMANENTE E ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL DO ESTADO (CF/88, ART. 127, CAPUT, 1ª PARTE) Ao Ministério Público coube parcela significativa da função política166, de tal forma que o Constituinte o conceituou como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado” (CF/88, art. 127, caput). Para JOSÉ CRETELLA JR., quando a Constituição conceitua o Ministério Público como “instituição permanente”, quer significá-lo como “(...) organismo que, criado, entra no mundo jurídico para o desenvolvimento ininterrupto das funções, que lhe condicionaram o nascimento”.167 E, quando afirma ser o Ministério Público Instituição “essencial à função jurisdicional do Estado”, quer se expressar que, ausente o Ministério Público, prejudicada estará a atividade jurisdicional. 165 Idem, ibidem. PAULO CÉZAR PINHEIRO CARNEIRO aduz que “(...) esta macroatribuição do Ministério Público se operacionaliza, do ponto de vista do exercício da atividade processual, nos vários ramos do direito, ora atuando como parte da relação jurídico-processual (órgão agente), ora como fiscal da lei (órgão interveniente). O exercício das chamas funções típicas como substituto processual ou representante legal da parte (advogado), deixou de integrar o rol de atribuições do Ministério Público, em face da expressa vedação constitucional no art. 129, IX, (da Constituição de 1988)”. (CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 7) 167 CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Vol. VI. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 3.295. 166 78 Isso se dá, por um lado, porque o Judiciário, em regra, é inerte, necessitando da provocação do interessado para prestar a tutela jurisdicional e, de outro, porque ao Ministério Público foi incumbida a defesa de interesses que, pela sua natureza, não podem prescindir de uma proteção Estatal. Suponha-se, por exemplo, que não existisse um órgão público para defender os direitos difusos. Nesse caso, esses direitos, por não pertencerem a um indivíduo isolado, mas a toda a sociedade, poderiam ser livremente violados. Aqueles que ferissem direitos difusos estariam livres de qualquer responsabilidade, pois, se o Judiciário, para ser imparcial, precisa ser inerte, a ausência de um órgão apto a provoca-lo impediria o exercício da atividade jurisdicional. Sob esse prisma poder-se-ia dizer que, como quem julga, geralmente, não se manifesta de ofício, a expressão “indispensável à função jurisdicional” já seria suficiente para qualificar o Ministério Público como “instituição permanente”. Insta ressaltar que as funções ministeriais não se restringem a oficiar junto aos órgãos jurisdicionais, nem ele atua em todos os feitos levados à apreciação do Judiciário, mas apenas em relação àqueles que a Constituição e as Leis infraconstitucionais estabelecem e desde que compatíveis com sua finalidade (CF/88, Art. 129, IX).168 A iniciativa ou a intervenção do Ministério Público em juízo, portanto, que lhe dá a característica de essencial à prestação jurisdicional, ocorre relativamente à defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis e quando de alguma forma sua atuação for conveniente à defesa do interesse público, o que inclui os direitos individuais homogêneos, onde não há propriamente indisponibilidade de interesses.169 168 HUGO NIGRO MAZZILLI ensina que a “referencia a ser ‘essencial à função jurisdicional do Estado’ vem feita no art. 127 da Constituição, e já se achava presente no art. 1º da Lei Complementar n. 40/81, bem como constava do art. 308 do Anteprojeto Afonso Arinos, mas não deixa de ser duplamente incorreta: diz menos do que deveria (o Ministério Público tem inúmeras funções exercidas independentemente da prestação jurisdicional, como na fiscalização de fundações e prisões, nas habilitações de casamento, na homologação de acordos extrajudiciais, na direção de inquérito civil, no atendimento ao público, nas funções de ombudsman), e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, diz mais do que deveria (pois o Ministério Público não oficia em todos os feitos submetidos à prestação jurisdicional, e sim, normalmente, apenas naqueles em que haja algum interesse indisponível, ou, pelo menos, transindividual, de caráter social, ligado à qualidade de uma das partes ou à natureza da lide)” (MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 146). 169 Idem, ibidem. 79 3.2) O MINISTÉRIO PÚBLICO REGIME DEMOCRÁTICO E A E DOS DEFESA DA ORDEM JURÍDICA, INTERESSES SOCIAIS E DO INDIVIDUAIS INDISPONÍVEIS (CF/88, ART. 127, CAPUT, 2ª PARTE) Incumbe ao Ministério Público, por expressa determinação constitucional, a defesa da Ordem Jurídica, do Regime Democrático e dos Interesses Sociais e Individuais Indisponíveis. É vasta a doutrina que trata dessas incumbências constitucionais, destacando às minúcias as formas que o Ministério Público atua, não só como órgão agente, mas também como órgão interveniente (fiscal da lei). Aqui, todavia, será dado um enfoque eminentemente teleológico, buscando a essência da atividade ministerial, pois é a partir dela que se pode auferir se o Ministério Público possui especialização funcional, que, juntamente com a autonomia ou independência orgânica, constituem elementos indissociáveis do “Poder”. 3.2.1) A Defesa da Ordem Jurídica À luz do preceituado no art. 129, IX, da Constituição Federal, o Ministério Público somente pode exercer atividades condizentes com sua finalidade, de modo que não lhe cabe a defesa de toda e qualquer norma jurídica, como parece indicar a expressão “defesa da ordem jurídica”, contida no caput do art. 127 da Constituição da República de 1988. Após aduzir que o Ministério Público, com o advento da Constituição Federal de 1988, não pode ser visto mais como um mero fiscal da lei, sob o aspecto formal ou exterior do direito positivo, o Ministro CELSO DE MELLO, do Supremo Tribunal Federal, busca extrair da atuação do Ministério Público a essência do que se entende por “DEFESA DO REGIME DEMOCRÁTICO”, a que lhe foi incumbida, in verbis: 80 “(...) Pretende-se, agora, investir o Ministério Público de um poder de verificação e de tutela sobre a legitimidade ética e política da própria norma de direito. (...) A essencialidade dessa posição político-jurídica do Ministério Público assume tamanho relevo que ele, deixando de ser fiscal de qualquer lei, converte-se no guardião da ordem jurídica cujos fundamentos repousam na vontade soberana do Povo. O Ministério Público deixa, pois, de fiscalizar a lei pela lei, num inútil exercício de mero legalismo. Requer-se dele, agora, que avalie, criticamente, o conteúdo da norma jurídica, aferindo-lhe as virtudes intrínsecas, para, assim, neutralizar o absolutismo formal de regras legais, muitas vezes divorciadas dos valores, idéias e concepções vigentes na comunidade, em dado momento histórico-cultural. Não mais se pode, assim, exigir do Ministério Público um comportamento institucional que traduza, em face da ordem jurídica estabelecida, uma postura de neutralidade axiológica (...)”170 Assim, a lei, ou melhor, o Direito, não pode ser visto apenas sob o aspecto legalista. Conforme afirma CARLOS MAXIMILIANO, com a promulgação, a lei separa-se do Legislador, ganha vida própria, podendo ser mais sábia do que o Legislador, pois abrange hipóteses que este não previu. Em suas palavras, “a letra perdura, e a vida continua”, de tal forma que, sendo a ação do tempo irresistível, não respeita a estagnação aparente dos Códigos. Daí a necessidade de se adaptar o Direito às sucessivas mudanças sociais, até mesmo para que se preserve a validade da norma.171 O membro do Ministério Público também deve interpretar o Direito buscando dar à norma seu sentido mais útil, extraindo dela seu sentido democrático. Se, sob determinado prisma, a Lei (Direito) é mais sábia que o Legislador, sob outro, o próprio intérprete é mais sábio que a Lei. CARLOS MAXIMILIANO diz que “(...) os juízes, oriundos do povo, devem ficar ao lado dele, e ter inteligência e coração atentos aos seus interesses e necessidades. A atividade dos pretórios não é meramente intelectual e abstrata; deve ter um cunho prático e humano; revelar a existência de bons sentimentos, tato, conhecimento exato das realidades duras da vida. Em resumo: é o magistrado, em escala reduzida, um sociólogo em 170 HABEAS CORPUS nº. 67.759/RJ, Pleno, Rel. Ministro Celso de Mello, sessão plenária de 06.08.92, acórdão publicado no Diário de Justiça de 01.07.1993, Ementário nº. 1710-01, conforme RTJ 150/123 171 SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, pp. 18-25. 81 ação, um moralista em exercício; pois a ele incumbe vigiar pela observância das normas reguladoras da coexistência humana, prevenir e punir as transgressões das mesmas”.172 Buscar o sentido axiológico da norma jurídica significa imprimir-lhe os valores sociais que lhe dão legitimidade, pois, conforme lição de LOURIVAL VILANOVA “(...) se a norma é dever-ser, é dever-ser de algo”.173 Sendo essa a vontade real da Ordem Jurídica, cabe ao Ministério Público assim defende-la, lutando para que o Judiciário aplique as normas imprimindo-lhes seu verdadeiro conteúdo axiológico, até mesmo porque, essa missão constitucional constitui parcela da própria razão de ser do Ministério Público, defensor não só da legalidade, mas da própria legitimidade do Direito.174 3.2.2) A Defesa do Regime Democrático A “defesa do regime democrático”, consubstanciada na Lei Fundamental, não deixa de ser um dos aspectos da defesa da Ordem Jurídica, mas agora sob o enfoque da manutenção do Poder Político nas “mãos do povo” e em seu benefício. Portanto, ultrapassa a simples defesa das normas que regem a participação do povo na condução da vida social e da vigilância para que não se instaure outro tipo de Regime. Traduz-se em fazer com que o Ministério Público dê às normas o seu sentido e alcance democrático, de acordo com os princípios e valores sociais. Nas palavras de CELSO DE MELLO, “(...) Mais importante, agora, torna-se o próprio conteúdo da lei, cujos elementos intrínsecos não podem divorciar-se dos fatos sociais e do quadro histórico em que a norma jurídica se formou. O Estado democrático, gerador de uma ordem jurídica fundada no consentimento dos governados – que se exterioriza pela livre e permanente penetração da sua vontade no processo decisório nacional 172 SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos, op. cit., p. 51 LOURIVAL, Vilanova. Sobre o Conceito de Direito apud COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro: comentários à Constituição e ao Código tributário nacional, artigo por artigo. Rio de Janiero: Forense, 1999, p. 11. 174 A este respeito, conferir: FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 26ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 268. 173 82 – deve ser entendido como aquele cujas bases repousam na soberania popular, na divisão funcional do Poder, no respeito e na garantia das liberdades públicas, e no pluralismo de expressão e de organização política. A legalidade assim posta, veiculadora das justas aspirações e dos objetivos maiores perseguidos pelo corpo social, qualifica-se como democrática, passível, em conseqüência, da tutela institucional do Ministério Público. Este, pois, deixa de ser um servo incondicional de qualquer legalidade, para converter-se num órgão que indague das origens da norma e lhe perquira o conteúdo, valendo-se, para tanto, de critérios axiológicos que lhe permitam aferir dos elementos que qualificam a 175 regra jurídica como essencialmente democrática”. Isso significa que, pertencendo o Poder Político ao povo, é em favor desse que deve revestir o Direito, pois somente assim a Lei se transformará em algo válido e útil para a sociedade e não dos interesses dos próprios governantes. Destarte, deve o Ministério Público atuar tendo em vista que o Estado de Direito, para traduzir-se num verdadeiro Estado Democrático de Direito, requer não só que exista um governo de Leis, mas de Leis que se convertam em benefício da sociedade e não de uma minoria. “Por isso se diz, na conformidade da máxima oriunda do Direito inglês, que no Estado de Direito requer-se o governo das leis, e não dos homens; impera o rule of law, not of mam”.176 3.2.3) Defesa dos Interesses Sociais e Individuais Indisponíveis Inicialmente, deve-se fazer uma observação: a atividade do Ministério Público, que deve ser pautar pelo interesse público, exige dele que, o quanto possível, se evite uma demanda judicial. Isso demonstra que se deve suplantar o sentido técnico do termo “interesse”, para vê-lo não só ligado à atividade processual, pois esta há de ser exercida em caráter subsidiário. 175 HABEAS CORPUS nº. 67.759/RJ, Pleno, Rel. Ministro Celso de Mello, sessão plenária de 06.08.92, acórdão publicado no Diário de Justiça de 01.07.1993, Ementário nº. 1710-01. 176 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 72 83 Com efeito, o Ministério Público exerce várias atividades extraprocessuais e somente quando estritamente necessário ou nos casos expressos em lei deve provocar a atuação jurisdicional. De qualquer modo, para evitar ou para solucionar os conflitos de interesses, seja na esfera judicial ou extrajudicial, torna-se imperativa a compreensão dos termos interesses indisponíveis, tanto os individuais, como os metaindividuais. Interesses indisponíveis, como o próprio nome diz, são aqueles de que a pessoa não pode livremente dispor e, quando relativamente ao interesse de uma determinada pessoa, denomina-se individual. A tutela dos interesses metaindividuais (ou transindividuais), a seu turno, é gênero do qual os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos são espécies. Interesses difusos são aqueles interesses de natureza indivisível, que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato (Código de Defesa do Consumidor - CDC, art. art. 81, parágrafo único, I). Já os interesses coletivos são os interesses indivisíveis, de que sejam titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base (CDC, art. 81, parágrafo único, II). Os interesses individuais homogêneos, por sua vez, são aqueles interesses divisíveis, decorrentes de origem comum, possuindo titulares determináveis e ligados por circunstância fática (CDC, art. 81, parágrafo único, III). Para a defesa desses interesses dispõe o Ministério Público de legitimidade para interpor a Ação Civil Pública (CF/88, art. 129, III e Lei nº 7.347 de 1985, art. 5º), ou atuar como órgão interveniente (Lei nº 7.347 de 1985, art. 5º, § 1º ). Parte da doutrina, porém, restringe a atividade ministerial quanto aos interesses individuais homogêneos, que, de acordo com esse entendimento, somente poderiam ser 84 defendidos pelo Ministério Público no caso de serem socialmente relevantes, pois, a rigor, são apenas interesses individuais, mas que a Lei possibilita a tutela coletiva. Cabe assinalar que as várias espécies de interesses podem ser atingidos numa mesma situação, como, por exemplo, ao se lançar produtos tóxicos num rio. Nesse caso, em relação ao meio ambiente, o interesse é de toda a coletividade (difuso), mas, eventualmente, poderá prejudicar a atividade pesqueira ou agrícola (interesse individual homogêneo), ou uma cooperativa de pescadores ou agricultores (interesse coletivo), ou ainda alguém que tenha adoecido por ter bebido da água contaminada (interesse individual). Modernamente, em especial pela consagração dos direitos de terceira geração, tais como o do meio ambiente, da probidade administrativa, da paz social e etc., a atuação do Ministério Público se faz cada vez mais necessária. Para CELSO RIBEIRO BASTOS, a razão de ser do Ministério Público está na necessidade de ativar o Poder Judiciário, em relação às situações em que este permaneceria inerte, ou porque o interessado é a própria coletividade, ou porque os interesses pertencem a indivíduos que deles não podem dispor, sendo que, em quaisquer dessas hipóteses, imprescindível a atuação de um órgão público para cuidar desses interesses.177 O que ocorre é que, mesmo em relação aos direitos individuais indisponíveis, há um interesse público subjacente. É o que se observa do art. 82 do Código de Processo Civil, que estabelece as hipóteses de intervenção do Ministério Público, todas elas ligadas, direta ou indiretamente ao interesse público, verbis: “Art. 82. Compete ao Ministério Público intervir: I – nas causas em que há interesses de incapazes; II – nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposição de última vontade; III – em todas as demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte”. Destarte, em relação aos interesses sociais ou individuais indisponíveis, a atuação do Ministério Público é indispensável, a uma, porque em relação a eles há um 177 BASTOS, Celso Ribeiro de, op. cit., p. 428 85 evidente interesse público, a duas, porque nesses casos o Judiciário permaneceria inerte, se não existisse um órgão público que por eles zelasse. 3.2.4) O Interesse Público Motivador da Atuação do Ministério Público: órgão agente e interveniente Conforme já afirmado, a atuação do Ministério Público pauta-se sempre no interesse público, o que se dá seja quando atua como órgão agente ou interveniente, seja quando busca defender os interesses transindividuais ou individuais indisponíveis, de que se tratou no tópico anterior. É certo que, quando oficia na qualidade de órgão agente, fica o Ministério Público vinculado ao interesse que justificou a sua atuação, pouco importando se figura como representante ou substituto processual do titular do direito material. 178 Questão mais intrincada refere-se à sua atuação como órgão interveniente, ponto em que, nas palavras de Hugo Nigro Mazzilli, reina a polêmica.179 O mesmo autor propõe uma solução bastante razoável, em que faz duas distinções, a primeira delas entre a intervenção pela natureza da relação jurídica (objetivamente considerada) e a intervenção fundada nas condições particulares de um dos titulares dessa relação Quanto à intervenção pela natureza da relação jurídica, Mazzilli aduz que o Ministério Público manifesta-se sem qualquer vinculação ao interesse das partes, ou seja, como “fiscal imparcial da lei”. Menciona, por exemplo, as questões de estado da pessoa, em que “a intervenção ministerial dá-se para fiscalizar o interesse, imparcialmente considerado, de atuar normas de ordem pública”180. Já nos casos em que essa atuação liga-se à defesa de um interesse público relacionado “com condições particulares de um dos titulares dessa relação, 178 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 93; 179 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., pp. 91. 180 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., pp. 91-92. 86 pessoalmente considerado”, estaria o Ministério Público vinculado ao interesse que justificou a sua intervenção, sendo o caso, por exemplo, da intervenção “no interesse do incapaz”.181 Outra distinção feita refere-se ao poder-dever de opinar, acionar ou recorrer. A propósito, Mazzilli assevera que, “se tem liberdade para opinar, porque para tanto basta a legitimidade que a lei lhe confere para intervir, já para acionar ou recorrer é mister que o Ministério Público tenha interesse na propositura da ação ou na reforça do ato atacado”. Em outras palavras, “ele só pode agir ou recorrer em defesa do interesse que legitimou sua ação ou intervenção no feito”.182 3.3) PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO (CF/88, ART. 127, § 1º) Afora os princípios infraconstitucionais, tais como o do exercício da ação penal, da irrecusabilidade e da irresponsabilidade, a Constituição Federal consagra explicitamente os princípios institucionais da unidade, indivisibilidade, independência funcional (Artigo 127, § 1º) e, implicitamente – embora a respeito haja grande polêmica -, o princípio do promotor natural. 3.3.1) Princípio da Unidade O princípio da unidade significa que os membros do Ministério Público compõem um mesmo organismo, sob a direção única do Procurador-Geral. ALEXANDRE DE MORAES ressalta que “(...) só existe unidade dentro de cada Ministério Público, inexistindo entre o Ministério Público Federal e os dos Estados, nem entre o de um Estado e o de outro, nem entre os diversos ramos do Ministério Público da União”.183 181 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., pp. 91-92. 182 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 93. 183 MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 495. 87 Para NESTOR SAMPAIO PENTEADO FILHO, o princípio da unidade é aquele “(...) segundo o qual os membros do Ministério Público fazem parte de um todo orgânico dentro de sua esfera de atribuições”.184 Todavia, alerta PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO, que se a atuação do Ministério Público se desvia dos limites legais, nem por isso deixará de ser o Ministério Público que está atuando, muito embora possa ser questionado eventual vício do ato, pois “(...) a unidade do Ministério Público não significa que qualquer de seus membros poderá praticar qualquer ato em nome da instituição, mas sim, sendo um só organismo, os seus membros “presentam” (não representam) a instituição sempre que atuarem, mas a legalidade de seus atos encontra limites no âmbito da divisão de atribuições e 185 demais princípios e garantias impostas pela lei”. Daí resulta que quando um membro do Ministério Público atua, quem na realidade está atuando é o próprio Ministério Público, sendo que “(...) é a lei que delimita o âmbito de abrangência para atuação do órgão, bem como os limites de atribuição do cargo no qual o agente pode, legalmente, exercer suas funções”.186 3.3.2) Princípio da Indivisibilidade Segundo o princípio da indivisibilidade, a Lei pode autorizar que um membro do Ministério Público atue no lugar de outro e, por outro lado, que exceto os casos especificados em Lei, proibida estará a delegação de funções. O princípio da indivisibilidade está intimamente ligado ao princípio da unidade, pois enquanto o primeiro acentua a possibilidade - mesmo que somente nas hipóteses legais - de existirem membros atuando no lugar de outros, o princípio da unidade estatui que, quando um membro atua, é o próprio Ministério Público quem está atuando. Ressalte-se, por fim, que mesmo as hipóteses legais de substituição necessitam “a) que haja permissão legal para a substituição; b) que o ato decorra de autoridade com 184 FILHO, Nestor Sampaio Penteado. Manual de Direito Constitucional. Campinas-SP: Milennium, 2002, p. 214 185 Idem, ibidem. 186 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., pp. 41 e 42. 88 atribuição para este fim; c) que a substituição se dê para a prática de atos compreendidos no âmbito da atribuição do membro substituído”.187 3.3.3) Princípio da Independência Funcional O princípio da independência funcional talvez seja o mais importante princípio institucional do Ministério Público, pois, ao lado da garantia da inamovibilidade, configura a base de um outro princípio que se estudará adiante, do promotor natural. O princípio da independência funcional significa que o membro do Ministério Público tem o direito de oficiar conforme sua consciência e a lei, gozando, portanto, de liberdade para atuar sem sofrer quaisquer tipos de pressões. Nem por isso, em virtude da unidade do Ministério Público, se impede que o chefe da Instituição dirima conflitos de atribuições, reveja o pedido de arquivamento de inquérito policial (Código de Processo Penal, art. 28), delegue funções de execução, entre outras funções. Conforme leciona JOSÉ JESUS CAZETTA JÚNIOR, “(...) em verdade, a independência funcional é um sério limite à Administração, porque, em princípio, esta não pode ditar aos membros da Instituição o modo, o momento, o conteúdo ou a qualidade do ato funcional – o que praticamente elimina a idéia de hierarquia. Nada impede, porém, que a lei estabeleça o método para a expressão da vontade do Ministério Público, atribuindo poderes, sucessivamente, a distintos órgãos, em caráter meramente eventual (como se dá com o contingente exercício, pelo ProcuradorGeral de Justiça, da função prevista no art. 28 do CPP) ou ordinário (o que ocorre na atividade revisão, pelo Conselho Superior, dos arquivamentos de inquéritos civis). Em outras palavras: tal como no Poder Judiciário, a independência institucional parece compatível com o poder de derrogação interna corporis ou com a duplicidade de pronunciamentos sobre o mesmo objeto (v.g., reexame necessário). Em tais hipóteses prevalece o último pronunciamento da própria Instituição, porque se trata de técnica especial para a formação da vontade institucional, que nesses casos é enunciada pelo órgão de segunda instância, sem que isto traduz, porém, uma relação propriamente hierárquica”.188 (destaques nossos) 187 188 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 43 CAZETTA JÚNIOR, José Jesus, op. cit., p. 39 89 A questão deve ser vista num contexto sistêmico, pois, em razão da independência funcional, quando houver, por exemplo, conflito de atribuições a ser solucionado pelo Conselho Superior, não apenas este pode, de acordo com a lei e a consciência de seus integrantes, decidir qual promotor deve atuar, como também o promotor que for “designado” pelo Conselho Superior exercerá sua função de execução com plena independência funcional. Em outras palavras, o Conselho Superior, com base na Lei, poderá até decidir qual promotor deverá atuar num determinado processo, todavia, não terá poder hierárquico para determinar a forma como o promotor deve atuar. Aliás, é nesse sentido que PAULO CEZAR CARNEIRO afirma ser essa independência ilimitada, não estando o membro do Ministério Público “sujeito sequer às recomendações do Conselho Superior do Ministério Público para o desempenho de suas funções, ainda naqueles casos em que se mostre conveniente a atuação uniforme (arts. 10, XII, 15, X, 17, IV, e 20, todos da Lei Complementar nº 8.625/93)”.189 Frise-se, porém, que dizer que o princípio da independência funcional é ilimitado não é de todo correto, pois, pela sua própria conceituação, encontra limites legais e na própria consciência do membro do Ministério Público. Desta forma, a única hierarquia interna existente no âmbito do próprio Ministério Público é a administrativa, eis que, tendo em vista a independência funcional, não se pode cogitar em hierarquia no sentido funcional.190 3.3.4) Princípio do Promotor Natural O Princípio do Promotor Natural propugna, de um lado, que toda pessoa que estiver no pólo da relação processual tem direito à atuação de um membro do Ministério Público devidamente constituído e atuando no feito de acordo com os critérios legais, e 189 190 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., pp. 44/45 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 155 90 de outro, que se assegure aos membros do Ministério Público oficiarem nos processos compreendidos no âmbito de suas atribuições.191 Este princípio “objetiva conferir efetividade a dois postulados fundamentais: um, o da independência funcional, e outro, o da inamovibilidade dos membros da instituição”.192 A efetividade que se confere à conjugação dos postulados da independência funcional e inamovibilidade dos membros alcança inclusive a vedação de designações casuísticas, permitindo uma atuação do membro do Ministério Público pautada exclusivamente na lei e na sua consciência, livre de pressões e interesses particulares, proibindo-se a existência dos chamados promotores de exceção e promotores “ad hoc”. Um dos precursores do tema, em sede doutrinária, é HUGO NIGRO MAZZILLI, que em 1976 posicionava-se contra os chamados promotores de encomenda, “escolhidos livremente pelo procurador-geral de Justiça, que discricionariamente os designava e afastava”.193 Todavia, provocou um intenso debate o fato de o Princípio do Promotor Natural nunca ter sido expressamente previsto nas Constituições brasileiras, a ponto de se questionar até mesmo a sua existência. A questão foi enfrentada pela primeira vez no Supremo Tribunal Federal, em um voto do Ministro ANTÔNIO NEDER no Habeas Corpus 48.728, no qual Sua Excelência reconheceu a previsão implícita do princípio, ainda na vigência da Constituição Federal de 1967, com a redação dada pela Emenda nº 1, de 1969, verbis: “(...) o art. 153, § 15, da Constituição, texto da Emenda nº 1, expressa que não haverá tribunais de exceção; ora, se é proibido o tribunal de exceção, vedado é o juiz de exceção; se é defeso instituir juízo de exceção, impedido é conceber-se o acusador de exceção, pois não se compreende que nossa Constituição proíba o juiz de exceção e admita o acusador de exceção, isto é, conceda e, ao mesmo tempo, subtraia uma garantia”.194. 191 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., pp. 47 e 53 HABEAS CORPUS nº. 67.759/RJ, Pleno, Rel. Ministro Celso de Mello, sessão plenária de 06.08.92, acórdão publicado no Diário de Justiça de 01.07.1993, Ementário nº. 1710-01. 193 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 157. 194 RTJ 63/315. 192 91 Após a Constituição de 1998, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº. 67.759, enfrentou a questão quanto a existência do Princípio do Promotor Natural. É esta a ementa do julgado: “(...) O postulado do Promotor Natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei. A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição. O postulado do Promotor Natural limita, por isso mesmo, o poder do Procurador-Geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastrável (sic). Posição dos Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO. Divergência, apenas, quanto à aplicabilidade imediata do princípio do Promotor Natural: necessidade da ‘interpositio legislatoris’ para efeito de atuação do princípio [eficácia limitada] (MINISTRO CELSO DE MELLO); incidência do postulado, independentemente de intermediação legislativa [eficácia plena] (Ministros SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO). Reconhecimento da possibilidade de instituição do princípio do Promotor Natural mediante lei [inexistência, explícita ou implícita do princípio no Ordenamento Jurídico] (Ministro SYDNEY SANCHES). Posição de expressa rejeição à existência desse princípio consignada nos votos dos Ministros PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES”195 Conforme assinalado na ementa do julgado, explicitaram-se 4 (quatro) entendimentos: o primeira, dos Ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio e Carlos Velloso, no sentido de que o princípio do promotor natural decorre da Constituição e constitui norma de eficácia plena; o segunda, do Ministro Celso de Mello, entendendo que o princípio está previsto na Constituição, mas enquanto norma de eficácia limitada; o terceiro, dos Ministros Paulo Brosard, Octávio Gallotti, Néri da Silveira e Moreira Alves, simplesmente afirmando que não há previsão constitucional do princípio do promotor natural, quer implícita, quer explicitamente, não se manifestando, 195 HABEAS CORPUS nº. 67.759/RJ, Pleno, Rel. Ministro Celso de Mello, sessão plenária de 06.08.92, acórdão publicado no Diário de Justiça de 01.07.1993, Ementário nº. 1710-01. 92 expressamente, sobre a possibilidade de emenda constitucional ou lei infraconstitucional superveniente estabelecer o referido princípio; o quarto e último entendimento foi o do Ministro Sydney Sanches, também no sentido de que o princípio não está previsto nem na Constituição, nem em normas infraconstitucionais, mas com uma ressalva expressa, ou seja, de não haver óbice algum a que a legislação infraconstitucional e, por maiores razões, uma emenda constitucional passasse a prever o princípio. Foram, portanto, 4 (quatro) Ministros reconhecendo a existência do princípio na Constituição - embora o Ministro Celso de Mello a tenha considerado norma de aplicabilidade limitada – e 5 negando a existência do princípio. Apenas para que se tenha uma noção do qual polêmica é a questão, vale transcrever, inicialmente, parte do voto do Ministro PAULO BROSSARD, um dos que defenderem não existir o princípio do promotor natural. Disse Sua Excelência no julgamento mencionado HC 67.759: “(...) Preliminarmente, peço vênia para divergir dos que vêem na inamovibilidade dos membros do Ministério Público a base do princípio do “promotor natural”. Vejo na inamovibilidade uma garantia funcional, cuja finalidade é proteger, no caso específico, o pleno exercício das elevadas funções dos membros do Ministério Público, contra desmandos de autoridades que lhes sejam superiores. É a garantia funcional do Promotor Público de permanecer no lugar para o qual foi designado, impedindo sua remoção ex offício, salvo motivo de interesse público. Tanto é que a Constituição Federal dispõe no artigo 128, parágrafo 5º, que a lei orgânica do Ministério Público deve observar, relativamente a seus membros: I – as seguintes garantias: (...) b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, por voto de dois terços de seus membros, assegurada a ampla defesa. A inamovibilidade é garantia outorgada aos membros do Ministério Público, que objetiva evitar a sua remoção ou transferência discricionária ou arbitrária; é uma garantia, hoje constitucional, que visa ao agente público e não aos administrados ou jurisdicionados, não obstante traga reflexos a estes. Tanto isso é verdade que, mesmo na hipótese de inamovibilidade por motivo de interesse público, permitida pela norma constitucional, deve-se assegurar ao Promotor Público e somente a ele a ampla defesa dessa sua garantia funcional. Ademais, assentar o princípio do ‘Promotor natural’ (sic) na garantia da inamovibilidade, resultaria em sustentar também em relação à Defensoria Pública o princípio do ‘Defensor Público Natural’, já que 93 o parágrafo único do artigo 134 da Constituição assegura, também, a esses funcionários a garantia da inamovibilidade. No que diz respeito ao, também invocado, princípio da independência funcional do Ministério Público, é de se observar que ele é assegurado, no parágrafo 1º, do art. 127, da Constituição Federal, à instituição do Ministério Público, tanto é que a norma constitucional ao assim conceitua-lo, como princípio institucional, objetiva precípua e fundamentalmente estabelecer sua autonomia em relação aos Poderes do Estado e não exclui a hierarquia e a disciplina. É claro que da independência funcional da instituição decorre a de seus membros; é uma garantia funcional que deflui da institucional”. Segundo este entendimento, o sentido e alcance da garantia da inamovibilidade não permitiriam utilizá-lo como elemento formador do Princípio do Promotor Natural. Ou seja, a inamovibilidade consistiria apenas numa garantia funcional do promotor de justiça, permitindo-o que permaneça na Promotoria a que foi designado e impedindo sua remoção, salvo por motivo de interesse público. Essa não é a linha que segue a corrente defendida, por exemplo, pelo Min. CELSO DE MELLO, que vê a inamovibilidade, numa interpretação sistemática e teleológica, como garantia do membro, da instituição e da sociedade. A doutrina tende a acompanhar o Min. CELSO DE MELLO, até mesmo pela natureza da função atribuída ao Ministério Público. Assim o faz PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO, para quem “essa garantia social e individual permite ao Ministério Público cumprir, livre de pressões e influências, a sua missão constitucional de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.196 O ponto de toque, portanto, que divisou o entendimento em correntes antagônicas, especialmente no Supremo Tribunal Federal, está no sentido e alcance da garantia da inamovibilidade. Aqueles que a veem num sentido amplo, acabam por concluir que não é ela garantia apenas do membro do Ministério Público de não ser transferido ou removido do local onde atua, mas também da Instituição e da própria sociedade, para que não haja indicações casuísticas. 196 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 48. Igualmente, Mazzilli afirma que “a verdadeira inamovibilidade dos membros do Ministério Público não teria sentido se dissesse respeito apenas à impossiblidade de se remover o promotor de Justiça de seu cargo: era mister assegurar ao titular do cargo o direito ao exercício das respectivas funções” (MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 158). 94 Para o Ministro SYDNEY SANCHES, por sua vez, não há consagração explícita ou implícita do Princípio do Promotor Natural pela Constituição Federal de 1988, embora essa, enquanto Lei Fundamental que dá validade a todo Ordenamento Jurídico, não impossibilite a instituição de referido princípio pela Lei Orgânica do Ministério Público, ou, por maiores razões, até mesmo por emenda constitucional. Para ele, a Constituição Federal de 1988 não contém explícito, nem implícito, o princípio do Promotor Natural, bem como não resulta ele, necessariamente, dos princípios da independência funcional e da inamovibilidade dos membros do Ministério Público”. No mais, acompanhou o entendimento esposado por PAULO BROSSARD. É importante destacar que esse julgamento (HC 67.759), embora importante, sobretudo pela riqueza dos debates, não tem, com a devida vênia, como ser invocado para afirmar a inexistência, hoje, do princípio do promotor natural. Basta ver que, se a composição da Suprema Corte fosse a mesma e os Ministros mantivessem o seu entendimento, o voto do Ministro Sydney Sanches, que havia se somado aos votos dos Ministros que negavam a existência do princípio, agora se alinharia, ainda que na conformidade do voto médio, aos dos Ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio, Carlos Velloso e Celso de Mello. É que, à época do julgamento do Habeas Corpus nº 67.759, ainda não estava em vigor a Lei nº. 8.625 de 12.02.1993, que proibiu designações arbitrárias em seu art. 10, IX, e, f e g197, sobrevindo, assim, a interposição legislativa requerida pelo Ministro 197 “Art. 10 - Compete ao Procurador-Geral de Justiça: (...) IX - designar membros do Ministério Público para: (...) e) acompanhar inquérito policial ou diligência investigatória, devendo recair a escolha sobre o membro do Ministério Público com atribuição para, em tese, oficiar no feito, segundo as regras ordinárias de distribuição de serviços; f) assegurar a continuidade dos serviços, em caso de vacância, afastamento temporário, ausência, impedimento ou suspeição de titular de cargo, ou com consentimento deste; g) por ato excepcional e fundamentado, exercer as funções processuais afetas a outro membro da instituição, submetendo sua decisão previamente ao Conselho Superior do Ministério Público”. Os casos de designações previstos nesse artigo fundamentam-se no interesse público, de forma tal que o membro da Instituição não atue senão na forma da lei e de acordo com sua consciência. A esse respeito Alexandre de Moraes assim se pronuncia: “O próprio art. 10 da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público afasta qualquer possibilidade de designações arbitrárias, prevendo somente competir, excepcionalmente, ao Procurador-Geral a designação de membro do Ministério Público para acompanhar inquérito policial ou diligência investigatória, devendo, porém, recair a escolha sobre o membro do Ministério Público com atribuição para, em tese, oficiar no feito, segundo as regras ordinárias de distribuição dos serviços, para assegurar a continuidade dos serviços, em caso de vacância, afastamento temporário, ausência, impedimento ou suspeição de titular de cargo, ou com consentimento deste, para, por ato excepcional e fundamentado, exercer as funções processuais afetas a outro membro da Instituição, submetendo sua decisão previamente ao Conselho Superior do Ministério Público. Observe-se, ainda, a expressa proibição 95 Celso de Mello para a plena eficácia do princípio, regramento infraconstitucional este, ademais, que o Ministro Sydney Sanches enunciou como suficiente para a consagração do princípio do promotor natural: assim, a ordem seria concedida, por cinco votos a quatro. Faça-se o registro, ainda, que, quando iniciado o julgamento do Habeas Corpus 67.759, em 28 de junho de 1990, faziam parte do Supremo Tribunal Federal os Ministros Aldir Passarinho e Célio Borja. Todavia, em razão dos sucessivos pedidos de vista, o julgamento terminou apenas na Sessão Plenária de 6 de agosto de 1992, quando então estes dois Ministros já estavam aposentados, ou seja, não tiveram eles a oportunidade de proferirem os seus votos sobre a matéria. Os Ministros Ilmar Galvão e Francisco Rezek, que assumiram as cadeiras antes ocupadas pelos Ministros Aldir Passarinho e Célio Borja também não puderam votar, pois, à época do início do julgamento não integravam a Corte. Tanto é assim que, analisando o Habeas Corpus nº HC 69.599 (Relator Ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 30/06/1993, DJ 27.8.1993), o Pleno do Supremo Tribunal deixou bem claro que se deveria divisar a situação jurídica das denúncias anteriores ou posteriores à Lei nº. 8.625/93, que havia entrado em vigor recentemente. É esta a ementa do julgado: “EMENTA I. Ministério Público: legitimidade "ad processum" para o oferecimento da denuncia de Promotor designado previamente para compor grupo especial de acompanhamento de investigações e promoção da ação penal relativas a determinados crimes 1. Sendo a denuncia anterior a L. 8.625/93 - segundo a maioria do STF, firmada no HC 67.759 (vencido, no ponto o relator) - não se poderia opor-lhe a validade o chamado princípio do Promotor Natural, pois, a falta de legislação que se reputou necessária a sua eficácia, estaria em pleno vigor o art, 7., V, LC 40/81, que conferia ao Procurador-Geral amplo poder de substituição para, "mesmo no curso do processo, designar outro membro do Ministério Público para prosseguir na ação penal, dando-lhe orientação que for cabível no caso concreto". 2. De qualquer modo, ainda para os que, como o relator, opuseram temperamento a recepção integral da legislação anterior, a Constituição vigente não veda a designação, no Ministério Público, de grupos especializados por matéria, na medida em que a atribuição aos constitucional de nomeação de membro do Ministério Público ad hoc, pois, nos termos do art. 291, § 2º, da Constituição Federal, as funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira” (MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 497). 96 seus componentes da condução dos processos respectivos implica a previa subtração deles da esfera de atuação do Promotor genericamente incumbido de atuar perante determinado juízo. II. Competência: prevenção: exigência de distribuição: incompetência, porem, que, sendo relativa, ficou sanada pela preclusão. 1. O art. 83 C.Pr.Pen há de ser entendido em conjugação com o art. 75, parág. único: só se pode cogitar de prevenção da competência, quando a decisão, que a determinaria, tenha sido precedida de distribuição: não previnem a competência decisões de juiz de plantão, nem as facultadas, em caso de urgência, a qualquer dos juizes criminais do foro. 2. A jurisprudência do STF e sta consolidada no sentido de que e relativa, no processo penal, não só a competência territorial de foro, mas também a firmada por prevenção (precedentes): donde, a falta de exceção tempestivamente oposta, o convalescimento, pela preclusão, da incompetência do juiz que equivocadamente se entendeu prevento”. No mesmo sentido decidiu a Primeira Turma do Supremo Tribunal no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº. 169.169, Relator Ministro Ilmar Galvão (julgado em 10.10.1995, DJ 1º.12.1995): “EMENTA: PROCESSO PENAL. ACÓRDÃO CONFIRMATORIO DE SENTENÇA DE PRONUNCIA IMPUGNADA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO E POR VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL. Recurso extraordinário fundado em afronta aos arts. 5., XXXV e LV; 93, IX; 127, par. 1.; 128, par. 5., I, a, b e c; e 129, I A IX. (...) Processo instaurado antes do advento da Lei n. 8.625/93, em relação ao qual não tem aplicação o princípio do Promotor Natural. Precedente do STF (...) HC 69.599 (...). Agravo regimental improvido”. Entretanto, a existência de precedentes nesse sentido não impediu que surgissem julgados amparando-se no Habeas Corpus nº 67.759, mas sem se ater às peculiaridades desse julgamento. Mencione-se, por exemplo, o julgamento realizado pela Segunda Turma do Supremo Tribunal em 17.6.2008, do Habeas Corpus nº 90.277, de que foi Relatora a Ministra Ellen Gracie (DJe 31.7.2008), cuja ementa tem o seguinte teor: “DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL. INEXISTÊNCIA (PRECEDENTES). AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA NO STJ. INQUÉRITO JUDICIAL DO TRF. DENEGAÇÃO. 1. Trata-se de habeas corpus impetrado contra julgamento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça que recebeu denúncia contra o paciente como incurso nas sanções do art. 333, do Código Penal. 2. Tese de nulidade do procedimento que tramitou perante o TRF da 3ª Região sob o fundamento da violação do princípio do promotor natural, o que representaria. 3. O STF não reconhece o postulado do 97 promotor natural como inerente ao direito brasileiro (HC 67.759, Pleno, DJ 01.07.1993): "Posição dos Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO: Divergência, apenas, quanto à aplicabilidade imediata do princípio do Promotor Natural: necessidade de "interpositio legislatoris" para efeito de atuação do princípio (Ministro CELSO DE MELLO); incidência do postulado, independentemente de intermediação legislativa (Ministros SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO). - Reconhecimento da possibilidade de instituição de princípio do Promotor Natural mediante lei (Ministro SIDNEY SANCHES). - Posição de expressa rejeição à existência desse princípio consignada nos votos dos Ministros PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES". 4. Tal orientação foi mais recentemente confirmada no HC n° 84.468/ES (rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma, DJ 20.02.2006). Não há que se cogitar da existência do princípio do promotor natural no ordenamento jurídico brasileiro. 5. Ainda que não fosse por tal fundamento, todo procedimento, desde a sua origem até a instauração da ação penal perante o Superior Tribunal de Justiça, ocorreu de forma transparente e com integral observância dos critérios previamente impostos de distribuição de processos na Procuradoria Regional da República da 3ª Região, não havendo qualquer tipo de manipulação ou burla na distribuição processual de modo a que se conduzisse, propositadamente, a este ou àquele membro do Ministério Público o feito em questão, em flagrante e inaceitável desrespeito ao princípio do devido processo legal 6. Deixou-se de adotar o critério numérico (referente ao finais dos algarismos lançados segundo a ordem de entrada dos feitos na Procuradoria Regional) para se considerar a ordem de entrada das representações junto ao Núcleo do Órgão Especial (NOE) em correspondência à ordem de ingresso dos Procuradores no referido Núcleo. 7. Na estreita via do habeas corpus, os impetrantes não conseguiram demonstrar a existência de qualquer vício ou mácula na atribuição do procedimento inquisitorial que tramitou perante o TRF da 3ª Região às Procuradoras Regionais da República. 8. Não houve, portanto, designação casuística, ou criação de "acusador de exceção". 9. Habeas corpus denegado”. No referido julgamento, embora tenha sido unânime, estavam presentes à Sessão apenas a Relatora e os Ministros Cezar Peluso e Eros Grau (ausentes os Ministros Joaquim Barbosa e Celso de Mello). E, embora a ementa do julgado deixe a impressão de que teria sido enfrentada a questão quanto ao princípio do promotor natural, não se deve perder de vista que o votocondutor do julgado, da lavra da eminente Relatora Ministra Ellen Gracie, apresentou um fundamento independente, no sentido de que, “ainda que eventualmente fosse admitida a existência do princípio do promotor natural no direito brasileiro”, naquele 98 caso ele não teria aplicação, de modo que o fato de o julgamento ter sido unânime não significa, necessariamente, que os demais Ministros se comprometeram com a tese de inexistência daquele princípio: eles simplesmente não enfrentaram a questão. Note-se que foi invocado o Habeas Corpus nº 67.759, sem qualquer análise sobre a superveniência da Lei nº. 6.825/93, o que, ressalte-se mais uma vez, seria imprescindível. De outro lado, afirmou-se, ainda, que o entendimento firmado no Habeas Corpus nº 67.759 teria sido confirmada pela Primeira Turma no julgamento do Habeas Corpus nº 84.468, de relator Ministro Cezar Peluso (DJ 20.2.2006). A leitura da ementa do HC 84.468 (Relator Ministro Cezar Peluso, Primeira Turma, julgado em 07/02/2006, DJe 28.6.2007) é suficiente para perceber que, na verdade, a questão decidida foi relativa à possibilidade de o Procurador-Geral da República delegar a propositura de ação penal a Subprocurador-Geral da República, não se tendo afirmado, em momento algum, que o princípio do promotor natural não existiria. Confira-se a ementado do julgado: “EMENTAS: 1. MINISTÉRIO PÚBLICO. Federal. Procurador-Geral da República. Atuação perante o Superior Tribunal de Justiça. Ação penal originária contra magistrado. Propositura. Delegação a Subprocurador-Geral da República. Admissibilidade. Caso que não é de afastamento de membro competente do Ministério Público. Inexistência de ofensa ao princípio do promotor natural. Precedente. Preliminar repelida. Inteligência do art. 48 da LC nº 75/93. Pode o Procurador-Geral da República delegar a competência de que trata o art. 48, II, da Lei Complementar nº 75, de 1993, a SubprocuradorGeral pré-designado para atuar perante o Superior Tribunal de Justiça. 2. AÇÃO PENAL. Originária. Denúncia contra magistrado. Inépcia caracterizada. Fato atípico. Imputação de crime de falsidade ideológica, em concurso material e de pessoas. Descrição substancial de aceitação indevida de prevenção. Fato contrariado pela própria narrativa da denúncia, segundo a qual a prevenção foi reconhecida pelo órgão distribuidor, embora com erro provocado por expediente do subscritor de agravos de instrumentos, que o induziu mediante distribuição e subseqüente desistência de múltiplos recursos. Inexistência de descrição doutros fatos capazes de corresponder ao tipo do art. 299, cc. arts. 69 e 29, todos do CPC. Trancamento da ação penal em relação ao paciente. HC concedido para esse fim. É inepta a denúncia que, imputando ao magistrado denunciado a prática do delito previsto no art. 299 do Código Penal, não o acusa de omissão de 99 declaração devida, nem inserção de declaração falsa ou diversa da que deveria ser escrita, senão de aceitação de prevenção processual que, alegadamente inexistente, foi reconhecida pelo órgão distribuidor. 3. MAGISTRADO. Ação penal. Denúncia. Recebimento. Afastamento do exercício da função jurisdicional. Trancamento da ação por inépcia da denúncia. Cassação da decisão que determinou o afastamento. HC concedido também para esse fim. Extinto, por inépcia da denúncia, o processo da ação penal contra magistrado, perde fundamento e eficácia a decisão que, ao receber aquela, o afastou do exercício da judicatura”. O referido precedente, antes de negar, na verdade tende a confirmar a existência do princípio do promotor natural, uma vez que, se não existisse esse princípio, a discussão quanto a possibilidade de delegação perderia relevo. Com efeito, somente se permite a delegação porque se parte da premissa segundo a qual o Procurador-Geral da República, nesse caso, é o promotor natural da causa. De tudo, conclui-se que o Supremo Tribunal Federal não pacificou o seu entendimento a respeito da existência do princípio do promotor natural. O julgamento do Habeas Corpus nº 67.759, ademais, parece ter se tornado uma incógnita para o próprio Supremo Tribunal Federal, que ora afirma que naquele precedente fora reconhecido o princípio do promotor natural, ora afirma tese em sentido diametralmente oposto (conferir, entre outros: HC 68.966, Relator Ministro Paulo Brossard, Redator para o acórdão Ministro Francisco Resek, Segunda Turma, julgado em 27/10/1992, DJ 07.5.1993; HC 70.290, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 30.6/.993, DJ 13.6.1997; HC 71.429, Relator Ministro Celso de Mello, Primeira Turma, julgado em 25.10.994; HC 74.052, Relator Ministro Marco Aurélio, Segunda Turma, julgado em 20.8.1996, DJ 13.12.1996; HC 92.885, Relatora Ministra Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado em 29.4.2008, DJe 19.6.2008; HC 77.723, Relator Ministro Néri da Silveira, Segunda Turma, julgado em 15.9.1998, DJ 15.12.2000; RHC 80.476, Relator Ministro Sydney Sanches, Primeira Turma, julgado em 07.11.2000, DJ 16.2.2001; HC 81.998, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado em 04.6.2002, DJ 28.06.2002). Apesar disso, fica o registro de que o posicionamento dominante da doutrina reconhece não só a existência do Princípio do Promotor Natural, como também que este configura garantia das partes, dos membros do Ministério Público e da própria sociedade e que esse reconhecimento, como assinalado, implica várias conseqüências jurídicas. 100 3.4) GARANTIAS E VEDAÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO Para que o Ministério Público desempenhe suas atividades com uma efetiva imparcialidade, livre de quaisquer pressões, até mesmo do próprio Estado, também são asseguradas, além dos princípios já analisados, garantias tanto para a Instituição como para os membros e, de outra face, vedadas algumas atividades. 3.4.1) Garantias da Instituição: Autonomia Funcional, Administrativa e Financeira (CF/88, Art. 127, §§ 2º e 3º) A Constituição Federal vigente assegurou expressamente ao Ministério Público autonomia funcional e administrativa (CF/88, art. 127, § 2º), tendo o art. 3º da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei nº. 8.625/93)) acrescentado a autonomia financeira. A autonomia funcional é a capacidade que possui o Ministério Público de exercer as funções norteadas única e exclusivamente naquilo que a Lei consagra como interesse público e com base na consciência de cada membro. É, no dizer de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “a capacidade para atos de autogoverno”.198 Já a autonomia administrativa, ainda nas palavras de TOURINHO FILHO, “é a capacidade para a solução de problemas administrativos internos (concessão de férias, licenças, aposentadorias, designações, nomeações de funcionários, entre outras atividades), sem a burocrática vinculação a Ministérios e Secretarias de Estado”.199 Compreende, por exemplo, a possibilidade de propor a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, a política remuneratória e os planos de carreira. 198 199 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., p. 357 Idem, ibidem. 101 Conforme informado no início desse tópico, a Constituição Federal vigente não consagrou expressamente a autonomia financeira do Ministério Público, o que leva parte da doutrina a reconhecer apenas a autonomia orçamentária da Instituição. Segundo MAZZILLI, isso não quer dizer que o Ministério Público não a possua, eis que a autonomia financeira é, segundo seu entendimento, decorrência do próprio “sistema (CF, arts. 127, §§ 2 e §, 168 e 169), tendo sido garantidas as conseqüências dela decorrentes, bem como a infra-estrutura indispensável para assegurá-la”.200 Argumenta-se ainda que se não existisse autonomia financeira, sequer seria possível falar em autonomia funcional e administrativa. Ademais, a Constituição Federal, em seu art. 127, § 3º, diz que o Ministério Público “elaborará sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias”, sendo que tal regra pressupõe participação na proposta global. Ademais, conforme lição do Min. CELSO orçamentária a de caráter financeiro. DE MELLO, está incluída na autonomia 201 De qualquer forma, as autonomias funcional, administrativa e financeira do Ministério Público da União foram contempladas nos arts. 23 e 23 Lei Complementar nº 75/93202, o mesmo sucedendo com os Ministérios Públicos estaduais, nos arts. 3º e 4º da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público dos Estados.203 200 MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p 199 STF – Pleno – ADI nº. 798-1/DF – Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diario da Justiça, Seção I, 19 dezembro 1994 202 “Art. 22. Ao Ministério Público da União é assegurada autonomia funcional, administrativa e financeira, cabendo-lhe: I - propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, bem como a fixação dos vencimentos de seus membros e servidores; II - prover os cargos de suas carreiras e dos serviços auxiliares; III - organizar os serviços auxiliares; IV - praticar atos próprios de gestão. Art. 23. O Ministério Público da União elaborará sua proposta orçamentária dentro dos limites da lei de diretrizes orçamentárias. § 1º Os recursos correspondentes às suas dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, ser-lhe-ão entregues até o dia vinte de cada mês. § 2º A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Ministério Público da União será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, com o auxílio do Tribunal de Contas da União, segundo o disposto no Título IV, Capítulo I, Seção IX, da Constituição Federal, e por sistema próprio de controle interno. § 3º As contas referentes ao exercício anterior serão prestadas, anualmente, dentro de sessenta dias da abertura da sessão legislativa do Congresso Nacional.” 203 “Art. 3º Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional, administrativa e financeira, cabendo-lhe, especialmente: I - praticar atos próprios de gestão; II - praticar atos e decidir sobre a situação funcional e administrativa do pessoal, ativo e inativo, da carreira e dos serviços auxiliares, organizados em quadros próprios; III - elaborar suas folhas de pagamento e expedir os competentes demonstrativos; IV - adquirir bens e contratar serviços, efetuando a respectiva contabilização; V - propor ao Poder Legislativo a criação e a extinção de cargos, bem como a fixação e o reajuste dos vencimentos 201 102 A título meramente exemplificativo, mencione-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2.831, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros AMB, na qual foram questionados vários dispositivos da Lei Complementar nº 106/03, do Estado do Rio de Janeiro, que instituiu a organização e o Estatuto do Ministério Público local. Um dos dispositivos questionados da lei foi o seu artigo 2º, caput, que assegura autonomia funcional, administrativa e financeira ao Ministério Público do Rio de Janeiro. A AMB alegou que o MP integra o Poder Executivo e, como tal, só dispõe de autonomia administrativa e funcional, uma vez que, segundo a Constituição Federal, a autonomia financeira é privativa dos Poderes do Estado. O Ministro Ilmar Galvão, no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal e ad referendum do Plenário, não concedeu o pedido de liminar relativamente ao art. 2º, caput, que assegura autonomia financeira ao Ministério Público fluminense, reconhecendo que não há sequer plausibilidade jurídica na afirmação de o Ministério Público não possui autonomia financeira, sendo a decisão, nesse ponto, posteriormente referendada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal.204 Argumenta a doutrina ainda que o Ministério Público, para que bem exerça suas funções, há que ser um órgão independente, por isso, mesmo que se considere ele de seus membros; VI - propor ao Poder Legislativo a criação e a extinção dos cargos de seus serviços auxiliares, bem como a fixação e o reajuste dos vencimentos de seus servidores; VII - prover os cargos iniciais da carreira e dos serviços auxiliares, bem como nos casos de remoção, promoção e demais formas de provimento derivado; VIII - editar atos de aposentadoria, exoneração e outros que importem em vacância de cargos e carreira e dos serviços auxiliares, bem como os de disponibilidade de membros do Ministério Público e de seus servidores; IX - organizar suas secretarias e os serviços auxiliares das Procuradorias e Promotorias de Justiça; X - compor os seus órgãos de administração; XI - elaborar seus regimentos internos; XII - exercer outras competências dela decorrentes. Parágrafo único As decisões do Ministério Público fundadas em sua autonomia funcional, administrativa e financeira, obedecidas as formalidades legais, têm eficácia plena e executoriedade imediata, ressalvada a competência constitucional do Poder Judiciário e do Tribunal de Contas. Art. 4º O Ministério Público elaborará sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na Lei de Diretrizes Orçamentárias, encaminhando-a diretamente ao Governador do Estado, que a submeterá ao Poder Legislativo. § 1º Os recursos correspondentes às suas dotações orçamentárias próprias e globais, compreendidos os créditos suplementares e especiais, ser-lhe-ão entregues até o dia vinte de cada mês, sem vinculação a qualquer tipo de despesa. § 2º A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Ministério Público, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação de dotações e recursos próprios e renúncia de receitas, será exercida pelo Poder Legislativo, mediante controle externo e pelo sistema de controle interno estabelecido na Lei Orgânica.” 204 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.831, Medida Cautelar, Relator Ministro Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 11/03/2004, DJ 28-05-2004. 103 vinculado a alguns dos Poderes, é indispensável assegurar-lhe uma relação apenas de cooperação, jamais de subordinação. Além disso, sob o aspecto prático, milita a favor do Ministério Público a presunção de constitucionalidade das normas infraconstitucionais que lhe concederam autonomia financeira. Mesmo a competência privativa dada ao Presidente da República para o envio da Lei de Diretrizes Orçamentárias ao Congresso Nacional (CF/88, art. 84, XXIII) não abrange a possibilidade de alteração da proposta orçamentária que lhe é dirigida. Se fosse permitido ao Chefe do Executivo alterar as propostas orçamentárias – o que se diz apenas para argumentar-, jamais se poderia falar em autonomia financeira nem mesmo em relação ao Judiciário, que possui texto expresso concedendo-a (CF/88, art. 99, caput). A autonomia financeira, nessa hipótese, pertenceria de fato apenas ao Executivo, o que, à evidência, fere incisivamente o Princípio da Separação dos Poderes. Portanto, não só a autonomia funcional e administrativa, mas também a financeira, constituem condições necessárias para o exercício das funções ministeriais, já que se lhe exige, para tanto, uma real independência orgânica. 3.4.2) Garantias dos Membros: Vitaliciedade, Inamovibilidade e Irredutibilidade de Subsídio (CF/88, Art. 129, § 5º, I) O art. 129, §§ 1º, 2º e 3º da Constituição Federal asseguram que as funções ministeriais só poderão ser exercidas por integrantes da carreira, cujo ingresso far-se-á mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da OAB em sua realização e com observância da ordem de classificação para as nomeações. Uma vez tendo ingressado na carreira, na forma acima descrita, e tendo exercido suas funções por dois anos, não poderá perder o cargo, senão por sentença judicial transitada em julgado. Esta é a garantia da vitaliciedade. 104 FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO afirma que a sentença judicial transitada em julgado capaz de gerar a perda do cargo é a proferida em ação civil própria, na forma da Lei Orgânica, em casos tais como a prática de crime incompatível com o exercício do cargo, exercício da advocacia ou abandono do cargo por prazo superior a 30 dias corridos. Alerta ainda que a vitaliciedade não significa perpetuidade, pois se aplica também quanto aos membros do Ministério Público a regra da aposentadoria compulsória aos 70 anos.205 Outra garantia assegurada é a da irredutibilidade de subsídio, nos termos da CF/88, art. 128, § 5º, I, c, c/c arts. 39, § 4º; 37, X e XI; 150, II; 153, III e 153, § 2º, I. Por fim, assegura-se a garantia da inamovibilidade. Esta garantia já foi comentada quando se tratou do Princípio do Promotor Natural, onde ficou assentado que constitui ela garantia não só do membro do Ministério Público de que não será transferido ou removido para outro local em que esteja atuando como titular, exceto por motivo de interesse público e mediante decisão de dois terços dos membros do órgão colegiado competente do Ministério Público, assegurada ampla defesa, mas também garantia das partes no processo e de toda a sociedade, de que o membro da Instituição, ao atuar num determino feito, o faz única e exclusivamente por critérios legais. O art. 130 da CF/88 estende esses direitos aos membros do Ministério Público especial que oficiam junto aos Tribunais de Contas. Ou seja, deverão ser garantidas a forma de ingresso e as garantias da vitaliciedade, da irredutibilidade de subsídio e da inamovibilidade, nos mesmos termos assegurados aos membros do Ministério Público comum. Essas garantias protegem diretamente o exercício da atividade funcional206, propiciando ao membro o que dele se requer, ou seja, uma atuação independente e norteada pelo interesse público. 205 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., pp. 335/336 CAZETTA JÚNIOR, José Jesus. Funções Institucionais do Ministério Público. A Independência Funcional dos Membros do Ministério Público e a sua Tríplice Garantia Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2001; 206 105 3.4.3) Das Vedações (CF/88, Art. 128, § 5º, II) A Constituição Federal vigente, em seu artigo 128, § 5º, II, impõem as seguintes vedações aos membros do Ministério Público, inclusive do Ministério Público especial que atua junto aos Tribunais de Contas (CF/88, art.130): a) receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais; b) exercer a advocacia; c) participar de sociedade comercial, na forma da lei; d) exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério; e) exercer atividade político-partidária, salvo exceções previstas na lei. Essas vedações constituem um complemento das garantias da Instituição e dos membros, para que se tenha efetivamente um órgão apto a exercer com independência e imparcialidade suas atividades. 