Revisão da Literatura Conduta em Picadas de Serpentes Brasileiras em Cães e Gatos Management of Poisonous Brazilian Snake Bites in Dogs and Cats Rui Seabra FERREIRA JUNIOR1 Benedito BARRAVIERA2 Silvia Regina Sartori BARRAVIERA3 Thomaz Henrique BARRELLA4 Fabiana Custódio VILELA5 FERREIRA JUNIOR, R.S.; BARRAVIERA, B.; BARRAVIERA, S.R.S.; BARRELLA, T.H.; VILELA, F.C. Conduta em picadas de serpentes brasileiras em cães e gatos. MEDVEP – Rev Cientif Med Vet Pequenos Anim Anim Estim, Curitiba, v.1, n.2, p.124-133, abr./jun. 2003. Os acidentes causados por serpentes constituem um problema importante nas Medicinas Veterinária e Humana, nos países tropicais, devido à sua alta incidência, gravidade e seqüelas. Os acidentes ofídicos acometendo animais no Brasil são causados, na sua maioria, por serpentes do gênero Bothrops e Crotalus. Estas são as de maior risco para a vida dos animais. O presente artigo descreve informações sobre os acidentes botrópicos e crotálicos em cães, as principais espécies causadoras de acidente, epidemiologia, patogenia, ações do veneno, sinais clínicos, seqüelas e complicações, patologia clínica, achados de necrópsia, diagnóstico e tratamento dos acidentes ofídicos. É importante que o clínico esteja preparado para realizar a identificação da serpente não somente pela observação das características da mesma, mas pela evolução dos sinais clínicos. PALAVRAS–CHAVE: Cobras; Mordedura de cobra/veterinária; Bothrops; Crotalus; Cães; Gatos. 1Médico Veterinário especialista em Toxinologia do Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos – CEVAP – UNESP – Botucatu – SP, Pós-graduando em Doenças Tropicais/Faculdade de Medicina de Botucatu – SP 2Professor Titular do Departamento de Doenças Tropicais e Diagnóstico por Imagem/Faculdade de Medicina de Botucatu – SP 3Professora Doutora do Departamento de Dermatologia/Faculdade de Medicina Botucatu e Diretora do Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos – CEVAP – UNESP – Botucatu – SP 4Biólogo Técnico de Laboratório do Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos – CEVAP – UNESP – Botucatu – SP 5Bióloga Aprimoranda do Curso de Animais Peçonhentos do Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos – CEVAP – UNESP – Botucatu – SP; Caixa Postal 577, CEP 18611-000, Botucatu, SP; e-mail: [email protected] INTRODUÇÃO Os acidentes por animais peçonhentos constituem problema de Saúde Pública para os países em desenvolvimento, dadas a incidência, a gravidade e as seqüelas deixadas nos doentes (SALIBA, 1964; WHO, 1981; JORGE & RIBEIRO, 1989; SOERENSEN, 1990; BARRAVIERA & PEREIRA, 1991; REID & THEAKSTON, Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e Animais de Estimação, Curitiba, v.1, n.2, p.124-133, 2003 Conduta em Picadas de Serpentes Brasileiras em Cães e Gatos 1993; BARRAVIERA & PEREIRA, 1999). Este problema estende-se à Medicina Veterinária, devido ao grande prejuízo causado principalmente na população bovina brasileira (BICUDO, 1999), e também aos animais de estimação, como os cães (HACKETT et al., 2002). As serpentes constituem um grupo de répteis reconhecidos principalmente pelo longo corpo flexível, essencialmente sem partes, e pelas modificações anatômicas que permitem alimentar-se de grandes animais, engolindo-os inteiros (GREENE, 1997; JIM & SAKATE, 1999). As serpentes venenosas brasileiras pertencem a duas famílias: Viperidae e Elapidae. Na primeira, encontram-se as serpentes dos gêneros Bothrops (Figura 1), Crotalus (Figura 2) e Lachesis. As do gênero Micrurus pertencem à família Elapidae (GREENE, 1997; FRANCISCO, 1997; SOERENSEN, 1997; FERREIRA JUNIOR & JUNQUEIRA, 2000; DA SILVA, 2000). Os acidentes ofídicos acometendo animais, no Brasil, são causados, na sua maioria, por serpentes dos gêneros Bothrops e Crotalus. Estas são as de maior risco para a vida dos animais (BICUDO, 1999). O gênero Bothrops (Quadro 1) inclui serpentes que se caracterizam por apresentarem fosseta loreal, serem solenóglifas, de cauda lisa, vivíparas e muito agressivas. Esse gênero é constituído por mais de 30 espécies de serpentes, que apresentam desenhos em cores diferentes, variando desde o verde até o preto. Os hábitos variam de acordo com a espécie e a idade, podendo ser encontradas sobre as árvores, entocadas, à beira de rios ou dentro d’água. Podem alimentar-se de pequenos anfíbios, roedores e até de pássaros. As serpentes adultas variam de 0,4 metro até 2,0 metros de comprimento. Podem ser encontradas em todo o território nacional (MEJIA, 1987; PUORTO, 1992; GREENE, 1997; FRANCISCO, 1997; SOERENSEN, 1997; FERREIRA