SANDRA REGINA GUIMARÃES
O IMPÉRIO POSITIVISTA E A VINGANÇA DO IMAGINÁRIO :
O ENTRE-LUGAR DO DISCURSO FICCIONAL EM BALZAC E ZOLA
Dissertação apresentada ao Curso de Pós
graduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense,
como
requisito
parcial
para
obtenção do Grau de Mestre. Área de
Concentração: Literaturas Francófonas.
Orientadora: Profa. Dra. MARIA ELIZABETH CHAVES DE MELLO
Niterói
2006
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SANDRA REGINA GUIMARÃES
O IMPÉRIO POSITIVISTA E A VINGANÇA DO IMAGINÁRIO :
O ENTRE-LUGAR DO DISCURSO FICCIONAL EM BALZAC E ZOLA
Dissertação apresentada ao Curso de Pós
graduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense,
como
requisito
parcial
para
obtenção do Grau de Mestre. Área de
Concentração: Literaturas Francófonas.
Aprovada em dezembro de 2006
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Elizabeth Chaves de Mello (orientadora)
UFF
_________________________________________________________________________
Profa. Dra. Stela Maria Sardinha Chagas de Moraes
UERJ
_________________________________________________________________________
Prof. Dr.Roberto Acízelo Quelha de Souza
UFF/UERJ
_________________________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Ruth Machado Fellows
Cap-UERJ
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. José Luiz Jobim
UFF/UERJ
Niterói
2006
2
Àquele que me ensiou a acreditar que o
impossível só é impossivel até que o tornemos
possível. A meu melhor amigo, meu PAI.
3
AGRADECIMENTO ESPECIAL
À minha querida orientadora que sempre teve a
dose exata de firmeza e ternura, paciência e
sabedoria para me fazer superar aquele que
poderia ter sido o maior e o pior dos meus
algozes, nesse longo caminho: eu mesma.
4
AGRADECIMENTOS
A todos os meus professores, pela generosidade com que partilharam o seu conhecimento.
Aos meus colegas da UFF, que me receberam com tanto carinho.
À querida amiga e eterna professora Tania Maria Costa de Abreu e Silva, pela inspiração
À Ana Lúcia Morais, que me ajudou a chegar até aqui.
Ao meu irmão, pelo incentivo.
À minha mãe, pela paciência
A todos os amigos, pelo carinho com que souberam entender a minha ausência.
5
SUMÁRIO :
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS...........................................................................p.10
2. INTRODUÇÃO ..................................................................................................p.14
3. CAPÍTULO I :
ENTRE A MODERNIDADE E A MODERNIZAÇÃO: A TRILHA LITERÁRIA
DE BALZAC E ZOLA : .....................................................................................p.29
4. CAPÍTULO II
A OBSESSÃO MIMÉTICA E O CONTROLE DO IMAGINÁRIO EM BALZAC E
ZOLA : .................................................................................................................p.62
5. CAPITULO III
A VINGANÇA DO IMAGINÁRIO : LE PÈRE GORIOT E AU BONHEUR DES
DAMES : A TEORIA NA PRÁTICA SERIA OUTRA? .......................................p.88
6. (IN)CONCLUSÃO..............................................................................................p.138
7. BIBLIOGRAFIA..................................................................................................p.142
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RESUMO
Este trabalho apresenta um estudo crítico e comparativo das teorias desenvolvidas por
Honoré de Balzac e Emile Zola, no Prefácio da Comédia Humana e no Romance
Experimental, textos em que os autores, visando transformar suas obras em reproduções
da sociedade e de suas doenças e a atribuir um caráter científico à Literatura, negam,
sistematicamente, tanto a subjetividade quanto o caráter ficcional inerentes a ela.
Partiremos do momento histórico e literário em que nascem essas teorias, para analisar
quais as justificativas encontradas por cada autor, para estabelecer uma ligação entre a
Ciência, a História e a Literatura. Tentaremos compreender como vivenciaram, na prática,
os princípios teóricos que nortearam a edificação da Comédia Humana e a saga dos
Rougon-Macquar, para, finalmente, captar os momentos em que a subjetividade e os
elementos do imaginário emergem nas entrelinhas dos textos teóricos e na ficção, nas
obras desses dois escritores. Propomo-nos, portanto, questionar o lugar do ficcional, da
literalidade e da subjetividade, no auge do Realismo e do Naturalismo, momento em que a
Literatura se dedicava acima de tudo a “imitar o real.”
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RÉSUMÉ
Ce travail présente une étude critique et comparative des théories développées par Honoré
de Balzac et Emile Zola, dans la
Préface de la Comédie Humaine et dans le Roman
Experimental. Dans ces deux textes, leurs auteurs, visant à rendre leurs oeuvres des
reproductions de la société et de ses maladies, et à attibuer un statut scientifique à la
littérature, renient, de façon systématique, aussi bien la subjectivité que le statut du
fictionnel qui lui sont inhérents. Nous aurons comme point de départ le moment historique
et littéraire où surgissent ces théories, pour vérifier les explications données par chacun des
deux auteurs, pour établir une liaison entre la Science, l’Histoire et la Littérature. Nous
essayerons de comprendre comment ils ont mis en pratique les principes théoriques qui
ont guidé la construction de la Comédie Humaine et la saga des Rougon-Macquart, pour
saisir les moments où la subjectivité et les éléments de l’imaginaire émergent dans les
interlignes des textes de fiction des deux écrivains. Nous nous proposons, donc, de mettre
en question la place du fictionnel, de la littéralité et da subjetivité, à l’apogée du Réalisme
et du Naturalisme, quand la Littérature se tournait vers l’ « imitation du réel ».
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“En littérature, le vrai n'est pas concevable. Tantôt par la
simplicité, tantôt par la bizarrerie, tantôt par la précision trop
poussée, tantôt par la négligence, tantôt par l'aveu de choses plus ou
moins honteuses, mais toujours choisies, — aussi bien choisies que
possible, — toujours, et par tous moyens, qu'il s'agisse de Pascal, de
Diderot, de Rousseau ou de Beyle et que la nudité qu'on nous
exhibe soit d'un pécheur, d'un cynique, d'un moraliste ou d'un
libertin, elle est inévitablement éclairée, colorée et fardée selon
toutes les règles du théâtre mental. Nous savons bien qu'on ne se
dévoile que pour quelque effet.”
Paul VALÉRY,1957
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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS :
Muito se tem discorrido sobre as escolas Realista e Naturalista, que pretendem “imitar o
real”, transformando suas obras em reproduções da sociedade e de suas doenças. Este
trabalho pretende pesquisar como, por baixo dessa camada “cientificista” e “realista”,
Balzac e Zola, dois grandes representantes desses movimentos na França, deixam escapar,
tanto nas entrelinhas dos seus textos “teóricos”, quanto nas suas obras de ficção, elementos
que nos permitem questionar o lugar do ficcional, da literariedade e da subjetividade nas
suas obras.
Em O Controle do Imaginário, Luiz Costa Lima nos lembra que, a partir do fim da Idade
Média, momento em que a razão inicia o seu império no ocidente, o discurso ficcional
começa, paulatinamente, a perder status para o discurso histórico, seja em nome da verdade
historiográfica, seja em nome da moral cristã. Essa repulsa, entretanto, passa de forma
quase imperceptível pelos humanistas do Renascimento e da Contra-Reforma, que
continuavam a atribuir notoriedade a todo aquele que soubesse falar e escrever bem. Salvo
pela retórica, o poeta ainda teria pela frente o desafio de assegurar a sua existência dentro
dos valores e da moral cristã.
Considerado como a primeira expressão máxima do
individualismo e, portanto, da subjetividade inerente a este, o Renascimento veria crescer a
necessidade de diferenciação das formas discursivas, ou seja, o discurso interessado em
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declarar a verdade, daquele que deleitava sem instruir: o histórico, do fictício. Necessidade
essa que foi estimulada, sobretudo, por dois motivos: a importância concedida à instância
subjetiva e o desenvolvimento da imprensa. Nasce, então, o conflito entre as poéticas
escolástica e humanista, colocando, de um lado, os religiosos ortodoxos que não admitiam
o poético senão como manifestação didática, e de outro, os humanistas que, apoiados numa
falsa interpretação da Metafísica de Aristóteles, defendiam a poesia como forma de acesso
ao divino. Embora adotassem posições divergentes, tanto os escolásticos quanto os
humanistas não cogitavam questionar o cristianismo; ao contrário, debatiam a possibilidade
de servi-lo, ou não, de duas maneiras distintas: como escritor ou como propagador da fé.
Além disso, ambas as posições consideravam a nobreza da linguagem uma condição
indispensável para a obra que pretendiam realizar. Portanto, embora pareça paradoxal que o
individualismo característico do período renascentista possa ter se amoldado ao
Classicismo e ao formalismo cristãos, a conciliação entre os pensamentos eclesiásticos e
humanistas tornou-se possível, a partir do momento em que a imitatio dos antigos foi eleita
como critério ímpar e a palavra poética foi relegada a uma posição a priori inferior. Dessa
maneira, evitava-se o questionamento das verdades teológicas e a subjetividade – bem
como um dos seus discursos possíveis, o ficcional – era previamente controlada e sujeita a
modelos legitimados:
Deuses e figuras pagãs podiam continuar a transitar nas obras dos artistas
cristãos desde que suas obras fossem de tal modo afeiçoadas que
permitissem uma leitura domesticante. O maravilhoso, o extravagante,
poderiam passar desde que fosse admissível uma grade controladora.
(COSTA LIMA, 1986, p.44)
Diante desse quadro, o escritor “moderno”, que não é mais nem um clérigo, nem um
erudito, mas o escritor profissional que emergia no século XVI, deveria aprender a
controlar a subjetividade e o imaginário, de acordo com os valores universais do belo e do
verdadeiro.
No final do século XVII, os valores universais até então afirmados começam a ser postos
em dúvida, dando indícios da crise que se estenderia ao longo do século XVIII. À medida
que a religião perdia a sua força, o pensamento filosófico sedimentou a idéia de que o nosso
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saber não derivava senão das sensações. A falência da ordem clássica torna-se, então,
inevitável, levando à contestação da história sacra e provocando um efeito imediato, tanto
na expressão literária quanto na reflexão à qual ela se dedicava. O recolhimento em si,
característico do período romântico, estimularia o caráter auto-reflexivo da poesia e a
liberação do imaginário.
Entretanto, o florescimento das idéias iluministas, o desenvolvimento científíco e
tecnológico e o nascimento das ciências naturais que marcam o final do século XVIII e o
início do século XIX, conduziriam o ocidente para uma nova era, caracterizada pelo
predomínio da razão. O mundo das idéias, dominado então pela ordem capitalista, passa a
reagir contra a subjetividade romântica e, através de concepções empiristas e positivistas do
mundo, irá reafirmar o aparente e negar o essencial.
A Filosofia positivista, base das escolas Realista e Naturalista, acreditava que a vida
espiritual autêntica não é uma vida interior, mas a atividade científica que se desenvolve
através do tempo. Augusto Comte afirmava que o pensamento humano, em seu esforço
para explicar o universo, passou sucessivamente por três estados distintos: o teológico ou
fictício, o metafísico e o positivo.
No primeiro estado, o teológico, o mundo e a
humanidade teriam sido explicados através dos deuses e dos espíritos e os fenômeno s
naturais eram atribuídos a causas e forças divinas; no segundo, o estado metafísico, os
fenômenos eram explicados através das essências, de causas finais e de outras abstrações;
e, finalmente, no terceiro estado, o estado positivo, considerado por Comte como a idade
adulta da humanidade, o homem procurava conhecer e explicar a natureza por meio da
observação e da experimentação, buscando as leis que a regem. Nesse estado, não se
buscam, entretanto, leis gerais além do que é permitido pela experimentação ou raciocínio
matemático. Tudo o que fica além desse domínio é metafísico e, por conseguinte, não tem
valor. Tendo por método dois critérios, o histórico e o sistemático, Comte concluiu que
outras ciências, antes da Sociologia, haviam atingido a positividade: a Matemática, a
Astronomia, a Física, a Química e a Biologia e, por isso, ele se dispôs a usar (em sua nova
ciência, chamada de física social e, posteriormente, Sociologia) da experimentação, da
comparação, da classificação e da filiação histórica como método para a obtenção dos
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dados reais. Ao longo do século XIX, tanto a História quanto a Literatura iriam incorporar
os preceitos da Filosofia Positivista, o que levaria realistas e naturalistas a aderirem à tese
de que o estado teológico e o metafísico das ciências tinham em comum a predominância
da imaginação sobre a observação e, para se elevarem ao estágio positivo das ciências
exatas, as ciências humanas deveriam abandonar a promiscuidade com o aleatório, com a
subjetividade, com o imaginário.
Paralelamente, o determinismo de Hyppolite Taine,
também incorporado por essas escolas, explicava todas as ocorrências humanas e sociais
pelo condicionamento do indivíduo ao meio, à raça ou ao fato histórico, o que tornava o
homem presa do ambiente em que vive ou viveu e da hereditariedade.
Seduzido por esses ideais, o escritor do século XIX passa, então, a desejar que a Literatura
também assuma um caráter científico e, para tanto, decide negar a subjetividade inerente a
ela e impor um veto à ficção. Desse desejo, nascem o Realismo e o Naturalismo, duas
estéticas que
modificariam radicalmente as estruturas do romance moderno e cujos
reflexos são sentidos, ainda hoje, na literatura contemporânea.
13
2 INTRODUÇÃO :
Com o advento do Iluminismo, o escritor começa a se interessar por todos os assuntos e a
desenvolver o desejo de se aprofundar em conhecimentos especificamente científicos.
Apesar de uma nova perda do contato com o real provocada pela comoção romântica, que
se segue à Revolução Francesa, Balzac tenta, num momento em que ainda predominam o
subjetivismo e o sentimentalismo românticos, estabelecer um diálogo entre a Literatura, a
História e a Ciência, através do edifício da Comédia Humana, obra que buscava assentarse nas “sólidas bases” da História Natural. O aspecto documental da literatura realista, que
procurava, sobretudo, descrever minuciosamente a realidade, será reforçado por escritores
como Flaubert e os irmãos Goncourt. Para retratar o real com a mais rigorosa exatidão, os
romancistas não mais se contentam em observar e passam a se documentar de modo
sistemático, lendo textos de Ciências Naturais, de Fisiologia, de Medicina. Os tratados de
Darwin e de Claude Bernard começam, então, a exercer um extraordinário fascínio sobre os
literatos, entre eles Zola, que, partindo dos princípios do Realismo, tenta fazer da Literatura
uma tentativa de experimentação do mundo real.
Com o objetivo de desvelar o conteúdo subjetivo, lírico e ficcional que se esconde por
baixo da camada cientificista e historiográfica que envolve a Literatura Realista e
Naturalista, propomo-nos a começar nosso estudo pela análise do Prefácio da Comédia
14
Humana, no qual Balzac lança o desafio que norteará toda a organização da sua obra “ Si
Buffon a fait un magnifique ouvrage en essayant de représenter dans un livre l’ensemble de
la zoologie, n’y avait-il pas une oeuvre de ce genre à faire pour la Société?”1 (BALZAC,
1842, p.191). Num primeiro momento, procuraremos refletir sobre a tentativa do escritor
de configurar seus romances, a partir de um inventário das espécies sociais, semelhante ao
que foi feito por Buffon sobre as espécies animais. Balzac se propõe a descrever, de
maneira minuciosa, todas as categorias sociais, as diversas classes sócio-econômicas, todas
as profissões e os lugares por onde transitam seus personagens (Paris, a província, o
campo), a rua, a casa, a roupa e os hábitos, além do contexto histórico no qual eles estão
inseridos. Tencionamos também refazer o percurso que liga o historiador ao sociólogo. Em
seu prefácio, o romancista chega a personificar a Sociedade Francesa, referindo-se a ela
como o historiador e a si mesmo como secretário deste. Um secretário que, ao fazer o
inventário dos vícios e das virtudes humanas, estaria escrevendo a parcela da História
esquecida pelos historiadores :
La société française allait être l’historien, je ne devais être que le secrétaire.
En dressant l’inventaire des vices et des vertus, en rassemblant les
principaux faits des passions, en peignant les caractères, en choisissant les
événements principaux de la Société, en composant des types par la réunion
des traits de plusieurs caractères homogènes, peut-être pouvais-je arriver à
écrire l’histoire oubliée par tant d’historiens, celle des moeurs. 2 ( BALZAC,
1842, p.194)
Serão, ainda, objetos do nosso estudo a ambição balzaquiana de ir além da descrição. Mais
do que pintar um quadro perfeito da espécie humana, Balzac desejava compreender as
engrenagens e as leis que regiam a sociedade, a fim de que suas descrições pudessem ser
acompanhadas de uma explicação. Ele examina, então, à maneira de Geoffroy Saint1
Se Buffon fez uma obra magnífica ao tentar representar em um livro o conjunto da zoologia, não haveria
uma obra desse mesmo gênero a ser feita para a sociedade ? (tradução nossa)
2
A sociedade francesa iria ser o historiador, eu deveria ser somente o secretário. Redigindo o inventário dos
vícios e das virtudes, reunindo os principais feitos das paixões, pintando os caracteres, escolhendo os
acontecimentos principais, compondo tipos a partir da reunião dos traços de diversos caracteres homogêneos,
talvez eu pudesse chegar a escrever a História esquecida por tantos historiadores, a história dos costumes.
(tradução nossa)
15
Hilaire, as diversas camadas da sociedade sob todos os ângulos – filosófico, psicológico,
moral, político, econômico, social – e faz com que cada uma das partes de sua obra se
dedique a explorar um aspecto em particular.
Esse processo se assemelha aos caminhos percorridos por Zola na elaboração da teoria
científico- literária que norteia a construção da saga dos Rougon-Macquart . Em nossa
análise, buscaremos refletir sobre as bases encontradas pelo autor para atribuir um caráter
científico à Literatura. Para estabelecê- las ele parte do seguinte questionamento : “Avant
tout, la première question que se pose est celle-ci : en littérature, où jusqu’ici l’observation
paraît avoir été seule employée, l’expérience est-elle possible?”3 (ZOLA, 1880, p.260).
Já nas primeiras linhas de O Romance Experimental, Zola revela a fonte de suas reflexões :
a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental, do fisiólogo francês, Claude Bernard.
Da mesma forma que Bernard, o escritor pensava ser possível a adequação do rigor
metodológico, empregado nas ciências dos corpos brutos, às ciências dos corpos vivos e,
por conseguinte, às dos homens. Indo ainda mais longe, o romancista chega a prever o dia
em que a ciência será capaz de encontrar o determinismo das manifestações cerebrais e
sensuais do ser humano. Como Bernard utilizou esse raciocínio para elevar a medicina – até
então considerada
uma ciência empírica – à categoria de ciência experimental, Zola
tencionava fazer o mesmo pela Literatura. Assim, seu objetivo literário passa a ser
conhecer o determinismo dos fatos sociais para poder dirigi- los. Por considerar que a
experiência era o único critério válido para a obtenção dos resultados que almejava, passa a
defender a tese de que o escritor, assim como o cientista, deveria abster-se de qualquer
capricho ou crença pessoal, fossem elas religiosas, filosóficas ou mesmo científicas, a fim
de que somente a autoridade dos fatos observados prevalecesse. Defensor ardoroso das
teorias evolucionistas de Charles Darwin e discípulo convicto de Hippolyte Taine – para
quem o homem seria um produto do meio, da raça e do momento histórico em que vive –
Zola parte dos preceitos científicos do primeiro e filosóficos do segundo para propor um
novo papel para o escritor. Observador-experimentador, o romancista naturalista deveria
3
Antes de mais nada, a primeira questão que se coloca é esta: em Literatura – onde até aqui apenas a
observação parece ter sido empregada – a experiência é possível.