3.5) AS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO O artigo 129 estabelece, em sede constitucional e em rol exemplificativo, quais são as funções institucionais do Ministério Público. Dentre essas funções institucionais, destaca-se a promoção privativa da ação penal pública (CF/88, Art 129, I). Isso significa que, seja a ação penal pública condicionada ou incondicionada, caberá ao Ministério Público oferecer a denúncia. Isso não quer dizer que seja ele obrigado a pedir uma condenação, visão que até hoje vulgarmente se tem do Promotor. A Constituição vigente inclusive mudou a nomenclatura de Promotor Público para Promotor de Justiça. Se num determinado caso se perceber que o réu é inocente ou milita ao seu favor alguma exclusão da punibilidade, deve o Ministério Público, para que efetivamente se promova a Justiça, pedir a absolvição do réu ou que se aplique o benefício legal. Afinal de contas, não é do interesse público a condenação de um inocente, ou que alguém fique preso por tempo superior ao que de fato merece. 106 O que se exige do Promotor de Justiça é que, existindo indícios suficientes que tornem viável uma condenação, ofereça a ação penal pública, eis que essa é uma iniciativa privativa e indisponível. A única exceção em que se admite o exercício do direito de ação pelo particular, relativamente à questão que necessitaria de ação penal pública, é a prevista no art. 5º, LIX da Constituição Federal, que admite ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal. Note-se que, mesmo nessa hipótese, o que se exercitará é a ação penal privada, que substituirá a pública e que somente será admitida em caso de inércia do Ministério Público. Esta inércia não significa a negativa de ofertar denúncia, mas sim que nenhuma providência foi tomada pelo Ministério Público, apesar de ter a obrigação de agir. Assim, caso seja requerido o arquivamento, não caberá ação privada substitutiva da pública. Ademais, mesmo proposta esta, caberá ao Ministério Público aditar a queixa, repudia-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal (CPP, art. 29). Sempre que presentes os requisitos legais, o Ministério Público tem obrigação de denunciar, ou seja, impera o princípio da indisponibilidade, uma vez que há interesse público na apuração e punição do fato delituoso. Outra função institucional atribuída constitucionalmente ao Ministério Público e o zelo pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição Federal, promovendo as medidas necessárias a sua garantia (CF/88, Art. 129, II). Não só para zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos, mas para todas as atividades que lhe incumbe, poderá o Ministério Público se valer dos instrumentos de que possui, tal como requisitar diligências investigatórias e instaurar de inquérito policial, indicando os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais (CF/88, 107 art. 129, VIII), denunciar, fazer acordos com validade de título judicial, e, na forma da lei complementar, expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los (CF/88, art. 129, VI) e etc. Também cabe ao Ministério Público a promoção do inquérito civil e da ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (CF/88, art. 129, III). A expressão “e de outros interesses difusos e coletivos” amplia significativamente o alcance da Ação Civil Pública. Alguns exemplos que podem ilustrar a amplitude desta ação, tais como: a - ação de dissolução de sociedade civil que promove atividades ilícitas ou imorais (Código de Processo Civil de 1939, art. 670, ex vi do art. 1.218, VII, do atual estatuto processual civil); b – ação para superveniente decretação de inelegibilidade (Código Eleitoral, art. 237) ; c – instauração de dissídio coletivo, sempre que ocorrer suspensão do trabalho (CLT, art. 856 e arts. 23 e 11 da Lei nº 4.330/64); d – ação de responsabilidade civil por danos ao meio ambiente (Lei nº 6.938/82, art. 14, § 1º) e etc. O Ministério Público também deve propor ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos na Constituição Federal (art. 129, IV). Esta, aliás, configura uma das principais funções institucionais, pois se lhe cabe a defesa da Ordem Jurídica, com maior razão da Constituição Federal e Estadual. Embora pouco falada, a defesa judicial dos direitos e interesses das populações indígenas também é função ministerial (CF/88, art. 129, V). Não se trata de defesa do “índio”, individualmente considerado, mas sim das populações indígenas, tal como a preservação das áreas que lhes são destinas, o respeito a cultura indígena (CF/88, art. 125, § 1º), e etc.. 108 Os índios, suas comunidades e organizações também possuem legitimidade para ingressarem em juízo em defesa de seus direitos e interesses, cabendo ao Ministério Público intervir em todos os atos do processo (CF/88, art. 232).207 Outra atribuição ministerial é o controle externo da atividade policial, que requer disciplina por lei complementar (CF/88, art. 129, VII). Afora esses casos específicos, existem outras tantas atividades que a Lei pode lhe conferir, desde que compatíveis com sua finalidade (CF/88, art. 129, IX). 3.6) DO MINISTÉRIO PÚBLICO QUE ATUA JUNTO AO TRIBUNAL DE CONTAS Oportuno ressaltar a existência de um Ministério Público que atua junto ao Tribunal de Contas da União (art. 73, § 2.º, I, da CF), regido por lei ordinária de iniciativa do próprio Tribunal de Contas da União e não por lei complementar de iniciativa do Procurador Geral da República, embora seus membros (inclusive um procurador geral próprio) estejam sujeitos aos mesmos direitos, vedações e forma de investidura impostos aos demais integrantes do Ministério Público em geral (art. 130 da CF). Em decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 798-1/DF, cujo Relator foi o Min. CELSO DE MELLO, a Excelsa Corte entendeu, à unanimidade, que o Ministério Público que atua junto ao Tribunal de Contas da União é Instituição que não integra o Ministério Público da União, entendendo ainda ser lícita a vinculação administrativa desse Ministério Público ao próprio Tribunal de Contas da União, verbis: “(...) O Ministério Público que atua perante o TCU qualifica-se como órgão de extração constitucional, eis que a sua existência jurídica resulta de expressa previsão normativa constante da Carta Política (art. 73, § 2º, I e art. 130), sendo indiferente, para efeito de sua configuração jurídico-constitucional, a circunstância de não constar do rol taxativo inscrito no art. 128, I, da Constituição Federal, que define a estrutura orgânica do Ministério Público da União. O Ministério 207 O “Título VIII – Da Ordem Social”, “Capítulo VIII – Dos Índios”, da Constituição vigente, assegura aos índios uma série de direitos, sem excluir outros tantos consagrados infraconstitucionalmente. 109 Público junto ao TCU não dispõe de fisionomia institucional própria e, não obstante as expressivas garantias de ordem subjetiva concedidas aos seus Procuradores pela própria Constituição (art. 130), encontra-se consolidado na intimidade estrutural dessa Corte de Contas, que se acha investida – até mesmo em função do poder de autogoverno que lhe confere a Carta Política (art. 73, caput, in fine) – da prerrogativa de fazer instaurar o processo legislativo concernente à sua organização, à sua estruturação interna, à definição do seu quadro 208 de pessoal e à criação dos cargos respectivos” Assim, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o poder de auto-organização do Tribunal de Contas da União e a constitucionalidade da Lei n. 8.443/92, que dispõe sobre a sua organização e composição. Pela importância do tema, bem como pela forma didática em que foi exposto, vale transcrever as palavras do Min. CELSO DE MELLO proferidas no voto-condutor do julgamento da ADI nº. 789-1/DF, que sintetiza as questões a respeito da natureza jurídica do Ministério Público que atua junto ao Tribunal de Contas da União: “(...) a matéria é controvertida na doutrina, que se divide entre aqueles que vêem no Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União uma instituição autônoma, independente do Ministério Público federal (Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, “Ministério Público junto aos Tribunais de Contas”, in Caderno de Direito e Justiça do Correio Braziliense, exemplar de 14/09/92), e aqueles, como Hugo Nigro Mazzilli (“O Ministério Público no Tribunal de Contas” in RT 650/40), que o consideram órgão integrante do Ministério Público da União. (...) o Ministério Público junto ao TCU, desde os primórdios da República, quando ainda se ensaiava o seu processo de institucionalização no direito positivo brasileiro, revelou-se peça essencial no desempenho das atividades fiscalizadoras e de controle atribuídas a essa alta Corte de Contas (...) a mera previsão constitucional da existência de um Ministério Público especial junto ao Tribunal de Contas não basta, contudo, para conferir-lhe as mesmas prerrogativas jurídicas que inerem, no plano institucional, ao Ministério Público da União e dos Estados-membros. Tenho para mim que concorre para esse entendimento o próprio conteúdo da norma inscrita no art. 130 da Constituição, que assim dispõe: ‘Aos membros do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas aplicam-se as disposições desta Seção pertinentes a direitos, vedações e forma de investidura.’ O exame desse preceito normativo permite nele divisar, desde logo, a existência de cláusulas de garantia de ordem meramente subjetiva, desprovidas de conteúdo orgânico-institucional, e vocacionadas, no âmbito de sua destinação tutelar, a proteger os integrantes do 208 STF – Pleno – ADI nº. 798-1/DF – Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diario da Justiça, Seção I, 19 dezembro 1994. 110 Ministério Público – e a estes, somente – no relevante desempenho de suas funções junto aos Tribunais de Contas. Essas garantias, na realidade, visam a conferir, no âmbito das relações que se estabelecem entre esses agentes estatais e a instituição perante a qual atuam, um estatuto jurídico especial destinado a assegurar a independência (CF, art. 128, § 5º, I), a preservar a imparcialidade (CF, art. 128, § II) e a conferir vantagens específicas de carreira (CF, art. 129, §§ 3º e 4 º) em favor dos membros do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas, impondo-lhes, para efeito de ingresso nessa instituição, a prévia aprovação em concurso público de provas e títulos, com a necessária participação da OAB. Tendo presente o conteúdo normativo desse preceito constitucional, torna-se bastante evidente que não se pode com fundamento nele, sustentar que o Ministério Público junto aos Tribunais de Contas configure, não obstante a sua indiscutível realidade constitucional, um organismo revestido de perfil constitucional próprio, dotado de plena autonomia jurídica e investido das mesmas garantias de ordem subjetiva que foram outorgadas pela ordem constitucional ao Ministério Público da União e dos Estados-membros. Refiro-me, no contexto das garantias institucionais reconhecidas ao Ministério Público comum, à autonomia administrativa (CF, art. 127, § 2º, 1ª parte), à autonomia orçamentária, nesta incluída a de caráter financeiro (CF, art. 127, § 3º) e à prerrogativa de fazer iniciar, por direito próprio, o processo de formação das leis concernentes tanto à criação e à extinção de seus cargos e serviços auxiliares (CF, art. 127, § 2º, 2ª parte) quanto à definição de sua estrutura organizacional, de suas atribuições e do seu próprio estatuto jurídico (CF, art. 128, § 5º). (...) Não obstante o elevado grau de autonomia funcional conferido aos membros desse Ministério Público especial, torna-se imperioso reconhecer que essa circunstância, por si só, não se revela suficiente para identificar, nesse órgão estatal, o atributo da autonomia institucional, nos termos, na extensão e com o conteúdo que a Constituição outorgou ao Ministério Público comum. Sendo assim, considero que o Ministério Público especial de que trata a Lei n. 8.443/92 (...) integra a própria organização administrativa do Tribunal de Contas da União, ainda que privilegiado pro regime jurídico especial, sob pena de qualificar-se, na medida em que é totalmente alheio à estruturação orgânica do Ministério Público da União, como corpo destituído de qualquer referência ou vinculação de ordem institucional. (...) A Constituição da República, ao não estender a esse Ministério Público especial a prerrogativa de iniciar o processo de formação das leis (CF, art. 61, caput) – e achando-se ele estruturado, administrativamente, na ambiência do TCU – permitiu que essa Corte de Contas, no desempenho autônomo dos seus poderes, viesse a incluí-lo na proposição legislativa concernente à sua própria organização e estruturação internas. Entendo, na realidade, Sr. Presidente, que o preceito consubstanciado no art. 130 da Constituição reflete uma solução de compromisso adotada pelo legislador constituinte brasileiro que, tendo presente um quadro de alternativas institucionais (outorga ao Ministério Público comum das funções de atuação perante os Tribunais de Contas ou criação de um Ministério Público especial autônomo para atuar junto às Cortes de Contas), optou, claramente, a meu juízo, por uma posição intermediária, consistente na atribuição, a agentes estatais 111 qualificados, de um status jurídico especial, ensejando-lhes, com o reconhecimento das já mencionadas garantias de ordem meramente subjetiva, a possibilidade de atuação funcional independente, sem que essa peculiaridade, contudo, importasse em correspondente outorga de autonomia institucional ao órgão a que pertencem. Considero, pois, que a norma constitucional em questão só tem por destinatários os agentes públicos nela referidos. Trata-se, como já pude salientar, de norma de extensão cuja natureza permite nela vislumbrar, tão-somente, um instrumento pelo qual o Estado buscou conferir, a quem ordinariamente não as possuía, as garantias próprias dos membros do Ministério Público da União e dos Estadosmembros. Estivesse esse Ministério Público incorporado ao próprio Ministério Público da União, tornar-se-ia de todo dispensável a utilização, pelo legislador constituinte, da norma de extensão mencionada, eis que os membros dessa instituição, precisamente por já se acharem a ela vinculados, titularizariam, por direito próprio, sem necessidade de expresso comando constitucional, as diversas situações subjetivas de vantagem que se revelam inerentes aos integrantes do Ministério Público comum, por efeito do que já dispõe a própria Constituição. Na realidade, com essa norma de extensão inscrita no art. 130 da Carta Política, pretendeu o legislador constituinte atribuir a quem dele normalmente não seria destinatário o complexo de normas pertinentes aos direitos e vedações peculiares aos membros do Ministério Público da União e dos Estados e referentes, ainda, à forma de investidura no cargo exercido. Disso tudo, Senhor Presidente, parece evidente que o legislador constituinte, ao referir-se, no art. 130 da Carta Política, aos membros do Ministério Público junto aos tribunais de Contas, quis, na realidade, disvinculá-los do âmbito do Ministério Público comum, razão pela qual – como pude enfatizar – não se justifica o entendimento, meramente adstrito à literalidade do texto constitucional, de que a falta de referência a esse Ministério Público especial no art. 128 da Constituição teria o sentido de sumária recusa normativa de sua própria existência. O próprio conteúdo da regra inscrita no art. 130 da Constituição configura diretriz nitidamente indicativa de que o Ministério Público especial junto ao TCU não compõe o Ministério Público da União, pois, a não ser por um dispensável exercício de superfetação constitucional, nada justificaria a extensão ordenada pela norma em causa. Daí, os fundamentos em que se apoiou o voto do em. Min. Sepúlveda Pertence, Relator, que, ao indeferi medida liminar na ADIN 263-RO, observou: ‘(...) se compusessem o quadro do próprio Ministério Público comum, não seria necessário prescrevesse o art. 130 CF, ao fim das disposições alusivas à instituição, que ‘aos membros do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas aplicam-se as disposições desta seção pertinentes a direitos, vedações e forma de investidura’’ (...) Com efeito, o preceito constitucional mencionado [relativamente aos membros desse Ministério Público especial] (...) distinguindo-os dentro do universo do funcionalismo público, atribuiu-lhes os predicamentos da vitaliciedade, da inamovibilidade e da irredutibilidade de vencimentos. 112 (...) Ainda que designado sob esse nomen juris – Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União -, é preciso enfatizar que os membros que o compõem vinculam-se à estrutura administrativa dessa Corte de Contas e qualificam-se, embora submetidos a um especial regime jurídico, como servidores integrantes do próprio Quadro de Pessoal desse Tribunal, não obstante haja autores – como Carlos Ayres Britto – que sustentem a vinculação desse Ministério Público especial à estrutura constitucional do Poder Legislativo (RDP 69/324). (...) Na realidade, as prescrições constantes do art. 127, § 2º, da Constituição – que só dizem respeito ao Ministério Público referido no art. 128 do texto constitucional (...) A cláusula veiculadora da exigência de lei complementar, que se acha consubstanciada no art. 128, § 5º, da Constituição, tem a sua aplicabilidade limitada, no plano federal, ao universo dos diversos Ministérios Públicos que compõem o Ministério Público da União. A condição institucional que qualifica o Ministério Público especial que oficia perante o Tribunal de Contas da União revela-se, contudo (...) fator de sua exclusão do âmbito da estrutura organizacional do Ministério Público da União (...)”209 (grifos no original). A Suprema Corte, no julgamento liminar da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1545-1/SE e com fundamento no Princípio da Simetria, também se posicionou no sentido de que o modelo federal do Ministério Público que atua junto ao Tribunal de Contas da União deverá ser seguido pelos Estados-Membros, em relação aos seus respectivos Tribunais de Contas.210 Na inicial desse julgamento, argumentou-se que há uma necessária simetria entre a composição do Tribunal de Contas da União e a dos Tribunais de Contas dos Estados, nos termos do art. 75 da Constituição Federal. Invocou-se, igualmente, o art. 130, também da Carta Política, que prevê, segundo o requerente, “necessária existência de um Ministério Público especializado perante aquele órgão não jurisdicional, diverso do Ministério Público comum”.211 Esses argumentos foram aceitos, ficando assentado, à unanimidade, que, nos termos da Ação Direta nº 789, não pode o Ministério Público estadual comum absorver as funções correlatas exercidas perante o Tribunal de Contas. 209 STF – Pleno – ADI nº. 798-1/DF – Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diario da Justiça, Seção I, 19 dezembro 1994 210 STF – Pleno – ADI nº. 1545-1/SE – Rel. Min. Octávio Gallotti, publicado no Diario da Justiça, Seção I, de 24.10.1997 211 Idem, ibidem. 113 ALEXANDRE DE MORAES não concorda com a aplicação do modelo federal para os Tribunais de Contas dos Estados, ao afirmar: “(...) Discordamos do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, em sede liminar, em relação aos Ministérios Públicos que devem atuar junto aos Tribunais de Contas Estaduais, uma vez que a Constituição Federal somente consagra em nível estadual um único Ministério Público, uno e indivisível, e, diferentemente do previsto no art. 73, § 2º, I, da CF em relação ao Tribunal de Contas da União, a Carta Maior não faz menção à existência de um Ministério Público junto aos Tribunais de Contas dos Estados. Dessa forma, cada um dos Estados-membros, no exercício de seu poder constituinte derivado decorrente – caracterizador da existência, autonomia e manutenção de uma Federação – deverá estabelecer em sua Constituição Estadual a configuração jurídico institucional do Ministério Público que atuará perante o Tribunal de Contas do Estado e do Município, quando existir”.212 Para esse autor, portanto, a exemplo do decidido pelo Supremo Tribunal Federal relativamente à esfera federal, o Ministério Público que atua junto ao Tribunal de Contas da União não possui qualquer vínculo com o Ministério Público da União, sendo que sua configuração jurídico-institucional o indica como órgão ligado ao próprio Tribunal de Contas da União. Entretanto, relativamente à observância do Princípio da Simetria, entende MORAES que, por ausência de previsão constitucional, o modelo federal não tem necessariamente que ser seguido pelos Estados, de tal forma que seria lícito reconhecer a possibilidade do “Estado-membro disciplinar em sua Constituição estadual qual Ministério Público atuará perante o Tribunal de Contas do Estado”.213 Em suma, para o Supremo Tribunal Federal, os membros do Ministério Público que atuam junto aos Tribunais de Contas da União, dos Estados e dos Municípios, apesar de possuírem os mesmos direitos, vedações e forma de investidura dos membros dos Ministérios Públicos comuns, previstos no art. 128 da CF/88, a estes não pertencem.214 212 MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 517 Idem, ibidem. 214 Daí a relevância da argüição de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República, na ADI 1545-1/SE, que questionou o art. 26 da Lei Complementar sergipana nº 4-90, que implicava o funcionamento, junto ao Tribunal de Contas, de órgão do Ministério Público comum, bem como, especificamente quanto a forma de investidura, perante o art. 37, II, também da Carta da República, do art. 83 daquele diploma sergipano, que autorizava a transposição, para cargos de Procurador de Justiça, os 213 114 Ademais, embora constitua instituição própria, de feição constitucional, este Ministério Público especial está ligado ao respectivo Tribunal de Contas onde atuam seus membros, de tal forma que, a exemplo de muitas argüições de inconstitucionalidades propostas na Suprema Corte, é inválida a designação de membros de quaisquer Ministérios Públicos comuns para atuarem junto a Tribunais de Contas.215 3.7) O MINISTÉRIO PÚBLICO E OS ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DA SEPARAÇÃO DE PODERES No “Capítulo II” desta monografia, foi visto que há dois elementos fundamentais que caracterizam a separação de poderes, quais sejam, a especialização funcional e a independência orgânica. ocupantes dos de Procurador da Fazenda Pública junto ao Tribunal de Contas. STF – Pleno – ADI nº. 1545-1/SE – Rel. Min. Octávio Gallotti, publicado no Diario da Justiça, Seção I, de 24.10.1997 215 ADIMC nº 2068/MG, Relator Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 15/12/1999 pelo Tribunal Pleno, publicado no Diário de Justiça de 25/02/2000, onde assentou: “Ementa. MINISTÉRIO PÚBLICO TRIBUNAL DE CONTAS. A teor do disposto no artigo 130 da Constituição Federal, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas consubstancia quadro diverso do Ministério Público comum. Daí a suspensão, no artigo 124 da Constituição do Estado de Minas Gerais - no que preceitua que "o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas e do Tribunal de Justiça Militar será exercido por Procurador de Justiça integrante do Ministério Público Estadual" - da expressão "... junto ao Tribunal de Contas e ...", isso ante a relevância do pedido formulado, bem como em face do precedente revelado na apreciação de medida acauteladora na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.545/SE, relatada pelo Ministro Octavio Gallotti, com acórdão publicado no Diário da Justiça de 24 de outubro de 1997. Votação: Unânime”; ADIMC Nº 2378/GO, Relator Min. MAURÍCIO CORRÊA, julgado em 22/03/2001 pelo Tribunal Pleno, publicado no DJ de 05.04.2002, que assim decidiu: “EMENTA: MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO AO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE GOIÁS. EC Nº 23/98. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. Esta Corte já firmou orientação no sentido de que o Ministério Público que atua junto aos Tribunais de Contas não dispõe de fisionomia institucional própria (ADI 789, CELSO DE MELLO, DJ de 19.12.94). 2. As expressões contidas no ato legislativo estadual que estendem ao Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Estado as prerrogativas do Ministério Público comum, sobretudo as relativas "à autonomia administrativa e financeira, à escolha, nomeação e destituição de seu titular e à iniciativa de sua lei de organização" são inconstitucionais, visto que incompatíveis com a regra do artigo 130 da Constituição Federal. 3. Disposição reintroduzida na Constituição do Estado de Goiás pela EC nº 23, de 9 de dezembro de 1998, malgrado o seu teor já houvesse sido declarado inconstitucional pelo STF (ADIMC 1.858, Ilmar Galvão, j. na Sessão de 16.12.98). Medida cautelar deferida. Votação por maioria, vencido o Min. Marco Aurélio; No mesmo sentido: ADI 1791 MC/PE, Relator(a) Min. SYDNEY SANCHES, julgado em 23/04/1998 pelo Tribunal Pleno e Publicado no DJ de 11.09; ADI 1791/PE, Min. SYDNEY SANCHES, julgado em 23.11.2000 pelo Tribunal Pleno e publicado no DJ de 23.02.2001; ADI 160/TO, Relator Min. OCTAVIO GALLOTTI, julgado em 23/04/1998 pelo Tribunal Pleno e publicado no DJ de 20.11.1998 115 Como, segundo esse critério, a ausência de quaisquer desses elementos impede que se qualifique o Ministério Público como um Poder do Estado, necessário se faz verificar a natureza das funções desempenhadas tanto pelo Ministério Público comum, quanto pelo Ministério Público especial (CF/88, art. 130), bem como se esses órgãos são efetivamente “independentes dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação”.216 3.7.1) O Ministério Público possui Especialização Funcional? Pela lição antes expendida por JOSÉ AFONSO DA SILVA, verificou-se que a especialização funcional significa que cada órgão é especializado no exercício de uma função.217 Hoje, bem longe da fórmula defendida por MONTESQUIEU, que propugnava uma divisão rígida das funções estatais, utiliza-se o critério de preponderância. Assim, para se verificar se o Ministério Público possui especialização no exercício de suas funções, deve-se analisar, num primeiro momento, se suas funções institucionais típicas possuem natureza diversa da que desempenha outro “Poder”. Ao assim proceder, o que se constata é que não só suas funções institucionais, como de resto todas as que se ligam à sua finalidade de defesa da Ordem Jurídica, do Regime Democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, possuem, tipicamente, natureza executiva, à semelhança das atividades desenvolvidas pelo Poder Executivo. De fato, a natureza executiva da atividade desenvolvida pelo Ministério Público está sobejamente caracterizada. Podem ser citadas, por exemplo, as atividades descritas na Lei de Execuções Penais218, especialmente em seus arts. 67 e 68219, no Estatuto da 216 SILVA, José Afonso da., op. cit., p. 113. SILVA, José Afonso da., op. cit., p. 113. 218 MESQUITA JÚNIOR, Sídio Rosa de Mesquita. Manual de Execução Penal. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2002, p.141 e 142. 219 Lei 7.210/84. “Art. 67. O Ministério Público fiscalizará a execução da pena e da medida de segurança, oficiando no processo executivo e nos incidentes da execução. Art. 68. Imcumbe, ainda, ao Ministério Público. I – fiscalizar a regularidade formal das guias de reconhimento e de internamento; II – requerer: 217 116 Criança e do Adolescente (art. 126, 129, 148, 153, 160, 162, 167, 174, 175, 179, 181, 182, 194, 201 e ss., entre outros tantos) ou na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92, arts. 15, 16, 17, 22 e etc.). Nem mesmo a supressão da representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas (CF/88, art. 129, IX) alteram essa natureza, pois, em essência, embora não esteja defendendo interesses das entidades públicas, pratica atos da mesma natureza quando, por exemplo, realiza a defesa judicial das populações indígenas, propõe ação de inconstitucionalidade ou promove a Ação Civil Pública. No dizer de JOSÉ CRETELLA JR., o membro do Ministério Público, ao propor a ação penal pública, por exemplo, “ordena, postula, litiga, promove, impetra”, pois é ele o titular do direito de agir.220 O ponto de toque da questão é não fazer confusão entre a atividade desempenhada pelo Ministério Público com a finalidade que se quer alcançar com essa atividade. Com efeito, a atividade praticada em juízo (ao se propor uma ação, oferecer alegações, requisitar provas, defender interesses, contestar, recorrer e etc.) possui a mesma natureza tanto quando se tem por fim defender o meio ambiente, as populações indígenas, a probidade administrativa, quando se visa a defesa de interesses das entidades públicas. A atividade é a mesma, o que se altera é apenas a finalidade, que no primeiro caso é a defesa do interesse difuso e, no segundo, da entidade pública especificamente. Ou seja, será proposta uma ação ou oferecida uma resposta (contestação, reconvenção, exceção), serão feitas alegações, haverá produção de provas... enfim, serão desempenhadas atividades processuais, seja na defesa do meio ambiente ou das populações indígenas, seja quando se está defendendo interesses de entidades públicas. a) todas as providências necessárias ao desenvolvimento do processo executivo; b) a instauração dos incidentes de excesso ou desvio de execução; c) a aplicação de medida de segurança, bem como a substituição da pena por medida de segurança; d) a revogação da medida de segurança; e) a conversão de penas, a progressão ou regressão nos regimes e a revogação da suspensão condicional da pena e do livramento condicional; f) a internação, a desinternação e o restabelecimento da situação anterior; III – interpor recursos de decisões proferidas pela autoridade judiciária, durante execução. Parágrafo único. O órgão do Ministério Público visitará mensalmente os estabelecimentos penais, registrando a sua presença em livro próprio.” 220 CRETELLA JR., José, op. cit., p. 3320 117 Aliás, ao se defender as entidades públicas, a rigor, defende-se, mesmo que indiretamente, o interesse público, de tal forma que, neste caso específico, até mesmo sob o aspecto da finalidade do ato, há uma certa semelhança quanto à natureza. Acentua-se ainda mais a natureza executiva quando se trata das atividades extraprocessuais do Ministério Público, tanto que a Constituição fala, em uma dessas atividades, em expedição de notificações em “procedimentos administrativos” (CF/88, art. 129, VI). Mais do que isso, a própria descrição da atividade de “expedir notificações”, “requisitar informações e documentos”, “exercer controle externo”, “requisitar diligências”, “requisitar instauração de inquérito”, “promover a ação”, “promover o inquérito”, “zelar”, “defender judicialmente” e etc., constantes do art. 129 da Constituição Federal, bem indicam a natureza de quem está praticando atos executórios. Ressalte-se a dicção ainda mais incisiva do art. 257 do Código de Processo Penal, ao se dizer que o Ministério Público promoverá e fiscalizará a execução da lei. A doutrina, em sua grande maioria, reconhece a natureza executiva das atividades típicas do Ministério Público. Veja-se a respeito MANUEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, ao dizer que, se for correto, como parece ser, o conceito clássico de Ministério Público, como órgão incumbido da defesa do interesse geral em que sejam cumpridas as leis, ressalta à vista que sua função se insere entre as do Poder Executivo.221 As atividades básicas do Ministério Público consistem, portanto, em cumprir e fazer cumprir as leis, norteadas pelo interesse público de que não pode dispor, à exemplo do que ocorre com toda atividade administrativa222, sendo que essas funções possuem nítida natureza executiva e que, de resto, não lhe confere especialização funcional. Com relação ao Ministério Público especial, também suas atividades são de natureza executiva, pois ao auxiliar as atividades fiscalizadoras e de controle atribuídas 221 222 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves, op. cit., p. 268. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 27. 