JUNIOR & JUNQUEIRA, 2000; DA SILVA, 2000; FONTEQUE et al., 2001; FERREIRA JUNIOR et al., 2002). As serpentes do gênero Crotalus caracterizamse principalmente por apresentarem um guizo ou chocalho na cauda, possuírem dentição solenóglifa, apresentarem fosseta loreal e por serem vivíparas. Ocorrem em ambientes secos e rochosos, de vegetação baixa e aberta, raramente encontradas em florestas. Com exceção do bote, essas serpentes possuem movimentos lentos, sendo pouco agressivas. Alimentam-se de roedores. No Brasil existe apenas uma espécie, com seis subespécies (Quadro 1), atingindo em média 1,20m de comprimento (MEJIA, 1987; PUORTO, 1992; GREENE, 1997; FRANCISCO, 1997; SOERENSEN, 1997; FERREIRA JUNIOR & JUNQUEIRA, 2000; DA SILVA, 2000; FONTEQUE et al., 2001; FERREIRA JUNIOR et al., 2002). Os acidentes ofídicos no Brasil são causados pelas serpentes do gênero Bothrops, em 80% a 90% dos casos. O gênero Crotalus é responsável por 8% a 15% dos acidentes (SILVEIRA & NISHIOKA, 1992; BARRAVIERA et al., 1995; RIBEIRO et al., 1995; CAIAFFA, et al., 1997; FEITOSA et al., 1997; BARRAVIERA & PEREIRA, 1999, BARRAVIERA, 1999; BORGES et al., 1999; BARRAVIERA et al., 2000; FERREIRA JUNIOR & JUNQUEIRA, 2000; NASCIMENTO, 2000; FRANCO, et al., 2001). Em Medicina humana, os dados epidemio lógicos estão relativamente bem determinados. O Ministério da Saúde tornou obrigatória a notificação dos acidentes ofídicos no país, desde 1986. Segundo os dados do Ministério da Saúde, são registrados cerca de 20.000 acidentes a cada ano, sendo que cerca de 2.000 casos ocorrem no Estado de São Paulo FIGURA 1: Bothrops jararaca (jararaca). FIGURA 2: Crotalus durissus terrificus (cascavel). Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e Animais de Estimação, Curitiba, v.1, n.2, p.124-133, 2003 125 Conduta em Picadas de Serpentes Brasileiras em Cães e Gatos QUADRO 1: Classificação zoológica, nome popular e distribuição das principais serpentes dos gêneros Bothrops e Crotalus encontradas no Brasil. Espécie Nome Popular Distribuição Bothrops alternatus urutu-cruzeira, cruzeira, boicotira MG, SP, GO, MS, PR, SC, RS Bothrops atrox caiçaca, jararaca-do-norte, combóia AM, PA, MA, RO Bothrops brazili jararaca-vermelha, surucucu-vermelha AM, PA, MT Bothrops castelnaudi jararaca-cinza AM, GO, MT Bothrops cotiara cotiara SP, SC, PR, RS Bothrops erythromelas jararaca da seca, jararaca Região Nordeste Bothrops fonsecai cotiara, jararaca SP, RJ, MG Bothrops iglesiasi jararaquinha PI Bothrops insularis jararaca-ilhôa, ilhôa Ilha da Queimada Grande – SP Bothrops itapetiningue jararaca-do-campo, boipeva, furta-cor SP, MG, GO, PR, MS, SC Bothrops jararaca jararaca, jararaquinha-do-rabo-branco Da Bahia até o Rio Grande do Sul Bothrops jararacussu jararacuçu SP, MG, ES, RJ, MG, PR, SC Bothrops leucurus jararaca, jararaca-baiana BA Bothrops moojeni caiçaca, jararacão PA, MA, GO, MT, MS, MG, SP, PR Bothrops neuwiedi jararaca-pintada Todo o país, exceto a região Norte Crotalus durissus cascavella cascavel-de-quatro-ventas ou cascavel AL, CE, MA, MG, PE, PI, RN Crotalus durissus collilineatus cascavel ou maracabóia GO, MT, MG, MS, SP Crotalus durissus marajoensis boicininga, boiçununga ou maracá Ilha de Marajó Crotalus durissus ruruima boicininga, boiçununga ou maracá RR, AM, PA, RO Crotalus durissus terrificus cascavel ou boiquira AM, MT, MG, PR, RS, RO, SC, SP, PA Crotalus durissus trigonicus cascavel RR (BARRAVIERA, 1990; BARRAVIERA & PEREIRA, 1991; BARRAVIERA, 1992; BARRAVIERA et al., 1994; SGARBI et al., 1995; BRASIL, 1998; CHIPPAUX, 1998; BARRAVIERA, 1999; BARRAVIERA & PEREIRA, 1999). Na região de Botucatu, localizada no centrooeste do Estado de São Paulo, 80% dos acidentes são causados pelas espécies B. jararaca, B. alternatus e B. neuwiedi e 20% por Crotalus durissus terrificus (BARRAVIERA et al., 1994; BARRAVIERA, 1999). Segundo Bicudo (1999), as estatísticas sobre acidentes ofídicos em animais domésticos são bastante escassas na literatura médica veterinária (FERREIRA JÚNIOR & BARRAVIERA, 2001). Em um estudo retrospectivo, realizado no Hospital Veterinário da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da UNESP, em Botucatu, Estado de São Paulo, encontrou-se 149 registros de acidentes ofídicos, dos quais 128 eram devidos a serpentes do gênero Bothrops, 11 por Crotalus e 10 sem identificação. Desses acidentes, 103 ocorreram em caninos, 22 em eqüinos, 17 em bovinos, quatro em caprinos, dois em gatos e um em suíno (BICUDO & BIONDO, 1989). A maioria dos acidentes ocorre durante as estações de 126 primavera e verão (meses de outubro a março) (MÉNDEZ & RIET-CORREA, 1995; BRASIL, 1998; BARRAVIERA, 1999; BARRAVIERA & PEREIRA, 1999; FERREIRA JUNIOR & JUNQUEIRA, 2000). Segundo Hacket et al. (2002), que estudaram 100 casos de cães picados por cascavel entre 1989 e 1998, a maioria dos acidentes ocorreu nos meses de primavera e verão. Não houve predileção por sexo e a maioria dos acidentes ocorreu na cabeça do animal e no final da tarde. É importante que o clínico esteja preparado para realizar a identificação da serpente agressora, em casos de acidentes ofídicos com animais domésticos, não somente pela observação das características da mesma, mas pela evolução dos sinais clínicos apresentados pela vítima. O presente artigo tem, portanto, o objetivo de apresentar, com base em uma revisão da literatura pertinente ao tema, informações sobre os acidentes botrópicos e crotálicos em cães, as principais espécies causadoras de acidente, epidemiologia, patogenia, ações do veneno, sinais clínicos, seqüelas e complicações, patologia clínica, achados de necrópsia, diagnóstico e tratamento dos acidentes ofídicos. Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e Animais de Estimação, Curitiba, v.1, n.2, p.124-133, 2003 Conduta em Picadas de Serpentes Brasileiras em Cães e Gatos CARACTERÍSTICAS DOS ACIDENTES OFÍDICOS Os acidentes ofídicos acometendo animais domésticos, no que diz respeito ao tempo decorrido entre acidente e o atendimento, são bastante diferentes dos observados nos seres humanos, particularmente quando envolvem animais de produção, como bovinos, eqüinos, ovinos, caprinos e bubalinos, criados em regime de pasto (BICUDO, 1999). Todos os mamíferos são suscetíveis aos venenos de serpentes, no entanto, os animais domésticos diferem em suscetibilidade a esses venenos. As espécies mais sensíveis, em ordem decrescente, são as seguintes: bovina, eqüina, ovina, caprina, canina, suína, sendo o gato o mais resistente (BÜCHEL, 1979; FRASER, 1991; MÉNDEZ & RIET-CORREA, 1995; BICUDO, 1999; MAZAKI-TOVI & LAVY, 1999). Em relação aos animais de companhia, como cães e gatos, o tempo de atendimento desses animais após a constatação do acidente pelos proprietários é, quase sempre, superior a 1 ou 2 horas, pois o reconhecimento só é feito quando alguns sinais do envenenamento tornam-se evidentes. Em acidentes com animais, raramente a serpente é reconhecida ou mesmo capturada (BICUDO, 1999). Quando apresentada ao Veterinário, geralmente está mutilada, o que dificulta sua identificação (CLARK, 1991). Patogenia O veneno das serpentes peçonhentas é composto de substâncias simples e complexas, cuja proporção e características específicas variam entre as diferentes espécies conhecidas. Cerca de 90% a 95% do peso seco do veneno consiste de proteína e algumas frações protéicas são biologicamente mais importantes do que as não-protéicas, apresentando atividades químicas e biológicas específicas (GUTIÉRREZ & LOMONTE, 1995; VARANDA & GIANNINI, 1999; FONTEQUE et al., 2001). Ações do veneno botrópico A composição do veneno botrópico consiste principalmente de: hialuronidase, responsável pela rápida absorção e dispersão entre os tecidos; hematoxina e citolisina, que determinam inflamação local, necrose e dano ao epitélio vascular; fosfolipase A2 e esterase, que alteram a permeabilidade da membrana e liberam histamina e bradicinina (QUEIROZ & PETTA, 1984; QUEIROZ et al., 1985; QUEIROZ et al., 1985; GUTIÉRREZ & LOMONTE, 1995; VARANDA & GIANNINI, 1999). A atividade da fosfolipase A2 está presente em todos os venenos botrópicos, exceto no de Bothrops cotiara (ZINGALI et al., 1988). As serpentes do gênero Bothrops possuem venenos com ações coagulante, proteolítica e vasculotóxica. A ação coagulante dos venenos botrópicos é conhecida por “ação tipo trombina” e está presente também nos venenos das serpentes do gênero Crotalus (QUEIROZ et al., 1985; MAZAKI-TOVI & LAVY, 1999). A maioria dos venenos botrópicos ativa, de modo isolado ou simultâneo, o fator X e a protrombina. Possuem também ação semelhante à trombina, convertendo o fibrinogênio em fibrina. Essas ações produzem degradação de fibrina e fibrinogênio, podendo ocasionar incoagulabilidade sangüínea (ROSENFELD et al., 1959; DENSON et al., 1972; KOUYOUMDJIAN et al., 1990; BARRAVIERA & PEREIRA, 1991; BARRAVIERA, 1999; BARRAVIERA & PEREIRA, 1999). Este quadro é semelhante ao da coagulação intravascular disseminada (CID) com a formação de microcoágulos e comprometimento de diversos órgãos (BARRAVIERA & PEREIRA, 1991; BRASIL, 1998; BARRAVIERA & PEREIRA, 1999; BARRAVIERA, 1999; FERREIRA JUNIOR & JUNQUEIRA, 2000). A ação necrosante, também denominada proteolítica, decorre da ação citotóxica direta nos tecidos, por frações proteolíticas do veneno que induzem à liberação de substâncias vasoativas, como a bradicinina e a histamina, causando extensa reação local com dor, edema, congestão, hemorragia e necrose (lipo e mionecrose) (VILLAROEL et al., 1978-79; GUTIÉRREZ & CERDAS, 1984; GUTIÉRREZ & LOMONTE, 1989; RUCAVADO & LOMONTE, 1996; BARRAVIERA & PEREIRA, 1999; FERREIRA JÚNIOR & BARRAVIERA, 2001; SOUSA et al., 2001). Estas lesões podem ser potencializadas por eventuais infecções secundárias (BARRAVIERA & PEREIRA, 1991; BARRAVIERA, 1999; BARRAVIERA & PEREIRA, 1999). A ação vasculotóxica sistêmica é causada por fatores hemorrágicos denominados hemorraginas. Estas agem sobre vasos capilares, destruindo inicialmente a membrana basal e causando, posteriormente, sua ruptura. A hemorragia pode ser local ou sistêmica, atingindo pulmões, cérebro e rins. O edema no local da picada, que em geral ocorre em minutos após o acidente, é decorrente de lesão tóxica no endotélio de vasos sangüíneos (DENSON et al., 1972; QUEIROZ et al., 1985; ZINGALI et al., 1988; BARRAVIERA & PEREIRA, 1991; RUCAVADO & LOMONTE, 1996; BARRAVIERA, 1999; BARRAVIERA & PEREIRA, 1999). Os acidentes botrópicos podem ser acompanhados de choque, com ou sem causa definida. O animal apresenta hipovolemia por perda de sangue ou plasma no membro edemaciado, ocorre ativação de substâncias hipotensoras e o edema pulmonar e a coagulação intravascular disseminada podem estar presentes (BARRAVIERA & PEREIRA, 1991; BORKOW Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e Animais de Estimação, Curitiba, v.1, n.2, p.124-133, 2003 127 Conduta em Picadas de Serpentes Brasileiras em Cães e Gatos et al., 1997; BARRAVIERA, 1999; FERREIRA JUNIOR & JUNQUEIRA, 2000; FONTEQUE, et al., 2001). A insuficiência renal (AMARAL et al., 1985; BARRAVIERA & PEREIRA, 1991; BORKOW et al., 1997; BARRAVIERA, 1999) pode instalar-se por ação direta do veneno ou secundária a complicações em que o choque está presente. Admite-se, ainda, que a formação de microtrombos, pelas ações coagulantes e vasculotóxicas, é capaz de provocar isquemia renal por obstrução da microcirculação. Ações do veneno crotálico A composição do veneno crotálico é complexa e constituída de enzimas, toxinas e peptídeos. Essas toxinas são, principalmente: crotamina, crotapotina, fosfolipase A2, giroxina, convulxina (BARRAVIERA, 1999). O veneno apresenta efeitos importantes sobre os músculos esqueléticos, sistema nervoso, rins e sangue. Outros órgãos, tais como o fígado, podem ser acometidos (BERCOVICI et al., 1987; BARRAVIERA, 1990; BARRAVIERA, 1991; BARRAVIERA et al., 1995; BARRAVIERA, 1999). A ação miotóxica produz lesões de fibras musculares esqueléticas (rabdomiólise) com liberação de enzima e mioglobina para o soro e que são posteriormente excretadas pela urina (AZEVEDOMARQUES et al., 1985; MAGALHÃES et al., 1986; AZEVEDO-MARQUES et al., 1987; AZEVEDO-MARQUES, et al., 1990). Experimentalmente, foi demonstrado que a rabdomiólise é devida à ação local da crotoxina e da crotapotina (BARRAVIERA, 1999). As ações neurotóxicas têm efeito tanto sobre o sistema nervoso central, quanto sobre o periférico. São produzidas principalmente pela fração crotoxina, uma neurotoxina de ação pré-sináptica que atua nas terminações nervosas, inibindo a liberação da acetilcolina. Esta inibição é o principal fator responsável pelo bloqueio neuromuscular, do qual decorrem as paralisias motoras apresentadas pelos animais (BARRAVIERA, 1990; BARRAVIERA, 1994; BARRAVIERA, 1999). Ocorrem alterações hematológicas e coagulantes relacionadas aos eritrócitos, linfócitos, plaquetas e fatores de coagulação. Ocorre leucocitose com desvio à esquerda, com predomínio de segmentados (RAW et al., 1986; JORGE & RIBEIRO, 1988). Geralmente, não há redução no número de plaquetas e as manifestações hemorrágicas, quando ocorrem, são discretas (BARRAVIERA, 1999). As alterações renais podem ser causadas por ação direta do veneno sobre as células renais, e também por ação indireta, em conseqüência da mioglobinúria decorrente da rabdomiólise e outros fatores, tais como desidratação, hipertensão arterial, acidose metabólica e choque. Estes quadros contribuem para a instalação da lesão renal (MAGALHÃES et al., 1986; BARRAVIERA, 1990; BRASIL, 1998; BARRAVIERA, 1999; 128 FERREIRA JUNIOR & JUNQUEIRA, 2000). As alterações hepáticas causadas pelo veneno crotálico foram propostas pela primeira vez em 1989, por Barraviera et al. Estes autores demonstraram experimentalmente as lesões hepáticas em ratos Wistar inoculados com veneno de Crotalus durissus terrificus (BARRAVIERA et al., 1995; BARRAVIERA, 1999). Sinais Clínicos A gravidade do acidente depende de vários fatores, tais como: gênero e espécie da serpente; espécie animal envolvida; tamanho do animal; tempo de atendimento; quantidade de veneno inoculado, local de inoculação e intensidade com que os sinais clínicos se manifestam (BERROCAL et al., 1998; FONTEQUE et al., 2001). A reação local é rápida, intensa e pode ser evidenciada em até duas horas após o acidente (FONTEQUE et al., 2001; SOUSA et al., 2001). O edema no local da picada (Figura 3) é o sinal mais evidente do envenenamento botrópico. A gravidade e extensão do mesmo são diretamente proporcionais ao tempo decorrido a partir da inoculação do veneno (GUTIÉRREZ & LOMONTE, 1989; FERREIRA JÚNIOR & BARRAVIERA, 2001). À palpação na região da picada, nota-se uma tumefação de consistência pastosa, com elevada sensibilidade dolorosa (FERREIRA JÚNIOR & BARRAVIERA, 2001; FONTEQUE et al., 2001). Na maioria dos animais, ocorrem prostração, inapetência e aumento das freqüências cardíaca e respiratória (BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR et al., 2002). Podem ser observados FIGURA 3: Cão picado no focinho por serpente do gênero Bothrops. Imagem gentilmente cedida pelo Prof. Dr. Pedro Luis Bicudo. dois pontos de hemorragia, correspondendo ao local de perfuração das presas, porém estes nem sempre são identificados (FERREIRA JÚNIOR & BARRAVIERA, 2001; FONTEQUE et al., 2001). Nos casos mais graves, pode ser observada hemorragia pelo nariz, boca e mesmo pela pele (BICUDO, 1999). A ocorrência de hemorragias e o aumento significativo do tempo de coagulação são sugestivos da gravidade do envenenamento e de que a quantidade de veneno inoculado foi grande. Nesses casos, além Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e Animais de Estimação, Curitiba, v.1, n.2, p.124-133, 2003 Conduta em Picadas de Serpentes Brasileiras em Cães e Gatos das hemorragias externas, podem ocorrer grandes hemorragias no tecido subcutâneo, no local da picada, na cavidade torácica e abdominal e, às vezes, intracraniana. A anemia, nesses casos, é bastante evidente. Quando a picada ocorre na cabeça dos animais, geralmente no focinho, a reação local pode provocar grave edema, podendo atingir o maxilar inferior, o pescoço e a região torácica. Nos cães com dificuldade para manter a boca aberta, devido ao edema, a respiração pela boca faz com que as bochechas se insuflem, produzindo roncos (PUORTO, 1992; BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR et al., 2002). A dor é bastante evidente, particularmente no local da picada, levando os animais a ficarem imóveis ou andando com bastante dificuldade (BICUDO, 1999; FERREIRA JÚNIOR & BARRAVIERA, 2001; FERREIRA JÚNIOR et al., 2002). Acidentes na boca ou na língua podem impossibilitar o animal de ingerir alimentos e água, o que propicia a desidratação (BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR et al., 2002). No caso de obstrução das vias respiratórias superiores, podem ocorrer dispnéia e insuficiência respiratória causada pelo edema de glote e a traqueostomia passa a ser o procedimento de emergência indicado para assegurar a sobrevivência do animal (HARNED & OEHME, 1982; BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR et al., 2002). No acidente crotálico, as marcas deixadas pelas presas das serpentes nem sempre são possíveis de serem observadas devido aos pêlos do animal e ao pequeno edema na região. Os sinais mais evidentes nesse tipo de acidente são a urina de coloração escura (mioglobinúria), cegueira, dificuldade de locomoção, imobilidade e decúbito (BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR et al., 2002; HACKETT et al., 2002). Observa-se também dificuldade do animal em sustentar o peso da cabeça, paralisia do globo ocular e diminuição ou ausência dos movimentos das pálpebras (FERREIRA JUNIOR et al., 2002). Os cães apresentam, à medida que os sinais evoluem, prostração total e dificuldade ou ausência de qualquer manifestação de resposta quando estimulados pelo proprietário. Seqüelas e complicações A contaminação no local da picada pode ser um fator agravante na instalação da necrose. Bactérias provenientes da microbiota bucal e do veneno presente nas glândulas das serpentes, bem como de substâncias aplicadas sobre o ferimento, de incisões feitas por instrumentos cortantes ou do próprio ambiente, podem ser encontradas no local da picada (FERREIRA JUNIOR & JUNQUEIRA, 2000). Jorge & Ribeiro (1997) constataram que em aproximadamente 9% dos casos de envenenamento em seres humanos ocorre a formação de abscessos, devido à presença dos seguintes agentes micro- bianos: Morganela morganii, Proteus rettgeri, Enterobacter spp., Escherichia coli, Enterococcus spp. e Bacteroides spp. A mortalidade por acidente botrópico é baixa, porém seqüelas importantes podem limitar a capacidade física do animal, caso não seja realizado um tratamento adequado (FERREIRA JÚNIOR & BARRAVIERA, 2001). A necrose muscular (Figura 4) é um efeito local relevante que pode levar à perda tecidual permanente, desabilidade motora e amputação (BICUDO, 1999; FERREIRA JÚNIOR & BARRAVIERA, 2001). Nos acidentes graves, causados por cascavéis, o paciente pode desenvolver insuficiência renal aguda (BICUDO, 1999). Segundo Guidolin et al. (1998), outra complicação a ser considerada é a contaminação no local da picada pelo Clostridium tetani, podendo levar ao desenvolvimento do tétano. Patologia Clínica Nos seres humanos, em acidentes com serpentes dos gêneros Bothrops e Crotalus, ocorre leucocitose com neutrofilia, linfopenia e aumento do tempo de coagulação, de proteína C reativa e das mucoproteínas. Há diminuição das proteínas totais e da albumina, nos primeiros dias após o ataque ofídico (BARRAVIERA et al., 1995). De acordo com o citado FIGURA 4: Necrose tecidual em região tóraco-abdominal lateral esquerda de cão dois dias após acidente com serpente do gênero Bothrops. autor, as citocinas responsáveis pela reação de fase aguda estão aumentadas nos dias que se seguem ao acidente. Takahira (1996), que inoculou experimentalmente veneno de Bothrops jararaca em cães, observou diminuição significativa da contagem total de plaquetas, hemácias, linfócitos, eosinófilos, megacariócitos, volume globular, fibrinogênio, hemoglobina, proteína plasmática total, uréia, creatinina, proteína sérica e albumina. Houve ainda um aumento significativo da contagem total de leucócitos, neutrófilos segmentados e monócitos e dos níveis de produtos de degradação da fibrina. A alanina aminotransferase, fosfatase alcalina e creatinoquinase também se mostraram aumentadas. Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e Animais de Estimação, Curitiba, v.1, n.2, p.124-133, 2003 129 Conduta em Picadas de Serpentes Brasileiras em Cães e Gatos Segundo o mesmo autor, o tempo de coagulação, de tromboplastina, de tromboplastina parcial ativada, de protrombina e de trombina estavam significativamente aumentadas nestes cães. O veneno botrópico tem a capacidade de elevar a atividade sérica da creatinoquinase em ratos, demonstrando a atividade lesiva do veneno ao tecido muscular (MELO & SUAREZ-KURZ, 1987). Achados de Necropsia À necropsia realizada em cães atacados por serpentes do gênero Bothrops, observa-se no local da picada intenso edema sero-hemorrágico, espesso, gelatinoso e amarelado com presença de sangue coagulado. Caso a lesão tenha alguns dias, observam-se tecido necrótico e secreção purulenta (BERROCAL et al., 1998; BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR et al., 2002). As manifestações em outros órgãos são representadas por enfisema pulmonar generalizado, áreas hemorrágicas no epicárdio, miocárdio, endocárdio, pulmões, trato gastrintestinal, bexiga e rins (BERROCAL et al., 1998). As lesões histopatológicas envolvem congestão e hemorragia graves na maioria dos órgãos, necrose tubular aguda e, às vezes, glomerulonefrite aguda, nefrite intersticial e necrose cortical renal (FONTEQUE et al., 2001; FERREIRA JUNIOR et al., 2002). Diagnóstico Na maioria das vezes, o diagnóstico do envenenamento ofídico é dificultado, pois não é observado por parte do proprietário o momento da picada ou o animal agressor não é capturado para que possa ser realizada a sua identificação. Porém, a partir de dados importantes obtidos durante a anamnese, como presença de serpentes na região ou história de outros acidentes ofídicos, aliados à evolução dos sinais clínicos, pode-se suspeitar do gênero da serpente envolvida e decidir como proceder ao tratamento. A confirmação da suspeita clínica é realizada por meio de exames laboratoriais e pelo sucesso da terapia empregada. Tratamento A soroterapia é o único tratamento curativo eficaz existente no momento, para os casos de animais picados por serpentes. O soro específico deve ser utilizado sempre que possível, de acordo com o gênero da serpente agressora (HARNED & OEHME, 1982; BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR & JUNQUEIRA, 2000). Essa identificação pode ser feita indiretamente, pelos sinais clínicos que o animal apresenta, pelo reconhecimento direto da serpente ou pela prevalência da distribuição dos gêneros de serpentes na região onde ocorreu o acidente (FERREIRA JÚNIOR & BARRAVIERA, 2001). Os soros ou antivenenos são produzidos a partir 130 de inoculações, em eqüinos, de doses sub-letais de diferentes venenos ofídicos. Dessa forma, produz-se o soro antibotrópico e o soro anticrotálico. O soro antiofídico é uma mistura de soro antibotrópico e soro anticrotálico, com capacidade de neutralizar tanto o veneno botrópico quanto o crotálico (WHO, 1981; VITAL-BRAZIL, 1987; MORAIS et al., 1994). Nos casos em que haja dúvida na identificação do animal agressor ou quando não houver disponível o soro específico, deve ser utilizado o soro antiofídico. Este último é o mais encontrado no mercado. Araújo & Belluomini (1960, 1962) relatam que, em animais inoculados experimentalmente com venenos de cascavel, o efeito da soroterapia foi tanto mais eficiente quanto menor era o intervalo de tempo entre a inoculação e o tratamento. Ferreira Júnior & Barraviera (2001) observaram, em um caso, eficácia limitada da soroterapia com antiveneno na prevenção do desenvolvimento de dano tecidual local no acidente botrópico. Esta informação é corroborada por outros autores (QUEIROZ et al., 1985a; QUEIROZ et al., 1985b; KOUYOUMDJIAN et al., 1990). Hackett et al. (2002) estudaram cães envenenados com veneno de cascavéis americanas, mostrando uma elevada taxa de morbidade e baixa mortalidade. Admitem que a administração do antiveneno para cães é questionável. O tratamento é feito a partir das quantidades de veneno que as serpentes podem injetar no momento da picada. Nos acidentes causados por serpentes do gênero Bothrops a quantidade de soro a ser utilizada deve ser suficiente para neutralizar, no mínimo, 100mg de veneno. No caso de acidentes com serpentes do gênero Crotalus, o soro deve neutralizar pelo menos 50mg (BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR & JUNQUEIRA, 2000; FERREIRA JUNIOR et al., 2002). O soro antiofídico de uso comercial é padronizado, de forma que um mililitro (1ml) neutraliza dois miligramas (2mg) de veneno botrópico e um miligrama (1mg) de veneno crotálico. Assim sendo, a quantidade mínima de soro antiofídico a ser aplicado nos acidentes crotálicos ou botrópicos é de 50 mililitros, independente do tamanho do animal (BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR & JUNQUEIRA, 2000; FERREIRA JUNIOR et al., 2002). O volume total de soro deve ser aplicado lentamente por via intravenosa, se possível diluído em solução fisiológica ou glicosada a 5% e aplicado gota a gota. Na impossibilidade de se utilizar esta via, o soro deve ser administrado preferencialmente pela via intraperitoneal ou, em último recurso, pelas vias intramuscular e subcutânea (CLARK, 1981; QUEIROZ & PETTA, 1984; BICUDO, 1999). Nestes últimos casos, o soro não pode estar diluído em solução glicosada. Em hipótese alguma o soro deve ser aplicado ou Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e Animais de Estimação, Curitiba, v.1, n.2, p.124-133, 2003 Conduta em Picadas de Serpentes Brasileiras em Cães e Gatos infiltrado no local da picada (BICUDO, 1999). Doses maiores de soro e a necessidade de repetição do tratamento devem ser consideradas em função da remissão dos sinais ou a critério do Médico Veterinário. Os soros, mesmo com prazo de validade expirado, ainda possuem capacidade de neutralização dos venenos, mas seu uso somente deve ser considerado quando da impossibilidade de ele ser obtido em condições adequadas ou quando houver risco de vida para o animal. Para isso, alguns cuidados precisam ser tomados: • nunca aplicar o produto via intravenosa, e sim via intramuscular ou subcutânea; • a capacidade neutralizadora do soro vencido fica reduzida à metade, razão pela qual deve ser utilizado o dobro da dose necessária; • não se deve usar o soro quando houver precipitado no fundo do frasco; • quando for necessário usar soro vencido, é preciso estar alerta para a possibilidade de aparecimento das reações anafiláticas. Tratamentos complementares Os animais acidentados devem ser mantidos sob observação permanente de, no mínimo, 72 horas, devendo ser mantidos em locais sossegados, confortáveis e submetidos ao mínimo de movimentação ou manipulação (BICUDO, 1999; FONTEQUE et al., 2001). Nunca devem ser feitas incisões ou perfurações no local da picada, pois isto, além de agravar a dor que o animal está sentindo, propicia condições para infecções e hemorragias de difícil controle, em conseqüência dos fatores hemorrágicos existentes nos venenos (FERREIRA JUNIOR et al., 2002). Os animais com incapacidade para ingerir água devem ser adequadamente hidratados por via parenteral, com soluções eletrolíticas (BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR et al., 2002). No acidente crotálico a realização deste procedimento é de fundamental importância para a prevenção da Insuficiência renal aguda (BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR et al., 2002). A diurese osmótica pode ser induzida com o emprego de solução de manitol a 20% (0,25 a 0,5g/Kg), repetindo a cada 4 a 6 horas, se necessário (BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR et al., 2002, WINTER, 2002). Caso persista a oligúria, indica-se o uso de diuréticos de alça, do tipo furosemida, por via intravenosa (2 a 4mg/Kg a cada 8 a 12 horas, se necessário) (BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR et al., 2002, WINTER, 2002). Os sinais de reações anafiláticas causadas pela aplicação do soro são raros em animais e devem ser tratados de acordo com a gravidade, com medicamentos à base de adrenalina, anti-histamínicos e corticosteróides. A administração do soro deve ser interrompida temporariamente (BICUDO, 1999). Segundo Bicudo (1999), os tratamentos alternativos com antiinflamatórios, esteróides ou nãoesteróides, não influem no prognóstico de sobrevivência do animal. A aplicação de antibióticos deve ser considerada em função da extensão das lesões no local da picada (FERREIRA JÚNIOR & BARRAVIERA, 2001). As áreas de necrose devem ser tratadas como feridas abertas e com soluções anti-sépticas e pomadas que facilitem a cicatrização (FERREIRA JÚNIOR & BARRAVIERA, 2001). As seqüelas, se existirem, quase sempre são em decorrência das complicações da necrose ou das infecções secundárias no local da picada (GUTIÉRREZ & LOMONTE, 1989). Considerando que a picada da serpente pode inocular microorganismos patogênicos, a profilaxia do tétano deve ser considerada (GUIDOLIN et al., 1998; BICUDO, 1999; FERREIRA JUNIOR et al., 2002). A recuperação plena do animal acidentado, mesmo tratado adequadamente, pode levar semanas, não se devendo, em hipótese alguma, forçá-lo a se movimentar além do necessário. CONSIDERAÇÕES FINAIS Do exposto anteriormente, fica evidente que a maioria dos acidentes ofídicos com animais são causados por serpentes do gênero Bothrops. Os acidentes causados por Crotalus são de maior risco para a vida dos animais. A soroterapia é o único tratamento curativo existente, no momento, para os casos de animais picados por serpentes. Seu objetivo é neutralizar o máximo de veneno no menor espaço de tempo possível, sendo que sua eficácia é maior quanto menor for esse tempo, evitando assim os efeitos locais e sistêmicos produzidos pelos venenos. É importante que o clínico esteja preparado para realizar a identificação da serpente, não somente pela observação das características da mesma, mas pela evolução dos sinais clínicos. FERREIRA JUNIOR, R.S.; BARRAVIERA, B.; BARRAVIERA, S.R.S.; BARRELLA, T.H.; VILELA, F.C. Management of poisonous Brazilian snake bites in dogs and cats. MEDVEP – Rev Cientif Med Vet Pequenos Anim Anim Estim, Curitiba, v.1, n.2, p.124-133, abr./jun. 2003. Snake poisoning is a major problem in tropical countries, whether in veterinary or in human medicine, due to its high incidence, severity, and sequelae. In Brazil, the genera Bothrops and Crotalus are the main responsibles for snake poisoning in animals; and the accidents with these genera present the highest risk for animals lives. This study reports Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e Animais de Estimação, Curitiba, v.1, n.2, p.124-133, 2003 131 Conduta em Picadas de Serpentes Brasileiras em Cães e Gatos informations on Bothrops and Crotalus poisoning in dogs, what are the main species whithin these genera, their epidemiology, pathogeny, venom action, clinical signs, sequeale and complications, pathology, necropsy findings, diagnosis and treatment. The clinician must be prepared to identify the snake genus, not only from the characteristics of the animal, but also from singns and symptoms evolution. KEYWORDS: Snakes bites/veterinary; Bothrops; Crotalus; Dogs; Cats. REFERÊNCIAS AMARAL, C.F.S. et al. Renal cortical necrosis following Bothrops jararaca and Bothrops jararacussu snake bite. Toxicon, v.23, n.6, p.877-885, 1985. ARAUJO, P.; BELLUOMINI, H.E. Toxidade de venenos ofídicos, I - Sensibilidade específica de animais domésticos e de laboratório. 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