Estipulação em favor de terceiro: contrato ou cláusula especial?
Paulo Henrique Borges Cruvinel1
Gustavo Henrique Moreira do Valle2
Resumo
Existem cinco explicações teóricas diferentes, de autores diversos, sobre a definição
jurídica da estipulação em favor de terceiro constante do artigo 436 e seguintes do Código
Civil. Há autores que afirmam que a estipulação em favor de terceiro é uma espécie
contrato; outros defendem que o instituto perfaz uma proposta a espera de aceitação; outros
a colocam como um ato unilateral, atípico, ou, especificamente, como uma gestão de
negócio; e há ainda os que creem ser a estipulação em favor de terceiro uma exceção ao
princípio da relatividade dos contratos. A natureza jurídica da estipulação em favor de
terceiro, bem como seu regramento, é o objeto do presente estudo.
Palavras-chave: Contratos. Estipulação em favor de terceiro.
Abstract
There are five different theoretical explanations from different authors about the juridical
definition of stipulation in favor of a third party provided in article 436 et seq. of the
Brazilian Civil Code. There are authors who claim that the stipulation in favor of a third
party is a kind of contract; others defend that the institute is a proposition that awaits
acceptance; others consider it as an atypical unilateral act or, more especifically, as
business management; and there are still those who believe that the stipulation in favor of a
third party is an exception to the principle of relativity of contracts. The objective of the
present work is to analyse the juridical nature of the stipulation in favor of third parties, as
well as its regulatios.
Key Words: Contracts. Stipulation in favor of a third party.
1. INTRODUÇÃO
A natureza jurídica do instituto da estipulação em favor de terceiro é controvertida
na doutrina. Para alguns autores, a estipulação em favor de terceiro é um contrato típico,
enquanto para outros configura uma exceção à relatividade dos contratos, havendo ainda
1
Advogado. Mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos
([email protected]).
2
Juiz de Direito. Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos
([email protected]).
três outras correntes que tentam defini-lo dentro da ciência jurídica, uma colocando-o
como uma oferta a espera de aceitação; outra que postula ser a estipulação em favor de
terceiro um ato unilateral qualquer, ou atípico; e outra corrente que defende a tese de que o
instituto perfaz um ato unilateral específico e típico: a gestão de negócios.
Fato é que não há uma voz uníssona em torno do instituto da estipulação em favor
de terceiro, e todas as correntes têm seus méritos, mas têm também justas críticas a seu
respeito.
A investigação da natureza jurídica do instituto é salutar, sendo fato que se impõe
como necessário, tendo-se em vista a justa aplicação do direito, bem como a integridade da
ciência jurídica.
2. DIREITO DAS OBRIGAÇÕES NO BRASIL: ESCORÇO HISTÓRICO
Conforme asseverado pelo Professor Miguel Reale ao elaborar sua “Visão geral do
novo Código Civil”, tal Código não colocou fim à chamada dicotomia do Direito Privado,
extinguindo o Direito Comercial como disciplina acadêmica autônoma, dotada de
princípios próprios, supostamente integrando-a ao campo do Direito Civil comum.
Todavia, conforme também asseverado pelo mesmo professor, o que se observou com a
entrada em vigor do Código Civil vigente foi a unificação do Direito das Obrigações.3
Aliás, quanto à unificação do Direito das Obrigações, vale lembrar que a ideia já
não era nova quando o Presidente Ernesto Geisel, em 1975, submeteu à apreciação da
Câmara dos Deputados o Projeto de Lei que viria a ser o Código Civil de 2002, pois a
Comissão elaboradora do atual Código, presidida pelo Professor Miguel Reale, acolheu,
como diretriz a ser seguida na elaboração da nova lei, o aproveitamento dos trabalhos de
reforma da Lei Civil realizados anteriormente ao ano de 1975 por juristas de escol, tais
como Hahneman Guimarães, Orozimbo Nonato e Philadelpho de Azevedo, Orlando
Gomes e Caio Mário da Silva Pereira, primeiro com o anteprojeto do “Código das
3
“2. Diretrizes seguidas na elaboração do Anteprojeto: (...).
