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Grupo de Trabalho para os Arquivos de Família e Pessoais
DIVULGAÇÃO DE DOCUMENTOS REFERENTES À INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA E FAMILIAR
DE OUTREM: RESPONSABILIDADE CIVIL
CLARA COSTA ROSA
O presente artigo foi elaborado para esclarecer as dúvidas que os arquivistas e documentalistas têm
quanto aos limites impostos por lei para a divulgação de documentos referentes à intimidade da vida
privada e familiar de outrem, quando esses documentos são solicitados pelos utilizadores.
Para que não incorram em actos ilícitos e fiquem obrigados a responder por danos patrimoniais e ou
morais a que derem causa, procurarei expor, o mais sucinta e objectivamente possível, o regime jurídico
da comunicação de documentos referentes à intimidade da vida privada e familiar de outrem.
Torna-se, ainda, indispensável referir que o regime que irá ser exposto não é confundível com o
aplicável aos direitos de autor, dado que estes visam proteger, não a reserva da vida privada, mas as
criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas,
independentemente da sua divulgação, publicação, utilização ou exploração. Visam, portanto, proteger a
obra, mas não a vida privada do seu autor.
A Constituição da República Portuguesa consagra, a todos os cidadãos, no seu artigo 26º, o direito à
imagem e à reserva da intimidade da vida privada e familiar.
Por sua vez, os artigos 70º e seguintes do Código Civil, inseridos na secção sobre direitos de
personalidade, regulam a disciplina jurídica desses mesmos direitos.
Como princípio geral, a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à
sua personalidade física ou moral.
São exemplos de direitos de personalidade reconhecidos na nossa lei o direito à vida, à integridade
física, à honra, à saúde, ao bom nome, à intimidade, à inviolabilidade de domicílio e de correspondência
e ao repouso essencial à existência.
É através da análise do conteúdo destes direitos, e mais concretamente da análise do conteúdo do
direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, que poderemos averiguar da legitimidade de
um terceiro na utilização de documentos de carácter privado que estejam em seu poder mas que
contenham dados pessoais que possam afectar a honra, a intimidade da vida familiar e privada de
outrem.
Vamos supor que uma pessoa fornece, através de doação, venda ou empréstimo, a um arquivo ou
centro de documentação, documentos que se refiram à intimidade da sua vida privada, nomeadamente,
diários, cadernos de memórias e ou notas pessoais.
A divulgação desses documentos, através da consulta, reprodução em fotocópia, etc., só não pode ser
feita se houver declaração expressa, pelo autor, de que não autoriza essa mesma divulgação. É que a
entrega de documentos, mesmo que de carácter privado, pressupõe a aceitação tácita de que os
mesmos serão utilizados com a finalidade de serem divulgados, uma vez que não faria sentido que o seu
titular os entregasse a uma instituição (cuja missão é o tratamento e divulgação de informação) e,
posteriormente, viesse alegar a ilicitude dessa utilização, por a intimidade da sua vida privada estar a
ser violada.
Situação diversa é a entrega desses documentos mas com a cláusula expressa de não serem utilizados
ou a autorização ser condicionada, p.e., só poderem ser utilizados após a sua morte. Caso não seja
respeitada a vontade do titular desses documentos e a instituição tiver ilicitamente aproveitado, ou
permitido a terceiro que aproveite os elementos de informação fornecidos pelos documentos, responderá
pelos danos patrimoniais e morais a que der causa, nos termos dos artigos 483º e 496º, ambos do
Código Civil.
No entanto, mesmo quando há autorização lícita do titular para a limitação de um direito de
personalidade, essa autorização é sempre revogável (artigo 81º, nº. 2 do C.C.). Não obstante, o titular
(desses direitos de personalidade) fica obrigado a indemnizar os prejuízos causados às legítimas
expectativas da outra parte. Ou seja, o titular dos documentos pode a todo o tempo recusar a sua
divulgação, mesmo que a tenha aceite expressamente, ficando, no entanto, obrigado a indemnizar por
eventuais prejuízos causados ao arquivo ou centro de documentação. Imaginemos a situação de um
arquivo que investiu em marketing para a divulgação de determinado espólio doado e, posteriormente, é
revogada, pelo titular dos direitos de personalidade, a autorização para a consulta desses documentos. A
revogação é legítima mas ficará obrigado a indemnizar o arquivo das despesas por este realizadas.
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Depois da morte do autor das memórias e escritos confidenciais ou que se refiram à intimidade da vida
privada, a autorização para a utilização desses documentos compete às pessoas designadas no artº.
71º, nº. 2 do C.C., segundo a ordem nele indicada, ou seja, o cônjuge sobrevivo, descendente, irmão,
sobrinho ou herdeiro do falecido.
Sucede, porém, que há determinadas pessoas que são proprietárias de documentos, que lhes foram
destinados, nomeadamente cartas, mas cujos conteúdos revelam aspectos da vida privada do autor
desses documentos. Mas sendo o destinatário dessas cartas, o seu proprietário, será lícito, que disponha
do seu conteúdo? Esta questão levanta alguns problemas jurídicos e encontra-se prevista no Código
Civil.
Assim, e nos termos do artigo 75º do citado diploma, o destinatário de uma carta confidencial deve
guardar reserva sobre o seu conteúdo, não lhe sendo lícito aproveitar os elementos de informação que
ela tenha levado ao seu conhecimento.
Dispõe, ainda, o nº. 2 do artigo 75º do C.C o seguinte: “Morto o destinatário, pode a restituição da carta
confidencial ser ordenada pelo tribunal, a requerimento do autor dela ou, se este já tiver falecido, das
pessoas indicadas no nº. 2 do artigo 71º; pode também ser ordenada a destruição da carta, o seu
depósito em mão de pessoa idónea ou qualquer outra medida apropriada.”
O sentido destas disposições legais tem uma razão de ser. É que, nas cartas-missivas temos que
distinguir três direitos distintos:
a) direito sobre a carta materialmente considerada, que pertence ao destinatário da carta;
b) direito do autor da carta considerada como obra intelectual que pertence ao remetente;
c) direito do segredo epistolar que pertence ao remetente.
De acordo com o artigo 76º do Código Civil, as cartas missivas confidenciais só podem ser publicadas
com o consentimento do seu autor. Caso este já tenha falecido, esta autorização compete às pessoas
designadas no artº. 71º, nº. 2 do C.C., segundo a ordem nele indicada, ou seja, o cônjuge sobrevivo,
descendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido.
Porém, a natureza confidencial de carta missiva deve resultar da declaração feita pelo seu autor, não
sendo necessário, no entanto, que essa declaração seja expressa, por analogia com o artigo 217º do
C.C., segundo a posição tomada por Antunes Varela em anotações ao artigo, in C.C. Anotado, 1967, I
Vol., Coimbra Editora.
Se o destinatário tiver ilicitamente aproveitado, ou permitido a terceiro que aproveite os elementos de
informação fornecidos pelo documento, responderá pelos danos patrimoniais e morais a que der causa,
nos termos dos artigos 483º e 496º, ambos do Código Civil.
Caso a carta-missiva não seja confidencial, o depositário desta só pode usar dela em termos que não
contrariem a expectativa do autor, ou seja, que não contrariem uma vontade presumível do seu autor,
nos termos do artigo 78º do C.C.
Tratando-se de carta não confidencial, ou de carta confidencial que não seja objecto de qualquer das
medidas previstas no n.º 2 do artigo 75º do C.C. (v.g., ser requerida a restituição da carta), uma vez
falecido o destinatário, pertence ao espólio deste, à sua herança, quer tenha ou não valor patrimonial.
Relativamente aos documentos de carácter confidencial ou que se refiram à intimidade da vida privada,
como são os diários, os cadernos de memórias e as notas pessoais, e que estejam na posse de terceiro,
é aplicável com as necessárias adaptações, de acordo com o disposto no artigo 77º do C.C., o regime
previsto no artigo 76º do referido diploma. Assim, as memórias familiares e pessoais e outros escritos
que tenham carácter confidencial ou se refiram à intimidade da vida privada, só podem ser utilizados e
ou publicados com o consentimento do seu autor. Depois da morte deste, o consentimento compete às
pessoas designadas no n.º 2 do artigo 71º, segundo a ordem nele indicada, por força do disposto no n.º
2 do artigo 76º do C.C..
Importa, ainda esclarecer o âmbito de aplicação do regime geral dos arquivos e do património
arquivístico, regulado pelo Decreto-Lei n.º. 16/93, de 23 de Janeiro, e que tem levantado algumas
dúvidas quanto à estipulação de um limite temporal para a comunicação dos documentos referentes à
intimidade da vida privada e familiar de outrem.
O artigo 17º n.º. 2 do citado diploma dispõe que “não são comunicáveis os documentos que contenham
dados pessoais de carácter judicial, policial ou clínico, bem como os que contenham dados pessoais que
não sejam públicos, ou de qualquer índole que possa afectar a segurança das pessoas, a sua honra ou a
intimidade da vida privada e familiar e a sua própria imagem, salvo se os dados pessoais puderem ser
expurgados do documento que os contém, sem perigo de fácil identificação, se houver consentimento
unânime dos titulares dos interesses legítimos a salvaguardar ou desde que decorridos 50 anos sobre a
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data da morte a que respeitam os documentos ou, não sendo esta data conhecida, decorridos 75 anos
sobre a data dos documentos.”
Este n.º 2 do referido art.º. 17º apenas estipula o regime jurídico dos arquivos públicos - arquivo
reunido por uma entidade pública com documentação de origem pública. A comunicação desses
documentos que contenham dados pessoais que possam afectar a vida privada dos cidadãos está sujeita
ao limite temporal estipulado pela lei.
Já o n.º. 4 do citado preceito, faz referência ao regime que se pode aplicar aos arquivos públicos que
tenham documentos privados (arquivos privados quanto à origem) e que possam afectar a intimidade da
vida privada. Estipula o preceito que “compete aos proprietários dos arquivos particulares proporem as
regras e modalidade de comunicação da documentação, as quais serão objecto de apreciação e de
proposta de homologação ao membro do governo que superintende na política arquivística por parte do
órgão de gestão”. Portanto, quanto aos arquivos privados (documentação privada), aplica-se o regime
previsto nos artºs 71º e seguintes do Código Civil.
É importante que fique claro que o limite temporal para a divulgação de documentos estipulado pelo n.º
2 do art.º. 17º do Dec.-Lei n.º 16/93, de 23 de Janeiro, só se aplica aos arquivos públicos com
documentação de origem pública, v.g., processos judiciais, requerimentos, etc., que contenham dados
pessoais que possam afectar a vida privada dos cidadãos.
Espero que o presente artigo seja suficientemente explícito, para que não restem dúvidas quanto aos
limites impostos pela lei na divulgação de documentos de carácter privado, de modo a que nenhum
arquivista ou documentalista incorra em actos ilícitos e fique obrigado a responder pelos danos causados
ao titular dos direitos de personalidade, cuja a intimidade da vida privada e familiar foi violada.
Bibliografia:
ASCENSÃO, Oliveira. Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, Lisboa, F.D.L.. 1996
DECRETO-LEI n.º 16/93. “D.R. I Série”. 19 (93-01-23).
LIMA, Fernando Andrade Pires de, anot.; VARELA, João de Matos Antunes, anot. Código Civil Anotado. 4ª
ed. Revista e actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1987.
NETO, Abílio, anot. Código Civil Anotado. 12ª ed. actualizada. Lisboa : Ediforum, 1999.
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divulgação de documentos referentes à intimidade