118 ao Tribunal de Contas, também postula, requer, apresenta provas, investiga, dar pareceres, entre outras atividades semelhantes.223 3.7.2) O Ministério Público possui Independência Orgânica? A independência orgânica, para efeitos de divisão das funções do Poder Político, consiste na ausência de subordinação de um órgão em relação ao outro. Conforme analisado nos itens anteriores, constatou-se que o Ministério Público comum (de que são espécies os constantes no art. 128 da CF/88), norteia suas atividades de acordo com os princípios institucionais da unidade, indivisibilidade, independência funcional e do promotor natural, possui ainda, enquanto Instituição, autonomias funcional, administrativa e financeira (CF/88, art. 127, § 2º e 3º; Lei Complementar nº 75/93, arts. 22 e 23; Lei Orgânica Nacional do Ministério Público dos Estados, arts. 3º e 4º). Por outro lado, assegurou-se aos membros do Ministério Público as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio. Todos esses princípios e garantias demonstram de modo inequívoco que a Constituição conferiu independência orgânica ao Ministério Público comum. Isso significa que não está ele subordinado a nenhum outro órgão. Aliás, a Constituição Federal vigente, em seu art. 85, II, realça essa independência orgânica, ao prever como crime de responsabilidade do Presidente da República os atos que atentem contra o Ministério Público, in verbis: “CF/88. Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (...) II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação.” 223 STF – Pleno, ADI nº 798-1/DF – Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça, Seção I, de 19 de dezembro de 1994. 119 Ao colocar o Ministério Público ao lado dos Poderes do Estado, alguns autores consideram que esse seria um fundamento para sustentar que o Ministério Público seria um “Quarto Poder”. Para outros, todavia, o que ocorre é justamente o contrário, no sentido de que quando a Constituição Federal se refere ao Legislativo e ao Judiciário (ou até às unidades da Federação), utiliza expressamente os termos “Poder” ou “Poderes”, exceto em relação ao Ministério Público, o que indicaria não ser ele Poder do Estado, pois, se fosse essa a vontade Constituição, o teria qualificado de Poder Ministerial ou algo semelhante.224 Acontece o fato de ser o Ministério Público órgão independente, não o exime de sujeitar-se ao crivo do Judiciário, em caso de ilegalidades. O que não se permite é uma ingerência por parte do Poder Executivo. Daí o Texto Constitucional expressamente indicar que os atos do Presidente da República que atentem contra o Ministério Público constituem crime de responsabilidade. No dizer de JOSÉ JESUS CAZETTA JÚNIOR, a autonomia da Instituição e independência funcional de seus membros impõem certos limites externos ao controle hierárquico, ou seja, óbices a que seja feito um controle externo, que se manifestam de tal forma que chegam a “(...) eliminar a ingerência do Poder Executivo na administração e no funcionamento do Ministério Público, ao qual – além da ampla liberdade para determinar, concretamente, o modo e a intensidade de sua atuação em procedimentos e processos – competem, privativamente, os poderes infralegais para os atos próprios de expediente e gestão, notadamente do patrimônio estatal destinado ao seu uso, incumbindo-lhe ainda, com exclusividade, as decisões administrativas a respeito dos integrantes de seus quadros. Aliás, em clara demonstração da importância que atribui à autonomia da Instituição, a Constituição Federal considera crime de 224 Nota-se que a Constituição não previu, no artigo sob comento, que constitui crime de responsabilidade os atos contra o Poder Executivo e, se assim não fez, foi porque o Presidente da República, enquanto chefe do Poder Executivo, encontra-se no mais alto grau de hierarquia desse Poder. 120 responsabilidade qualquer ato do Presidente da República que atente contra o livre exercício do Ministério Público (art. 85, II)”.225 Conforme estudado quando se tratou em específico da independência funcional da Instituição, esta elimina qualquer ingerência na atividade ministerial, seja no âmbito do próprio órgão, seja externamente. A independência financeira ou, na visão de alguns, independência orçamentária, permite que o Ministério Público tenha recursos sem que precise de “favores” de nenhum Poder, estando apenas sujeito ao controle externo exercido pelo Tribunal de Contas, o que de resto acontece com toda pessoa física ou jurídica que participa de relação em que envolva verbas públicas. Assim, está devidamente caracterizada a independência ou autonomia orgânica do Ministério Público comum, justamente porque acumula, conjuntamente, a autonomias funcional, administrativa e financeira, que, uma vez efetivadas, eliminam qualquer possibilidade de subordinação. Já em relação ao Ministério Publico especial, cujos membros atuam perante ao Tribunal de Contas da União, a questão já se põe de modo diferente. Com efeito, nos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 7981/DF226, já se firmou que faz ele parte da estrutura do Tribunal de Contas, “cabendo a este a prerrogativa de instaurar o processo legislativo concernente à sua organização, à sua estruturação interna, à definição de seu quadro de pessoal e à criação dos cargos respectivos” (CF/88, art. 73, caput, c/c art. 96).227 Decidiu-se, ainda, que as garantias descritas no art. 130 da Constituição Federal tratam-se apenas de garantias de “ordem meramente subjetiva, desprovidas de conteúdo orgânico-institucional, e vocacionadas, no âmbito de sua destinação tutelar, a proteger 225 CAZETTA JÚNIOR, José Jesus. Funções Institucionais do Ministério Público. A Independência Funcional dos Membros do Ministério Público e a sua Tríplice Garantia Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. .37 e 38; 226 Conferir o tópico destinado ao Ministério Público da União, onde consta boa parte do voto-condutor do referido acórdão. 227 STF – Pleno, ADI nº 798-1/DF – Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça, Seção I, de 19 de dezembro de 1994. 121 os integrantes do Ministério Público – e a estes, somente – no relevante desempenho de suas funções junto ao Tribunal de Contas”.228 Se ao Ministério Público comum reconheceu-se a autonomia administrativa, orçamentária, nesta incluída a de caráter financeiro e a prerrogativa de fazer iniciar, por direito próprio, o processo de formação das leis, relativo tanto à criação e à extinção de seus cargos e serviços auxiliares (CF/88, art. 127, § 2º, 2ª parte), como à definição de sua estrutura organizacional, de suas atribuições e do seu próprio estatuto jurídico (CF/88, art. 128, § 5º), o mesmo não ocorreu em relação ao Ministério Público especial, que teve apenas a garantia da autonomia funcional conferida aos seus membros (CF/88, art. 130).229 Por esses motivos, o Supremo Tribunal Federal decidiu, à unanimidade, que as garantias de ordem subjetivas dadas aos membros do Ministério Público especial se revelam insuficientes para identificar neste o atributo de autonomia institucional, nos termos, na extensão e com o conteúdo que a Constituição outorgou ao Ministério Público comum. Firmou entendimento ainda no sentido de que o Ministério Público especial vincula-se à estrutura administrativa da Corte de Contas e os seus membros integram o próprio Quadro de Pessoal desse Tribunal.230 De fato, essas características não o apontam como órgão efetivamente independente, mas sim subordinado, administrativa e financeiramente, ao Tribunal de Constas da União. Constata-se que o Ministério Público especial, diferentemente do Ministério Público comum, não possui independência orgânica, muito embora seus membros gozem de autonomia funcional. 228 Idem, ibidem. Idem, ibidem. 230 Idem, ibidem. 229 122 123 CONCLUSÃO Os fins da sociedade, de uma maneira global e moderna, se traduzem na realização do bem comum. A função política é o conjunto de atividades que, ao menos em tese, conduzem-na a este objetivo e requer, para seu exercício, um poder político correlato, que é a potência ou força capaz de interferir nas relações sociais. Com o surgimento do Estado Moderno o poder político tornou-se uno e soberano, ou seja, capaz de sobrepor-se a todos poderes sociais. MONTESQUIEU observou que, nos moldes das monarquias absolutas, a concentração do poder político feria a liberdade do cidadão e propôs um sistema rígido de distinção e separação das funções do Estado, atribuindo a órgãos diferentes categorias de funções que guardavam entre si traços de uniformidade. Suas idéias foram absorvidas pelos ideais revolucionários e integraram quase todas constituições ocidentais. Com o passar do tempo, abandonou-se gradativamente a fórmula rígida de distinção e separação das funções estatais e passou-se a um critério de preponderância no exercício delas. Identificou-se, todavia, como elementos indissociáveis da separação de poderes, a especialização funcional e a independência orgânica. Com o advento da Constituição Federal vigente, o Ministério Público ganhou disciplina jamais vista no Mundo, fazendo com que alguns autores defendessem ser ele um quarto Poder do Estado, notadamente pelo seu relevante papel na defesa da Ordem Jurídica, do Regime Democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF/88, art. 127, caput). Daí se propor como problema principal dessa pesquisa qual seria a natureza jurídica do Ministério Público. Para tanto, foram testadas as seguintes hipóteses: 01) Se independência orgânica e especialização funcional são elementos fundamentais do Poder, então o Ministério Público comum e o Ministério Público especial constituem um Quarto Poder do Estado; 124 02) Se a natureza jurídica da atividade do Ministério Público comum é executiva, então ele pertence ao Poder Executivo; 03) Se a natureza jurídica da atividade do Ministério Público especial, cujos membros atuam perante o Tribunal de Contas (CF/88, art. 130) é executiva, então ele pertence ao Poder Executivo; 04) Se o Ministério Público comum é instituição permanente e indispensável à função jurisdicional do Estado (CF/88, Art. 127, caput), então a supressão ou alteração das funções e garantias ministeriais fere o Princípio da Separação dos Poderes; 05) Se a supressão ou alteração das funções constitucionais do Ministério Público comum fere o Princípio da Separação de Poderes, então essas funções e garantias constituem cláusulas pétreas; 06) Se o Ministério Público comum possui independência orgânica, então a questão de seu posicionamento constitucional é meramente teórica, de poucos efeitos dogmáticos-jurídicos; 07) Se o Ministério Público especial estabelece vínculos de subordinação com o Tribunal de Contas onde oficiam seus membros, então ele se vincula à respectiva Corte de Contas; 08) Se o Tribunal de Contas pertence ao Legislativo, então o Ministério Público especial também faz parte do Poder Legislativo; 09) Se existe Tribunal de Contas Municipais, então existe o Ministério Público especial municipal; A hipótese nº 1 revelou-se falsa.231 Constatou-se que para que se considere um órgão ou conjunto de órgãos como Poder do Estado, necessário se faz a conjugação de dois elementos: especialização funcional e independência orgânica. Sendo assim, o Ministério Público comum (pela ausência de especialização funcional), e o Ministério Público especial (por faltar a especialização funcional e a independência orgânica) não constituem um quarto Poder do Estado. 231 Hipótese nº 1. “Se independência orgânica e especialização funcional são elementos fundamentais do Poder, então o Ministério Público comum e o Ministério Público especial constituem um Quarto Poder do Estado”. 125 Faltou ao Ministério Público comum (CF/88, art. 127, caput) o elemento especialização funcional já que a natureza das funções típicas desempenhadas por estes órgãos são nitidamente executivas. Parte da doutrina confunde a natureza da função desenvolvida pelo Ministério Público com a sua finalidade e, por isso, qualificam o Ministério Público comum como órgão vinculado à Justiça.232 Todavia, nem mesmo a supressão da representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas (CF/88, art. 129, IX) alteram a natureza executiva de suas atividades, pois, em essência, embora não esteja defendendo interesses das entidades públicas, pratica atos da mesma natureza quando, por exemplo, realiza a defesa judicial das populações indígenas, propõe Ação de Inconstitucionalidade, promove a Ação Civil Pública, dentre outras atividades por ele diuturnamente exercidas. Suas atividades são de promoção e fiscalização da execução da lei (Código de Processo Penal, art. 257), buscando sempre atingir e proteger o interesse público, de que não pode dispor. Aliás, a busca do interesse público e a sua indisponibilidade são verdadeiros axiomas da atividade executiva. Outra não é a sorte em relação às suas atividades extraprocessuais, que são basicamente de fiscalização, investigação, requisição de provas, expedição de notificações e etc.. Em relação ao Ministério Público especial, faltou não só a especialização como também a independência orgânica. A ausência de especialização funcional está caracterizada pela natureza executiva de suas atividades, ao emitir pareceres, provocar o Tribunal de Contas, praticar investigações, enfim, auxiliar as atividades fiscalizadoras e de controle atribuídas ao Tribunal de Contas. 232 Um dos que defendem pertencer o Ministério Público à Justiça é José Cretella Jr. (Cf. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Vol. VI. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 3295 e ss.) 126 Falta-lhe, por sua vez, independência orgânica, porque subordina-se administrativa e financeiramente à respectiva Corte de Contas onde atuam seus membros. De fato, há inclusive decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 798-1/DF, onde se firmou entendimento no sentido de que o Ministério Público especial compõe a própria estrutura do Tribunal de Contas, cabendo a este a prerrogativa de instaurar o processo legislativo concernente à sua organização, à sua estruturação interna, à definição de seu quadro de pessoal e à criação dos cargos respectivos” (CF/88, art. 73, caput, c/c art. 96).233 A Constituição Federal, em seu art. 130, conferiu aos membros do Ministério Público que oficiam junto aos Tribunais de Contas – e não à Instituição – os direitos, vedações e forma de investidura dada aos membros do Ministério Público comum. Constata-se que essas garantias são de ordem meramente subjetiva, desprovidas de conteúdo orgânico-institucional, e que existem apenas para o desempenho de suas relevantes funções junto ao Tribunal de Contas.234 Assim, se ao Ministério Público comum reconheceu-se a autonomia administrativa, funcional e orçamentária, nesta incluída a de caráter financeiro - o que elimina qualquer vínculo de subordinação -, o mesmo não ocorreu em relação ao Ministério Público especial, que teve apenas a garantia da autonomia funcional conferida aos seus membros.235 Por esses motivos, o Supremo Tribunal Federal decidiu, à unanimidade, que as garantias de ordem subjetivas dadas aos membros do Ministério Público especial se revelam insuficientes para identificar neste o atributo de autonomia institucional, nos termos, na extensão e com o conteúdo que a Constituição outorgou ao Ministério Público comum. Firmou entendimento ainda no sentido de que o Ministério Público 233 STF – Pleno, ADI nº 798-1/DF – Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça, Seção I, de 19 de dezembro de 1994. 234 Idem, ibidem. 235 Idem, ibidem. 127 especial vincula-se à estrutura administrativa da Corte de Contas e os seus membros integram o próprio Quadro de Pessoal desse Tribunal.236 Tudo isso cria um vínculo de subordinação organizacional, que o faz pertencer ao “Poder” a que está vinculado. Desta forma, o Ministério Público comum (por faltar-lhe o elemento da especialização funcional), e o Ministério Público especial (pela ausência dos elementos da especialização funcional e da independência orgânica) não constituem um quarto Poder do Estado, mostrando-se falsa a primeira hipótese. Acrescente-se, por fim, que, mesmo que se tome por base o critério objetivoformal para a distinção de funções do Estado, ou seja, considerando-se – na linha dos ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello - o tratamento jurídico correspondente, independentemente da similitude material que estas ou aquelas atividades possam apresentar entre si, nota-se que o Ministério Público não desenvolve atividade legislativa, pois não lhe dado inovar na ordem jurídica, nem judiciária, uma vez que esta se traduz na resolução de controvérsias com a forma jurídica da definitividade. A hipótese nº 2 mostrou-se verdadeira.237 De fato, em relação ao Ministério Público comum, por ser um órgão independente e praticar atividades típicas de natureza executiva, faz com que, de acordo com o critério-base aqui utilizado, esteja ele ligado ao Poder Executivo, uma vez que não se pode tomar como uma verdade apodídica a afirmação tradicional de que, sempre e em qualquer situação, seus órgãos estão hierarquicamente estruturados. Relembrando a lição do Ministro Sepúlveda Pertence, há “um preconceito de unipessoalidade e verticalidade hierárquica do poder Executivo, que o Estado moderno não conhece mais e que está desmentido pelos fatos”.238 236 Idem, ibidem. Hipótese nº 2. “Se a natureza jurídica da atividade do Ministério Público comum é executiva, então ele pertence ao Poder Executivo”. 237 128 Vale ressaltar: o Ministério Público comum se vincula, mas não se subordina ao Poder Executivo. A hipótese nº 3, por sua vez, apresentou-se falsa.239 Isso porque em relação ao Ministério Público especial, enquanto Instituição, falta-lhe independência orgânica, ou seja, subordina-se, em muitos aspectos, ao Tribunal de Contas. O vínculo de subordinação o coloca como órgão do Poder a que está vinculado aquela Corte, ou seja, ao Legislativo. Logo, o Ministério Público especial pertence ao Poder Legislativo e não ao Executivo. A hipótese nº 4 verificou-se verdadeira.240 Efetivamente, se não existisse um órgão apto, tal como o Ministério Público comum, que desempenhasse suas funções livre de quaisquer influências, provocando o Judiciário nas questões em que este restaria inerte, haveria uma quebra do Princípio da Separação dos Poderes. É que muitas das funções são privativas do Ministério Público e outras, tal como a defesa da Ordem Jurídica, do Regime Democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, necessitam de um órgão efetivamente independente para defende-los. 238 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 147, janeiro de 1994, p. 133; 239 Hipótese nº 3. “Se a natureza jurídica da atividade do Ministério Público especial, cujos membros atuam perante o Tribunal de Contas (CF/88, art. 130) é executiva, então ele pertence ao Poder Executivo”. 240 Hipótese nº 4. “Se o Ministério Público comum é instituição permanente e indispensável à função jurisdicional do Estado (CF/88, Art. 127, caput), então a supressão ou alteração das funções e garantias ministeriais fere o Princípio da Separação dos Poderes”. 129 Ora, se o Judiciário, para ser imparcial, necessita ser inerte, então em relação a essas categorias de interesses, se ausente a provocação pelo Ministério Público, estaria impossibilitada uma efetiva proteção jurisdicional. É que suas funções estão intimamente ligadas ao funcionamento do sistema de freios e contrapesos. Se fosse suprimidas do Ministério Público, por exemplo, a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, quem, pelo regime atual, zelaria por eles? E a ação penal pública? Mesmo que se atribuíssem suas funções a outro órgão haveria quebra do Princípio da Separação dos Poderes, pois, à evidência, somente um órgão independente e nos moldes do Ministério Público comum, poderá cumprir, de modo efetivo, as funções institucionais que lhe foram atribuídas. Em outras palavras, sendo o Judiciário em muitos pontos inerte, conferir as funções hoje atribuídas ao Ministério Público a um órgão que não tenha capacidade de defendê-las com eficiência significaria, a rigor, negar aqueles próprios direitos. Não é por menos que se consagra expressamente que o Ministério Público é Instituição permanente e indispensável à função jurisdicional (CF/88, art. 127, caput), pois suas funções e garantias, pela sistemática constitucional vigente, são elementos inexoráveis da separação funcional. Ao altera-las ou suprimi-las, portanto, fere-se o Princípio da Separação dos Poderes. A hipótese nº 5 também se mostrou verdadeira.241 De fato, dispõe o art. 60, § 4º, III da Constituição Federal vigente que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (...) a separação dos Poderes”. 241 Hipótese nº 5. “Se a supressão ou alteração substancial das funções constitucionais do Ministério Público comum fere o Princípio da Separação de Poderes, então essas funções e garantias constituem cláusulas pétreas”. 130 Conforme leciona ALEXANDRE DE MORAES, retirar do Ministério Público as funções que lhe foram atribuídas ou mesmo as garantias para o bom exercício destas funções diminui a efetividades das liberdades públicas, o que seria o mesmo que abolilas parcialmente, já que “alteraria a fiscalização do regime democrático e dos direitos e garantias fundamentais, repercutindo na Separação de Poderes, sendo, pois, de flagrante inconstitucionalidade”.242 Como se vê, esta hipótese, que está intimamente ligada à anterior, verifica-se verdadeira, na medida em que é expressamente vedado qualquer medida normativa tendente a abolir a separação de Poderes. O importante, entretanto, é deixar bem claro que o que se veda é somente uma supressão ou alteração substancial das funções, ou até mesmo das garantias do Ministério Público. Simples alterações, que não chegam a afetar o núcleo essencial das funções e garantias do Ministério Público são, em tese, admissíveis. Constatou-se que a hipótese nº 6 também é verdadeira.243 O que se constatou é que o fato do Ministério Público comum possuir independência orgânica é o que mais importa. Esta, aliás, é a lição do Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, ao dizer que “(...) garantida efetivamente a sua independência (...), a colocação constitucional do Ministério Público é secundária, de interesse quase meramente teórico. A essa visão do problema, buscou entender, e atendeu em grande parte, a Constituição vigente: deixou à especulação doutrinária a ponderação sobre a natureza material das suas funções institucionais, mas se esforçou de dotar a instituição de garantias inéditas de autonomia administrativa e de independência funcional, seja a do organismo, globalmente considerado, seja a dos seus membros, individualmente. Nesse contexto constitucional, situar o Ministério Público, a partir de suas funções, como componente do Poder Executivo – como é a minha opinião pessoal -, é conclusão que 242 MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 514 Hipótese nº 6. “Se o Ministério Público comum possui independência orgânica, então a questão de seu posicionamento constitucional é meramente teórica, de poucos efeitos dogmáticos-jurídicos”. 243 131 muito pouco tem a ver com o reconhecimento de poderes administrativos do Presidente da República sobre a instituição”.244 Portanto, dizer que o Ministério Público comum é um quarto Poder do Estado em nada o beneficiará, pois, cientificamente, o que lhe resta para isso é a especialização funcional, sendo que, se lhe fosse dado praticar atos de natureza diversa da executiva, sem que se alterasse o seu regime jurídico, isso não importaria em relevantes conseqüências jurídicas. Em outras palavras, sendo o Ministério Público órgão independente, que diferença faria se praticasse atos de natureza diversa da executiva? Parece ser uma questão muito mais de caráter subjetivo que propriamente científica qualificar o Ministério Público comum como “quarto Poder”. Constatou-se como verdadeira a hipótese nº 7.245 O Ministério Público especial estabelece uma relação de subordinação ao Tribunal de Contas onde oficiam seus membros246. Isso se dá porque, nos termos do “Capítulo II, item 2” desta monografia, ocorre, no caso, uma espécie de separação parcial de poderes. Conforme ali estudado, para efeito de separação de poderes, quando entre órgãos há relação de subordinação, eles compõem o mesmo Poder. Logo, o Ministério Público especial vincula-se ao mesmo Poder que pertencer o Tribunal de Contas. A hipótese nº 8 restou verdadeira.247 244 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 147, janeiro de 1994, p. 134; 245 Hipótese 7º “Se o Ministério Público especial estabelece vínculos de subordinação com o Tribunal de Contas onde oficiam seus membros, então ele se vincula à respectiva Corte de Contas”. 246 ver conclusões a respeito das hipóteses “1” e “2”. 247 Hipótese nº 8. “Se o Tribunal de Contas pertence ao Legislativo, então o Ministério Público especial também faz parte do Poder Legislativo”. 132 O Tribunal de Contas, apesar do nome, não é órgão do Poder Judiciário, mas sim órgão auxiliar do controle externo realizado pelo Poder Legislativo.248 O Ministério Público especial, Instituição vinculada ao Tribunal de Contas e, em muitos aspectos, a ele subordinado, pertencendo assim, ao Poder Legislativo. A hipótese nº 9, por fim, verificou-se verdadeira.249 Conforme visto no “Capítulo III, item 3.6”, no julgamento liminar da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1545-1/SE, o Supremo Tribunal Federal decidiu que se deve aplicar o modelo federal do Ministério Público que atua junto ao Tribunal de Contas da União aos respectivos Tribunais de Contas estaduais. Embora não constituísse objeto desta Ação Direta de Inconstitucionalidade a questão relativa à aplicação do Princípio da Simetria aos Tribunais de Contas Municipais, impõem a estes sua aplicação. Com efeito, o art. 130 da Constituição Federal, ao dizer que membros do Ministério Público que atuam perante o Tribunal de Contas possuem as mesmas garantias concedidas aos Membros do Ministério Público comum, não excluiu os Tribunais de Contas Municipais que foram mantidos pela Constituição vigente (CF/88, art. 31, § 1º). Por outro lado, se os Membros do Ministério Público comum não podem oficiar junto às Cortes de Contas (ADI 798-1/DF) e, como os membros do Ministério Público especial estadual compõem o quadro do respectivo Tribunal de Contas onde oficiam, só resta ao Tribunal de Contas do Município compor em seu próprio quadro um Ministério Público Especial Municipal. Destarte, este Ministério Público Especial Municipal vincula-se à Câmara de Vereadores e, portanto, ao Legislativo Municipal. 248 Conferir o “Capítulo II, item 5.2.2” Hipótese nº 9. “Se existe Tribunal de Contas Municipais, então existe o Ministério Público especial municipal”. 249 133 Diante de tudo que foi estudado, pode-se concluir que a natureza jurídica do Ministério Público comum é a de um órgão do Estado, vinculado, mas não subordinado ao Poder Executivo. Já o Ministério Público Especial subordina-se, em vários aspectos (administrativo e financeiro), à respectiva Corte de Contas da unidade da federação onde oficiam seus membros o que, por via de conseqüência, o insere ao Legislativo. O fato de o Ministério Público não constituir um “quarto Poder do Estado”, todavia, em nada o desmerece, pois o que importa é o seu regime jurídico, que o assegura amplas garantias para que bem cumpra suas funções. Ressalte-se, entretanto, que independência não significa irresponsabilidade, pois sendo a atividade pública delineada pelo Direito, não só poderá haver um controle interno, como também um controle externo, notadamente pelo Judiciário, para que se estabeleça efetivamente um governo das Leis e não dos homens. Conclui-se, de outro lado, que o Ministério Público reuniu parcela significativa da função política, a tal ponto que, passados mais de vinte anos da Constituição de 1988, ele próprio ainda está se redescobrindo. Como é da natureza das coisas, algumas questões essenciais somente tendem a ser solucionadas com o passar do tempo, até porque um Estado Democrático de Direito não é algo que simplesmente se proclama, mas algo que se constrói paulatinamente. O que não se pode por em dúvida é que, nesse processo contínuo de democratização, o Ministério Público tem exercido um papel de iniludível importância. 134 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das Ações Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007; ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Vol. 1: História do Direito Romano – Instituições de Direito Romano, parte geral e especial: direito das coisas. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1971; ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente. Direito Administrativo para Concursos. Série provas e concursos. Rio de Janeiro: Impetus, 2002; ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro Acquaviva. 7ª edição. São Paulo: Jurídica Brasileira, 1995; ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998; AURÉLIO, Buarque de Holanda Ferreira. Dicionário Aurélio Eletrônico. Versão 2.0. Autor do software Márcio Ellery Girão Barroso. São Paulo: Fronteira, 1997; AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 36ª edição, São Paulo: Globo, 1997; BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009; BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001; BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 1999; BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série Legislação Brasileira). BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 129, n. 5, julho de 1973, p. 315; 135 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 147, janeiro de 1994, pp. 125-145; BRASIL. Tribunal de Justiça e Tribunal de Alçada de São Paulo. Revista dos Tribunais, v. 225, ano 43, julho de 1954, pp. 33-39. CARNEIRO, Paulo Cezar Carneiro. O Ministério Público no Processo Civil e Penal. Promotor Natural Atribuição e Conflito. 6ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001; CASTRO, Flávia Viveiros de. Os Princípios da Constituição de 1988. O Princípio da Separação dos Poderes. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001; CAZETTA JÚNIOR, José Jesus. Funções Institucionais do Ministério Público. A Independência Funcional dos Membros do Ministério Público e a sua Tríplice Garantia Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2001; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 15ª edição. São Paulo: Malheiros, 1999; COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro: comentários à Constituição e ao Código tributário nacional, artigo por artigo. Rio de Janeiro: Forense, 1999; CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Vol. VI. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993; DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994; FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Conflito Entre Poderes: O Poder Congressual de sustar atos normativos do Poder Executivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994; FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 26ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999; 136 FRIEDE, Reis. Curso de Teoria Geral do Estado. Teoria Constitucional e Relações Internacionais. São Paulo: Forense Universitária, 2000; KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000; MAQUIAVEL. MACHIAVELLI, Nícoló Di Bernardo Dei. O Príncipe. Tradução de Roberto Grassi. 12ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988; MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001; ____________________. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007; MEIRELLES, Helly Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26ª edição. São Paulo: Malheiros, 2001; MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13ª edição. São Paulo: Malheiros, 2001; ______________________________. Curso de Direito Administrativo. 21ª edição. São Paulo: Malheiros, 2006; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 218 MENEZES, Anderson de. Teoria Geral do Estado. 7ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1995; MESQUITA JÚNIOR, Sídio Rosa de Mesquita. Manual de Execução Penal. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2002, p.141 e 142. MORAES, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 11ª edição. São Paulo: Atlas, 2002; OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula. Os Princípios da Constituição de 1988. Princípio da Separação dos Poderes e Jurisdição Constitucional: A Experiência Brasileira. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001; 137 PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual de Direito Constitucional. CampinasSP: Milennium, 2002; PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 12ª edição. São Paulo: Atlas, 2000; REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000; _____________ Introdução ao Estudo do Direito. 23ª edição. São Paulo: Saraiva, 1996; SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, pp. 18-25. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 20ª edição, vol. 2, São Paulo: Saraiva, 1998; VALLADÃO, Alfredo. O Ministério Público. 225 v. Ano 43. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1954;