Daí ficarem assentes estas diretrizes: (...) g) Não realizar, propriamente, a unificação do Direito Privado, mas
sim do Direito das Obrigações – de resto já uma realidade operacional no País – em virtude do obsoletismo
do Código Comercial de 1850 – com a consequente inclusão de mais um Livro na Parte Especial, que, de
início, se denominou Atividades Negociais, e, posteriormente, Direito de Empresa.” (REALE, 2004, p. 11)
Obrigações”, e, posteriormente, com a proposta de elaboração separada de um Código
Civil e de um Código das Obrigações.4
De qualquer modo, a unificação do Direito das Obrigações já era ideia antiga e o
Código Civil a acolheu fazendo com que “obrigações”, em Direito Privado, fossem geradas
através quatro fenômenos jurídicos, a saber: os contratos, os atos unilaterais, os títulos de
crédito e os atos ilícitos.
Cumpre esclarecer que a lei, considerada em sentido amplo, não entra nesse rol,
haja vista que ela não é considerada, no presente trabalho, como fonte das obrigações, as
quais são tratadas pelo Direito Privado e, segundo se entende, referem-se apenas a fatos
jurídicos decorrentes da vontade e da ação humana, e não aqueles decorrentes de
imposição de lei (nesse caso, seria tecnicamente mais apropriado referir-se a tais fatos não
como “obrigações”, mas sim como “sujeições”, ou “imposições legais”).
Isso porque as “obrigações” propriamente ditas possuem natureza jurídica distinta,
vale dizer, umas nascem da liberdade conferida ao cidadão para criar sua própria lei (desde
que, obviamente, não haja vedação legal, conforme estatui o princípio da legalidade
previsto na Constituição Federal), ou de exercer seu arbítrio (ainda que este produza
consequências coercitivas, conforme ocorre quando se pratica ato ilícito), e outras
decorrem da imposição do Estado pela necessidade de se manter a paz social, a segurança
jurídica e, principalmente, a prevalência, na maioria dos casos, da supremacia do interesse
comum, social, coletivo, sobre o interesse individual.
Considera-se aqui, portanto, como “obrigações”, apenas as “obrigações
voluntárias”, isto é, aquelas decorrentes da vontade humana.
Quanto aos fatos jurídicos que produzem obrigações em sentido amplo, vale dizer,
tanto obrigações decorrentes da vontade humana quanto aquelas decorrentes de imposição
de lei, esta (a lei), e também as teses que foram elaboradas acerca dos fatos jurídicos,
explicam que estes (os fatos jurídicos) são de duas ordens, a saber: os fatos jurídicos
naturais, como, por exemplo, o nascimento e a morte; e os fatos jurídicos humanos.
Os fatos jurídicos humanos, por sua vez, são fatos que produzem reflexos no
ordenamento jurídico (e é justamente por isso que são qualificados como “jurídicos”) e que
4
“2. Diretrizes seguidas na elaboração do Anteprojeto: (...).
Daí ficarem assentes estas diretrizes: (...) d) Aproveitamento dos trabalhos de reforma da Lei Civil, nas duas
meritórias tentativas feitas, anteriormente, por ilustres jurisconsultos, primeiro por Hahneman Guimarães,
Orozimbo Nonato e Philadelpho de Azevedo, com o anteprojeto do Código das Obrigações; e, depois, por
Orlando Gomes e Caio Mário da Silva Pereira, com a proposta de elaboração separada de um Código Civil e
de um Código das Obrigações, contando com a elaboração, neste caso, de Sílvio Marcondes, Theóphilo de
Azevedo Santos e Nehemias Gueiros.”(REALE, 2004, p. 11/12)
são provocados não por fenômenos naturais, mas sim pela ação (ou omissão) humana. Por
isso mesmo os fatos jurídicos humanos também são chamados de atos jurídicos em sentido
amplo.
Observe-se que a palavra “ato” dá justamente a ideia de uma atitude, de uma ação
ou omissão humana, e este ato jurídico é “em sentido amplo” porque comporta três
espécies, sendo uma delas o ato jurídico em sentido estrito, que é precisamente aquele ato
humano que é praticado em virtude de uma imposição da lei, como, por exemplo, votar ou
se apresentar nas forças armadas para o alistamento militar obrigatório.
