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Ser? fim da “alta programada”? (Como a senten?proferida pela Justi?Federal da Bahia pode repercutir na vida dos segurados do INSS)
Resumo: Em agosto de 2005, o INSS passou a adotar a prática popularmente conhecida como alta programada, inicialmente, de “Cobertura
Previdenciária Estimada-COPES”, por meio da qual a autarquia previdenciária, ao conceder o benefício de auxílio-doença, estabelece a data para
cessação da incapacidade e, consequentemente, para cessação do benefício, dispensando-se da realização de nova perícia. Ocorre que, na maioria
das vezes, o médico perito do INSS estabelece prazo aquém do necessário para a recuperação do segurado. Ademais, nem sempre é possível que a
perícia seja remarcada em tempo hábil, antes que seja cessado o benefício de auxílio-doença. Nesse contexto, chegou ao Poder Judiciário a primeira
ação coletiva a tratar da questão da alta programada, a Ação Civil Pública n.º 2005.33.00.020219-8, Posteriormente, foram ajuizadas diversas ações
civis públicas, em diferentes Unidades da Federação. Após o proferimento de sentença de mérito na primeva ação civil pública, resta-nos, agora,
compreender como essa sentença de primeira instância analisou a legalidade da chamada alta programada e as repercussão disso na vida dos
segurados beneficiários do auxílio-doença, maiores interessados no assunto.
Sumário: 1) Histórico cronológico da prática denominada "alta programada"; 2) As primeiras ações coletivas propostas sobre o tema; 3) Análise da
legalidade e da constitucionalidade da açta programada à luz da doutrina e da jurisprudência; 4) Dos co-legitimados da ação civil pública; 5)
Considerações sobre a sentença de mérito proferida; 6) Considerações finais.
Como é do conhecimento dos que militam na seara do direito previdenciário, o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, em agosto de 2005,
passou a adotar a prática popularmente conhecida como alta programada (nome que será usado, doravante, como sinônimo de todas as suas
derivações), denominando-a, inicialmente, de “Cobertura Previdenciária Estimada-COPES”, amparada pela Orientação interna n.º 130 INSS/DIRBEN,
posteriormente revogada pela Orientação interna n.º 138 INSS/DIRBEN, por meio da qual a autarquia previdenciária, ao conceder o benefício de
auxílio-doença, estabelece a data para cessação da incapacidade e, consequentemente, para cessação do benefício, com a duração máxima de 180
(cento e oitenta) dias, dispensando-se da realização de nova perícia.
Posteriormente, o Decreto n.º 5.844/06 renomeou a alta programada para DATA DE CESSAÇÃO DE BENEFÍCIO – DCB, com pequenas alterações,
possibilitando a manutenção dos benefícios de auxílio-doença, em casos de doenças graves, por até 02 (dois) anos, e não mais pelo prazo máximo
de 180 (cento e oitenta) dias, como previsto anteriormente.
A irresignação dos segurados do Regime Geral de Previdência Social não tardou a ocorrer, tendo em vista os graves prejuízos causados por tal
prática.
Ocorre que, na maioria das vezes, como efetivamente era de se esperar, o médico perito do INSS estabelece prazo aquém do necessário para a
recuperação do segurado. Assim ocorre, em parte, pela total impossibilidade científica de se prever em quanto tempo cada organismo humano, com
todas as suas peculiaridades, levará para se restabelecer diante de uma moléstia incapacitante.
Ademais, nem sempre é possível que a perícia seja remarcada em tempo hábil, antes que seja cessado o benefício de maneira indevida pela
autarquia previdenciária, resultando prejuízos e transtornos ao segurado.
Nesse contexto, chegou ao Poder Judiciário a primeira ação coletiva a tratar da questão da alta programada, a Ação Civil Pública n.º
2005.33.00.020219-8, que foi distribuída para a 14.ª Vara Federal de Salvador-BA.
O pedido de antecipação dos efeitos da tutela formulado no bojo da referida Ação Civil Pública foi parcialmente concedido pelo Juízo, e, após, foi
revogada essa concessão.
