Os Itinerários Terapêuticos da População
moradora do Complexo de Manguinhos
Jaqueline Ferreira
Wanda Espírito Santo
Idenalva Silva de Lima
* Mapas de Luiz Guilherme Leal Ferreira Filho
Os Itinerários Terapêuticos
da população da região de Manguinhos
Itinerários terapêuticos
Caminhos percorridos pelo indivíduo na busca de solução para os seus problemas
de saúde.
Cada escolha é realizada em função das disponibilidades circunstanciais e das
explicações culturalmente aceitas pelo indivíduo e pelo grupo.
Conceito elaborado pelo antropólogo francês Marc Augé, inicialmente aplicado às sociedades
tradicionais e atualmente incorporado por pesquisadores de complexos urbanos
Objetivos
=> A presente pesquisa propõe-se a compreender as lógicas acionadas na
busca dos recursos de cura da população morando no complexo de
Manguinhos, observando seus itinerários terapêuticos.
• Observar o comportamento destes moradores na busca de
cuidados terapêuticos face à doença em relação à suas
histórias individuais, seus pertencimentos culturais e étnicos e
sua inserção na comunidade.
• Observar como a implantação local de uma política pública tal
qual o PSF influi nas escolhas realizadas por cada família e
quais outros recursos são acionados em função de sua renda,
crença e distância geográfica em relação às diferentes ofertas
de cura.
Partimos da hipótese que as escolhas
terapêuticas são orientadas tanto por razões de
ordem prática, como pelas representações que os
sujeitos portam sobre saúde/doença, recursos de
cura (biomédicos e religiosos, por exemplo) e as
tensões sociais que a mesma suscita.
– Programa de Saúde da Família e os
moradores do Complexo de Manguinhos
• A presença do Programa de Saúde da Família (PSF) cujo
atendimento encontra-se no Centro de Saúde de Escola
Germano Sinval Farias na FIOCRUZ é um referencial
importante pois representa uma facilidade de acesso
geográfico para a população moradora do Complexo de
Manguinhos
• O PSF- Manguinhos possui oito equipes de saúde
distribuídas na região (Monsenhor Brito, Vila Turismo,
CHP2, Parque João Goulart, Parque Oswaldo Cruz, Parque
Carlos Chagas, Samora Machel, Mandela de Pedra).
METODOLOGIA
*Qualitativo
Universo: membros das comunidades do Complexo de Manguinhos cobertas pelo PSF
Técnicas:
*
Observação participante
Processo pelo qual mantém-se a presença do observador numa situação social, com a
finalidade de realizar uma investigação científica, onde o observador está em relação face
a face com os observados. Ao participar da vida deles, no seu cenário cultural, colhe
dados procurando interferir o mínimo possível na dinâmica da relação. O observador é
parte do contexto sob observação, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por
este contexto.
*
Entrevistas semi-diretivas
Semi-dirigidas (o informante responde de forma objetivo ou aborda livremente o
tema proposto).
As entrevistas seguem um roteiro etnográfico na medida em que cada pesquisadorentrevistador terá a oportunidade de desenvolver suas observações e impressões sobre
cada entrevistado e item específico.
• Foram realizadas 3 ou mais entrevistas em cada comunidade,
totalizando 26 entrevistas.
•
Os entrevistados têm mais de 18 anos, não importando o sexo,
são moradores do complexo de Manguinhos por mais de 5
anos e residem em comunidade atendida pelo PSF, não sendo
necessário que utilizassem o programa.
• A seleção dos entrevistados ocorreu a partir de contatos com
organizações não governamentais, instituições religiosas e
outros serviços que funcionam nas localidades, inclusive do
Programa Saúde da Família.
• As entrevistas foram gravadas após assinatura do termo de
consentimento livre e esclarecido e após transcritas na integra
– em documento Word - as falas dos entrevistados foram
organizadas em categorias de análise.
• As entrevistas foram realizadas buscando a estrutura familiar
residencial, renda, trabalho e escolaridade, formas de lazer e
sociabilidade, trajetória familiar (migração e rede familiar
existente me Manguinhos), relação com a comunidade em que
vive (problemas identificados, satisfação ou não em residir no
local), além das representações de doença e itinerários
propriamente ditos.
• A maioria delas foram realizadas na residência dos
entrevistados o que permitiu observar o seu modo de vida e as
suas relações familiares e de vizinhança.
• Pessoas e comunidades diferentes, realidades semelhantes:
saneamento básico insuficiente, moradias de alvenaria
misturada à barracos e vários templos religiosos
Resultados e Discussão
A heterogeneidade dos entrevistados não impede que
alguns dados informados descrevam realidade
semelhantes
A grande maioria dos entrevistados é do sexo
feminino
23 mulheres e 3 homens
Cor
auto-referida
branca
negra
11
5
parda
10
A cor foi auto-referida e a grande maioria dos nãobrancos referiram-se à “escura” ou morena” sendo
categorizados como negra e parda respectivamente
Idade
Número
%
Escolaridade
Número
%
30-40
7
26
41-50
5
19
1º grau
incompleto
19
65
51-60
5
19
1º grau completo
2
8
61-70
2
8
4
5
19
2 º grau
incompleto
1
71-80
Acima de 80
2
8
analfabeto
4
15
-A maioria das mulheres entrevistadas são donas de casa. Os homens são aposentados
-A renda familiar de grande parte das famílias se concentra em 1 a 2 salários mínimos. Das três pessoas entrevistadas
com renda inferior a um salário mínimo duas apontam como única fonte de renda o Bolsa Família
Profissão
Número
%
Renda
Número
%
Dona-de -casa
13
35
1-2 SM
17
65
Aposentada(o)
7
26
2-3 SM
1
4
Auxiliar de
limpeza
1
4
3-4SM
2
8
Comércio
3
11
Acima de 4 S
2
8
Diarista
2
8
Menos de 1 S
4
15
Situação
conjugal
Número
%
Casado/relação
estável
15
58
Viúvo(a)
4
15
Solteiro(a)
3
11
Separado(a)
4
15
- A situação familiar é variável de 8 a 2 pessoas em
cada domicílio.
-Todas as residências das famílias que
entrevistamos são de alvenaria.
-A prevalência da moradia própria configura o caso
de invasão, tendo em vista que a maioria dos
moradores habita há mais de 15 anos no
Complexo.
Revezes da Busca de uma vida Melhor
•
Procedência
Número
%
Paraíba
9
35
Pernambuco
3
11
Fortaleza
1
4
Espírito Santo
1
4
Rio de Janeiro
7
26
Minas Gerais
3
11
Belém do Pará
1
4
Bahia
1
4
“Naquela época não tinha comida’, passei
muita fome, comia só farinha com água.
Quando eu nasci meu pai olhou para mim e eu
era muito feio, por isto foi embora (rsss) e
minha mãe ficou sozinha para me criar e não
tinha comida. Eu sou guerreiro, por isto
sobrevivi, era para eu ter morrido de fome”
Sílvio, 75 anos, aposentado, por exemplo é
natural de Pernambuco e veio para o RJ com 16
anos
•
•
•
•
•
A procedência dos moradores é
predominantemente da região nordeste (Paraíba
a grande maioria)
sendo que 12 famílias são provenientes da zona
urbana e 7 da zona rural.
O relato predominante dos moradores
provenientes da região nordeste foi a
necessidade de busca de trabalho e melhores
condições de vida.
Igualmente, o fator acesso à saúde também é
extremamente relevante na decisão de partir
para o Rio de Janeiro. Beatriz, 65 anos mora na
comunidade Samora Machel desde que saiu de
Pernambuco com 29 anos:
“Vim por que a minha filha estava doente com
bronquite e lá eu não tinha condição. Morava
distante de Recife, eram três horas de carro. A
gente só ia no médico quando tava morrendo.
Mas os xaropes não estavam mais curando ela.
Tinha que ir para o médico”
Noção de espaço
• Espacial / físico: um território claramente demarcado ou
constituido por certos equipamentos
• Social: Rede de relações sociais que se estende sobre
este território
Redes sociais, sociabilidade e lazer
•
O interesse pelas redes sociais se justificam na medida em que
alguns estudos tentam relacionar as redes sociais a um determinado
padrão de busca médica.
•
A rede social pressupõe um conjunto de pessoas que interagem.
Assim as interações sociais são fundamentais para a compreensão
dos cuidados em saúde.
•
Dos 26 entrevistados a grande maioria (18 entrevistados, 72% )
possuem familiares habitando em Manguinhos estabelecendo uma
rede densa de solidariedade
•
Desta forma, observamos que a maioria dos entrevistados gosta da
comunidade, tem vínculos no local de moradia. Outros familiares, amigos,
tempo de residência e renda influem na sua permanência no local. Além de
configurarem apoio e ajuda em caso de necessidades como as de saúde,
representam também um importante recurso de lazer junto à esta
população marcada pela violência.
•
Em Manguinhos além disso, as residências próximas permitem
sociabilidade entre os vizinhos, o que se configura como a principal
atividade de lazer
Exemplos:
- Mãe de santo Olívia
- Maria: venda
- Márcio, morador na entrada da comunidade Parque Carlos Chagas,
•
TV: noticiários, novelas
•
Rádio:noticiários, programas religiosos
•
Para as donas de casa são atividades de entretenimento durante as tarefas
domésticas e de informação, sobretudo em saúde
•
Quanto à participação nas atividades comunitárias:
-
sete entrevistados referiram freqüentar a reunião da Associação de
Moradores de sua comunidade.
-
Religiosas.
-
Somente duas pessoas participam de atividades no centro de saúde: grupo
da terceira idade e grupo de hipertensos
Itinerários Terapêuticos
• Pluralismo terapêutico: ampla gama de
recursos terapêuticos à disposição da
população, com diferentes explicações
para o sofrimento
• Os remédios caseiros e chás figuram como o
primeiro recurso. Remédios alopáticos:
analgésicos, vacinas
• Raramente busca-se o recurso biomédico diante
dos primeiros sintomas e sinais de doença
• Critério: doenças consideradas leves ou graves
Recursos Religiosos
Religião
Número
%
Católica
11
58
Evangélica
04
21
Testemunha
de Jeová
02
10
Candomblé
01
5
Nega vínculo
religioso
01
5
• Fortes evidências de
sincretismo (católica =>
Evangélica, Testemunha de
Jeová, Umbanda)
• Várias crenças são acionadas
• Recursos religiosos são
complementares à
biomedicina
• Doença espiritual x Doença
material: curadores não
médicos
Recursos à biomedicina: Percursos Urbanos
- Força da cultura biomédica
- Consumo dos serviços de saúde:
Disponibilidade dos serviços
Localização geográfica
Necessidades de Saúde
- Problemas de Saúde mais citados: HAS, DM, cardiopatias, IAM,
AVC, Tireoidopatias, Bronquite, BCP, Problemas oculares e
Problemas de coluna vertebral
•
A busca pelo recurso biomédicos inclui:postos de saúde, emergências ou pronto-socorro,
clínica privada ou convênio, consultórios particulares
•
Os percursos são escolhidos preferencialmente pelos serviços e especialidades
oferecidos, pela experiência de acolhimento de um determinado serviço: certeza de ser
atendido, menor tempo de espera, qualidade do atendimento (resolução do problema e
“ser bem tratado” pelos profissionais de saúde)
•
“Bom médico é o que examina e solicita exames”
“Meu filho tem problema de bronquite e quando ele fica mal eu fico desesperada. Daí vou
na emergência. Lá na emergência eles me dizem: procura o postinho. Que postinho, eu
digo! Isto aqui é uma emergência. Vou na emergência da cidade: Miguel Couto ou Souza
Aguiar. Eu pego quatro condução, mas prefiro, por que lá eu sou atendida, eles fazem
exame e tudo. É longe, mas eu prefiro. O pessoal fala aqui de Bonsucesso, mas eu não
gosto de lá.” (Maria de Fátima, 49 anos, dona-de-casa)
•
Diferentes males => diferentes serviços
“Da coluna eu me trato no Instituto de traumatologia, do coração no Del castilho” (Márcia,
43 anos, auxiliar de limpeza)
•
Estratégia para ser atendido: conflito
“Quando eu levei a minha mãe no hospital não deram um pingo de atenção, mandaram
ela aguardar e passaram na frente um monte de dengue. Eu tive que rodar a baiana. A
gente tem que ser barraqueira, depois diz que é porque a gente é pobre e favelado”
(Márcia, 43 anos, auxiliar de limpeza)
• Locais mais citados: CSEGSF, IAPETEC, Fundão, Clínica de
Fisioterapia Bonsucesso, Clínica São Camilo e São Carlos,
Emergência Del Castilho, UPA Vila João, Hospital da Lagoa,
Hospital Rocha Maia, Hospital Salgado Filho, Hospital Pedro
Ernesto, Hospital do Andaraí, Hospital dos Servidores, Instituto
de Cardiologia e Albano Reis, consultórios particulares e
convênios de empresa.
Relato e percurso de uma
emergência
•
“Mas o que deixou mais a gente preocupada foi que por causa do machucado a
minha mãe começou a inchar. Ela inchou inteira, e a gente sem saber. Ai levou ela
pro hospital, procurando um hospital pra internar ela, não mais por causa da perna,
mas por causa do inchaço. A gente foi ao Fernando Figueira, a gente foi ao hospital
dos servidores. A gente rodou a cidade. Não conseguimos...voltamos pro Andaraí.
Porque agora é só com encaminhamento. No Andaraí, chegou lá não tinha médico
vascular. Eu falei moço, eu não quero um médico vascular, eu quero um
cardiologista, qualquer um que vê esse inchaço da minha mãe. Aí na emergência o
médico pedia pra bater o Raio X do coração. Bateu o Raio X fez todos os exames ai
ele falou assim: “ o problema é que o coração dela ta grande”. Aí deu um remédio a
ela pra ver se baixava a pressão. Ai um colega meu que é segurança da Amil tava
entrando em contato pra ver se conseguia uma internação pra ela em qualquer
hospital. Ai a menina que trabalha na recepção falou assim: “eu posso ajudar? Eu
tenho uns amigos que fizeram prova pra medicina e eu vou entrar em contato com
eles pra ver se consigo”. Aí ela foi, ligou pra gente, que o médico estaria lá no Piquet
Carneiro até 5:30 esperando pela gente. Então a gente saiu do hospital do Andaraí e
fomos direto pro Piquet Carneiro que é o antigo Marechal Rondon. Quando
chegamos lá, o médico examinou, olhou. Já tava com a papelada de internação dela
todinha na mão. Ele falou: “olha, a gente vai ter que amputar a perna dela”.
(Flaviana, dona-de-casa, moradora...)
-
Nestes casos é necessário colocar em prática estratégias apoiandose em trocas, entre-ajuda, redes sociais (principalmente amigos ou
instituições) que podem reforçar o estabelecimento de relações de
dependência e clientelismo
-
Enfim nasce uma tendência que procura transformar os direitos em
privilégios
-
É o que observamos quando a assistência em saúde é percebida
como resultado da “boa vontade” ou do “bom coração” dos
profissionais de saúde
Representações sobre o PSF - Manguinhos
•
PSF: política regional apta a ajudar a população cujas dificuldades de
acesso à saúde são permanentes (MS,1993)
•
Área geograficamente delimitada com equipe básica de saúde,
prioridade APS (para substituir uma ótica de medicina individualizada,
baseada no biológico, para uma voltada para a saúde pública.
•
A prioridade é acordada aos serviços de prevenção, promoção à
saúde e educação em saúde
•
Programas voltados para o pré-natal, puericultura, prevenção do
câncer ginecológico, doenças crônicas (HAS, DM)
•
Uma grande parte da população de Manguinhos tem pouco conhecimento sobre o funcionamento
do PSF: “Não sei se tem aqui”; “Nunca ouvi falar”; “Se o meu médico não estiver, não pode ser
com outro”
•
Conhecedores do PSF, as dificuldades de atendimento são remetidas à macro-estrutura: “Depois
que colocaram o Saúde da Família melhorou muito. O que o governo faz? Só rouba a gente”
•
Referência à Fundação Oswaldo Cruz: “A FIOCRUZ é internacional, era pra ser grande, às vezes
o médicos ficam aguardando sem ter uma sala. O atendimento demora muito.”; “Farmanguinhos
fabrica o remédio...Aí o mesmo remédio você tem que comprar por que não tem no posto”
•
Focalização dos programas: “O preventivo a gente não consegue fazer no posto, a prioridade é
grávida”
•
Em muitos casos o ACS não é reconhecido como promotor de saúde, mas como facilitador do
acesso: “Quando eu quero uma consulta eu procuro ela”
=> Como podemos observar as queixas remetem-se aos problemas gerais e estruturais do PSF, pois
os profissionais individualmente são elogiados
Concluindo....
•
Itinerários Terapêuticos designam um conjunto de projetos, estratégias, discursos e
ações com o objetivo de buscar o alívio das aflições
•
Eles são planejados de acordo com as experiências individuais, familiares e do grupo
social. Contam para isto com as questões estruturais de facilidade de acesso, bem
como as de caráter cultural.
•
População de Manguinhos: Não existe um modelo único de itinerário. As escolhas
são plurais (religiosas, caseiros, serviços de saúde) e complementares. Vários
fatores de ordem situacional e relacional influem nas escolhas terapêuticas
pelo indivíduo doente
•
A pesquisa corrobora outros estudos que mostram como um indivíduo pode
acionar diferentes recursos de cura ao mesmo tempo dentro de uma lógica de
complementaridade. Um exemplo freqüente é a busca concomitante do recurso
biomédico e religioso.
•
Papel da Promoção em saúde é auxiliar na reflexão que o acesso aos serviços de
saúde é um Direito.
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Os Itinerários terapêuticos da população da região de Manguinhos