Desta feita, o ato jurídico em sentido estrito, embora seja um ato jurídico, não é
uma obrigação em sentido estrito, isto é, criada pela vontade humana, e sim uma sujeição
imposta por lei, cujo cumprimento não a qualifica como obrigação, mas a qualifica como
ato jurídico.
Além do ato jurídico em sentido estrito, há outras duas espécies de ato jurídico
(fatos jurídicos humanos, ou ato jurídico em sentido amplo): os negócios jurídicos
(englobando os contratos, os atos unilaterais e os títulos de crédito) e os atos ilícitos.
Os negócios jurídicos nascem de atos jurídicos praticados “conforme a lei”, e os
atos ilícitos, como o próprio nome induz a crer, da prática de atos jurídicos “contrários a
lei”.
A estipulação em favor de terceiro é, para alguns juristas, espécie de contrato,
embora para outros não o seja. Mas, quanto a uma questão, não paira dúvida: a estipulação
em favor de terceiro é instituto afeto aos contratos, e no Código Civil ela vem tratada no
Título pertinente aos “contratos em geral”.
3. ESTIPULAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO E SUA NATUREZA JURÍDICA
Historicamente, verifica-se que o direito romano não contemplava tal instituto, até
mesmo devido à relatividade dos contratos (produção de efeitos apenas entre os
contratantes). Nesse período, a parte que atualmente é chamada de beneficiário da
estipulação em favor de terceiro não teria, conforme estatui o Direito Processual moderno,
legitimidade para requerer tutela jurisdicional do Estado para fazer valer seu direito à
estipulação feita por outrem em seu benefício, pois as fontes do Direito das Obrigações
(obrigações voluntárias) da época - as Institutas de Justiniano e o Digesto - não
contemplavam exceção à regra da relatividade dos contratos.
O Código Napoleão seguiu o direito romano e não contemplou a estipulação em
favor de terceiro, a qual foi incorporada ao direito francês apenas algumas décadas após a
entrada em vigor do Código em questão, mais precisamente em 1860, através da
jurisprudência, que, inclusive, sedimentou-se ignorando por completo a dicção da lei
(embora o instituto tenha sido aplicado apenas para os contratos de seguro, o de vida e o
coletivo contra acidentes). Entretanto, na Alemanha, o Código de 1896 contemplou tal
instituto, condicionando-o à existência de interesse econômico ou moral por parte do
estipulante. No Brasil o Código Bevilácqua contemplou o instituto.5
Feitas tais considerações preliminares sobre a origem do instituto, cumpre agora
firmar um conceito de estipulação em favor de terceiro. Assim, argumenta-se que
“estipulação em favor de terceiro” é uma disposição entabulada entre contratantes através
da qual uma das partes, o estipulante, convenciona com a outra parte, o promitente, uma
obrigação em que a prestação deverá ser cumprida em favor de outra pessoa, o
beneficiário, estranho à avença realizada entre aqueles dois primeiros.
Carlos Roberto Gonçalves assim definiu o instituto:
Dá-se estipulação em favor de terceiro, pois, quando, no contrato celebrado
entre duas pessoas, denominadas estipulante e promitente, convenciona-se que a
vantagem resultante do ajuste reverterá em benefício de terceira pessoa, alheia à
formação do vínculo contratual. Nela, como se vê, figuram três personagens: o
estipulante, o promitente e o beneficiário, este último estranho à convenção. Por
conseguinte, a capacidade só é exigida dos dois primeiros, pois qualquer pessoa
pode ser contemplada com a estipulação, seja ou não capaz. (2012, p. 118/119)
No mesmo sentido César Fiuza: “Dá-se estipulação em favor de terceiro quando,
em contrato, se pactuar que o benefício dele decorrente, no todo ou em parte, reverta em
favor de terceiro que lhe seja totalmente estranho” (2008, p. 458).
Serpa Lopes aduz o seguinte a respeito da conceituação da estipulação em favor de
terceiro:
5
Leia-se, nesse sentido, o escólio de Carlos Roberto Gonçalves acerca do escorço histórico do instituto da
estipulação em favor de terceiro: “O direito romano não admitia a estipulação em favor de terceiro, que se
opõe ao caráter estritamente pessoal do vínculo obrigatório capaz de produzir conseqüências somente entre
os partícipes da convenção, simbolizado pela parêmia alteri stipulari Nemo potest, mencionada nas Institutas
de JUSTINIANO e no Digesto, fonte, na época, das obrigações voluntárias cercadas de formalidades. O
beneficiário da promessa não teria legitimação para propor ação reclamando o seu cumprimento por não ser
parte na convenção original. (...). O Código NAPOLEÃO, por influência de POTHIER, manteve-se fiel à
tradição romana clássica, não admitindo as estipulações em favor de terceiro (art. 1.119). Somente a partir de
1860 a jurisprudência começou a admiti-las, praticamente contrariando o texto legal, nos contratos de seguro
de vida e de seguro coletivo contra acidentes. O Código alemão de 1896, todavia, veio consolidar e
sistematizar as conquistas da jurisprudência belga e da francesa, admitindo a estipulação em favor de terceiro
sempre que houvesse interesse econômico ou moral por parte do estipulante. Posteriormente, os códigos
modernos passaram a discipliná-las, em geral como exceção ao princípio da relatividade dos efeitos do
contrato. Assim também fez o Código Civil brasileiro de 1916, como já dito.” (2012, p. 120)
83 – Conceito de estipulação de terceiro. Há estipulação em favor de terceiros
quando em um contrato, estabelecido entre duas pessoas, pactua-se que o
benefício dele decorrente, no todo ou parte, reverterá em proveito de terceiro,
que lhe é totalmente estranho. (2001, p. 137)
Caio Mário da Silva Pereira, por sua vez, assim se referiu a respeito da
conceituação do tema: “Dá-se o contrato em favor de terceiro quando uma pessoa (o
estipulante) convenciona com outra (o promitente) uma obrigação, em que a prestação será
cumprida em favor de outra pessoa (o beneficiário)” (2012, p. 92).
E, Arnoldo Wald: “Conceito: A estipulação em favor de terceiro é o contrato pelo
qual se cria, para terceiro, um direito novo e próprio. Exemplo: seguro de vida” (2005, p.
265).
Pela doutrina portuguesa, Mário Júlio de Almeida Costa define:
Diz-se contrato a favor de terceiro aquele em que um dos contraentes
(promitente) se compromete perante o outro (promissário ou estipulante) a
atribuir certa vantagem a uma pessoa estranha ao negócio (destinatário ou
beneficiário). (1994, p. 290)
Arnaldo Rizzardo, por sua vez, assim definiu o instituto:
Tem-se, pois, um contrato formado por duas pessoas, sendo que uma delas se
obriga a entregar uma vantagem ou proveito a uma terceira pessoa, a qual é
completamente estranha à relação, não participando ou concordando na
convenção. (2006, p. 146)
Orlando Gomes caminha no mesmo sentido. Veja-se, portanto:
A estipulação em favor de terceiro opõe-se de frente à regra do direito romano
segundo a qual alteri stipulari Nemo potest. A possibilidade de estipular para
outrem foi, entretanto, admitida, configurando-se em vários contratos como os de
seguro de vida; constituição de renda, e transporte de objetos para terceiros
destinatários, e exercendo, no comércio jurídico, importante função prática. Os
códigos modernos disciplinam-na. Não obstante, sua natureza é ainda objeto de
controvérsias, propondo-se várias teorias a explicá-las. A tendência dominante é
no sentido de qualificá-la como contrato. Daí a denominação perfeita da doutrina
italiana de contrato a favor de terceiro.
A estipulação em favor de terceiro é realmente, o contrato por via do qual uma
das partes se obriga a atribuir vantagem patrimonial gratuita a pessoa estranha à
formação do vínculo contratual. (1990, p. 184/185)
Maria Helena Diniz, assim definiu a estipulação em favor de terceiro:
A estipulação em favor de terceiro vem a ser um contrato estabelecido entre
duas pessoas, em que uma (estipulante) convenciona com outra (promitente)
certa vantagem patrimonial em proveito de terceiro (beneficiário), alheio à
formação do vínculo contratual. (2007, p. 108)
Sílvio de Salvo Venosa diz que:
A expressão (contratos em favor de terceiros) tem sentido técnico de extensão
restrita. Quando se fala em contratos ou estipulações em favor de terceiros, se
deseja mencionar aqueles que originalmente não participaram da relação
jurídica, mas podem ser chamados a fazê-lo. A estipulação em que dois
contratantes procuram beneficiar terceiros se apresenta, portanto, como uma
exceção ao princípio da relatividade dos contratos. (1997, p. 105)
Observe-se, portanto, que enquanto Carlos Roberto Gonçalves, César Fiuza e
Miguel Maria de Serpa Lopes apontam a estipulação em favor de terceiro como sendo uma
cláusula contratual, Caio Mário da Silva Pereira (que, inclusive, cita Clóvis Bevilácqua
defendendo ponto de vista idêntico ao seu), Arnoldo Wald, Mário Júlio de Almeida Costa,
Arnaldo Rizzardo e Orlando Gomes preferem qualificá-la como sendo uma espécie de
contrato.
Já Sílvio de Salvo Venosa prefere apresentar a estipulação em favor de terceiro
como uma exceção ao princípio da relatividade dos contratos.
Não obstante Carlos Roberto Gonçalves se refira à estipulação em favor de terceiro
como sendo apenas uma estipulação contratual, isto é, como sendo apenas uma cláusula de
contrato, e não como um contrato, ele também deixa claro que, na verdade, aderiu à
concepção contratualista do instituto, nos mesmos moldes, por exemplo, de Caio Mário da
Silva Pereira e Clóvis Bevilácqua.
Veja-se, nesse sentido, o seguinte:
A concepção contratualista da estipulação em favor de terceiro não sofre
contestação entre nós, uma vez que é consagrada no Código Civil. Com efeito,
os arts. 436, parágrafo único, 437 e 438 do novo diploma referem-se a ela
utilizando o vocábulo contrato. (GONÇALVES, 2012, p. 122)
Há, aqui, nas citações do trabalho de Carlos Roberto Gonçalves, uma aparente
contradição, pois primeiramente afirmou-se que tal autor entende ser o instituto em questão
uma mera cláusula especial dos contratos e, após, transcreveu-se seu entendimento acerca
de ser o instituto um contrato.
Todavia, há que se deixar claro que tal contradição é apenas aparente, pois a
estipulação em favor de terceiro, sendo um acordo de vontades com o fim de criar,
modificar, conservar ou extinguir direitos, é realmente um contrato (em sentido amplo),
uma avença. E, portanto, sob esse prisma, correto o entendimento do autor mencionado
quanto à natureza contratualista do instituto. Entretanto, não é um contrato em espécie,
como faz crer a leitura da obra de Caio Mário da Silva Pereira, já que os contratos em
espécie estão previstos em Título específico do Código Civil.
A estipulação em favor de terceiro está prevista no Código Civil no Título que trata
“dos contratos em geral”, ou seja, naquela parte que possui disposições gerais que deverão
ser aplicadas a todos os contratos em espécie, o que, aliás, se aplica ao instituto ora em
foco, pois este pode ser aplicado a diversos contratos em espécie, tanto do Código Civil
quanto àqueles previstos em legislação especial.
Mas, não obstante o direito positivo brasileiro, a questão acerca da natureza jurídica
do instituto é controvertida, possuindo diversas correntes, sendo que Caio Mário da Silva
Pereira, em sua obra, informa que a questão é objeto de controvérsias acadêmicas,
apontando a existência de mais outras quatro correntes (além de sua própria corrente, que
entende ser estipulação em favor de terceiro uma espécie de contrato).