16
redigir a ata de uma experiência, conceber uma intriga, na qual as personagens provem,
pelo seu comportamento, que a sucessão dos fatos é conforme ao determinismo dos
fenômenos estudados e descrever o mecanismo das perturbações cerebrais e sensuais que
comprometem a saúde do corpo social. Em outras palavras, ele defende que o papel do
escritor é fazer uma experiência para “mostrar” e, a partir daí, caberá à sociedade continuar
produzindo esse fenômeno, ou não, conforme seu resultado seja útil ou perigoso.
Finalmente, com o objetivo de verificar como Balzac e Zola vivenciam os princípios
teóricos que legitimaram a edificaç ão da Comédia Humana e da saga Des RougonMacquart e, assim, estabelecer uma dialética entre os pressupostos teóricos realistas e
naturalistas e a literatura que floresce a partir dessas estéticas, selecionamos os romances
Le Père Goriot, de Balzac, e Au Bonheur des Dames, de Zola, para ilustrar nossa análise.
Nossa escolha baseou-se no fato de que os dois romances incorporam plenamente os
principais preceitos da literatura cientificista e historiográfica imaginada por seus autores,
além de sintetizarem, com maestria, a obsessão mimética e o ideal positivista
que
nortearam a obra de Balzac e de Zola.
No prefácio da Comédia Humana, escrito em 1842, Balzac explica a origem e o plano que
tinha em mente para traçar um quadro perfeito da sociedade e do homem de seu tempo,
com tudo aquilo que ele possuía de bom e de mau, de vício e de virtude. Consciente da
ousadia do seu projeto – pintar entre duas e três mil figuras que fossem representativas de
uma época, de uma geração – ele conclui que, para descrever um número tão grande de
tipos humanos, teria que dividi- los em quadros, ou, até mesmo, em galerias. Diante disso,
ele anuncia uma classificação sociológica para sua obra semelhante às classificações
zoológicas feitas por Buffon : cenas da vida privada, de província, parisiense, política,
militar e do campo. Esse conjunto foi reunido com o nome de Estudo dos costumes e, ao
lado dos Estudos Filosóficos e dos Estudos Analíticos, formam o conjunto da Comédia
Humana.
O projeto Balzaquiano nasce do desejo do escritor de estabelecer uma comparação entre os
seres humanos e as espécies animais, baseada na obra de Buffon, naturalista francês que
17
tentou classificar, em um livro, o conjunto das espécies animais. Discípulo de Locke,
Buffon era defensor da razão humana e do poder do entendimento, seu objetivo era
descobrir as verdadeiras leis da natureza. Ele acreditava que os seres vivos eram demasiado
complexos para serem classificados a partir de uma única característica. Por isso, não se
propôs a simplesmente descrever e nomear as diversas espécies de acordo com o seu
gênero, mas a anotar sistematicamente, para cada indivíduo analisado, o seu meio ambiente,
história e hábitos. Reunindo espécies fisiologicamente semelhantes, mas com hábitos e
habitats diferentes, ele constitui diferentes famílias, partindo de uma unidade biológica.
Buffon conclui que o povoamento inicial da terra teria sido feito por um certo número de
espécies, as quais teriam sofrido uma sucessão de variações adaptativas, de acordo com as
condições geográficas e a alimentação do local para onde teriam migrado. Essa variação
seria a conseqüência das sucessivas degenerações da espécie inicial, ou seja, ele possuía
uma visão transformista do mundo natural. Da mesma maneira que Buffon, Geoffroy SaintHilaire era defensor da teoria da transformação dos seres vivos ao longo do tempo. Para o
naturalista, cada grupo de seres vivos respondia a um plano de organização único,
modificado ao longo dos séculos pelo meio ambiente. Suas idéias evolucionistas, próximas
às de Lamarck, iriam conduzi- lo a afrontar, na academia de ciências, o fixismo de Curvier,
que considerava que uma vez surgidas, as espécies se mantinham inalteradas ao longo do
tempo.
Partidário das teorias transformistas, Balzac defendia a tese de que, assim como no reino
animal, a existência de diferentes tipos humanos era uma conseqüência do meio em que
cada indivíduo se desenvolve e da sociedade com a qual ele é obrigado a interagir e a se
adaptar. Convencido da semelhança entre a sociedade e a natureza, ele incorpora as teorias
de Buffon e Saint-Hilaire ao seu prefácio :
Il n’y a qu’un animal. Le créateur ne s’est servi que d’un seul et même
patron pour tous les êtres organisés. L’animal est un principe qui prend sa
forme extérieure, ou, pour parler plus exactement, les différences de sa
forme, dans les milieux où il est appelé à se développer. Les Espèces
Zoologiques résultent de ces différences. 4 (BALZAC, 1842, p.191).
4
Só existe um animal. O criador se serviu de um padrão único e idêntico para todos os seres organizados. O
animal é um princípio que adquire sua forma exterior, ou, para falar com mais exatidão, as diferenças da sua
18
Entretanto, como o objetivo do romancista era o de representar, através de sua obra, o
conjunto dos seres humanos, ele prevê que seu projeto implicaria em uma tarefa bem mais
árdua do que a realizada por Buffon :
Enfin, entre les animaux, il y a peu de drames, la confusion ne s’y met
guère; ils courent sur les uns aux autres, voilà tout. Les hommes courent
bien aussi les uns sur les autres; mais leur plus ou moins d’intelligence rend
le combat autrement compliqué. [...] Buffon a trouvé la vie excessivement
simple chez les animaux. L’animal a peu de mobilier, il n’a ni arts ni
sciences; tandis que l’homme, par une loi qui est à rechercher, tend à
représenter ses moeurs , sa pensée et sa vie dans tout ce qu’il approprie à
ses besoins.5 (BALZAC, 1842, p.192)
Partindo dessas considerações, percebemos que, embora o escritor se propusesse a edificar
uma obra essencialmente científica, em determinados momentos, a percepção de que a
subjetividade é inerente ao ser humano parece estar implícita na concepção do projeto.
Ainda assim, ele se propõe a ser o copista da sociedade de seu tempo e a escrever a História
esquecida pelos historiadores, a de todos os tipos humanos que fizeram parte da sociedade
francesa no período que vai da Restauração à Monarquia de julho. Consciente de que seu
objetivo só poderia ser alcançado através de um realismo minucioso e exaustivo, de uma
descrição metodicamente estruturada, erguida a partir de um sistema coerente e comparável
às tabelas científicas que tanto o fascinavam, Balzac se entrega à reprodução rigorosa da
realid ade , acreditando que só assim um escritor poderia se tornar o pintor dos diversos
tipos humanos, o contista dos dramas da vida íntima, o arqueólogo do mobiliário social, o
classificador das profissões, enfim, um registrador do bem e do mal. Mas seu propósito
consistia em ir além do simples registro. Balzac desejava estudar as razões ou a razão dos
resultados sociais, surpreender o sentido escondido nesse imenso arsenal de figuras
forma, nos meios em que ele é convidado a se desenvolver. As espécies zoológicas resultam dessas
diferenças. (tradução nossa)
5
Enfim, entre os animais existem poucos dramas, a confusão se estabelece raramente, eles atacam uns aos
outros, e isso é tudo. Os homens também atacam uns aos outros; mas a sua maior ou menor inteligência torna
o combate complicado.[...] Buffon achou a vida excessivamente simples entre os animais. O animal possui
pouco mobiliário, ele não tem nem artes nem ciências, enquanto o homem, por uma lei que deve ser
pesquisada, tende a representar seus costumes, seu pensamento em tudo aquilo que ele adequa às suas
necessidades.(tradução nossa)
19
humanas, de paixões e de acontecimentos, além de meditar sobre os princípios naturais e
verificar em que pontos as sociedades se distanciam, ou se aproximam, da regra eterna do
verdadeiro e do belo. “Ainsi depeinte, la societé devait porter avec elle la raison de son
mouvement.” 6 (BALZAC, 1842, p.195)
Balzac pauta sua obra sobre dois pilares, a monarquia e o cristianismo, que seriam, segundo
o escritor, os únicos suportes capazes de controlar os instintos e as aptidões humanas, tanto
para o bem quanto para o mal. Ele reprova a teoria de Rousseau, afirma que a sociedade,
longe de corromper o homem, tende a aperfeiçoá-lo, a torná- lo melhor e atribui ao
interesse a responsabilidade pelo desenvolvimento das tendências negativas no ser humano.
Com base nessas premissas, ele define qual deveria ser o papel social do romancista e da
literatura.
No caso da Literatura, pondera que cabe a ela o dever de ir além da História e de se tornar o
leimotiv para a evolução humana. Quanto ao romancista, acredita que seu papel consiste
em levar as pessoas a refletirem ainda que, para isso, corra o risco de ser tachado de imoral:
Les écrivains qui ont un but, fût-ce un retour aux principes qui se trouvent
dans le passé par cela même qu’ils sont éternels, doivent toujours déblayer
le terrain. Or, quiconque apporte sa pierre dans le domaine des idées,
quiconque signale un abus, quiconque marque d’un signe le mauvais pour
être retranché, celui-là passe toujours pour être immoral.7 (BALZAC, 1842,
p.198)
Assim, a análise das conseqüências sofridas pelos personagens em função de seus atos é
que conduziriam o leitor no momento de suas escolhas pessoais :
[...] dans le tableau que j’en fais, il se trouve plus de personnages vertueux
que de personnages répréhensibles. Les actions blâmables, les fautes, les
6
Assim pintada, a sociedade devia trazer consig o a razão de seu movimento
7
Os escritores que têm um objetivo, mesmo que seja um retorno aos princípios que se encontram no passado
e que por isto mesmo são eternos, devem sempre desobstruir o caminho. Ora, quem quer que traga sua
contribuição para o domínio das idéias, quem quer que sinalise um abuso, quem uqe marque com um sinal o
mal a ser subtrído, esse é sempre considerado imoral. (tradução nossa)
20
crimes, depuis les plus légers jusqu’aux plus graves, y trouvent toujours
leur punition humaine ou divine, éclatante ou secrète.8 (BALZAC, 1842,
p.199)
A obsessão balzaquiana pela verdade não consegue, entretanto, dissimular a enorme
capacidade do escritor para transfigurar a realidade. Na segunda página do livro “Le Père
Goriot”, ele afirma ser aquela uma história verdadeira e, interagindo com o leitor, convidao a reconhecer os elementos do drama ali descrito dentro de si, ou dentro do próprio
coração. Mas, nem assim, o romance consegue omitir o poder do imaginário de seu autor.
Movido pela paixão, Balzac deixa seus sentimentos intervirem durante toda a narrativa.
Obcecado pela verdade, mas consciente do poder da sua imaginação, ele acaba se traindo,
ao traçar os parâmetros do que seria o seu ideal de ficção: “uma augusta mentira, verdadeira
nos detalhes”:
L’histoire n’a pas pour loi, comme le roman, de tendre vers le beau idéal.
L’histoire est ou devrait être ce qu’elle fut; tandis que le roman doit être le
monde meilleur, a dit Mme Necker , un des esprits les plus distingués du
dernier siècle. Mais le roman ne serait rien si, dans cet auguste mesonge, il
n’était pas vrai dans les détails. 9 ( BALZAC, 1962, p.200)
Escrito em 1834, o romance “Le père Goriot” pode ser considerado um símbolo dos
anseios balzaquianos. Em meio a inúmeras intrigas envolvendo mulheres adúlteras,
assassinatos, desejos ocultos, dissimulações e paixões obsessivas numa sociedade
desumana e regida pelo poder do dinheiro, desenvolve-se um enredo simples: Balzac narra
a história de um pai, arruinado e abandonado pelas próprias filhas, mas assistido por um
jovem estudante que faz dessa experiência o elemento principal da sua educação.
Enquadrado pelo autor entre as Cenas da vida privada, trata-se de um romance de
aprendizagem. Ávido por desvendar os segredos que lhe abririam as portas da sociedade,
8
No quadro que eu faço, encontram-se mais personagens virtuosos que repreensíveis. As ações censuráveis,
as faltas, os crimes, dos mais leves aos mais graves, nele encontram sempre sua punição humana ou divina,
reluzente ou secreta.( tradução nossa)
9
A História não tem por lei, como o romance, inclinar-se na direção do belo ideal. A História é, ou deveria
ser, o que ela foi, enquanto o romance deve ser o mundo melhor, disse Madame Necker, um dos espíritos
mais distintos do último século. Mas o romance não seria nada se, nesta augusta mentira, ele não fosse
verdadeiro nos detalhes. (tradução nossa)
21
Eugène de Rastignac tem, ao longo de sua trajetória, três iniciadores principais: a
viscondessa de Beauséant, a fada madrinha; Goriot, um Cristo da paternidade e Vautrin, a
encarnação do diabo. Através desse romance, o escritor nos incita a refletir sobre a
evolução conseqüente do amadurecimento e da perda da inocência. O jovem provinciano,
que chega a Paris ingênuo e sem armas para confrontar uma sociedade impiedosa com
todos aqueles que não dominam suas regras, chega ao final da trama como um homem
maduro, e com malícia suficiente para desafiar a cidade que lhe serviu de escola. Rastignac
se transformou em um homem cuja personalidade é o resultado das diversas lições que
recebeu e do me io que o acolheu. O drama se passa entre 1819 e 1820, e a sociedade da
Restauração se distribui em territórios dentro de Paris. Uma pequena distância separa o
fauboug Saint-Germain e a pensão Vauquer e, no entanto, existe um abismo entre eles. Ao
criar personagens intermediários entre esses dois mundos, Balzac leva o leitor a ponderar
sobre a segregação social e os critérios extremamente arbitrários sobre os quais ela repousa.
Le père Goriot mostra justamente que, no momento em que as máscaras caem, mesmo em
uma sociedade extremamente hierarquizada, a verdade funde dois mundos, a princípio
separados por barreiras intransponíveis. Além disso, o romance faz um inventário de
situações absolutamente primitivas que afloram o instinto “animal” inerente a todo ser
humano. Todos os personagem balzaquianos são movidos pela paixão, uma paixão quase
sempre desmedida, desregrada e que, levada a extremos, transforma-se em doença, vício,
loucura. A narrativa gira em torno de dramas pessoais, da perniciosidade das relações
humanas e das disputas pelo poder e pelo dinheiro, todos descritos de forma crua, mas, nem
por isso, menos subjetiva. Enfim, Balzac se propõe a esmiuçar a sociologia das grandes
cidades e convida o leitor a se reconhecer nesse percurso :
Ainsi ferez-vous, vous qui tenez ce livre d’une main blanche, vous que vous
enfoncez dans un moelleux fauteuil en vous disant: Peut-être ceci va-t-il
m’amuser. Après avoir lu les secrètes infortunes du père Goriot, vous
dînerez avec appétit en mettant votre insensibilité sur le compte de l’auteur,
en le tachant d’exagération, en l’accusant de poésie. Ah! Sachez-le: ce
drame n’est ni une fiction, ni un roman. “All is true”, il est si véritable que
chacun peut en reconnaître les éléments chez soi, dans son coeur peutêtre.10 ( BALZAC, 1971, p. 22)
10
Assim fará o leitor, que segura este livro com as mãos limpas, leitor recostado numa poltrona macia
dizendo a si mesmo : “ talvez isto me divirta”. Após ler os infortúnios secretos do pai Goriot, jantará com
apetite, atribuindo sua insensibilidade ao autor, taxando-o de exagerado, acusando-o de poesia. Mas que fique
22
A tentativa da Literatura de compreender as engrenagens sociais, de diagnosticar a força
motriz que conduz o homem para o bem ou para o mal, seria sentida ainda na geração
seguinte. Além de se considerar o legítimo herdeiro e continuador do Realismo, Zola se
propunha também a aperfeiçoar a estética Balzaquiana, fazendo com que a Literatura se
pautasse pelos mesmos métodos cientificistas que marcaram o seu século. O Romance
Experimental nasce, portanto, do desejo do escritor de atribuir à Literatura o mesmo status
de ciência experimental que Claude Bernard acabara de conseguir para a Medicina. Com o
objetivo de vivenciar, na prática, o seu novo “método” literário, ele tenta empregar todos os
preceitos teóricos desenvolvidos no Romance Experimental para contar a saga dos RougonMacquart , um conjunto de vinte livros em que o escritor, a partir da árvore genealógica de
uma família, narra os dramas e as paixões vivenciadas por seus descendentes, durante o
Segundo Império.
Através da trajetória dos Rougon-Macquart, Zola nos oferece ainda um quadro minucioso
da sociedade francesa e das principais transformações econômicas, sociais, políticas e
científicas que fizeram a história do século XIX. Assim como na obra de Balzac, seus
romances se desenrolam tanto nas grandes cidades, quanto na província e no campo, ainda
que Paris, um dos cenários preferidos do autor, tenha
servido de palco a diversos
romances. De acordo com os preceitos Naturalistas seguidos pelo escritor, a escolha do
cenário era determinante, pois, como discípulo de Taine, Zola estava, ao eleger a paisagem,
propondo-se a observar, por exemplo, a influência das modificações radicais empreendidas
na capital francesa pelo então prefeito, o Barão de Haussmann, do florescimento do
capitalismo, do nascimento da publicidade,
das grandes especulações financeiras, da
revolução comercial e do desenvolvimento dos grands magasins, nos personagens que
introduz nesse universo. Enfim, foi o vasto contexto histórico do Segundo Império, que
permitiu ao escritor, não só espelhar o mundo financeiro e a sociedade burguesa parisiense,
mas também, retratar uma classe social até então esquecida pela Literatura francesa, a
classe operária. Selecionado o palco para o desenrolar da história, faltava ainda, dirigir e
claro: este drama não é ficção ao romance. All is true, é tão verdadeiro, que todos poderão reconhecer-lhe os
elementos dentro de si, quem sabe em seus corações.
23
configurar a trama. Para tanto, Zola faz uso dos preceitos enunciados no Romance
experimental, tentando negar, na construção da narrativa ficcional, a subjetividade e os
elementos do imaginário no estudo e no relato literário dos sent imentos, dos desejos, das
paixões, dos vícios e das virtudes, enfim, de todas as manifestações humanas. Ao excluir
todas as explicações metafísicas do estudo do comportamento humano, o escritor sugere
uma Literatura em que os mecanismos da paixão sejam analisados com o mesmo rigor
metodológico e científico que, desde 1839, já era proposto pela pintura naturalista. Para os
defensores dessa nova estética pictórica, a arte era a expressão da vida em todas as suas
formas e graus e tinha, como objetivo único, reproduzir a natureza no máximo do seu
poder e da sua intensidade, ou seja, ela era a verdade em equilíbrio com a ciência.
No prefácio dos Rougon-Macquart, publicado pela primeira vez em 1871, Zola não só
anuncia a história que pretende narrar, L’Histoire naturelle et sociale d’une famille sous le
Seconde Empire, mas também , expõe o caráter científico do método empregado :
Les Rougon-Macquart, le groupe, la famille que je me propose d’étudier a
pour caractéristique le débordament des appétits, le large soulèvement de
notre âge, qui se rue aux jouissances. Physiologiquement, ils sont la lente
succession des accidents nerveux et sanguins qui se déclarent dans une
race, à la suite d’une première lésion organique , et qui déterminent, selon
les milieux, chez chacun des individus de cette race, les sentiments, les
désirs, les passions, toutes les manifestations humaines, naturelles et
instinctives, dont les produits prennent les noms convenus de vertus et de
vices. Historiquement, ils partent du peuple, ils s’irradient dans toute la
société contemporaine, ils montrent à toutes les situations, par cette
impulsion essentiellement moderne que reçoivent les basses classes en
marche à travers le corps social, et ils racontent ainsi le second Empire à
l’aide de leurs drames individuels, du guet-apens du coup d’État à la
trahison de Sedan. 11 (ZOLA, 1990, p.455).
11
Os Rougon-Macquart, o grupo, a família que me proponho a estudar tem por característica o
transbordamento dos apetites, a imensa agitação do nosso tempo, que se entrega
aos prazeres.
Fisiologicamente, eles são a lenta sucessão dos acidentes nervosos e sangüíneos que se pronunciam em uma
raça, depois de uma primeira lesão orgânica, e que determinam, de acordo com o meio, em cada um dos
indivíduos dessa raça, os sentimentos, os desejos, as paixões, todas as manifestações humanas, naturais e
instintivas, cujos produtos adquirem os nomes convenientes de virtudes e de vícios. Historicamente, eles
partem do povo, irradiam-se por toda a sociedade contemporânea, expõem-se a todas as situações, por esta
impulsão essencialmente moderna que recebem as classes baixas em marcha através do corpo social, e assim
eles narram o Segundo Império com a ajuda de seus dramas individuais, da emboscada do golpe de Estado à
traição de Sedan. (tradução nossa)
24
A intenção exposta no prefácio des Rougon-Macquart reforça o método e a definição do
papel do escritor anunciados por Zola no Romance experimental:
Le romancier expérimentateur est donc celui qui accepte les faits prouvés,
qui montre dans l’homme et dans la société les mécanismes des
phénomènes dont la science est maîtresse, et qui ne fait intervir son
sentiment personnel que dans les phénomènes dont el détermisme n’est
point encore fixé, en tâchant de contrôler le plus qu’il le paurra ce
sentiment personnel, cette idée “a priori” , par l’observation et par
l’expérience.12
(ZOLA, 1962, p.303).
Entretanto, ao definir o papel do escritor naturalista, o próprio Zola admite a interferência
do sentimento pessoal do autor nos fenômenos cujo determinismo ainda não está, de forma
alguma, fixado e propõe ao romancista que ele controle “o mais que puder” o sentimento
pessoal, reconhecendo, assim, a existência de limites nesse controle.
O décimo primeiro volume da vasta coleção Les Rougon Macquart, Au Bonheur des
Dames, foi publicado pela primeira vez em 1883. Entretanto, a história se passa entre 1864
e 1869, ou seja, tem como cenário uma Paris vítima de uma imigração maciça que é
responsável pela quase duplicação da população em menos de meio século. Esses novos
imigrantes são, na grande maioria, vítimas do êxodo rural provocado pela revolução
industrial, embora um pequeno número entre eles chegue à capital francesa trazendo idéias
novas, dinheiro e muita ambição. Assim como Octave Mouret, protagonista de Au Bonheur
des Dames, durante o Segundo Império, os fundadores dos grands magasins franceses
faziam parte desta pequena elite de imigrantes. Mas, se por um lado existia em Paris uma
burguesia próspera, ávida de luxo e de opulência e pronta a ser seduzida pelos apelos
mercadológicos, por outro, a cidade, que ainda guardava traços medievais, não estava
preparada para receber tamanho fluxo populacional, o que a tornou também palco da
12
O romancista experimentador é, portanto, aquele que aceita os fatos provados, que mostra, no homem e na
sociedade, o mecanismo dos fenômenos que a ciência domina, e que faz o seu sentimento pessoal intervir
apenas nos fenômenos cujo determinismo ainda não está de forma alguma fixado, procurando controlar o
mais que puder este sentimento pessoal, esta idéia a priori, pela observação e pela experiência.
25
miséria, da fome e dos vícios de todos aqueles que foram naturalmente excluídos do
mercado de trabalho, pelas rígidas leis que regiam o sistema capitalista. Assim, a velha
capital, que em tão pouco tempo assistiu a uma completa transformação de suas estruturas
sociais, também deveria se modificar para se adaptar a essa nova realidade. Pelas mãos do
Barão de Haussmann, a Paris romântica se moderniza,
ganha imensos conjuntos
arquitetônicos, as antigas ruelas estreitas são substituídas por grandes avenidas. O centro e
a parte oeste da cidade se transformam em elegantes zonas residenciais, onde a elite
burguesa se fixa, empurrando as classes operárias para a periferia da cidade. As
modificações são tantas que Paris se tornará o ícone de um século de progresso. Definido o
contexto no qual os personagens serão inseridos e observados, Zola convida o leitor a
acompanhar o nascimento e a evolução de uma grande loja de departamentos e as
transformações sociais das quais ele é, ao mesmo tempo, símbolo e agente. Au Bonheur
des Dames é a primeira obra de Zola que nasce de uma reflexão sobre a evolução das
sociedades e traduz, portanto, as idéias desenvolvidas pelo escritor no Romance
Experimental. Durante toda a narrativa, o autor tenta confirmar sua convicção de que o
universo ficcional não deve obedecer à imaginação do romancista e às suas paixões, mas
deve ser determinado por leis e princípios científicos. O universo ficcional escolhido por
Zola é anunciado no título do livro; Au Bonheur des Dames é o nome de uma grande loja
de departamentos parisiense, cujo processo de ascensão será narrado pelo escritor. Entre as
leis e os princípios que ele aplica a essa máquina, como se refere ao magasin, estão a lei de
Darwin sobre a origem das espécies, os princípios filosóficos de Hippolyte Taine e alguns
princípios do capitalismo, como o liberalismo econômico. O grand magasin, em toda a sua
escala hierárquica, obedece ao princípio desumano e eficaz da concorrência. Mouret aplica
ao Bonheur des Dames um sistema em que cada vendedor tem um percentual do lucro de
acordo com as suas vendas, o que transforma a loja em um campo de batalha e dá origem a
uma guerra tão dissimulada e perniciosa quanto o próprio sistema que a engendra. Em
nome do bom funcionamento da máquina, os apetites humanos afloram e os mais fortes
começam a devorar os mais fracos. Exatamente como constatou o naturalista inglês Charles
Darwin, a luta pela sobrevivência será determinada por uma seleção natural, na qual só
serão preservados os mais aptos ou melhores adaptados. Zola observa e descreve essa
relação seguindo a doutrina filosófica de Taine que se baseava na existência de três fatores :
26
raça, meio e momento, ou seja, hereditariedade, ambiente e momento histórico, resultando
na faculté maitrêsse, que determina o caráter do escritor e suas obras.
Dentre as inúmeras considerações a serem feitas sobre a ambição das narrativas realista e
naturalista de incorporar os preceitos cientificos e historiográficos, podemos começar
refletindo sobre o fato de que, ao propor a descrição literária de uma realidade objetiva, a
partir da aparência dos fenômenos, o Positivismo e o Determinismo estariam
negligenciando a necessidade da expressão do não imediatamente perceptível e, por
conseguinte, negam à Literatura uma de suas funções primordiais, a de expressar a
essencialidade dos fenômenos. Afinal, como ela poderia, a partir da descrição do aparente,
registrar o essencial do objeto estudado e não descuidar das contradições sociais? Ao opor
ficção e realidade, caracterizando a ficção justamente pela eliminação dos atributos que
definem a realidade, não estariam essas escolas excluindo da Literatura os elementos que,
embora existentes, não possuem o caráter de realidade?
Também é passível de
questionamento se, ao contar uma história, o escritor não faz uso necessariamente de uma
herança cultural e se essa herança não é essencialmente subjetiva, pois, mesmo quando
ambiciona deixar os personagens terem voz própria, seja nos textos históricos, seja nos
literários, existe a mão de um narrador configurando a fala e as ações desses personagens,
configuração essa, feita a partir do horizonte de expectativa do autor. Finalmente, quando
um escritor seleciona os elementos de sua narrativa e estabelece uma relação entre eles, ele
dá a esses elementos uma ordem semântica proveniente de uma visão particular da
realidade. A narrativa, histórica ou literária, é, conseqüentemente, configurada a partir do
que foi selecionado pelo narrador e, assim sendo, a operação literária ambicionada pelas
escolas Realista e Naturalista não teria como escapar da subjetividade do escritor que, ao
combinar uma estrutura específica, dá o significado que deseja a eventos históricos
específicos.
Indo ainda mais longe, poderíamos acompanhar algumas reflexões de Wolfgang Iser, sobre
de que forma o Realismo e Naturalismo reproduziriam literariamente a realidade, impondo
um veto à ficção. Para o teórico, o que caracteriza a Literatura é a articulação organizada
do fictício e do imaginário e, dessa articulação, a Literatura emerge e, assim, diferencia-se
27
de outros meios. Apesar de considerar que hoje a distinção entre realidade e ficção já faça
parte do nosso “saber tácito”, ou seja, do nosso repertório de certezas, Iser afirma que ainda
existe espaço para se discutir até que ponto os textos “ficcionados” são de fato ficcionais e
os que assim não se dizem são de fato isentos de ficção. O que ele propõe é que a relação
dupla da ficção com a realidade seja substituída por uma relação tríplice: o real, o fictício e
o imaginário. Isso porque, como afirma, o texto ficcional contém elementos do real sem
que se esgote na descrição desse real e, por isso o seu componente fictício não tem caráter
de uma finalidade em si mesma, mas é, fingindo, a preparação de um imaginário. A partir
daí, podemos concluir que o fictício é uma decisão, enquanto que o imaginário é uma
conseqüência. Mas, se é assim, fica a questão que norteará nossa pesquisa: até que ponto
pode o autor controlar os efeitos de suas decisões?
28
CAPÍTULO I
3 ENTRE A MODERNIDADE E A MODERNIZAÇÃO: A TRILHA LITERÁRIA DE BALZAC E ZOLA
Ao incorporar ao universo literário os princípios positivistas que, a partir do Iluminismo,
passam a nortear quase todos os campos do saber, o Realismo e o Naturalismo conseguiram
impor novos paradigmas à Literatura e modificar radicalmente a construção da narrativa
romanesca. Neste capítulo, pretendemos analisar as modificações estruturais sofridas pelo
romance, a partir dos esforços empreendidos por Balzac e Zola para alcançar um utópico
controle do imaginário, além de refletir sobre os elementos que inserem esses dois
escritores dentro da modernidade literária.
Para tanto, partiremos do conceito de
modernidade estabelecido por Charles Baudelaire em Le peintre de la vie moderne:
Il est beaucoup plus commmode de déclarer que tout est absolument laid
dans l’habit d’une époque, que de s’appliquer à en extraire la beauté
mystérieuse qui y peut être contenue, si minime ou si légére qu’elle soit.
La modernité, c’ est le transitoire, le fugitf, le contingent, la moitié de
l’art, dont, l’autre moitié est l’éternel et l’imuable. Il y a eu une
modernité pour chaque peintre ancien; la plupart des beaux portraits qui
nous restent des temps antérieures sont revêtus des costumes de leur
époque. Ils sont parfaitement harmonieux, par ce que le costume, la
coiffure e même le geste, le regard et le sourire( chaque époque a son port,
son regard et son sourire) forment un tout d’une compète vitalité.1
(BAUDELAIRE, 1968, p.533) ( Grifo nosso)
1
É muito mais cômodo declarar que tudo é absolutamente feio na indumentária de uma época do que se
dedicar a extrair a beleza misteriosa que pode estar contida nela, por menor ou mais leve que ela seja. A
modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é o eterno e o
imutável. Houve uma modernidade para cada pintor antigo; a maioria dos belos quadros que nos restam de
tempos anteriores é revestida dos trajes da sua época. Eles são perfeitamente harmoniosos, porque o traje, o
penteado e mesmo o gesto, o olhar e o sorriso (cada época tem o seu porte, seu olhar e seu sorriso) formam
um todo de uma completa vitalidade.(traduçao nossa)
29
Conduzidos por essa definição e acompanhando as reflexões de Marshall Berman no livro
Tudo o que é Sólido Desmancha no Ar, podemos concluir que, para Baudelaire, o pintor
(ou romancista, ou filósofo) da vida moderna é aquele que retrata “sua moda, sua moral e
suas emoções”, no instante em que vive e com todas as sugestões de eternidade que ele
contém. Através dessa concepção da modernidade, o poeta irá romper com as antiquadas
fixações clássicas que, então, dominavam a cultura francesa e introduzir um novo conceito
de moderno. Para ele, todos os mestres antigos tiveram a sua própria modernidade, o que
faz de todos os tempos, em suas épocas, “tempos modernos”.
O conceito baudelairiano de modernidade nasce a partir da visão anticonvencional do poeta
de uma sociedade na qual beleza e miséria dividiam o mesmo espaço. Em meio ao turbilhão
de mudanças que marca o século XIX, o homem assiste, perplexo, a hegemonias políticas e
geográficas, de classe e nacionalidade serem contestadas; a valores e conceitos ideológicos
serem anulados. Em contrapartida, o desenvolvimento científico e tecnológico, o progresso
e a modernização são uma promessa de esperança, alegria, crescimento e prosperidade.
Assim, enquanto uma nova sociedade é gerada, a sociedade capitalista, os indivíduos
experimentam as angústias de viverem em um universo ainda desprovido de valores
sólidos. E esse novo mundo que se desvela – ambíguo e paradoxal – provoca no ser
humano um misto de estupefação e horror, de assombro e melancolia, enfim, uma sensação
de mal-estar que perpetuaria durante quase cem anos de história.
Durante a primeira metade do século XIX, a França, assim como os demais países
europeus, seria surpreendida por um desenvolvimento científico e industrial sem
precedentes. No continente do capital, Paris desponta como uma metrópole proeminente,
onde, em 1826, é inaugurada a Bolsa de Valores e, em 1828, começam a circular os
primeiros ônibus puxados a cavalo. A utilização do vapor e da eletricidade, como fontes de
energia, também data desse período que se caracteriza, sobretudo, por um processo de
transição econômica. A Revolução Industrial propicia a passagem de uma economia agrária
e artesanal, fechada em células praticamente autônomas, para um sistema econômico mais
30
ágil, aberto, dominado pela indústria e pelo capital. No campo, a agricultura deixa de ser
um meio de subsistência e passa a visar à obtenção de lucro, fazendo com que um número
enorme de trabalhadores rurais, que não dispunham de meios para investir na terra,
começassem a deixar o campo e a buscar trabalho nas cidades. Eles iriam constituir uma
nova classe de operários que seria absorvida, principalmente, pelas fábricas e pelas usinas.
O aumento da circulação entre o interior e a capital também estimula a ampliação da rede
ferroviária, que seria financiada, em parte pelo estado e, em parte, por um sistema bancário,
mais moderno, dinâmico e compatível com o advento do capitalismo. Enfim, nasce uma
nova ordem social que, pautada pelos princípios do liberalismo econômico, não só provoca
a ruína de todas as estruturas e valores tidos como sólidos até então, mas também, engendra
outra estratificação social. De um lado, ela assegura à burguesia, proprietária do capital, o
papel de nova classe dominante e, de outro, atrai para as cidades um contingente enorme de
trabalhadores que, vivendo em condições de higiene e salubridade precárias, com salários
extremamente baixos e sem nenhuma lei ou garantia trabalhista, corporificavam a massa de
operários que, posteriormente, seria chamada por Marx de classe proletária.
Assim que a nova ordem se estabelece, filósofos e pensadores começam a idealizar formas
mais humanas de reorganização política e social. Entre eles, o teórico Saint-Simon, cuja
filosofia, que na época teve uma enorme aceitação entre os intelectuais, daria origem ao
socialismo utópico. Saint-Simon acreditava que a sociedade de então havia sido organizada
de forma anárquica e injusta. Por um lado, ela tinha alçado ao poder as classes “inúteis” e
reduzido à condição de subalternos os verdadeiros produtores e, por outro, baseava -se na
exploração do homem pelo homem. Diante disso, a solução imaginada por ele, para
humanizar o novo quadro social, era a criação de um estado industrial, no qual as forças
produtivas fossem administradas coletivamente pelas elites detentoras do saber. Ou seja,
um estado em que o governo caberia a filósofos, artistas e cientistas e a execução dos
projetos elaborados por eles, aos trabalhadores. Na nova organização imaginada pelo
filósofo francês também não haveria lugar para a propriedade privada, muito embora ela
não fosse fundada sobre os princípios de liberdade e igualdade, mas sobre os de autoridade
e hierarquia. Em contrapartida, apesar de defender concepções sociais antidemocráticas e
antiigualitárias, Saint-Simon foi o primeiro a perceber que o conflito de classes estava
31
relacionado com a economia e que o futuro da indústria estava nas mãos dos trabalhadores,
desde, é claro, que eles fossem guiados por alguém.
Entre os discípulos de Saint-Simon, um dos mais entusiastas foi o também filósofo Augusto
Comte, criador do Positivismo. A doutrina – largamente difundida em toda a Europa,
devido ao progresso das ciências naturais, e uma das principais correntes filosóficas desse
período – foi sistematizada por Comte no início do século e baseia-se na “ lei dos três
estados”. De acordo com essa lei, a mente humana, na busca pela compreensão dos
fenômenos naturais, dá, inicialmente, uma explicação teológica, depois, uma explicação
metafísica e, finalmente, a explicação positiva, que propõe o abandono da busca das causas
pela observação objetiva dos fenômenos, visando à descoberta de suas leis. Comte também
elaborou uma classificação das ciências que ia da mais geral – a matemática – à mais
específica, a física social, uma ciência nova, criada por ele – que propunha a observação
científica dos fatos sociais – e que, posteriormente, receberia o nome de sociologia. Ao
longo do século XIX, tanto a literatura quanto a historiografia absorvem preceitos
positivistas e passam a considerar as ciências experimentais como o modelo por excelência
do conhecimento humano, em detrimento das especulações metafísicas ou teológicas.
Paralelamente a essa revolução no campo da filosofia, as teorias evolucionistas de Lamarck
e Saint-Hilaire iriam deflagrar uma batalha ideológica sem precedentes, no âmbito das
ciências naturais. Em 1749, o filósofo e naturalista francês, Georges Louis Leclerc,
conhecido como Conde de Buffon, publicou o primeiro dos 44 volumes de Histoire
naturelle, générale et particulière, obra que traz a primeira versão naturalista da história da
terra, incluindo uma completa descrição de sua mineralogia, botânica e zoolo gia e antecipa
algumas idéias evolutivas que, posteriormente, seriam defendidas por Lamarck e Darwin.
No início do século, Jean-Baptiste Lamarck, naturalista francês considerado o precursor do
evolucionismo, iria defender a teoria de que os seres vivos teriam se modificado ao longo
do tempo, em decorrência da ação do meio sobre o comportamento e sobre os órgãos.
Lamarck acreditava, também, que as plantas e os animais inferiores sofriam uma ação mais
direta do meio, ao passo que nos seres vivos que apresentavam um sistema nervoso mais
complexo, a vontade (sentiment intérieur) e a inteligência eram os principais fatores
32
adaptativos. Assim, para o naturalista, o meio agia sobre a vontade e a inteligência, através
das necessidades que determinava e das reações suscitadas por tais necessidades. A base da
argumentação de Lamarck era a suposição de que as modificações somáticas (que não
distinguia das genéticas) de um organismo seriam hereditárias. Além disso, ele foi o
primeiro a afirmar que a evolução é regida por leis e o primeiro a enunciá- las. De 1800 a
1806, nas aulas inaugurais dos cursos que ministrava no Museu de Paris, Lamarck expôs as
idéias que, em 1809, foram publicadas no livro Philosophie zoologique (Filosofia
zoológica) e desenvolvidas na obra Histoire naturelle des animaux sans vertèbres (História
natural dos animais invertebrados), publicada entre 1815 e 1822. No entanto, a defesa da
teoria evolucionista o levaria a ser duramente criticado pelo também biólogo e naturalista,
Georges Cuvier, defensor do fixismo, teoria segundo a qual as espécies vivas
permaneceram as mesmas desde a criação.
Após a morte de Lamarck, Geoffroy Saint-Hilaire, seu sucessor na Academia de Ciências
de Paris, iniciaria um violento debate ideológico com Cuvier. Em 1795, Saint-Hilaire
publicou o livro Histoire des Makis, ou singes de Madagascar (História dos maquis ou
macacos de Madagascar), em que expressava pela primeira vez suas idéias sobre a unidade
da composição orgânica e, entre 1818 e 1822, lançou sua obra principal, Philosophie
anatomique (Filosofia anatômica), na qual defendia a idéia do equilíbrio dos órgãos,
afirmando que o crescimento ou diminuição de um prejudica ou beneficia os outros. Ao
tentar aplicar essa teoria aos invertebrados, Saint-Hilaire iniciou a violenta polêmica que
resultou no debate travado com Cuvier, em 1830,
na Academia de Ciências, e que
mobilizou toda a comunidade científica.
A complexidade das transformações vivenciadas pela sociedade francesa, na primeira
metade do século XIX, evidencia, portanto, o quão ousada era a proposta balzaquiana de
criar uma literatura que, assim como a história, fosse o espelho de um universo em plena
mutação e que, para tanto, incorporasse todos os princípios positivistas e cientificistas que
marcaram a sua geração. No entanto, a ousadia de se debruçar sobre esse projeto visionário
– pintar todas as nuances da sociedade francesa da Restauração à Monarquia de Julho –
acabou levando o romancista a criar uma estética para a sua obra que a insere, plenamente,
33
dentro do conceito baudelairiano de modernidade. Ao afirmar que “a modernidade é o
transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é o eterno e
imutável,” Baudelaire manifesta que o artista moderno deve se dedicar menos a reproduzir
o que havia de glorioso no passado e mais a desvelar o presente para a posteridade. Balzac,
por sua vez, é o precursor de uma literatura cuja essência expressa o que há de transitório,
fugidio e contingente na sua geração e são justamente esses elementos que fazem com que
a Comédia Humana consiga traduzir, de forma magistral, a ânsia baudelairiana de ver em
toda e qualquer obra de arte a marca de seu tempo :
En un mot, pour que toute modernité soit digne de devenir antiquité, il
faut que la beauté mystérieuse que la vie humaine y met involontairement
en ait été extraite.[...] j’ai dit que chaque époque avait son port, son regard
et son gest. C´est surtout dans une vaste galerie de portraits (celle de
Versailles, par exemple) que cette proposition devient facile à verifier.
Mas elle peut s’étendre plus loin encore. Dans l’unité qui s’appele nation,
les professions, les castes, les siècles introduisent la variété, nonseulement dans les gestes et les manières, mais aussi dans la forme
positive du visage.2 (BAUDELAIRE, 1968, p.554)
Malheur à celui qui étudie dans l’antique autre chose que l’art pur, la
logique, la méthode général! Pour s’y trop plonger, il perd la mémoire du
présent; il abdique la valeur et les privilèges fournis par la circonstance;
car presque toute notre originalité vient de l’estampille que le temps
imprime à nos sensations. 3 ( BAUDELAIRE, 1968, p.554)
Ao esboçar suas intenções no Prefácio da Comédia Humana, Balzac se mostra consciente
do labirinto que teria que atravessar para fazer da literatura o retrato de todos os anseios,
conflitos, dramas, angústias e glórias de sua geração mas, mesmo pressentindo o quão
árduo seria o seu caminho, ele jamais poderia supor que, ao mergulhar a literatura no
universo científico e historiográfico, faze ndo com que dela emergisse um profundo estudo
2
Em uma palavra, para que toda modernidade seja digna de se tornar antiguidade, é necessário que a beleza
misteriosa que a vida coloca nela involuntariamente tenha sido dela extraída.[...] eu disse que cada época tem
o seu porte, seu olhar, seu gesto. É sobretudo em uma vasta galeria de retratos (a de Versalhes, por exemplo)
que esta proposição se torna fácil de verificar. Mas ela pode se estender mais longe ainda. Na unidade que se
chama nação, as profissões, as castas, os séculos introduzem a variedade, não somente nos gestos e nas
maneiras, mas também na forma positiva da face.(tradução nossa)
3
Desgraçado aquele que estuda no antigo outra coisa que não seja a arte pura, a lógica, o método geral! De
tanto mergulhar no antigo, ele perde a memória do presente; ele abdica do valor e dos privilégios fornecidos
pelas circunstâncias; porque quase toda a nossa originalidade vem do timbre que o tempo imprime em nossas
sensações. (tradução nossa)
34
do comportamento social, ele estava também reinventando o romance, ou melhor,
inventando o romance moderno.
No entanto, ao entrelaçar suas tramas e enredos a pressupostos extraídos do mundo da
ciência, Balzac deu início a uma viagem literária tão revolucionária quanto os preceitos
científicos que ele tentava absorver:
L'animal est un principe qui prend sa forme extérieure, ou, pour parler
plus exactement, les différences de sa forme, dans les milieux où il est
appelé à se développer. Les Espèces Zoologiques résultent de ces
différences. La proclamation et le soutien de ce système, en harmonie
d'ailleurs avec les idées que nous nous faisons de la puissance divine, sera
l'éternel honneur de Geoffroi Saint-Hilaire, le vainqueur de Cuvier sur ce
point de la haute science, et dont le triomphe a été salué par le dernier
article qu'écrivit le grand Goethe. Pénétré de ce système bien avant les
débats auxquels il a donné lieu, je vis que, sous ce rapport, la Société
ressemblait à la Nature. La Société ne fait-elle pas de l'homme, suivant les
milieux où son action se déploie, autant d'hommes différents qu'il y a de
variétés en zoologie? Les différences entre un soldat, un ouvrier, un
administrateur, un avocat, un oisif, un savant, un homme d'état, un
commerçant, un marin, un poète, un pauvre, un prêtre, sont, quoique plus
difficiles à saisir, aussi considérables que celles qui distinguent le loup, le
lion, l'âne, le corbeau, le requin, le veau marin, la brebis, etc. Il a donc
existé, il existera donc de tout temps des Espèces Sociales comme il y a
des Espèces Zoologiques. Si Buffon a fait un magnifique ouvrage en
essayant de représenter dans un livre l'ensemble de la zoologie, n'y avait -il
pas une oeuvre de ce genre à faire pour la Société? Mais la Nature a posé,
pour les variétés animales, des bornes entre lesquelles la Société ne devait
pas se tenir. 4 (BALZAC, 1964, p.191)
4
O animal é um princípio que adquire a sua forma exterior, ou, para falar mais exatamente, as diferenças da
sua forma, nos meios em que ele é chamado a se desenvolver. As espécies zoológicas resultam dessas
diferenças. A proclamação e a sustentação deste sistema, em harmonia, aliás, com as idéias que fazemos da
força divina, será a eterna honra de Geoffroi Saint-Hilaire, o vencedor de Cuvier neste ponto da alta ciência, e
cujo triunfo foi saudado no último artigo escrito pelo grande Goethe. Penetrado por esse sistema bem antes
dos grandes debates aos quais ele deu lugar, eu vi que nesse aspecto, a sociedade se assemelhava à natureza.
A sociedade não faz do homem, de acordo com os meios em que suas ações se desdobram, tantos homens
diferentes quanto existem variedades zoológicas? As diferenças entre um soldado, um operário, um
administrador, um advogado, um desocupado, um sábio, um estadista, um comerciante, um marinheiro, um
poeta, um pobre, um padre são, ainda que mais difíceis de apreender, tão consideráveis quanto aquelas que
distinguem o lobo, o leão, o asno, o corvo, o tubarão, a foca, a ovelha, etc. Portanto, existiu e existirá em
todos os tempos Espécies Sociais como existem Espécies Zoológicas. Se Buffon fez uma obra magnífica ao
tentar representar em um livro o conjunto da zoologia, não haveria uma obra deste mesmo gênero a ser feita
para a sociedade ? Mas a natureza pôs, para as variedades animais, limites aos quais a sociedade não deveria
se ater. (tradução nossa)
35
Já os conteúdos historiográfico e sociológico da Comédia Humana – evidentes na forma
enciclopédica como ela é organizada e na tentativa genuína de Balzac de que ela
incorporasse a soma de todos os tipos humanos que estivessem, de uma forma ou de outra,
inseridos na história do seu tempo – alçam o romancista a uma nova categoria, não a de
cientista, mas a de gênio moderno da arte de narrar :
Ce n'était pas une petite tâche que de peindre les deux ou trois mille
figures saillantes d'une époque, car telle est, en définitif, la somme des
types que présente chaque génération et que La Comédie humaine
comportera. Ce nombre de figures, de caractères, cette multitude
d'existences exigeaient des cadres, et, qu'on me pardonne cette expression,
des galeries. De là, les divisions si naturelles, déjà connues, de mon
ouvrage en Scènes de la vie privée, de province, parisienne, politique,
militaire et de campagne. Dans ces six livres sont classées toutes les
Etudes de moeurs qui forment l'histoire générale de la Société, la
collection de tous ses faits et gestes, eussent dit nos ancêtres. Ces six
livres répondent d'ailleurs à des idées générales. Chacun d'eux a son sens,
sa signification, et formule une époque de la vie humaine. Je répéterai là,
mais succinctement, ce qu'écrivit, après s'être enquis de mon plan, Félix
Davin, jeune talent ravi aux lettres par une mort prématurée. Les Scènes
de la vie privée représentent l'enfance, l'adolescence et leurs fautes,
comme les Scènes de la vie de province représentent l'âge des passions,
des calculs, des intérêts et de l'ambition. Puis les Scènes de la vie
parisienne offrent le tableau des goûts, des vices et de toutes les choses
effrénées qu'excitent les moeurs particulières aux capitales où se
rencontrent à la fois l'extrême bien et l'extrême mal. Chacune de ces trois
parties a sa couleur locale: Paris et la province, cette antithèse sociale a
fourni ses immenses ressources. Non-seulement les hommes, mais encore
les événements principaux de la vie, se formulent par des types. Il y a des
situations qui se représentent dans toutes les existences, des phases
typiques, et c'est là l'une des exactitudes que j'ai le plus cherchées. J'ai
tâché de donner une idée des différentes contrées de notre beau pays. Mon
ouvrage a sa géographie comme il a sa généalogie et ses familles, ses
lieux et ses choses, ses personnes et ses faits; comme il a son armorial, ses
nobles et ses bourgeois, ses artisans et ses paysans, ses politiques et ses
dandies, son armée, tout son monde enfin! Après avoir peint dans ces
trois livres la vie sociale, il restait à montrer les existences d'exception qui
résument les intérêts de plusieurs ou de tous, qui sont en quelque sorte
hors la loi commune: de là les Scènes de la vie politique . Cette vaste
peinture de la société finie et achevée, ne fallait-il pas la montrer dans son
état le plus violent, se portant hors de chez elle, soit pour la défense, soit
pour la conquête? De là les Scènes de la vie militaire, la portion la moins
complète encore de mon ouvrage, mais dont la place sera laissée dans
cette édition, afin qu'elle en fasse partie quand je l'aurai terminée. Enfin,
les Scènes de la vie de campagne sont en quelque sorte le soir de cette
longue journée, s'il m'est permis de nommer ainsi le drame social. Dans ce
livre, se trouvent les plus purs caractères et l'application des grands
principes d'ordre, de politique, de moralité. Telle est l'assise pleine de
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figures, pleine de comédies et de tragédies sur laquelle s'élèvent les
Etudes philosophiques, Seconde Partie de l'ouvrage, où le moyen social de
tous les effets se trouve démontré, où les ravages de la pensée sont peints,
sentiment à sentiment, et dont le premier ouvrage, La Peau de chagrin,
relie en quelque sorte les Etudes de moeurs aux Etudes philosophiques par
l'anneau d'une fantaisie presque orientale où la Vie elle -même est peinte
aux prises avec le Désir, principe de toute Passion. Au-dessus, se
trouveront les Etudes analytiques, desquelles je ne dirai rien, car il n'en a
été publié qu'une seule, La Physiologie du mariage . D'ici à quelque temps,
je dois donner deux autres ouvrages de ce genre. D'abord la Pathologie de
la vie sociale, puis l'Anatomie des corps enseignants et la Monographie
de la vertu.5 (BALZAC, 1964, p.203)
5
Não é uma tarefa pequena a de pintar as duas ou três mil figuras representativas de uma época, porque essa
é, definitivamente, a soma dos tipos que cada geração apresenta e que a Comédia Humana comportará. Esse
grande número de figuras, de caracteres, essa multidão de existências, exigiriam quadros, e, que me perdoem
a expressão, galerias. Daí , as divisões tão naturais, já conhecidas, da minha obra em Cenas da vida privada,
de província, parisiense, política, militar e do campo. Nesses seis livros estão classificados todos os Estudos
dos costumes que formam a história geral da sociedade, a coleção de todos os seus fatos e seus gestos, teriam
dito nossos ancestrais. Cada um deles tem o seu sentido, sua significação, e formula uma época da vida
humana. Eu repetirei aqui, mais sucintamente, aquilo que escreveu, após ter indagado sobre o meu plano,
Félix Davin, jovem talento arrebatado das letras por uma morte prematura. As Cenas da vida privada
representam a infância, a adolescência e suas faltas, como as Cenas da vida de província representam a idade
das paixões, dos cálculos, dos interesses e da ambição. Em seguida, as Cenas da vida parisiense oferecem o
quadro dos gostos, dos vícios e de todas as coisas desenfreadas que excitam os costumes particulares das
capitais onde se encontram, ao mesmo tempo, o extremo do bem e o extremo do mal. Cada uma dessas três
partes tem a sua cor local : Paris e a província, esta antítese social forneceu seus imensos recursos. Não
somente os homens, mas também, os eventos principais da vida, formulam-se por tipos. Existem situações
que se apresentam em todas as existências, fases típicas, e ai está uma das exatidões que eu mais procurei.
Esforcei-me para dar uma idéia das diferentes regiões de nosso belo país. Minha obra tem a sua geografia,
como tem a sua genealogia e famílias, lugares e coisas, pessoas e fatos; como tem seu armorial, seus nobres
e seus burgueses, artesões e camponeses, políticos e dândis, exército, todo o seu mundo enfim! Após ter
pintado nesses três livros a vida social, restava mostrar as existências de exceção que resumem os interesses
de muitos ou de todos que estão de alguma forma fora da lei comum : daí as Cenas da vida política. Esta
vasta pintura da sociedade terminada e perfeita, não seria necessário mostrá-la no seu estado mais violento;
dirigindo-se para fora da própria casa, seja para a defesa, seja para a conquista ? Daí, as Cenas da vida
militar, a porção menos completa da minha obra até agora, mas cujo lugar será deixado nessa edição a fim de
que faça parte dela quando eu a tiver terminado. Enfim, as Cenas da vida do campo são de alguma forma o
crepúsculo dessa longa jornada, se me é permitido chamar assim o drama social. Neste livro se encontram os
mais puros caracteres e a aplicação dos grandes princípios de ordem, de política e de moralidade. Tal é a base
plena de figuras, comédias e tragédias sobre a qual se elevam os Estudos filosóficos, segunda parte da obra,
na qual o meio social de todos os efeitos se encontra demonstrado, na qual os danos da mente são pintados,
sentimento a sentimento e, cuja primeira obra, La Peau de Chagrin, une de alguma forma os Estudos dos
Costumes aos Estudos filosóficos através do anel de uma fantasia quase oriental na qual a própria vida é
pintada lutando contra o desejo, princípio de toda paixão. Acima, se encontram os Estudos analíticos, sobre os
quais não direi nada, porque deles somente uma obra foi publicada, La Physiologie du Mariage. Daqui a
algum tempo, devo dar duas outras obras do mesmo gênero. Primeiro a Pathologie de la Vie Sociale , e em
seguida L´Anatomie des Corps Enseignants e Monographie de la Vertu.(tradução nossa)
37
Em 1880, quase quarenta anos após a publicação do prefácio da Comédia Humana, Zola,
seguindo a trilha deixada por Balzac, publica o Romance experimental e se lança no desafio
de introduzir na Literatura a esperança, moderna por excelência, do milagre científico. Em
uma sociedade ingênua o suficiente para acreditar no poder sobrenatural da ciência, um
poder capaz, até mesmo, de apurar e de regenerar a espécie humana, Zola se propõe a
transformar a literatura em um grande laboratório no qual a mecânica do comportamento
humano, que vigorava naquele momento histórico, – a segunda metade do século XIX –
pudesse ser observada e experimentada, fornecendo aos espectadores condições para
detectar o órgão doentio, a fim de saná- lo ou extirpá- lo, conforme a sua conveniência.
Embora, ao longo da primeira metade do século XIX, Paris tenha se tornado o centro – em
processo de industrialização – de um império colonial, até início do Segundo Império, a
cidade ainda guardava a mesma estrutura arcaica remanescente da Idade Média. Em 1848,
Napoleão III é eleito Presidente da República e, quatro anos depois, após um golpe de
estado, torna-se imperador. Sensível às questões sociais; impressionado pelas teorias
higienistas que foram largamente difundidas, principalmente, depois que Pasteur conseguiu
provar que as bactérias e os micróbios eram responsáveis por diversas doenças humanas;
temeroso de que a estrutura medieval da cidade facilitasse a organização de barricadas e
permitissem novas insurreições populares, como as que ocorreram de 1830 a 1848 e,
finalmente, ansioso por transformar Paris em um ícone do seu império, Napoleão não
mediria esforços para modernizar a capital francesa.
No fim dos anos 50 e ao longo de toda a década seguinte, Georges Eugène Haussman,
prefeito de Paris, investido no cargo por um mandato imperial, iria iniciar um complexo
projeto de reurbanização da velha cidade medieval, transformando-a em um canteiro de
obras no qual uma estranha harmonia orquestrava a insólita convivência entre a beleza e o
caos. De acordo com Marshall Berman em Tudo o que é Sólido Desmancha no Ar, para
implantar uma vasta rede de bulevares no coração da cidade, Napoleão e Haussmann
conceberam novas vias e artérias que deveriam funcionar como um sistema circulatório,
criando uma estrutura altamente revolucionária para a vida urbana do século XIX. O amplo
sistema de planejamento urbano de Haussman incluía ainda mercados centrais, pontes,
38
esgotos, fornecimento de água, a Ópera e outros monumentos culturais, além de uma
grande rede de parques. Um empreendimento quixotesco que pôs abaixo centenas de
edifícios, deslocou milhares de pessoas e destruiu inteiramente bairros seculares, mas que
também criou novas bases econômicas, sociais e estéticas para a cidade e contribuiu para
transformá - la em um espetáculo particularmente sedutor, em uma festa para os olhos e para
os sentidos. Paradoxalmente, toda essa modernização teria também um efeito extremamente
cruel. À medida que a cidade torna-se mais próspera e luminosa, a população pobre –
composta, sobretudo, pela enorme massa de trabalhadores que havia emigrado para a
cidade, atraída pelas fábricas e pelas usinas – foi progressivamente sendo desalojada e
expulsa para a periferia, a fim de abrir “espaços livres” e abolir a escuridão e o
congestionamento que reinaram em Paris até então. Finalmente, o centro, a parte nobre de
cidade, torna-se o local onde vive e passeia o banqueiro, o dândi, as mulheres de luxo; onde
se realizam as exposições universais da indústria e do comércio e onde, no Camp-de-Mars,
acontecem os desfiles militares e as corridas de cavalo. A população pobre teria que
contentar-se com os arredores, com a Paris feia e distante dos olhares românticos.
Costa Lima nos lembra, em Mímesis e Modernidade, que os contingentes de trabalhadores
que se deslocaram para Paris desde o início do século XIX foram capazes de sustentar as
lutas de classe do período, prolongadas na Comuna de 1870, e de suscitar o pensamento
socialista utópico (tema que seria profundamente explorado na obra de Zola), embora o
romantismo ideológico dessas classes tornasse seus esforços insuficientes para quebrar o
comando da burguesia. Em virtude da concentração industrial e das poucas oportunidades
que a capital oferecia a jovens ambiciosos, mas sem dinheiro – como os personagens
balzaquianos Eugène de Rastignac ou Lucien de Rubempré – as contradições sociais
tornam-se cada vez mais evidentes. Aos poucos, as ruas deixavam de ser estreitas para que
por elas se estreitassem as diferenças entre as classes. O plano urbanístico de Haussmann
alarga o espaço para que nele se estampe a diferença de tempos de seus habitantes. Pelas
avenidas e bulevares de Paris, o passante não é mais um transeunte, mas, a parcela anônima
e quase sempre indistinta da multidão.
39
Quantos às contribuições científicas e filosóficas, os estudos realizados na segunda metade
do século não foram, de forma alguma, menos significativos que os da primeira metade; ao
contrário, levaram a descobertas que, de tão surpreendentes, serviram para fortalecer ainda
mais o – já consolidado – império da razão.
A propagação da ideologia marxista – doutrina que parte da Filosofica Clássica alemã, da
Economia Política inglesa e do Socialismo francês – ganharia uma força imensa na segunda
metade do século, sobretudo, em razão das condições de trabalho subumanas a que as
classes operárias eram submetidas, dando origem ao comunismo científico, doutrina
filosófica que mudaria radicalmente a história política da humanidade. Na realidade, o
filósofo e economista alemão, Karl Marx, iniciou a obra de difusão de sua ideologia
revolucionária ainda na primeira metade do século, quando, juntamente com Engels, redige
o famoso Manifesto Comunista, primeiro esboço das suas principais idéias políticas e
filosóficas – o materialismo dialético e a teoria da luta de classes – e que seria publicado ao
mesmo tempo em que, na França, estourava a revolução, em fevereiro de 1848. Após a
revolução passa a viver na capital inglesa onde, graças à ajuda de Engels, pôde levar a cabo
a elaboração de sua principal obra, O Capital, cujo primeiro volume seria publicado em
1867. Por considerar a dialética de Hegel como a maior descoberta da filosofia Clássica
alemã, Marx tentou aplicá- la na sua interpretação materialista da natureza e da História,
opondo-se ao próprio Hegel, que era idealista. Enquanto para esse último o processo do
pensamento era o criador do real, para Marx o pensamento não passava de um reflexo da
realidade na consciência do homem. A aplicação do Materialismo Dialético ao estudo dos
fenômenos sociais deu origem à concepção materialista da História. Dessa forma, de acordo
com a doutrina marxista, não são as idéias (superestrutura) que governam o mundo, mas, ao
contrário, é o conjunto das forças produtivas materiais (infraestrutura) que determina todas
as idéias e tendências. Ao se aprofundar no estudo da História, Marx elaborou a teoria da
luta de classes, através da qual explica a evolução das instituições sociais. A partir da
análise da sociedade capitalista, Marx observa que a propriedade privada dos meios de
produção, característica fundamental do sistema capitalista, só existe com a apropriação da
mais- valia – aumento do valor de um bem ou de uma renda, após a sua avaliação ou
aquisição, em virtude de fatores econômicos que independem de qualquer transformação
intrínseca desse bem ou dessa renda – pela classe dominante, o que torna a exploração do
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homem pelo homem fundamental para o capitalismo. Ele conclui, a partir daí, que somente
em uma sociedade sem classes sociais essa exploração não aconteceria e passa a defender
que só o proletariado poderia, por uma luta política consciente e conseqüente de seu papel,
derrubar o capitalismo. Não para constituir um Estado para si, mas para desmantelá-lo
como instrumento político de existência das classes sociais. No entanto, para o teórico,
entre o fim do capitalismo e o advento do comunismo, seria necessário um longo período
de transição, que ele denominou socialismo. Essa etapa serviria para que a ditadura da
burguesia, que imperava na sociedade capitalista, fosse substituída pela ditadura do
proletariado. Cumprido esse período de transição, seria, enfim, instaurada a sociedade
comunista, com a posse coletiva da totalidade dos meios de produção e o desaparecimento
definitivo das classes, das diferenças entre a cidade e o campo e entre trabalho intelectual e
manual.
Ainda no campo da filosofia, o filósofo, historiador e crítico francês, Hippolyte Taine,
também iria despertar a atenção dos intelectuais e, sobretudo, da comunidade literária, ao
defender a aplicação da filosofia determinista à arte e à literatura. De acordo com essa
doutrina, todos os fenômenos da natureza estão ligados entre si por rígidas relações de
causalidade e leis universais que excluem o acaso e a indeterminação, de tal forma que uma
inteligência capaz de conhecer o estado presente do universo, necessariamente, estaria apta
também a prever o futuro e reconstituir o passado. Portanto, para os deterministas, todos os
acontecimentos, inclusive as vontades e as escolhas humanas, estão interligados e são
decorrentes de causas anteriores, o que torna o homem um produto do meio, da raça e do
momento histórico em que vive. Ao aplicar esses preceitos à arte e à literatura, Taine partiu
do princípio de que ambas eram funções naturais do homem, exercidas sob a influência de
uma faculdade mestra, própria de cada nação e de cada artista e que essa faculdade era
determinada pelas condições geográficas, além da raça, do momento histórico e do meio
ambiente. Professor de Estética e História da Arte, ele consagrou-se ainda à análise da
evolução artística, com base na fisiologia e na sociologia. Em 1857, publicou a obra que o
tornaria conhecido como um dos mais proeminentes chefes do positivismo literário: Les
Philosophes français du XIXème siècle.
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A medicina e, sobretudo, a fisiologia deram um salto enorme na segunda metade do século
XIX, o que foi fundamental para o aumento da expectativa de vida e para a diminuição dos
índices de mortalidade infantil, já que tal desenvolvimento promoveu a cura e o controle de
diversas doenças. Pode-se afirmar também que o estudo dos processos físico-químicos que
ocorrem nas células, tecidos, órgãos e sistemas dos seres vivos não teria alcançado o
presente grau de desenvolvimento sem o trabalho e as descobertas do médico e fisiologista
francês, Claude Bernard, um dos principais pesquisadores a abrir novos caminhos para o
conhecimento dos mecanismos que controlam o metabolismo humano. Em 1865, ele
publicou sua obra mais importante, Introduction à la médecine expérimentale (Introdução à
medicina experimental), uma tentativa de alçar a medicina, que até então se fundamentava
em mé todos empíricos, à categoria de ciência experimental. Com seus trabalhos, o fisiólogo
contribuiu ainda para a correta aplicação do método experimental ao estudo dos processos
biológicos.
Finalmente, o naturalista Britânico Charles Darwin revoluciona, definitivamente, a história
científica do século XIX e derruba todas as concepções, que então vigoravam sobre a
origem das espécies, ao publicar, em 1859, o livro On the Origin of Species by Means of
Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life (Sobre a
origem das espécies por meio da seleção natural, ou a preservação de raças favorecidas na
luta pela vida). Em 1831, Darwin foi convidado a participar, como naturalista, da viagem
de circunavegação do navio britânico Beagle. Ao longo da viagem, que durou cinco anos,
ele observou não só que, à medida que passava de uma região para outra, um mesmo
animal podia apresentar características distintas, mas também, que as espécies atuais
possuíam traços em comum com outras já extintas, ainda que esses traços fossem bem
diferenciados. Essas observações conduziram- no ao estudo da diversificação das espécies e,
em 1838, ao desenvolvimento da teoria da Seleção Natural. Consciente de que outros antes
dele tinham sido severamente punidos por sugerirem idéias como aquela, ele as confiou
apenas a amigos próximos e continuou a sua pesquisa tentando antecipar possíveis
objeções. Contudo, a informação de que Alfred Russel Wallace tinha desenvolvido uma
idéia similar forçou a publicação conjunta da teoria, em uma revista científica, em 1858.
Para elaborar a teoria da seleção natural, Darwin partiu do princípio de que não existem
42
dois membros de uma mesma espécie exatamente iguais, ou seja,
cada um tem uma
combinação exclusiva de traços herdados, como tamanho, cor, capacidade de suportar o
frio, dentre outros. Em seguida, ele observou que a existência de reservas limitadas de
alimentos, água e outros elementos necessários à vida, faz com que os organismos vivos
tenham de competir constantemente nã o só para suprir suas necessidades, mas também,
para se defender contra outros perigos, como os animais predadores. Finalmente, ele
constatou que – como em todos os ambientes, alguns membros de uma mesma espécie
possuíam uma combinação de traços que os ajudavam na luta pela vida, enquanto outros
tinham características que os tornam menos adequados – existia um processo de seleção
natural que determinava quais os membros de uma espécie morreriam prematuramente e
quais iriam sobreviver e procriar. Naturalmente, os organismos que possuíam os traços
adequados eram os que tinham mais chances de sobreviver, reproduzir-se e transmitir esses
traços a sua prole. Os outros organismos, sendo menos aptos para competir, tinham mais
possibilidade de morrer prematuramente, ou de dar prole menor ou inferior. Como
resultado, os traços favoráveis sobreviviam e os desfavoráveis desapareciam com o tempo.
A controvérsia gerada pela publicação do livro, ultrapassou, e muito, o âmbito acadêmico,
principalmente, por chocar-se, diretamente, com a crença religiosa da criação, apresentada
na Bíblia, no livro de Gênesis.
A partir da análise de todas essas transformações e seguindo as reflexões de Marshall
Berman, percebemos que, se nos adiantarmos cerca de um século, para tentar id entificar os
timbres e ritmos peculiares da modernidade do século XIX, a primeira coisa que
observaremos será a nova paisagem, altamente desenvolvida, diferenciada e dinâmica, na
qual tem lugar a experiência moderna. Trata-se de uma paisagem de engenhos a vapor,
fábricas automatizadas, amplas zonas industriais; de cidades que crescem da noite para o
dia, quase sempre com conseqüências aterradoras para o ser humano; de jornais diários,
telégrafos, telefones e outros instrumentos de mídia, que se comunicam em escala cada vez
maior; de estados nacionais cada vez mais fortes e conglomerados multinacionais de
capital. Além de tudo isso, há uma intensificação dos movimentos sociais de massa, que
lutam contra essas modernizações de cima para baixo e que contam, para esse fim, apenas
com seus próprios meios de modernização de baixo para cima. A mesma modernidade
43
também nos permite vislumbrar o nascimento de um mercado mundial que a tudo abarca e
que, em crescente expansão, engendra um desperdício e uma devastação estarrecedores.
Um mercado que se mostra, cada vez mais, capaz de tudo, exceto de solidez e estabilidade.
Ainda segundo Berman, todos os grandes modernistas do século XIX atacam esse ambiente
com paixão e se esforçam por fazê- lo ruir ou por explorá- lo, a partir do seu interior. Apesar
disso, todos se sentem surpreendentemente à vontade em meio a isso tudo, sensíveis às
novas possibilidades, positivos ainda em suas negações radicais, jocosos e irônicos ainda
em seus momentos de mais grave seriedade e profundidade.
A complexidade e a riqueza do século XIX, bem como a sua modernidade, podem ser
melhor compreendidas através de algumas reflexões de Nietzche, no livro Além do Bem e
do Mal, que organizadas por Berman, definem o quão contraditória era a sociedade que
Balzac tentou reproduzir rigorosamente, descrevendo os tipos humanos, com a mesma
precisão com que Buffon retratou o conjunto da zoologia, e que Zola pretendia, a partir da
observação, transformar em um laboratório literário de experiências científicas.
Nesses pontos limiares da história exibem-se – justapostos quando não
emaranhados um no outro – uma espécie de tempo tropical de rivalidade
e desenvolvimento, magnífico, multiforme, crescendo e lutando como
uma floresta selvagem, e, de outro lado, um poderoso impulso de
destruição e autodestruição, resultante de egoísmos violentamente
opostos, que explodem e batalham por sol e luz, incapazes de encontrar
qualquer limitação, qualquer empecilho, qualquer consideração dentro da
moralidade ao seu dispor. (...) Nada a não ser novos “porquês”, nenhuma
fórmula comunitária; um novo conluio de incompreensão e desrespeito
mútuo; decadência, vício, e os superiores desejos atracados uns aos
outros, de forma horrenda, o gênio da raça jorrando solto sobre a
cornucópia de bem e mal; uma fatídica simultaneidade de primavera e
outono. (...) Outra vez o perigo se mostra, mãe da moralidade – grande
perigo – mas desta vez deslocado sobre o indivíduo, sobre o mais próximo
e mais querido, sobre a rua, sobre o filho de alguém, sobre o coração de
alguém, sobre o mais profundo e secreto recesso do desejo e da vontade
de alguém. (BERMAN, 1993, p.210) 6
Enfim, o caráter inovador, as descobertas científicas e as novas concepções filosóficas da
segunda metade do século XIX, além de provocar modificações estruturais sem precedentes
6
As passagens citadas por Berman podem ser encontradas nas seções 262, 223 e224 do livro Beyond Good
and Evil, Chicago, Henry Regnery Company, 1955, p. 146-50, 210-1)
44
em todas as instâncias sociais, iriam, mais uma vez, transbordar e contaminar a literatura,
fazendo com que a mesma ousadia que marcou a Comédia Humana, pudesse, agora, ser
encontrada nos romances de seu herdeiro e sucessor, Zola. Ao impregnar a literatura
Naturalista com a nova paisagem urbana do Barão de Haussmann, com a utopia socialista
que conduz à luta de classes desse período e leva ao desenvolvimento da filosofia marxista,
com o determinismo de Taine e com as teorias evolucionistas de Darwin, Zola consegue
capturar a essência do Segundo Império e produzir uma literatura que traduz o transitório, o
fugidio e o contingente de um tempo e de uma geração.
Elaborada para ser a imagem social do Segundo Império, a saga dos Rougon-Macquart
prenuncia a sua modernidade já no prefácio, explicita no Romance Experimental e,
finalmente, vivencia em seus romances.
Assim, no prefácio, Zola anuncia :
Je désire montrer comment une famille, un petit groupe d'êtres se
comporte en s'épanouissant pour donner naissance à dix, à vingt individus,
qui paraissent, au premier coup d'oeil, profondément dissemblables, mais
que l'analyse révèle comme intimement liés les uns aux autres. L'hérédité
a ses lois, ainsi que la pesanteur.[...]Les Rougon-Macquart, le groupe, la
famille que je me propose d'étudier a pour caractéristique le débordement
des appétits, le large soulèvement de notre âge, qui se rue aux jouissances.
Physiologiquement, ils sont la lente succession des accidents nerveux et
sanguins qui se déclarent dans une race, à la suite d'une première lésion
organique, et qui déterminent, selon les milieux, chez chacun des
individus de cette race, les sentiments, les désirs, les passions, toutes les
manifestations humaines, naturelles et instinctives, dont les produits
prennent les noms convenus de vertus et de vices. Historiquement, ils
partent du peuple, ils s'irradient dans toute la société contemporaine, ils
montent à toutes les situations, par cette impulsion essentiellement
moderne que reçoivent les basses classes en marche à travers le corps
social, et ils racontent ainsi le second empire à l'aide de leurs drames
individuels, du guet-apens du coup d'état à la trahison de Sedan. 7 (ZOLA,
1991,p.454)
7
Desejo mostrar como uma família, um pequeno grupo de seres se comporta expandindo-se para dar vida a
dez, a vinte indivíduos, que parecem, à primeira vista, profundamente diferentes, mas que a análise revela
serem intimamente ligados uns aos outros. A hereditariedade tem suas leis, da mesma forma que o peso. [...]
Os Rougon-Macquart, o grupo, a família que me proponho estudar tem por característica o transbordamento
dos apetites, a imensa agitação do nosso tempo, que se entrega aos prazeres . Fisiologicamente, eles são a
lenta sucessão dos acidentes nervosos e sangüíneos que se pronunciam em uma raça, depois de uma primeira
lesão orgânica, e que determinam, de acordo com o meio, em cada um dos indivíduos dessa raça, os
45
No Romance Experimental, ele esclarece :
Sans me risquer à formuler des lois, j'estime que la question d'hérédité a
une grande influence dans les manifestations intellectuelles et
passionnelles de l'homme. Je donne aussi une importance considérable au
milieu. Il faudrait sur la méthode aborder les théories de Darwin; mais
ceci n'est qu'une étude générale expérimentale appliquée au roman, et je
me perdrais, si je voulais entrer dans les détails. Je dirai simplement un
mot des milieux. Nous venons de voir l'importance décisive donnée par
Claude Bernard à l'étude du milieu intra-organique, dont on doit tenir
compte, si l'on veut trouver le déterminisme des phénomènes chez les
êtres vivants. Eh bien! dans l'étude d'une famille, d'un groupe d'êtres
vivants je crois que le milieu social a également une importance capitale.
Un jour, la physiologie nous expliquera sans doute mécanisme de la
pensée et des passions; nous saurons comment fonctionne la machine
individuelle de l'homme, comment il pense, comment il aime, comment il
va de la raison à la passion et à la folie; mais ces phénomènes, ces faits du
mécanisme des organes agissant sous l'influence du milieu intérieur, ne se
produisent pas au dehors isolément et dans le vide. L'homme n'est pas
seul, il vit dans une société, dans un milieu social, et dès lors pour nous,
romanciers, ce milieu social modifie sans cesse les phénomènes. Même
notre grande étude est là, dans le travail réciproque de la société sur
l'individu et de l'individu sur la société. Pour le physiologiste, le milieu
extérieur et le milieu intérieur sont purement chimiques et physiques, ce
qui lui permet d'en trouver les lois aisément. Nous n'en sommes pas à
pouvoir prouver que le milieu social n'est, lui aussi, que chimique et
physique. Il l'est à coup sûr, ou plutôt il est le produit variable d'un groupe
d'êtres vivants, qui, eux, sont absolument soumis aux lois physiques et
chimiques qui régissent aussi bien les corps vivants que les corps bruts.
Dès lors, nous verrons qu'on peut agir sur le milieu social, en agissant sur
les phénomènes dont on se sera rendu maître chez l'homme. Et c'est là ce
qui constitue le roman expérimental: posséder le mécanisme des
phénomènes chez l'homme, montrer les rouages des manifestations
intellectuelles et sensuelles telles que la physiologie nous les expliquera,
sous les influences de l'hérédité et des circonstances ambiantes, puis
montrer l'homme vivant dans le milieu social qu'il a produit lui-même,
qu'il modifie tous les jours, et au sein duquel il éprouve à son tour une
transformation continue. Ainsi donc, nous nous appuyons sur la
physiologie, nous prenons l'homme isolé des mains du physiologiste, pour
continuer la solution du problème et résoudre scientifiquement la question
sentimentos, os desejos, as paixões, todas as manifestações humanas, naturais e instintivas, cujos produtos
adquirem os nomes convenientes de virtudes e vícios. Historicamente, eles partem do povo, irradiam-se por
toda a sociedade contemporânea, expõem-se a todas as situações, por esta impulsão essencialmente moderna
que recebem as classes baixas em marcha através do corpo social, e assim eles narram o Segundo Império
com a ajuda de seus dramas individuais, da emboscada do golpe de Estado à traição de Sedan. (tradução
nossa)
46
de savoir comment se comportent les hommes, dès qu'ils sont en société. 8
(ZOLA, 1964,p.273)
Por fim, os romances de Zola nos permitem, não só reviver meio século de história , mas
também, captar a essência e a alma de um século, de um tempo, de uma geração. Nas
páginas de La curée, de 1871, encontram-se as monumentais obras de reurbanização da
capital francesa, realizadas pelo barão Haussmann, além das grandes especulações
imobiliárias e dos prazeres efêmeros aos quais a emergente burguesia começava a se
entregar. O fascínio do escritor por uma das principais ino vações arquitetônicas do
Segundo Império, também construído durante a reurbanização da cidade, Os Halles de
Paris, faria com que ele transformasse aquele deslumbrante monstro metálico de ferro e
vidro em personagem do romance Le ventre de Paris, de 1873. O universo da Bolsa de
valores e dos grandes escândalos financeiros, como o do canal do Panamá, é o tema de
L´Argent, de 1891; enquanto o nascimento da publicidade, o desenvolvimento das grandes
8
Sem me arriscar a formular leis, julgo que a questão da hereditariedade tem uma grande in fluência nas
manifestações intelectuais e passionais do homem. Também dou uma importância considerável ao meio. Seria
preciso abordar as teorias de Darwin; mas isto é apenas um estudo geral sobre o método experimental
aplicado ao romance, e eu me perderia, se quisesse entrar em pormenores. Direi apenas uma palavra sobre os
meios. Acabamos de ver a importância decisiva dada por Claude Bernard ao estudo do meio intra-orgânico,
que se deve levar em conta, quando se quer encontrar o determinismo dos fenômenos nos seres vivos. Pois
bem, no estudo de uma família, de um grupo de seres vivos, creio que o meio social tem igualmente uma
importância capital. Um dia, a Fisiologia nos explicará possivelmente o mecanismo do pensamento e das
paixões; saberemos como funciona a máquina individual do homem, como ele pensa, como ele ama, como ele
vai da razão à paixão e à loucura. Mas, estes fenômenos, estes fatos do mecanismo dos órgãos que agem sob a
influência do meio interior, não se produzem, externamente, de modo isolado e no vazio. O homem não está
só, ele vive numa sociedade, num meio social; assim, para nós romancistas este meio social modifica
constantemente os fenômenos. Aliás, nosso grande estudo reside nisso, no trabalho recíproco da sociedade
sobre o indivíduo e do indivíduo sobre a sociedade. Para o fisiólogo, o meio exterior e o meio interior são
puramente químicos e físicos, o que permite encontrar facilmente suas leis. Ainda não estamos em condições
de provar que o meio social também é apenas químico e físico. Ele o é, certamente, ou antes, ele é o produto
variável de um grupo de seres vivos que, estes sim, são absolutamente submetidos às leis físicas e químicas
que regem tanto os corpos vivos quanto os corpos brutos. Assim sendo, veremos que podemos agir sobre o
meio social, se agirmos sobre os fenômenos que tivermos dominado no homem. E é isto que constitui o
romance experimental: possuir o mecanismo dos fenômenos do homem, mostrar a engrenagem das
manifestações intelectuais e sensuais, tal qual a fisiologia nô-las explicará, sob as influências da
hereditariedade e das circunstâncias-ambiente e, depois, mostrar o homem vivendo no meio social que ele
mesmo produziu, que modifica todos os dias e, no seio do qual, experimenta por sua vez uma transformação
contínua. Assim, portanto, nós nos apoiamos na fisiologia, tomamos o homem isolado das mãos do fisiólogo
para continuar a solução do problema e resolver cientificamente a questão de se saber como se comportam os
homens, desde que estão em sociedade.
47
lojas de departamento e as conseqüências sociais do advento do capitalismo e da aplicação
dos princípios do liberalismo econômico povoam as páginas de Au Bonheur des Dames,
de1883.
Mas Zola também fez questão de espelhar, em seus romances, o comportamento social que
caracterizava as diferentes classes e meios sociais. Assim, em Pot-Bouille, de 1882, ele
tentou mostrar a mesquinhez e a falsidade que forjavam o caráter do burguês parisiense e
em La terre, de 1887, faz uma pintura brutal, crua e chocante da realidade dos camponeses
franceses. Além disso, ao selecionar os diversos quadros que constituiriam o círculo
romanesco da Histoire naturelle et sociale d’une famille sous le Second Empire, ele se
preocupou em transitar tanto pelo submundo quanto pelas mais altas instâncias do poder.
Em Nana, de 1880, ele percorre o universo da prostituição e, em La conquête des Plassans,
de 1874, ele parte de elementos como a vida provinciana, a loucura hereditária e os
conchavos políticos envolvendo a Igreja para construir o romance.
O conteúdo ousado e transgressivo que caracterizam a Saga dos Rougon-Macquart, se
manifesta, principalmente, na diversidade e na originalidade da temática que a obra aborda.
Pela primeira vez na literatura francesa, a classe operária se torna fonte de inspiração
romanesca, levando Zola a criar uma de suas obras mais importantes. Em 1877, ele
publicou L’Assomoir, primeiro romance que denunciava a condição de vida miserável a que
estavam sujeitas as classes operárias, além de mostrar as conseqüências físicas e morais
dessa miséria, e finalmente, em 1885, Zola lança o seu romance mais célebre, Germinal. A
trama de Germinal gira em torno do início da organização política e sindical da classe
operária, das primeiras greves, da divisão dos operários entre as ideologias marxista e
anarquista e da alienação burguesa. Durante toda a narrativa, o escritor incita o leitor
(burguês) a uma reflexão sobre as condições subumanas a que o capitalismo submete as
classes laboriosas e sobre a revolta que tal situação produz, além de fazer um prognóstico
catastrófico caso a sociedade opte pela permanência desse sistema.
A enorme preocupação do escritor em produzir uma literatura extremamente fiel aos
principais acontecimentos históricos que marcaram sua geração prevalece em toda a obra.
48
No entanto, percebemos que ela se evidencia, ainda mais, em determinados momentos,
como, quando, após situar a saga dos Rougon -Marquart entre o início e o fim do Segundo
Império, ele transforma a ascensão e a queda de Napoleão em elementos essenciais para a
construção dos seus romances. A trama de La fortune des Rougon, de 1871, desenrola-se
nos dias que sucedem o golpe de estado de 2 de dezembro de 1851 e, também, marca o
início da genealogia dos Rougon-Marquart. A linhagem começa quando Adélaïde Fouque
casa-se com o jardineiro Rougon e, dessa união, nasce Pierre Rougon. Após a morte do
marido, ela se torna amante de um certo Marquart, com quem tem mais dois filhos Ursule e
Antoine Maquart. Ao enviuvar pela segunda vez, Adélaïde enlouquece e acaba sendo
internada no hospício de Tulettes, em 1851. Seus filhos dariam origem aos três ramos da
família Rougon-Maquart : os Rougon, cujos descendentes herdariam dos ancestrais a
ganância e a sede de poder; os Mouret (sobrenome adotado por Ursule após seu
casamento), ramificação em que a fragilidade mental de Adélaïde tende sempre a
reaparecer e, finalmente, os Maquart, o ramo mais frágil da família que herda a loucura de
Adelaide misturada ao alcoolismo e à violência de seu amante. Em La Débâcle, de 1892,
Zola transforma a derrota do exército francês na batalha de Sedan, e a conseqüente queda
do império napoleônico, em palco para o desenrolar de uma trama que se propõe, entre
outras coisas, a fazer uma crítica implacável à violência e aos horrores da guerra.
As diversas tentações que o século XIX ofereceu aos seus contemporâneos, bem como o
percurso daqueles que se deixavam escravizar por seus desejos, tornando-se vítimas de suas
próprias paixões, também não poderiam ficar de fora dos romances de Zola.
Son
Excellence Eugène Rougon, de 1876, retra ta o universo político e mostra a ascensão
profissional e o declínio moral de um homem dominado pela paixão, pelo dinheiro e pelo
poder. Em La Faute de l’abbé Mouret, de 1875, o escritor trata da eclosão da sexualidade
reprimida pelo celibato. Em La bête humaine, de 1890, além de trazer para o romance o
mundo dos que trabalham nas linhas férreas e o advento da locomotiva a vapor, a história
narra a luta de um homem para reprimir seu instinto assassino. Em L´Oeuvre, de 1886, o
escritor conduz o leitor pelo terreno das artes, através da história de um pintor maldito.
Além disso, a fragilidade psíquica e a personalidade obsessiva que, freqüentemente, vêm à
tona, durante a puberdade, são o tema de Une page d´amour, de 1878; a fé e o misticismo
49
populares são tratados em Le Rêve, 1888; e a esperança, a alegria e a vontade de viver são
exploradas no romance La Joie de vivre, de 1884.
Finalmente, com Le docteur Pascal, Zola conclui, em 1893, a saga da família RougonMacquart. No romance, Pascal Rougon é um médico que dedicou a vida ao estudo da
hereditariedade, a partir da análise de sua própria família. Ao longo de trinta anos, para
desgosto de sua mãe, ele conseguiu reunir documentos contendo as principais informações
sobre a terrível genealogia dos Rougon-Maquart. Com a ajuda da empregada e da sobrinha
de Pascal – Martine e Clotilde – sua mãe, Félicité, fará de tudo para destruir o dossiê
organizado por seu filho, temendo que ele comprometa a posteridade da família. O
desenrolar da trama evidencia o papel do médico como legítimo representante da cultura e
do progresso científico e o das três mulheres como símbolos do obscurantismo e da
ignorância. Ao escolher esse personagem para protagonizar o derradeiro romance de sua
série, além de estabelecer, definitivamente, um fio condutor entre todos os seus romances,
Zola, mais uma vez, atesta sua convicção nas teorias mais polêmicas de sua geração: o
evolucionismo de Darwin e os preceitos deterministas de Taine.
Após essa viagem pelos elementos que serviram de alicerces para a construção da Comédia
Humana e da Saga dos Rougon-Macquart, fica ainda mais nítido que o mesmo painel
vertiginoso dos tempos modernos que induz Baudelaire a definir a modernidade, também
inspira Balzac e Zola na elaboração do prefácio da Comédia Humana e do Romance
Experimental. Portanto, muito embora, o poeta e os romancistas ocupassem lados opostos
de um mesmo palco - enquanto Baudelaire se mantinha fiel ao princípio de que a arte deve
privilegiar o lirismo, a imaginação e a beleza, os dois romancistas vetavam esses elementos
em nome do real e do verdadeiro – tanto Baudelaire quanto os precursores do Realismo e
do Naturalismo criaram uma literatura impregnada por essa mistura de beleza e caos que o
progresso trouxe para o século XIX e que iria inserir os três artistas dentro do conceito
baudelairiano de modernidade.
Entretanto, é importante ressaltar que, de certa forma, Baudelaire sempre pressentiu a
impossibilidade de se transformar a arte em uma tradução literal da realidade. Daí a sua
50
crítica aos escritores que, na tentativa de recuperar o status que a razão roubara da
literatura, pretendiam alçá-la à categoria de ciência, vetando, para tanto, a subjetividade, o
imaginário e o ficcional. Para ele, a arte deveria, antes, voltar-se para o lírico, ainda que o
sonho refletido por ela fosse inspirado pelo mundo que se desvelava diante dos olhos do
escritor. A critica que o poeta faz aos seus contemporâneos é, ao mesmo tempo, um
desabafo de alguém que não concebe a literatura dissociada da poesia :
Depuis plusieurs années, la part d'intérêt que le public accorde aux choses
spirituelles était singulièrement diminuée; son budget d'enthousiasme
allait se rétrécissant toujours. Les dernières années de Louis-Philippe
avaient vu les dernières explosions d'un esprit encore excitable par les
jeux de l'imagination; mais le nouveau romancier se trouvait en face d'une
société absolument usée, - pire qu'usée, - abrutie et goulue, n'ayant horreur
que de la fiction, et d'amour que pour la possession. Dans des conditions
semblables, un esprit bien nourri, enthousiaste du beau, mais façonné à
une forte escrime, jugeant à la fois le bon et le mauvais des circonstances,
à dû se dire : “Quel est le moyen le plus sûr de remuer toutes ces vieilles
âmes? Elles ignorent en réalité ce qu'elles aimeraient; elles n'ont un
dégoût positif que du grand; la passion naïve, ardente, l'abandon poétique
les fait rougir et les blesse. - Soyons donc vulgaire dans le choix du sujet,
puisque le choix d'un sujet trop grand est une impe rtinence pour le lecteur
du XIXe siècle. Et aussi prenons bien garde à nous abandonner et à parler
pour notre propre compte. Nous serons de glace en racontant des passions
et des aventures où le commun du monde met ses chaleurs ; nous serons,
comme dit l'école, objectif et impersonnel. “Et aussi, comme nos oreilles
ont été harassées dans ces derniers temps par des bavardages d'école
puérils, comme nous avons entendu parler d'un certain procédé littéraire
appelé réalisme, - injure dégoûtante jetée à la face de tous les analystes,
mot vague et élastique qui signifie pour le vulgaire, non pas une méthode
nouvelle de création, mais une description minutieuse des accessoires, nous profiterons de la confusion des esprits et de l'ignorance universelle.
Nous étendrons un style nerveux, pittoresque, subtil, exact, sur un canevas
banal. Nous enfermerons les sentiments les plus chauds et les plus
bouillants dans l'aventure la plus triviale. Les paroles les plus solennelles,
les plus décisives, s'échapperont des bouches les plus sottes.9
(BAUDELAIRE, 1988 p.450-1)
9
Há muitos anos, a parte de interesse que o público concede às coisas espirituais foi singularmente reduzida;
sua reserva de entusiasmo ia sempre se estreitando. Os últimos anos de Louis Philippe tinham visto as últimas
explosões de um espírito ainda excitável pelos jogos da imaginação; mas o novo romancista se encontrava
diante de uma sociedade absolutamente gasta – pior que gasta – embrutecida e voraz, não tendo horror senão
à ficção e amor apenas à posse. Em condições semelhantes, um espírito bem nutrido, entusiasta do belo, mas
habituado a uma forte esgrima, julgando, ao mesmo tempo, o bom e o mau das circunstâncias deve ter dito
para si mesmo : “Qual é a forma mais segura de comover todas essas velhas almas?” Elas ignoram, na
realidade, aquilo que amariam; têm apenas um desgosto positivo pelo grande; a paixão inocente, ardente, o
abandono poético as fazem enrubescer e ferem-nas. Sejamos então vulgares na escolha do tema, porque a
escolha de um tema grandioso é uma impertinência para o leitor do século XIX. E também tomemos muito
cuidado ao nos descuidarmos e ao falarmos por nossa própria conta. Nós seremos gelados ao contarmos
51
Berman resume bem a linguagem que Baudelaire considerava a ideal para o escritor
moderno :
No prefácio a Spleen de Paris, Baudelaire proclama que a vida moderna
exige uma nova linguagem: “uma prosa poética, musical, mas sem ritmo e
sem rima, suficientemente flexível e suficientemente rude para adaptar-se
aos impulsos líricos da alma, às modulações do sonho, aos saltos e
sobressaltos da consciência.” Sublima que “esse ideal obsessivo nasceu,
acima de tudo, da observação das cidades enormes e dos cruzamentos de
suas inúmeras conexões”. O que Baudelaire procura comunicar através
dessa linguagem, antes de mais nada, é aquilo que chamarei de cenas
modernas primordiais: experiências que brotam da concreta vida cotidiana
da Paris de Bonaparte e de Haussmann, mas estão impregnadas de uma
ressonância e uma profundidade míticas que as impelem para além de seu
tempo e lugar, transformando-as em arquétipos da vida moderna.
10
(BERMAN, 1993,p.144)
Entretanto, em momento algum, Baudelaire escondeu a enorme admiração que nutria por
dois dos principais representantes da literatura realista, Balzac e Flaubert. Paradoxalmente,
para o poeta, a genialidade dos dois escritores estava justamente no lirismo e na ironia que
era inerente a seus romances, mas que eles tanto insistiam em negar :
Les héros de l'Iliade ne vont qu'à votre cheville, ô Vautrin, ô Rastignac, ô
Birotteau [...] et vous, ô Honoré de Balzac, vous le plus héroïque, le plus
singulier, le plus romantique et le plus poétique parmi tous les
personnages que vous avez tirés de votre sein![...] La vie parisienne est
féconde en sujets poétiques et merveilleux. Le merveilleux nous
enveloppe et nous abreuve comme l’atmosphère; mais nous ne le voyons
pas.11 ( BAUDELAIRE,1988,p.261)
aventuras e paixões em que o comum do mundo coloca o seu calor; seremos, como diz a escola, objetivos e
impessoais. “E também, como nossas orelhas estavam extenuadas nesses últimos tempos pelas tagarelices
pueris de escola; como nós ouvimos de um certo procedimento literário chamado Realismo, – injúria
repugnante jogada na face de todos os analistas, palavra vaga e elástica que significa para o vulgar, não um
novo método de criação, mas uma descrição minuciosa de acessórios, – nós nos aproveitaremos da confusão
dos espíritos e da ignorância universal. Estenderemos um estilo nervoso, pitoresco, sutil, exato, sobre uma
lona banal. Encerraremos os sentimentos mais quentes e os mais efervescentes na aventura mais trivial. As
palavras mais solenes, mais decisivas, escaparão das bocas mais tolas. (tradução nossa)
10
As citações feitas por Berman podem ser encontradas em: BAUDELAIRE, Charles: Oeuvres
Complètes,Paris, Èditions du Seuil, 1988, p.146.
11
Os Heróis da Ilíada são como pigmeus, comparados a vocês, Vautrin, Rastignac, Biroteau [...] e a você,
Honoré de Balzac, você, o mais heróico, o mais extraordinário, o mais romântico e o mais poético de todos os
52
O poeta estava certo e o tempo comprovaria a sua tese. A imaginação, eterna soberana do
reino das artes, jamais cederia seu trono para a ciência, ainda que o mundo clamasse por um
império regido pela razão. No entanto, dessa batalha nasceria uma nova maneira de se
contarem histórias, um novo romance, o romance moderno. As contribuições que o
Realismo e o Naturalismo trouxeram para a construção desse novo romance podem ser
melhor compreendidas a partir das reflexões de Georges Jean em Le Roman e de Erich
Auerbach em Mimesis.
De acordo com Georges Jean, com Balzac a realidade se torna ficção e a ficção realidade.
E é por isso que as teses que opõem o romancista realista ao fantástico, e vice-versa, não
dão conta, nem uma nem outra, da leitura do escritor, visto que ele inventa uma realidade
mais verdadeira do que o real, ao descrever um universo imaginário. Georges Jean acredita
também que, mesmo para os leitores contemporâneos, os romances de Balzac contêm o
romance do futuro, ou melhor, contêm a morte do romance que não coloca em questão,
através do texto, a sociedade que descreve ou reflete. Para ele, ler Balzac hoje – além dos
prazeres e das informações que a sua pesquisa gigantesca sobre uma sociedade real nos
trazem – é estar encerrado dentro do romance, nesse universo de palavras, de frases, nesse
texto, enfim, em que a nossa leitura de uma ficção e a nossa leitura da história e do
cotidiano se confundem. O teórico acha justo portanto que, em certo sentido, se
compreenda que, após Balzac, o romance esteja condenado ou a morrer, ou a não ser mais o
romance, porque ele é um escritor do passado e do futuro.
Quanto ao Romance Experimental, Georges Jean considera que a tese defendida por seu
autor é muito fértil. Para ele, embora o fundamento da experimentação de Zola seja frágil
e largamente ultrapassado, o princípio de um romance concebido como um instrumento
científico e destinado a funcionar racionalmente ainda é extremamente difundido. Não que
ele alegue que alguém, nos dias de hoje, possa acreditar verdadeiramente que os RougonMacquart verificam as leis da hereditariedade. No entanto, para o autor, a árvore
genealógica que serve de estrutura central para a obra é a prefiguração destes romances
heróis produzidos por sua imaginação. A vida parisiense contemporânea é rica em assuntos poéticos e
maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e nos embebe como uma atmosfera, mas não o vemos.
53
modernos que combinam, minuciosamente, mecanismos orgânicos ou abstratos,
disposições em andares, cadeias, etc. Georges Jean argumenta também que, embora o
leitor, certamente, não tenha uma consciência clara e imediata do trabalho de Zola, pouco a
pouco, ele descobre que o romancista constrói seu texto pedra por pedra, ou seja, palavra
por palavra, ao redor de uma armadura sólida. Razão pela qual ele acredita ser falso e
injusto reprovar em Zola sua técnica de empreiteiro das palavras, para admirar o lirismo e a
poesia de certas páginas, uma vez que, se ele é lido como um poeta, isso ocorre na medida
em que o contraste entre uma minuciosa investigação sobre o real e um texto que instaura
um real imaginário se manifesta. O escritor acredita que Zola retém os leitores
contemporâneos porque ele foi um dos primeiros autores a abrir o romance para o
fantástico social e, particularmente, para o fantástico urbano. Ele apreendeu o aspecto
alucinatório das grandes multidões. Os detalhes “pitorescos” dos romances de Zola são tão
capazes de datá- los quanto essa história confessa de “uma família sob o Segundo Império”.
A greve de Germinal é uma greve de um outro tempo, a grande loja de departamentos de
Au Bonheur Des Dames é uma loja de antigamente, tanto a perversidade do herói de La
Curée quanto o erotismo de Nana são de uma outra época. No entanto, todos esses
elementos e inúmeros outros permanecem profundamente contemporâneos, o que gera a
sensação de que, ao ler Zola, está-se, de certa forma, lendo uma repetição do que ia
acontecer na nossa sociedade e na nossa civilização. Por fim, o teórico afirma que o texto
de Zola, sucessivamente laborioso e torrencial, visto de longe, assemelha-se a todos os
textos Realistas ou Naturalistas do final do século XIX, mas, visto de perto, mostra-se
como a trama extremamente fechada de uma tapeçaria que se desfaz diante das coisas, que
faz com que as coisas apareçam na sua matéria, sob e dentro das palavras. Enquanto
Flaubert anuncia o começo da literatura pura, Zola prefigura “outra coisa”, outras artes
além da Literatura (o cinema e a televisão, por exemplo). Georges Jean termina com a
reposta dada por Mallarmé, em 1891, a uma enquete sobre a evolução literária:
J’ai une grande admiration pour Zola. Il a fait moins, à vrai dire de
véritable littérature, que de lárt évocatoire; en se servant, le moins qu'il est
possible, des éléments littéraires ; il a pris les mots, c'est vrai, mais c'est
tout; le reste provient de sa merveilleuse organisation et se répercute tout
de suite dans l'esprit de la foule. Il a vraiment des qualités puissantes; sons
sens inouï de la vie, ses mouvements de foule, la peau de Nana, dont nous
avons tous caressé le grain, tout cela peint en de prodigieux lavis, c'est
54
l'oeuvre d'une organisation vraiment admirable! Mais la littérature a
quelque chose de plus intellectuel que cela: les choses existent, nous
n'avons pas à les créer; nous n'avons qu'à en saisir les rapports; et ce sont
les fils de ces rapports qui forment les vers et les orchestres. 12
(MALLARMÉ, 2003, p.701-2)
A análise feita por Erich Auerbach sobre as modificações estruturais sofridas pelo romance,
a partir dos novos paradigmas literários introduzidos por Balzac e Zola, também nos ajuda
a compreender melhor os elementos que inserem a obra desses dois escritores dentro da
modernidade literária e as novas perspectivas que se abrem para o romance a partir do
século XIX.
Auerbach afirma que em toda a sua obra, Balzac sentiu os meios, por mais diferentes que
fossem, como unidades orgânicas, demoníacas até, e tentou transmitir essa sensação ao
leitor. Ele não se preocupou apenas em localizar os seres cujo destino contava seriamente,
na sua moldura histórica e social perfeitamente determinada, como fazia Stendhal, mas
também, considerou essa relação como necessária: todo espaço vital torna -se para ele uma
atmosfera moral e física, cuja paisagem, habitação, móveis, acessórios, vestuário, corpo,
caráter, trato, ideologia, atividade e destino permeiam o ser humano, ao mesmo tempo em
que a situação histórica geral aparece, novamente, como atmosfera que abrange todos os
espaços vitais individuais.
Para levantar as principais inovações que a Comédia Humana introduziria na literatura e
que fariam do seu autor o criador do romance moderno, Auerbach parte das declarações do
próprio Balzac sobre os elementos que norteariam a edificação da sua obra. Em 26 de
outubro de 1834, Balzac escreve a madame Von Hanska sobre o plano que paulatinamente
ia se formando dentro dele e que deveria conduzir o conjunto da sua obra :
12
Eu tenho uma grande admiração por Zola. Ele fez menos, para dizer a verdade, de verdadeira literatura, que
de arte evocatória; servindo-se o mínimo possível dos elementos literários; ele pegou as palavras, é verdade,
mas isso é tudo; o resto provém da sua maravilhosa organização e repercute imediatamente no espírito da
multidão. Ele tem verdadeiramente qualidades poderosas; seu senso extraordinário da vida, seus movimentos
de multidão, a pele de Nana, a qual todos nós acariciamos o grão; tudo isso pintado em prodigiosa aquarela, é
obra de uma organização verdadeiramente admirável. Mas a literatura tem alguma coisa de mais intelectual
do que isso: as coisas existem, nós não temos que acreditar nelas, nós temos somente que prender as relações
e são os fios dessas relações que formam os versos e os orquestram. (tradução nossa)
55
Les Etudes des Moeurs répresenteront tous les effets sociaux sans que ni
une situation de la vie, ni une physionomie, ni um caractère d’homme ou
de femme, ni une manière de vivre, ni une profession, ni une zone sociale,
ni un pays français, ni quoi que se soi de l’enfance, de la veillesse, de
l´âge mûr, de la politique, de la justice, de la guerre ait éte oblié. Cela
posé, l’histoire du coeur humain tracée fil à fil, l’histoire sociale faite dans
toutes ses parties, voilà la base. Ce ne seront pas des faits imaginaires; ce
sera ce qui se passe partout. 13 (BALZAC,1967,p.269)
Tomando como referência essa interpretação que Balzac faz da Comédia Humana,
Auerbach levanta três motivos a serem salientados dentro da obra do escritor. Ele alega que
dois desses motivos podem ser reconhecidos imediatamente. O primeiro é o caráter
universal e vitalmente enciclopédico da intenção, nenhuma parte da vida deve faltar; logo
depois, percebe-se a realidade casual: ce qui se passe partout; e, finalmente, o terceiro
motivo reside na palavra histoire. No entanto, para Auerbach, essa histoire du coeur
humain ou histoire sociale não se refere à “História” no sentido corrente, ou seja, não se
trata da investigação científica de acontecimentos ocorridos, mas de uma invenção
relativamente livre; não se trata de history, mas de fiction (os termos ingleses são
especialmente claros); não se trata de forma alguma do passado, mas do presente
contemporâneo, que se estende, quando muito, por alguns anos ou décadas no passado.
Quando Balzac designa os seus Études des moeurs au dix-neuvième siècle como história,
significa, em primeiro lugar, que ele considera a sua atividade criativa e artística como uma
atividade histórico-representativa, de natureza mesmo histórico- filosófica, o que pode ser
percebido de forma muito clara no Avant-propos. Em segundo lugar, significa que ele
enxerga o presente como história; isto é, o presente é algo que ocorre surgindo da história.
De fato, os seus homens e ambientes, por mais presentes que sejam, estão sempre
representados como fenômenos que emana ram dos acontecimentos e das forças históricas.
Auerbach cita, como exemplos, a descrição da origem da fortuna de Grandet (Eugénie
13
Os Estudos dos Costumes representaram todos os efeitos sociais sem que nenhuma situação da vida,
nenhuma fisionomia, nenhum caráter de homem ou de mulher, nenhuma maneira de viver, nenhuma
profissão, nenhuma província francesa, nada do que disser respeito à infância, à velhice, à idade madura, à
política, à justiça, à guerra, tenha sido esquecido. Isto posto, a história do coração humano traçada fio por fio,
a história social feita em todas as suas partes, eis a base. Não serão fatos imaginários; será o que acontece em
toda parte. (O texto citado por Auerbach foi extraído de Lettres à L’Etrangère, Paris, Calmann-Lévy,1899,
p.205)
56
Grandet) e a carreira de Du Bousquier (La vielle Fille) e a do velho Goriot (Le pére
Goriot). Para o autor, nada semelhante, tão consciente, nem tão exato se encontra em parte
alguma, antes do aparecimento de Sthendal e de Balzac, sendo que Balzac vai muito mais
longe do que Stendhal no que se refere à ligação orgânica entre o homem e a história.
Quanto ao segundo motivo: ce ne seront pas des faits imaginaires; ce sera ce qui ce passe
partout. Auerbach pondera que, com isso, fica dito que a invenção não provém da livre
força imaginativa, mas da vida real, tal como se apresenta em toda parte. E ainda, que
Balzac possui, diante desta vida – múltipla, embebida de história, representada sem
disfarces, com tudo o que tiver de cotidiano, prático, feio e comum – uma posição
semelhante à que Stendhal já possuíra: leva-a a sério e até a considera tragicamente, nesta
forma real, quotid iana intra-histórica. O teórico alemão alega que isso não existiu em parte
alguma na época posterior ao surgimento do gosto clássico; nem antes, nessa forma prática
e intra-histórica, dirigida para a auto-responsabilização social do homem. A partir do
Classicismo francês e, sobretudo, após o Absolutismo, não somente o tratamento do
quotidiano -real tinha se tornado muito mais limitado e decoroso, mas também a atitude que
se tinha diante dele privava -se, por assim dizer, fundamentalmente, do trágico e do
problemático. Um objeto da realidade prática podia ser tratado de forma cômica, satírica,
didático-moralizante; certos objetos de campos bem circunscritos e determinados do
contemporâneo e quotidiano atingiam até o nível estilístico mediano do comovente; mas
não iam além. A vida real-quotidiana, mesmo das camadas médias da sociedade, era
considerada como de estilo baixo. O engenhoso Henry Fielding, que toca tantos problemas
morais estéticos e sociais, mantém a representação sempre nos limites do tom satíricomoralista e diz que no Tom Jones : ...That kind of novels which, like this I am writing, is of
the comic class (AUERBACH, 2004, p. 430) (...esse tipo de romance, como o que eu estou
escrevendo, pertence ao gênero cômico).
Auerbach prossegue e afirma que a novidade da atitude e a nova espécie de objetos que
eram tratados séria, problemática e tragicamente, tiveram como efeito o desenvolvimento
progressivo de uma espécie totalmente nova de estilo sério ou, se se quiser, elevado. Não
seria possível transferir para os novos objetos, sem mais nem menos, os níveis antigos
57
(cristãos, shakespearianos, racinianos) de percepção e expressão. Entretanto, num primeiro
momento, ainda havia uma certa insegurança em se adotar essa nova espécie de atitude
grave. Por isso, Stendhal, cujo realismo surgira a partir de uma resistência contra um
presente que lhe era desprezível, ainda conservou, na sua atitude, muito dos instintos do
século XVIII. Nos seus heróis, ainda aparecem espectros das lembranças de figuras como
Romeu, Don Juan e Valmont (das Liaisons Dangeureses). Balzac, em contrapartida,
submerge seus heróis bem mais profundamente na temporalidade. Com isto, perdem-se-lhe
a medida e os limites daquilo que, anteriormente, era considerado trágico. Qualquer enredo,
por mais trivial ou corriqueiro que seja, é por ele tratado grandiloqüentemente, como se
fosse trágico; qualquer mania é por ele vista como paixão. Está sempre disposto a marcar
qualquer infeliz como herói ou como santo; se se tratar de uma mulher, compara-a com um
anjo ou com uma madona. Demoniza todo e qualquer malvado vigoroso e, em geral,
qualquer figura levemente sombria e chega, até mesmo, a chamar o coitado do velho Goriot
de Christ de la paternité.
Com a passagem do Realismo para o Naturalismo, a representação do real se tornou mais
crua, bruta e, por vezes, até mesmo violenta, fazendo com que, inicialmente, os romances
naturalistas causassem um enorme estranhamento e fossem recebidos com resistência por
uma elite burguesa muito pouco consciente das questões sociais do seu tempo. Auerbach
afirma que, quando das primeiras aparições das obras de Zola, nos últimos trinta anos do
século XIX, algumas como Germinal, La terre, La Bête Humanine, dentre outras,
provocaram repulsa e horror, mas também, junto a uma minoria notável, grande admiração.
Muitos dos seus romances alcançaram, logo após a sua publicação, grandes tiragens, ao
mesmo tempo em que começava um movimento pró ou contra a justificação de tal arte.
Quem não soubesse nada acerca disso e não conhecesse a obra do escritor poderia acreditar,
ao ler alguns parágrafos de um dos seus romances, que se tratava da forma literária de um
naturalismo grosseiro que já se conhecia da pintura flamenga e, sobretudo, da pintura
holandesa do século XII. Não seria mais do que uma orgia de bebida e de dança nas
camadas mais baixas da população, como as retratadas nas obras de Rubens ou Jordaens, de
Brouwer ou Ostade, embora, na literatura de Zola não fossem camponeses os que bebiam e
dançavam, mas operários industriais. Além disso, como Zola conferiu um grande valor ao
58
elemento puramente sensorial da “pintura literária” de uma orgia da plebe, poder-se-ia
achar, por um instante, que o que se desenrolava na frente do leitor não era mais do que um
processo vigoroso de estilo baixo, uma devassa grosseira. Como exemplo, Auerbach cita o
texto abaixo extraído de Germinal :
Jusqu’à dix heures, on resta. Des femmes arrivaient toujours, pour
rejoindre et emmener leurs hommes; des bandes d'enfants suivaient à la
queue; et les mères ne se gênaient plus, sortaient des mamelles longues et
blondes comme des sacs d'avoine, barbouillaient de lait les poupons
joufflus; tandis que les petits qui marchaient déjà, gorgés de bière et à
quatre pattes sous les tables, se soulageaient sans honte. C'était une mer
montante de bière, les tonnes de la veuve Désir éventrées, la bière
arrondissant les panses, coulant de partout, du nez, des yeux et d'ailleurs.
On gonflait si fort, dans le tas, que chacun avait une épaule ou un genou
qui entrait chez le voisin, tous égayés, épanouis de se sentir ainsi les
coudes. Un rire continu tenait les bouches ouvertes, fendues jusqu'aux
oreilles. Il faisait une chaleur de four, on cuisait, on se mettait à l'aise, la
chair dehors, dorée dans l'épaisse fumée des pipes; et le seul inconvénient
était de se déranger, une fille se levait de temps à autre, allait au fond, près
de la pompe, se troussait, puis revenait. Sous les guirlandes de papier
peint, les danseurs ne se voyaient plus, tellement ils suaient; ce qui
encourageait les galibots à culbuter les herscheuses, au hasard des coups
de reins. Mais, lorsqu'une gaillarde tombait avec un homme par- dessus
elle, le piston couvrait leur chute de sa sonnerie enragée, le branle des
pieds les roulait, comme si le bal se fût éboulé sur eux. 14 (ZOLA, 1966,
p.155-6)
Auerbach alega, no entanto, que, só por causa disso, os contemporâneos de Zola não teriam
se irritado tanto. Entre os seus inimigos, que se encarniçavam contra o repugnante, o sujo, o
obsceno da sua arte, havia, certamente, muitos que aceitavam o realismo grosseiro ou
cômico de épocas anteriores, mesmo nas suas representações mais cruas ou mais amorais,
14
Ficou-se até as dez. Continuavam a chegar mulheres, para juntar-se e para levar embora os seus homens;
bandos de crianças seguiam-nos; e as mães não faziam cerimônia, punham para fora mamas longas e loiras
como sacos de aveia, borravam de leite os seus bebês bochechudos; enquanto os pequenos que já andavam,
empanturrados de cerveja e de quatro sob as mesas , aliviavam-se sem vergonha. Era uma maré alta de
cerveja, os tonéis da viúva Désir, estripados, a cerveja arredondando as panças, correndo em toda parte, do
nariz, dos olhos e de outras partes. Estavam tão inchados e enroscados que cada um tinha um ombro ou um
joelho que entrava no seu vizinho, todos alegres, expansivos por se sentirem assim acotovelados. Um riso
contínuo mantinha todas as bocas abertas, fendidas até as orelhas. Fazia um calor de forno, cozinhava-se,
ficava-se à vontade, a carne de fora dourada na espessa fumaça dos cachimbos; e o único inconveniente era o
de se incomodar, uma moça levantava-se de vez em quando, ia até o fundo, perto da bomba, arregaçava-se,
depois voltava. Sob as guirlandas de papel pintado os dançarinos não mais se viam, de tanto que suavam; o
que encorajava os rapazes serventes nas minas a derrubar as rastilheiras ao acaso das nadegadas. Mas quando
uma rapariga caía com um rapaz em cima dela, o pistão cobria a sua queda com o ressoar irado, o movimento
dos pés os rolava, como se a dança tivesse desabado por cima deles.
59
com indiferença ou até com deleite. O que os enchia de excitação era o fato de que Zola
não apresentava a sua arte como sendo de estilo “baixo” ou “cômico”. Ao contrário, suas
linhas delatavam que aquilo era considerado da forma mais séria e moralista possível e que
o conjunto não seria um divertimento ou um jogo artístico, mas um retrato verdadeiro da
sociedade contemporânea tal como ele, Zola, a via e tal como o público também era
intimado a vê-la nas suas obras.
A temática dos romances de Zola, normalmente, abre espaço para a abordagem de alegrias
pobres e grosseiras; da corrupção prematura, do rápido desgaste do material humano; do
embrutecimento da vida sexual em contraste com um índice de natalidade demasiado
elevado, pois a cópula é o único deleite gratuito; e, sob todas essas misérias humanas, o
ódio revolucionário prestes a eclodir. Auerbach lembra que esses temas são postos em
evidência sem disfarce, sem medo diante das palavras mais claras ou dos acontecimentos
mais feios. Com Zola, a arte do estilo renuncia totalmente a procurar efeitos agradáveis, no
sentido tradicional e serve, sem pudor, à verdade desagradável, opressiva, desconsolada.
Uma verdade que, simultaneamente, estimula para uma ação no sentido da reforma social.
Não mais se trata, como no caso dos irmãos Goncourt, do atrativo sensorial do feio. Tratase, sem sombra de dúvida, do cerne do problema social do século XIX, da luta entre o
capital industrial e a classe operária. O princípio da arte pela arte está liquidado. O teórico
alemão argumenta que, embora seja possível constatar que Zola sentiu e aproveitou a
sugestão sensorial do feio e do repugnante; e censurá-lo por ter dado vazão a uma fantasia,
um tanto grosseira e violenta, que levou-o a cometer exageros, brutais simplificações e a
empregar uma psicologia demasiado materialista, tudo isso não é decisivo. Zola levou a
sério a mistura de estilos, foi além do realismo meramente estético da geração que o
precedeu e é um dos pouquíssimos escritores do século que construíram sua obra a partir
dos grandes problemas sociais do seu tempo. Nesse sentido, apenas Balzac é comparável a
ele, entretanto, o autor da Comédia Humana escreveu num tempo em que muito daquilo
que Zola identificou, ou ainda não tinha se desenvolvido, ou não podia ser reconhecido.
Assim, se Zola exagerou, ele o fez na direção que interessava e, se tinha predileção pelo
feio, fe z dele o uso mais frutífero possível.
60
Auerbach conclui afirmando que, nos Rougon-Macquart, há uma soma inimaginável de
inteligência e de trabalho. Hoje, estamos saturados de tais impressões. Zola teve muitos
seguidores e cenas semelhantes às dos seus livros poderiam ser encontradas em qualquer
reportagem moderna. No entanto, ele foi o primeiro, e a sua obra está repleta de quadros de
espécie e de hierarquia semelhantes. Para Auerbach, ainda que os erros da concepção
antropológica de Zola e os limites do seu gênio sejam evidentes, eles não ferem a sua
importância artística, moral e , sobretudo, histórica. O teórico alemão também acredita que
a figura de Zola crescerá, à medida que ganharmos distância do século XIX e dos seus
problemas, principalmente, porque ele foi o último dos grandes realistas franceses. Durante
os últimos anos de sua vida, a reação “antinaturalista” tornou-se muito forte, até porque,
não havia mais ninguém que pudesse se equiparar a Zola, quanto à força de trabalho, ao
domínio da vida e do seu tempo, ao fôlego e à coragem.
Percorrendo a trilha literária deixada por Balzac e por Zola, na tentativa de alcançar um
controle utópico do imaginário e de produzir obras que traduzissem literalmente a
realidade, podemos questionar se a literatura se transformou em História, se se converteu
em ciência, ou se, ao contrário, mesmo mantendo intactos os seus conteúdos subjetivo e
imaginário, foi capaz de refletir a história e a essência de um tempo e de uma geração. No
entanto, desde já podemos afirmar que, ainda que os dois escritores não tenham logrado
conferir ao romance o status de ciência, tiveram a primazia de atribuir- lhe o nobre título de
moderno.
61
CAPÍTULO II
4. A OBSESSÃO MIMÉTICA E O CONTROLE DO IMAGINÁRIO EM BALZAC E ZOLA
Edificar um projeto do porte da Comédia humana, num primeiro momento, pareceu ser, aos
olhos do próprio Balzac, um destes sonhos que, apesar de utópicos, acalentamos ao longo
de toda a vida, mas que termina por se desvanecer entre nossos dedos; uma sedutora
quimera que, após sorrir e mostrar seu rosto, parte em revoada para o céu da imaginação.
Decidido a transformar a quimera em realidade, Balzac elaboraria um plano, um sistema o
qual ele deveria seguir obstinadamente, a fim de provar que, se Buffon foi capaz de
representar, em um livro, o conjunto da zoologia, a Literatura seria capaz de fazer o
mesmo pela sociedade. O título do projeto balzaquiano, A Comédia Humana, apareceu pela
primeira vez em 1839, em uma carta ao editor Hetzel e é uma franca alusão à obra de
Dante, o que, na época, provocou uma enxurrada de críticas, quase todas associando a
analogia feita à Divina Comédia à enorme falta de modéstia do escritor. Entretanto, em
1841, esse majestoso título já aparece em um contrato entre Balzac e um grupo de editores
e foi com ele que o escritor reuniu os dezesseis volumes de sua obra, que foram publicados
entre junho de 1842 e agosto de 1846, além de um volume complementar, o décimo sétimo,
incorporado ao conjunto, em 1848. Essa edição, conhecida como edição Furne, confirmava
um antigo desejo de Balzac de realizar um trabalho que pudesse ser visto na sua totalidade,
além de ter sido a única organizada e controlada pelo
autor e lida pelos seus
contemporâneos.
As duas introduções, escritas por Felix Davin, mas ditadas por Balzac, em janeiro e em
julho de 1835, para os Estudos Filosóficos e os Estudos dos Costumes e alguns prefácios
62
como os dos livros: Lys dans la valée, Le Père Goriot e Cabinet des Antiques, quase todos
polêmicos e escritos pelo autor, são exemplos das diversas tentativas empreendidas pelo
escritor, na ânsia de explicar o seu sistema e de justificar suas intenções literárias. Assim
sendo, em 1842, tanto Balzac quanto seus editores hesitaram sobre a natureza do texto que
deveria prefaciar a obra monumental que estava prestes a ser publicada. O primeiro nome
sugerido pelos editores para redigir o prefácio foi o do escritor Charles Nodier, que
declinou o convite. Balzac, por sua vez, pensou em George Sand que, após ter aceito a
missão, viu-se obrigada a abrir mão do projeto, por motivo de saúde. Finalmente,
convencido pelos editores, Balzac se dispõe a escrever, ele mesmo, um texto introdutório
para sua obra e, assim, em julho de 1842, nascia o prólogo que modificaria para sempre a
história da literatura, O Prefácio da Comédia Humana. O texto, ambíguo e controverso,
assume, por vezes, ares de manifesto, por outras, de discurso de defesa; e, repleto de
momentos de puro lirismo, chega até mesmo a tatear, ainda que subliminarmente, o
universo da ficção. No entanto, ele não pode ser definido nem como um manifesto, nem
como um discurso de defesa, nem tão pouco como uma ficção. As vinte páginas que
antecedem a leitura dos romances balzaquianos são, na realidade, uma tentativa de traduzir
a ambição do escritor de conferir status de ciência à literatura, através de um sistema que
engloba diversos níveis : científico, político, moral e estético.
Para assegurar a cientificidade de seu projeto, Balzac lança mão do nome de várias
autoridades em História Natural, Matemática e Biologia, como Leibnitz, Buffon e Charles
Bonnet, dentre outros, cujas teorias ele pretendia incorporar à literatura, a fim de legitimarse como zoógrafo das diferentes espécies sociais. E até mesmo a querela que mobilizara
Curvier e Saint-Hilaire, em 1830, é colocada em pauta, com o objetivo de anunciar uma
literatura que deverá preconizar a unidade de composição orgânica defendida por SaintHilaire e saudada por Goethe :
En relisant les oeuvres si extraordinaires des écrivains mystiques qui se
sont occupés des sciences dans leurs relations avec l'infini, tels que
Swedenborg, Saint-Martin, etc., et les écrits des plus beaux génies en
histoire naturelle, tels que Leibnitz, Buffon, Charles Bonnet, etc., on
trouve dans les monades de Leibnitz, dans les molécules organiques de
Buffon, dans la force végétatrice de Needham, dans l'emboîtement des
parties similaires de Charles Bonnet, assez hardi pour écrire en 1760 :
63
L'animal végète comme la plante ; on trouve, dis -je, les rudiments de la
belle loi du soi pour soi sur laquelle repose l'unité de composition.[...] La
proclamation et le soutien de ce système, en harmonie d'ailleurs avec les
idées que nous nous faisons de la puissance divine, sera l'éternel honneur
de Geoffroi Saint-Hilaire, le vainqueur de Cuvier sur ce point de la haute
science, et dont le triomphe a été salué par le dernier article qu'écrivit le
grand Goethe. 1 (BALZAC,1964, pag 190)
Como o seu sistema deveria também abranger o âmbito moral e político e ter como
alicerces o catolicismo e a monarquia, Balzac buscará suporte para justificar seus
pressupostos legitimistas nas obras do filósofo e publicista Luis-Gabriel de Bonald e do
bispo e teólogo francês, criador da teoria do direito divino, Jacques-Bénigne Bousset.
Por fim, para um escritor que tencionava ser um arqueólogo do mobiliário social, seria
natural que a obra projetasse, na forma, a mesma ambição científica desejada para o
conteúdo. Daí a necessidade da criação de um sistema estruturado que propunha: a reunião
dos inúmeros traços da personalidade humana, por meio de tipos caricaturais; a
congregação dos seis conjuntos romanescos, segundo uma lógica antropomórfica, levando a
obra a evoluir da infância à idade madura; o retorno dos personagens; e, finalmente, a interrelação entre os romances, de maneira a orquestrar as diversas histórias, para que
compusessem um único romance. Assim, o sistema Balzaquiano se dispunha, também, a
inaugurar uma nova estética literária.
Quase meio século separa a publicação do Prefácio da Comédia Humana do lançamento do
Romance Experimental. No entanto, se a literatura concedeu a Balzac o título de
arqueólogo da vida íntima da Restauração à Monarquia de Julho, coube a Zola o de
historiador dos dramas sociais do Segundo Império. Como observa George Lukacs, em
Balzac et le Réalisme Français, o próprio Zola se considerava o legítimo herdeiro e
1
Relendo obras tão extraordinárias de escritores místicos que se ocuparam das ciências nas suas relações com
o infinito, como Swedenborg, Saint Martin, etc, e os escritos dos maiores gênios em história natural, como
Leibnitz, Buffon, Charles Bonnet, encontramos nas mônadas de Leibnitz, nas moléculas orgânicas de Buffon,
na força vegetante de Needham, no encaixe das partes semelhantes de Charles Bonnet, audacioso o suficiente
para escrever em 1760: O animal vegeta como a planta ; encontramos, digo, os rudimentos da bela lei do soi
pour soi sobre a qual repousa a Unidade de composição [...] A proclamação e a sustentação deste sistema, em
harmonia, aliás, com as idéias que fazemos da força divina, será a eterna honra de Geoffroi Saint-Hilaire, o
vencedor de Cuvier neste ponto da alta ciência, e cujo triunfo foi saudado no último artigo escrito pelo grande
Goethe.(tradução nossa)
64
sucessor dos grandes realistas do século XIX, ainda que se propusesse a aperfeiçoar a
estética dos seus antecessores. Lukcas afirma que, para um escritor original como Zola,
uma herança não poderia jamais representar um modelo mecânico. Portanto, a despeito da
enorme admiração que ele dedicava ao autor da Comédia Humana, Zola não abre mão de
fazer uma crítica mordaz aos realistas e de afirmar que o principal mérito de Balzac foi o de
ter introduzido, na literatura, o “sentido do real” e que, no mais, apesar da sua enorme
capacidade de análise e de observação da sociedade, o romance balzaquiano se deixara
contaminar pela imaginação:
En un mot, l'imagination de Balzac, cette imagination déréglée qui se
jetait dans toutes les exagérations et qui voulait créer le monde à nouveau,
sur des plans extraordinaires, cette imagination m'irrite plus qu'elle ne
m'attire. Si le romancier n'avait eu qu'elle, il ne serait aujourd'hui qu'un
cas pathologique et qu'une curiosité dans notre littérature. Mais,
heureusement, Balzac avait en outre le sens du réel, et le sens du réel le
plus développé que l'on ait encore vu. 2 (Zola, 1989, pag 41)
Lukacs prossegue dizendo que a transição entre as duas estéticas se faz de forma muito
menos retilínea do que Zola havia imaginado. Entre os dois escritores, existiu o ano de
1848, ou seja, um ano que foi decisivo para a evolução da ideologia burguesa na França e
que marca a primeira grande manifestação autônoma do proletariado na História. No
entanto, junto com essa manifestação, terminaria o papel progressista da ideologia burguesa
e, pouco a pouco, a adaptação e a tendência à apologética ganhariam cada vez mais terreno.
Apesar disso, seguindo as reflexões do filósofo húngaro, observamos que, na verdade, Zola
nunca esteve entre os apologistas da ordem social capitalista. Ao contrário, ele
empreenderia um corajoso combate, no início, limitado ao campo da literatura e, em
seguida, abertamente político, contra a evolução reacionária do capitalismo francês. As
experiências vividas pelo escritor, ao longo da vida, aproximaram- no aos poucos dos
problemas do socialismo; e a evolução ideológica da sua classe acabaria por interferir,
2
Em resumo, a imaginação de Balzac, essa imaginação desregrada que se lança em todos os exageros e que
queria criar o mundo de novo, sobre planos extraordinários, essa imaginação me irrita mais do que me atrai.
Se o romancista tivesse tido somente essa imaginação, seria apenas, hoje, um caso patológico e uma
curiosidade em nossa literatura. Felizmente, entretanto, Balzac possuía, além disso, o senso do real e o senso
do real mais desenvolvido até aquele momento.
65
profundamente, na maneira de pensar, nos princípios e nos métodos de criação do escritor.
Dessa forma, podemos concluir que a crítica social consciente e perspicaz seria muito mais
enérgica e progressista na obra de Zola, do que na do monarquista católico, Balzac.
Por outro lado, ainda de acordo com Lukacs, Balzac e Stendhal – que descreveram a
passagem da França burguesa do heróico período da Revolução e de Napoleão à hipócrita e
romântica época da Restauração e à infame, e abertamente pequeno-burguesa, Monarquia
de Julho – viveram em um momento histórico no qual a oposição entre a burguesia e o
proletariado não apareciam ainda de maneira manifesta como centro do movimento geral da
sociedade. Eles puderam, portanto, desvelar e representar, sem cuidados prévios e de
maneira conseqüente, as mais profundas contradições da sociedade burguesa; no entanto, o
mesmo não ocorre entre os seus sucessores, visto que tamanha profundidade e ausência de
precaução, aliadas a uma crítica social tão ampla, teriam conduzido a uma ruptura total com
sua própria classe.
Assim, mesmo sendo sinceramente progressista, Zola não conseguiu realizar tamanha
ruptura. Para George Lukacs, esse posicionamento se reflete nas bases da concepção
metodológica do escritor, na medida em que ele rejeita a dialética totalmente natural de
Balzac e o seu desnudamento visionário e veemente das contradições do capitalismo, como
sendo anticientíficos e românticos e coloca, no lugar, um método “científico” que concebe
a sociedade como um combate contra os aspectos doentios de seu próprio organismo
homogêneo, um combate contra o “lado mau” do capitalismo :
Le circulus social est identique au circulus vital : dans la société comme
dans le corps humain, il existe une solidarité qui lie les différents
membres, les différents organes entre eux, de telle sorte que, si un organe
se pourrit, beaucoup d'autres sont atteints, et qu'une maladie très complexe
se déclare. 3 (ZOLA, 1964, pag 280).
O filósofo afirma, ainda, que o “espírito científico” do autor do Romance Experimental
conduz, por conseguinte, a uma assimilação mecânica da sociedade e do organismo, e que é
3
O circulus social é idêntico ao circulus vital : na sociedade, tanto quanto no corpo humano, existe uma
solidariedade que liga os diferentes órgãos, entre si, de tal modo que, se um órgão apodrece, muitos outros são
atingidos e uma doença muito complexa se declara.
66
seguindo esse raciocínio, de maneira coerente, que Zola elabora sua crítica ao Prefácio da
Comédia Humana. Balzac desejava aplicar à sociedade a dialét ica da evolução das
espécies, defendida por Geoffroy Saint-Hilaire. Para tanto, ele utiliza, com toda a sua
energia, as novas categorias da dialética da sociedade. É aí que, segundo Lukacs, aos olhos
de Zola, a “clareza do plano científico” teria se perdido, pois existe uma “confusão”
romântica de Balzac. O que Zola admite como resultado “científico” é a concepção não
dialética de uma unidade orgânica na natureza e na sociedade, ou seja, a eliminação das
contradições como fundamento do movimento da sociedade. Com base nesse pressuposto,
ele atribui a Flaubert o mérito de ter realizado o sonho realista proposto por Balzac :
Quand Madame Bovary parut, il y eut toute une évolution littéraire. ll
sembla que la formule du roman moderne, éparse dans l'oeuvre colossale
de Balzac, venait d'être réduite et clairement énoncée dans les quatre cents
pages d'un livre. 4 (ZOLA, 1989, pag : 131)
Zola acredita que a grandiosidade de Flaubert se deve, primeiramente, à eliminação de
todos os elementos romanescos :
Le premier caractère du roman naturaliste, dont Madame Bovary est le
type, est la reproduction exacte de la vie, l'absence de tout élément
romanesque. La composition de l'oeuvre ne consiste plus que dans le
choix des scènes et dans un certain ordre harmonique des
développements. Les scènes sont elles-mêmes les premières venues :
seulement, l'auteur les a soigneusement triées et équilibrées, de façon à
faire de son ouvrage un monument d'art et de science. 5( ZOLA, 1989, pag
132)
Entretanto, mesmo sem retirar de Balzac o mérito de também ter sido um mestre na
representação realista do cotidiano, ele persiste na idéia de que, ao contrário de Flaubert, a
ânsia realista do autor da Comédia Humana acabava sempre sendo corrompida pela eclosão
4
Quando Madame Bovary apareceu, houve toda uma revolução literária. Parecia que a fórmula do romance
moderno, dispersa na obra colossal de Balzac, acabava de ser simplificada e claramente enunciada nas
quatrocentas páginas de um livro.
5
A primeira característica do romance naturalista, do qual Madame Bovary é o protótipo, é a reprodução
exata da vida, a ausência de todo elemento romanesco. A composição da obra consiste apenas na escolha das
cenas e numa ordem harmônica dos desenvolvimentos. As cenas são elas próprias as primeiras que chegam :
contudo, o autor as selecionou e equilibrou cuidadosamente , de modo a fazer de sua obra um monumento de
arte e de ciência.
67
do imaginário, o que condenaria a obra balzaquiana a mergulhar em um universo de sonho
e fantasia :
Balzac, dans ses chefs- d'oeuvre : Eugénie Grandet, Les Parents pauvres,
Le père Goriot, a donné ainsi des images d'une nudité magistrale, où son
imagination s'est contentée de créer du vrai. Mais, avant d'en arriver à cet
unique souci des peintures exactes, il s'était longtemps perdu dans les
inventions les plus singulières, dans la recherche d'une terreur et d'une
grandeur fausses ; et l'on peut même dire que jamais il ne se débarrassa
tout à fait de son amour des aventures extraordinaires, ce qui donne à une
bonne moitié de ses oeuvres l'air d'un rêve énorme fait tout haut par un
6
homme éveillé . ( ZOLA, 1989, pag 133)
Em segundo lugar, de acordo com o autor do Romance Experimental, Balzac nunca se
absteve de criar personagens grandiosos, exuberantes, enquanto que, na vida real, são raras
as ocasiões em que nos deparamos com homens fora do comum. Para Zola, o romancista
fatalmente mata os heróis, se ele só aceita o percurso ordinário de uma existência comum :
Fatalement, le romancier tue les héros, s'il n'accepte que le train ordinaire
de l'existence commune. Par héros, j'entends les personnages grandis
outre mesure, les pantins changés en colosses. Quand on se soucie peu de
la logique, du rapport des choses entre elles, des proportions précises de
toutes les parties d'une oeuvre, on se trouve bientôt emporté a vouloir
faire preuve de force, à donner tout son sang et tous ses muscles au
personnage pour lequel on éprouve des tendresses particulières. De là, ces
grandes créations, ces types hors nature, debout, et dont les noms restent.
Au contraire, les bonshommes se rapetissent et se mettent à leur rang,
lorsqu'on éprouve la seule préoccupation d'écrire une oeuvre vraie,
pondérée, qui soit le procès-verbal fidèle d'une aventure quelconque. [...]
La beauté de l'oeuvre n'est plus dans le grandissement d'un personnage,
[…] elle est dans la vérité indiscutable du document humain, dans la
réalité absolue des peintures où tous les détails occupent leur place, et rien
que cette place. Ce qui tiraille presque toujours les romans de Balzac, c'est
le grossissement de ses héros; il ne croit jamais les faire assez
gigantesques; ses poings puissants de créateur ne savent forger que des
géants. Dans la formule naturaliste, cette exubérance de l'artiste, ce
caprice de composition promenant un personnage d'une grandeur hors
nature au milieu de personnages nains, se trouve forcément condamné. Un
6
Balzac, em suas obras -primas, Eugênia Grandet, Os Pais pobres, O Pai Goriot,criou, assim, imagens de
uma nudez magistral, onde sua imaginação contentou-se em criar o real. Entretanto, antes de chegar a essa
preocupação única com as pinturas exatas, perdeu-se durante muito tempo nas invenções mais singulares, na
busca de um terror e de uma grandeza falsos; e pode-se até mesmo dizer que ele nunca se libertou
completamente de seu amor pelas aventuras extraordinárias, o que dá a uma boa metade de sua obra a
atmosfera de um sonho enorme feito francamente por um homem desperto.
68
égal niveau abaisse toutes les têtes, car les occasions sont rares où l'on ait
vraiment à mettre en scène un homme supérieur. 7 (Zola, 1989, Pag133)
Por último, é interessante observar que a ciência a qual Balzac toma como modelo não se
insere dentro do positivismo que Augusto Comte acabara de desenvolver. Ele advoga em
favor de uma literatura erigida sobre dois pilares : o catolicismo e a monarquia; e para
sustentar sua tese, apóia-se na filosofia mística de Swedenborg e Saint-Martin e nos
preceitos políticos e morais de Bonald e Busset. Assim sendo, a literatura científica
proposta por ele estaria muito mais próxima dos estados denominados por Comte de
teológico e metafísico, do que do estado positivo, no qual o homem procurava conhecer e
explicar a natureza através da observação e da experimentação.
E é partindo dessas premissas, de suas críticas à herança realista, que Zola efetua a
passagem do realismo, ao que ele considerava uma definição mais propícia à estética do
romance moderno, o naturalismo.
Segundo Henri Mitterant, em Zola et Le naturalismo, a palavra naturalismo aparece pela
primeira vez em Zola, em 25 de julho de 1866, em um artigo para o jornal L´Evénement,
numa alusão ao filósofo e historiador Hippolyte Taine, a quem o romancista concede o
título de “naturalista do mundo moral”. No entanto, o escritor sempre fez questão de
afirmar, com veemência, não ser ele o inventor do termo :
“Meu Grande crime seria o de ter inventado um termo novo para designar
uma escola velha como o mundo. De início, não creio ter inventado a
7
Fatalmente, o romancista mata os heróis, se só aceita a maneira ordinária de existência comum. Por heróis,
entendo as personagens exageradamente ampliadas, os títeres transformados em colossos. Quando nos
preocupamos pouco com a lógica, com a relação das coisas entre si, com as proporções precisas de todas as
partes de uma obra, somos em pouco tempo levados a mostrar força, a dar todo o sangue e músculos à
personagem pela qual sentimos ternuras particulares. