revisão
Diagnóstico pré-natal utilizando sangue materno
Prenatal diagnosis using maternal blood
Conrado Milani Coutinho1
Flávia Cappello Donabela1
Murilo Racy Soares1
Ester Silveira Ramos2
Geraldo Duarte3
Palavras-chave
DNA fetal livre
Diagnóstico pré-natal não invasivo
Reação em cadeia da polimerase
Keywords
Free fetal DNA
Noninvasive prenatal diagnosis
Polymerase chain reaction
Resumo
As técnicas de diagnóstico pré-natal têm evoluído de forma acelerada,
em especial aquelas que implicam menor invasão fetal. Nesse cenário, grande importância tem sido dispensada
às técnicas de detecção de DNA fetal livre (DNA-fl) no sangue materno, as quais apresentam melhor relação
custo-benefício quando comparadas às técnicas de enriquecimento e isolamento de células fetais. O DNA-fl
pode ser avaliado de forma qualitativa ou quantitativa. Na primeira forma, detectam-se seqüências gênicas
fetais de herança exclusivamente paterna com o intuito de selecionar fetos portadores de determinada doença,
como a mutação para a fibrose cística ou a identificação de características fetais diferentes das maternas, como
a incompatibilidade sanguínea RhD. Assim, os recursos propedêuticos invasivos ficariam reservados apenas para
uma pequena parcela dessa população. Na segunda forma, quantifica-se a concentração de DNA-fl para se
definir gestantes sob risco para eventos desfavoráveis relacionados a alterações da interface materno-fetal, como
abortamento, trabalho de parto pré-termo e pré-eclâmpsia. Cabe às instituições de atenção pré-natal terciária
a pesquisa e a aplicação desses recursos, objetivando a redução dos custos e sua maior disponibilização para a
sociedade, conseqüentemente oferecendo diagnósticos mais precoces e menores taxas de morbimortalidade
materna e fetal.
Abstract
Prenatal diagnostic techniques are evolving greatly, especially noninvasive
procedures. Great importance have been given to the free fetal DNA (ff-DNA) detection in maternal blood
presents better cost/benefits relation when compared to enrichment and isolation of fetal cells. The ff-DNA can
be analyzed qualitatively or quantitatively forms. In the first form, the fetal paternally derived genetic sequences
are detected in order to select which fetuses are affected by determined disease, as the mutation for cystic
fibrosis, or to identify fetal characteristics different from his mother’s, as in RHD incompatibility. Then, invasive
procedures could only be used in part of this population aiming more therapeutics aspects than diagnosis. In
the second form, the ff-DNA quantification can define pregnancies under risk for undesirable outcomes related
to anomalies in the maternal-fetal interface, such as abortion, preterm labor and pre-eclampsia. It’s expected
that tertiary prenatal care centers research can work with those procedures in order to offer early diagnosis and
lowest rates of fetomaternal morbimortality.
Pós-graduandos do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRPUSP) – Ribeirão Preto, SP, Brasil
Professora doutora do Departamento de Genética da FMRP-USP – Ribeirão Preto, SP, Brasil
3
Professor titular do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da FMRP-USP – Ribeirão Preto, SP, Brasil
1
2
Coutinho CM, Donabela FC, Soares MR, Ramos ES,Duarte G
Introdução
Em tempos de globalização e rápido desenvolvimento
tecnológico, torna-se impossível dissociar a clássica medicina
Hipocrática da moderna ciência do século 21, caracterizada pela
profunda interação entre médico provedor de saúde e técnicas
propedêuticas avançadas. Nesse cenário, grandes avanços têm
sido obtidos na área da medicina fetal, na qual diagnósticos têm
sido realizados cada vez mais precocemente e de forma menos
invasiva tanto para a mãe quanto para o feto.
No intuito de reduzir os reconhecidos riscos de técnicas como
a biópsia de vilosidades coriônicas, amniocentese e cordocentese,
as quais apresentam risco de perda gestacional aproximado de
1%, avanços na área de biologia molecular vêm sendo cada vez
mais utilizados, visto que possibilitam diagnósticos pré-natais
acurados sem invasão uterina.1 Dessa forma, cabe ao obstetra
se manter atualizado sobre os avanços nessa área promissora
permitindo a aplicação desses recursos na sua prática clínica
com o objetivo de melhorar os resultados perinatais com o
mínimo de invasão.
DNA fetal livre na circulação materna
Segundo informações de Atwood e Park (1961), a primeira
descrição da presença de células nucleadas fetais na circulação
materna foi divulgada por Schmorl em 1893.2 Com o avanço tecnológico, tornou-se possível identificar a passagem de
eritrócitos, leucócitos e tecido trofoblástico para a circulação
materna.3,4 Esses achados possibilitaram o uso de células fetais
como substrato para técnicas diagnósticas intraútero utilizando-se
recursos não invasivos. Entretanto, algumas dificuldades limitam
a sua utilização em larga escala, entre elas, a baixa proporção
relativa de células fetais comparadas às maternas (1:100.000),
a sua persistência na circulação materna vários anos após o término da gestação e as dificuldades técnicas no enriquecimento
e isolamento das células fetais, trazendo em aumento do custo
e do tempo usado em sua realização.5,6,7
A utilização do DNA fetal livre (DNA-fl) no sangue materno
tem despertado o interesse dos pesquisadores na última década.8
A lógica do seu uso baseia-se na detecção e amplificação de sequências genéticas fetais herdadas do genoma paterno e ausentes
no materno, utilizando a reação em cadeia da polimerase (PCR).
A concentração relativa média de DNA-fl no plasma materno
varia de 3,4 a 6,2% com o decorrer da gestação, podendo alcançar concentrações próximas a 12% do DNA total presente
na amostra estudada.8 Outra grande vantagem sobre o uso das
células fetais é a completa depuração do DNA fetal livre após
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duas a três horas da dequitação, impossibilitando o achado de
resultados falsos-positivos devido à detecção de material genético
oriundo de gestações prévias.9
Não é unânime que a adição de formaldeído às amostras
sanguíneas maternas poderia aumentar a porcentagem relativa de
DNA-fl na circulação da mãe. Em estudo pioneiro, aproximadamente 59% das amostras apresentavam concentrações superiores
a 25% de DNA-fl em relação ao DNA total. Por outro lado,
apenas 10% das amostras tinham menos do que 10% de DNAfl. O efeito do formaldeído pode ser explicado pela estabilização
das membranas celulares maternas e pela inibição de enzimas
catalizadoras de DNA-fl, denominadas DNases.10
Outro método potencial para facilitar a implementação da
identificação e quantificação do DNA-fl baseou-se nas diferenças
estruturais entre os ácidos nucleicos maternos e fetais, sendo
os primeiros mais alongados.11 Assim, pesquisas aprofundadas
poderão facilitar o seu isolamento utilizando separação por diferentes pesos moleculares e enriquecimento das concentrações
relativas do DNA-fl, possibilitando aumento da acuracidade
das técnicas diagnósticas não invasivas.
De forma geral, a utilização do DNA-fl no sangue materno
pode ser qualitativa ou quantitativa. A primeira objetiva a
detecção de sequências gênicas fetais causadoras de doenças em
casais predispostos, a exemplo da mutação para fibrose cística ou
a identificação de características fetais que possibilitam a exclusão
da necessidade de diagnóstico invasivo, como a detecção de fetos
RhD negativo em mães isoimunizadas. Já a quantificação dos
ácidos nucleicos fetais livres informa quais gestações estão sob
risco para eventos desfavoráveis, como ameaça de abortamento,
trabalho de parto pré-termo, pré-eclâmpsia, entre outros.6
Avaliação qualitativa do DNA-fl
Em 1996, Chen et al. constataram a presença de DNA tumoral
livre no sangue de pacientes acometidos por neoplasias malignas.12
A partir dessa observação inicial foi possível a demonstração de
DNA-fl no plasma e no soro de gestantes utilizando a PCR para
identificação de seqüências gênicas específicas do cromossomo
Y. Assim, com os avanços tecnológicos subsequentes, a sexagem
fetal se mostrou progressivamente mais acurada e precoce, com
alguns estudos demonstrando sensibilidade e especificidade de
100%, além de detecção confiável em idades gestacionais tão
precoces quanto cinco semanas.13
As principais indicações médicas atuais para a definição
precoce do sexo fetal contemplam os casais com fetos em risco
para hiperplasia congênita da adrenal (HCA) e para doenças
ligadas ao X. Na HCA, uma doença autossômica recessiva com
Diagnóstico pré-natal utilizando sangue materno
risco de 25% de recorrência, o casal geralmente apresenta filho
previamente acometido, sendo esse o fator que os leva à busca
de diagnóstico pré-natal. O defeito genético mais comum leva,
em mais de 95% dos casos, à deficiência da enzima 21-hidroxilase, que ocasiona a redução da produção de glicocorticóides
e mineralocorticóides, aumento anormal da concentração de
androgênios adrenais, provocando virilização de fetos femininos.
Protocolos atuais para gestações sob risco de HCA preconiza a
corticoprofilaxia com dexametasona previamente à nona semana
gestacional, ou seja, antes da completa diferenciação genital e da
possibilidade de identificação do gênero fetal à ultrassonografia
ou biópsia de vilo corial. Assim, a identificação precoce de fetos
masculinos possibilita a suspensão da dexametasona, evitando os
seus efeitos adversos maternos e fetais, todos significativos. Outra
grande vantagem seria a redução do número de testes invasivos
em 50% dos casos, já que apenas os fetos femininos, aqueles
em risco para masculinização, precisariam ser investigados para
determinar se são afetados, necessitando da manutenção do uso
do corticoesteroide.13
Em gestantes com fetos sob risco para doenças ligadas ao X,
como a hemofilia e a distrofia muscular de Duchenne, dentre
as mais de cem doenças descritas, há benefício na identificação
do sexo fetal precocemente. Importante relembrar que só há
expressão da doença em fetos masculinos que herdam o X
materno alterado, o que ocorre em 50% dos casos. Dessa maneira, em gestações de fetos femininos, evita-se o diagnóstico
invasivo, confirmando o gênero fetal no segundo trimestre com
a ultrassonografia.13 Salienta-se que nas duas situações descritas
é possível rastrear quais são as gestações sob risco e evitar testes
invasivos em 50% dos casos em período prévio ao da realização
da biópsia de vilosidades coriônicas, realizada após 11 semanas.
A pesquisa do sexo fetal por meio da ultrassonografia de primeiro
trimestre na avaliação do ângulo do apêndice genital não se
mostrou suficientemente acurada.14
A pesquisa do DNA fetal livre também possibilitou o
diagnóstico pré-natal de desordens monogênicas paternas. Já
foram descritas metodologias para detecção de mutações em
sítios únicos de doenças autossômicas dominantes, como a
acondroplasia15 e a distrofia miotônica.16 Além disso, há as patologias autossômicas recessivas, nas quais os pais apresentam
alelos mutantes distintos e recém-natos anteriores acometidos
também podem ser estudadas, como em alguns casos da fibrose
cística, da ß-talassemia major e mesmo da HCA.17
Outro grande avanço científico no campo da detecção do
DNA-fl na circulação materna foi o desenvolvimento de sondas
de DNA (primers) para a identificação de fetos RhD positivos em
gestantes RhD negativas, o que ocorre em aproximadamente
15% da população caucasiana. Nas gestações de pacientes não
aloimunizadas, a observação de fetos RhD negativos propicia
benefícios psicológicos e econômicos, já que não há necessidade
de se prosseguir a investigação de anticorpos irregulares e a
aplicação de imunoglobulina anti-D nos períodos pré e pósnatal. Já nas pacientes aloimunizadas, a detecção de fetos RhD
negativos possibilita que se evite a realização da propedêutica
para anemia fetal e de procedimentos diagnósticos invasivos,
reduzindo a morbimortalidade fetal e a ansiedade materna.18
Recentes estudos têm demonstrado acurácia de até 100% para
esse teste, inclusive no primeiro trimestre, o que possibilita a
sua utilização de forma rotineira na propedêutica pré-natal de
gestantes RhD negativo em alguns serviços de referência.19
Avaliação quantitativa do DNA-fl
O desenvolvimento de técnicas de quantificação dos níveis
de DNA-fl total, como, por exemplo, o uso do PCR em tempo
real, possibilitou uma nova vertente de aplicações clínicas desse
recurso propedêutico (entre elas a ameaça de aborto, trabalho
de parto pré-termo, pré-eclâmpsia e aneuploidias). Sabe-se que
concentrações do DNA-fl aumentam de forma fisiológica em
relação direta com a idade gestacional. Além disso, um aumento
agudo ocorre nas últimas oito semanas de gravidez, antes do
trabalho de parto, indicando uma provável alteração na interface
materno-fetal, também denominada barreira placentária.20 Já foi
demonstrado aumento aproximado de duas vezes na concentração de DNA-fl amplificado a partir de regiões Y-específicas em
gestações de fetos com trissomia do 21, independentemente de
o DNA fetal ser derivado de locus gênico do cromossomo 21.21
Apesar disso, devido à grande superposição entre concentrações
de gestações normais e de fetos trissômicos, o método deve ser
utilizado apenas como secundário na propedêutica pré-natal
para aneuploidias.
Qualquer doença fetal que se relacione com alterações na
interface materno-fetal deve estar acompanhada de aumento
dos níveis de DNA-fl no sangue materno. Dessa forma, essas
alterações já foram descritas em gestações que resultaram em
ameaça de aborto, trabalho de abortamento, trabalho de parto
pré-termo, placenta prévia, descolamento prematuro de placenta normalmente inserida e pré-eclâmpsia.22 Conhecimentos
atuais demonstraram que antes da instalação da pré-eclâmpsia
há aumento do DNA-fl em dois estágios. No primeiro estágio,
a elevação ocorre entre 17 e 28 semanas de gestação, provavelmente relacionada à deficiente invasão trofoblástica, causando
isquemia placentária e liberação de fragmentos trofoblásticos
apoptóticos. O segundo estágio é caracterizado pela elevação do
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DNA-fl três semanas antes da instalação da pré-eclâmpsia, o que
pode representar a descompensação da disfunção endotelial que
a precede.23 Apesar de os estudos iniciais terem utilizado primers
para amplificação de regiões Y-específicas, já foi demonstrado
que primers para regiões dos genes RhD também podem ser
utilizados, com a vantagem de poder predizer a ocorrência de
pré-eclâmpsia em gestações de fetos de ambos os sexos.24
Considerações finais
Conhecendo a vasta gama de potenciais aplicações do estudo do DNA-fl na circulação materna utilizando a PCR no
diagnóstico pré-natal não invasivo, resta saber se ele é prático.
Tanto a avaliação qualitativa do sexo fetal, a genotipagem RhD
e a amplificação de alelos mutantes previamente conhecidos,
quanto o estudo quantitativo do DNA-fl para definição de risco
decorrente de alterações na interface materno-fetal apresentam
inúmeras vantagens. Sua utilização dependerá da disponibilidade
dos recursos técnicos, dos equipamentos e de pessoal já qualificado, o que, obviamente, resultará em redução de custos. Sabe-se,
no entanto, que só a divulgação desses recursos propedêuticos e
sua utilização ampliada será capaz de reduzir o custo de forma a
disponibilizá-lo para toda a população em futuro próximo.
Os centros terciários de atendimento pré-natal que já dispõem
dos recursos para a identificação de material genético fetal na
circulação materna deveriam se comprometer com a padronização
desses métodos de forma protocolar na assistência pré-natal,
servindo de exemplo para outras unidades de assistência, o que
resultaria em acurácia diagnóstica e instalação precoce de terapias,
e evitaria procedimentos invasivos desnecessários.
Leituras suplementares
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Diagnóstico pré-natal utilizando sangue materno