Posteriormente, foram ajuizadas diversas ações civis públicas, em diferentes Unidades da Federação, com semelhantes causas de pedir e pedidos,
muitas delas propostas pela Defensoria Pública da União. O Superior Tribunal de Justiça, porém, em decisão proferida no Conflito de Competência nº
64.732/BA, declarou preventa a 14ª Vara Federal de Salvador-BA, sobrestando as demais ações e determinando a remessa de algumas delas para
esse Juízo.
Pois bem, passados mais de de 04 (quatro) anos do ajuizamento da primeva ação civil pública, foi proferida sentença pela 14ª Vara Federal de
Salvador-BA julgando parcialmente procedentes os pedidos contidos na respectiva petição inicial.
Resta-nos, agora, compreender como essa sentença de primeira instância analisou a legalidade da chamada alta programada e as repercussão
disso na vida dos segurados beneficiários do auxílio-doença, maiores interessados no assunto.
Inicialmente, importante frisar que a sentença estendeu a eficácia subjetiva da coisa julgada para todos os segurados do INSS, afastando, pois, o art.
16 da Lei n.º 7.347/85, com redação dada pela Lei n.º 9.494/97, que limita os efeitos da coisa julgada aos limites da competência territorial do órgão
prolator da sentença.
Nesse passo, ao nosso sentir, agiu bem o Juízo sentenciante, pautando-se por questões de isonomia, economia, segurança jurídica e paz social, as
quais poderiam ser prejudicadas caso houvessem pluralidade de entendimentos jurisdicionais, consequência de várias sentenças diferentes sobre o
mesmo tema.
Afigura-se-nos ter agido corretamente, também, ao incluir na sentença os benefícios de auxílio-doença acidentários.
Ocorre que, nos estritos limites do art. 109, inciso I, da Constituição da República, a competência para o julgamento de causas que versem sobre
acidentes de trabalho seria afeta à Justiça Estadual.
Entretanto, como bem ponderou a sentença, não obstante a competência traçada no art. 109, inciso I, da Constituição da República seja considerada
absoluta, não seria adequada a cisão da jurisdição em casos extremamente semelhantes, em que a origem da patologia (acidentária ou não) é pouco
relevante.
Pontuo, porém, a discordância, data venia, com os termos da referida sentença, no que tange à exclusão da Defensoria Pública da União do pólo
ativo das ações conexas que foram ajuizadas em várias Unidades da Federação.
Não obstante a extensão da legitimidade ativa da Defensoria Pública da União nas ações coletivas ainda esteja em processo de construção
jurisprudencial, não se afigura correta a limitação da legitimidade desse ente público, presente no rol do art. 5º da Lei n.º 7.347/85, diante da
afirmação de que nem todos os beneficiados da prestação jurisdicional seriam hipossuficientes econômicos, o que inviabilizaria a atuação da DPU no
feito.
Ora, não se pode excluir parcela dos legitimados por haver outros que não se enquadram na condição de “necessitados” estabelecida no art. 134 da
Constituição da República, até mesmo porque essa expressão (“necessitados”) não pode ser aferida matematicamente.
Ao contrário, a Defensoria Pública, com as alterações promovidas na Lei Complementar n.º 80/1994 pela Lei Complementar n.º 132/2009, passou a
ter como função institucional a defesa dos interesses individuais e coletivos de grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado
(art. 4º da LC 80/94).
Vislumbra-se, pois, que os segurados do INSS, especialmente os que postulam a concessão ou a prorrogação do benefício de auxílio-doença,
constituem um dos exemplos mais eloquentes de grupo social vulnerável, merecendo a assistência jurídica da Defensoria Pública da União em sede
de tutela coletiva.
Por outro lado, a sentença parece ter sido um avanço no que diz respeito à efetivação de direitos fundamentais dos segurados.
No mérito, embora a sentença não reconheça a ilegalidade do estabelecimento de prognóstico médico para a retomada da capacidade laborativa de
quem esteja em gozo do benefício de auxílio-doença, reconheceu que essa probabilidade de recuperação não pode ser tida como absoluta, nem
mesmo pode ter o efeito de suspender automaticamente o benefício quando haja pedido de prorrogação pelo segurado.
Com efeito, em regra, ninguém melhor do que o segurado para saber se está ou não recuperado para retornar ao seu trabalho habitual.
Estabelecer uma data antevista para o cancelamento do auxílio-doença, sem a possibilidade de submeter o segurado a uma nova avaliação médica
antes desse cancelamento, é inverter a presunção de boa-fé, regra em nosso ordenamento jurídico, e prejulgar todos os segurados do INSS como
possíveis – ou até mesmo prováveis – fraudadores do sistema, o que absolutamente não é verdadeiro.
Sendo o benefício concedido por meio de processo administrativo, regulamentado pela Lei n.º 9.784/99, deverá, igualmente, ser cessado por
processo administrativo, respeitados o contraditório e a ampla defesa.
Nesse passo, têm-se que a prova idônea para o início do benefício é a perícia realizada pela autarquia.
Porém, para o inverso, ou seja, para a cessação do benefício, haveria, por lógica e por respeito ao contraditório e à ampla defesa, de ser adotado o
mesmo procedimento para a necessária aferição do restabelecimento da condição laborativa do segurado, ou seja, por meio de perícia médica e não
por mero prognóstico.
Com efeito, o cancelamento do benefício sem que se tenha procedido prova idônea da cessação da doença (no caso, nova perícia) não tem validade
ético-jurídica, pois tal ato se reveste de vício, em razão de ser arbitrário e abusivo, além de macular princípios inerentes ao Estado Democrático de
Direito, e em especial a ampla defesa e o contraditório.
Nesse sentido, merece transcrição o voto do Desembargador Federal José Amilcar Machado, a saber: Como se sabe, a garantia constitucional, em
seu sentido processual, tal como inserta no art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988, que tem como consectários a ampla defesa e o contraditório,
exige que a autoridade administrativa, no exercício de suas atividades, atue de maneira não abusiva e não arbitrária, para que seus atos tenham,
assim, legitimidade ético-jurídica. (TRF da 1ª Região, MS 200633070006321-BA)
Conclui, o Desembargador Federal: Deste modo, em tendo havido o ato de suspensão sem que tenham sido assegurados ao prejudicado os devidos
contraditório e ampla defesa, deve ser restabelecido o pagamento ao benefício, sendo este o pedido formulado no mandamus e devendo nestes
lindes manter-se a segurança concedida em primeiro grau.
Imagine-se a seguinte situação: o segurado procura uma agência do INSS postulando a concessão de auxílio-doença; realizada a perícia,
constata-se a incapacidade parcial e temporária do segurado para a sua atividade habitual, estabelecendo-se o prognóstico da recuperação de
capacidade laborativa para 60 dias. Indagado o médico perito, pelo segurado, sobre a hipótese da incapacidade permanecer por tempo superior aos
60 dias estabelecidos pela Data de Cessação de Benefício – DCB (alta programada) este lhe responde que, consoante disposto no Decreto n.º
5844/06, o segurado que se achar incapacitado após o prazo estabelecido na DCB (alta programada) poderá solicitar nova perícia 15 dias antes da
cessação do benefício.
Contudo, como é de conhecimento público, em razão de problemas burocráticos de toda espécie ou mesmo pela falta de profissionais
médicos-peritos, a realização de nova perícia poderá ser agendada para data posterior à data pré-estabelecida para a cessação do benefício,
obrigando o segurado a retornar às suas atividades mesmo estando, ainda, incapacitado.
É de conhecimento público, também, que a espera para o agendamento de perícias-médicas do INSS tem sido cada vez menor, isso se deve ao
grande esforço para a desburocratização e para assegurar a dignidade do segurado que está sendo empreendida pela Administração Pública. Digno
de aplausos esses esforços.
Entretanto, não se pode esperar que a mesma agilidade de uma agência do INSS estabelecida em uma capital seja observada numa agência
localizada em cidade distante dos grandes centros urbanos, seja pela carência de recursos materiais, seja pela dificuldade de recursos humanos
qualificados e suficientes, dentre os quais merecem destaque os profissionais médicos-peritos.
Destarte, se o quadro melhorou muito desde o ano de 2005, não se pode afirmar que não haverá injustiça no caso de se suspender
peremptoriamente o auxílio-doença de um segurado com um simples prognóstico inicial de recuperação, sem que se possa submetê-lo a uma nova
perícia para que se confirme essa expectativa de retomada da capacidade laborativa.
Não bastasse isso, o Decreto n.º 5.844/06 contraria o disposto no art. 60 da Lei n.º 8.213/91, o qual preceitua que o auxílio-doença será devido ao
segurado empregado a contar do décimo sexto dia do afastamento da atividade, e, no caso dos demais segurados, a contar da data do início da
incapacidade e enquanto ele permanecer incapaz.
Já o art. 62 da mesma Lei, prevê que o segurado em gozo do auxílio-doença, insuscetível de recuperação para sua atividade habitual, deverá
submeter-se a processo de reabilitação profissional para o exercício de outra atividade. Não cessará o benefício até que seja dado como habilitado
para o desempenho de nova atividade que lhe garanta a subsistência ou, quando considerado não-recuperável, for aposentado por invalidez.
Nota-se, pelos preceitos legais aludidos, que é direito subjetivo do segurado ter sua capacidade aferida por perícia médica, a fim de certificar se
houve reabilitação, se essa reabilitação foi parcial ou total, ou se persiste a incapacidade.
Acerca do tema, é imperioso transcrever parte do Voto da Desembargadora Federal Luciane A. Corrêa Münch, verbis: Como se percebe da leitura
dos dispositivos acima (no voto, são os arts. 60 e 62 da Lei 8.213/91), é incompatível com a lei previdenciária a adoção, em casos desse jaez, do
procedimento de 'alta programada', tendo em vista que fere o direito subjetivo do segurado de ver sua capacidade laborativa aferida através do meio
idôneo a tal fim, que é a perícia médica. De fato, revela-se incabível que o Instituto preveja com antecedência, por meio de mero prognóstico, que em
determinada data o segurado esteja apto ao retorno ao trabalho, sem avaliar efetivamente o estado de saúde em que se encontra, tendo em vista
que tal prognóstico pode não corresponder à evolução da doença, o que não é difícil de acontecer em casos mais complexos, como é o versado nos
autos (TRF da 4ª Região, MS 200670000105975-PR).
Observa-se que há um conflito de interesses jurídicos relevantes, quais sejam: o direito da Administração Pública de “racionalizar” o serviço e
economizar recursos financeiros; o direito do segurado, de garantir a continuidade do benefício até a sua total reabilitação, e, por fim; o direito/dever
do Estado de garantir à população o devido processo legal.
Nesse conflito de interesses, argumentos de ordem meramente financeira não podem suplantar a primazia da dignidade da pessoa humana,
proto-princípio do Estado Democrático de Direito e pilar de todo o ordenamento jurídico em vigor.
A determinação, contida na parte dispositiva da sentença da ação civil pública da Bahia, para que o INSS, no procedimento de concessão do
benefício de auxílio-doença, inclusive aqueles decorrentes de acidente de trabalho, uma vez apresentado pelo segurando pedido de prorrogação,
mantenha o pagamento do benefício até o julgamento do pedido após a realização de novo exame pericial, avança no sentido de dar crédito à
palavra dos segurados do INSS que entenderem que persiste a incapacidade para o trabalho habitual, embora o prognóstico feito na primeira
perícia-médica realizada pela autarquia previdenciária diga o contrário.
Como a sentença ainda não transitou em julgado, resta-nos aguardar para saber como as instâncias superiores decidirão, além de torcer para que de
lege ferenda haja expressa previsão do direito do segurado à manutenção do benefício de auxílio-doença enquanto não seja considerada cabalmente
recuperada a capacidade laborativa, após a realização de perícia médica conclusiva.
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“alta programada”? (Como a senten?proferida