Na esteira do raciocínio apresentado, tem-se que as mencionadas correntes são as
seguintes: (1ª) a que entende ser a estipulação em favor de terceiro uma oferta à espera de
aceitação, à qual, contudo, faz-se a acertada crítica de que o promitente não é mero
policitante, mas sim verdadeiro obrigado (Serpa Lopes aponta LAURENT como o
principal expoente dessa teoria na doutrina estrangeira 6 ); (2ª) a que entende ser a
estipulação em favor de terceiro uma exceção ao princípio da relatividade contratual (ou
princípio do efeito relativo dos contratos), segundo o qual os contratos só obrigam, em
princípio, as partes que o celebraram, não obstante possam ser opostos a terceiros. Com
relação a esta corrente, há também a crítica de que, embora seu postulado seja verdadeiro,
não há a indicação do instituto jurídico ao qual a estipulação em favor de terceiro pertença,
ou se assemelhe; e (3ª) e (4ª) as que entendem ser a estipulação em favor de terceiro um ato
unilateral qualquer (Serpa Lopes 7 e Carlos Roberto Gonçalves 8 apontam COLIN et
CAPITANT, sendo que Serpa Lopes 9 menciona, também, JOSSERAND e BAUDRYLACANTINERIE,
como principais defensores desta tese no
estrangeiro) ou,
especificamente, uma gestão de negócios (conforme LABRÉ e POTHIER, citados por
Serpa Lopes10), às quais também se faz a crítica de que na estipulação em favor de terceiro
não se pratica um ato unilateral, mas há, contrariamente, a junção de duas vontades, a do
estipulante e a do promitente.
Afora os dois entendimentos mais frágeis sobre o instituto, quais sejam, o da
exceção ao princípio da relatividade dos contratos e o do ato unilateral, certo é que o
instituto suscita dúvidas quanto à sua caracterização jurídica, e, dessa forma, é de se
perguntar qual é, afinal, a natureza jurídica da estipulação em favor de terceiro?
6
(2001, p.138)
(2001, p. 138)
8
(2012, p. 121)
9
(2001, p. 138)
10
(2001, p. 138)
7
Dizer, conforme Caio Mário da Silva Pereira e Clóvis Bevilácqua, que a estipulação
em favor de terceiro é um contrato seria correto somente se se considerar a palavra
“contrato” em seu sentido amplo, isto é, naquele sentido de que qualquer avença ou
estipulação realizada por particulares, amparada por lei, e que preencha os requisitos de
validade dos negócios jurídicos, é um contrato.
Todavia, considerar o instituto como espécie de contrato, ou melhor, como contrato
típico (ou nominado) previsto no Código Civil, seria exagero, nesse ponto apresentando-se
mais acertado o entendimento de Serpa Lopes, Carlos Roberto Gonçalves e César Fiuza,
conforme mencionado retro, de que a estipulação em favor de terceiro é apenas uma
cláusula contratual, ou uma disposição que possa constar de algumas espécies de contratos,
típicos ou não.
Portanto, acredita-se ser mais acertado referir-se ao instituto em questão apenas
como uma cláusula especial dos contratos, nos mesmos moldes daquelas cláusulas
especiais previstas no Código Civil, do artigo 505 ao artigo 532, especificamente sobre o
contrato de compra e venda. Vale dizer: a estipulação em favor de terceiro não é um
contrato em si, mas uma cláusula especial integrante de outro contrato, como, por exemplo,
o de compra e venda, o de locação, o de seguro etc.
4. CONCLUSÃO
É certo, pois, que o instituto da estipulação em favor de terceiro é realmente um
contrato, no sentido de que é uma estipulação decorrente da vontade que tem por objetivo
criar direitos, e, sob esse aspecto, realmente acertada a chamada corrente contratualista a
respeito do tema.
Todavia, analisando o instituto de forma mais minuciosa, a estipulação em favor de
terceiro não é um contrato em sentido estrito, ou seja, um contrato típico previsto no artigo
436 do Código Civil, mas, sim, apenas uma cláusula de contrato, ou, ainda, uma disposição
geral a ser aplicada a todos os contratos, sejam eles típicos ou não.
A análise da sistemática do Código Civil, isto é, a forma como seus institutos estão
dispostos em seu corpo, demonstra que a estipulação em favor de terceiro está localizada
no Título que dispõe sobre os “contratos em geral”, enquanto há um Título específico que
trata dos “contratos em espécie”, não sendo absurdo se concluir que as disposições gerais
estatuídas no Título dos “contratos em geral” se aplicam a todos os “contratos em espécie”.
Assim, com base nessas considerações fica aqui assente que o instituto da
estipulação é favor de terceiro é uma cláusula especial dos contratos, e não um contrato
propriamente dito.
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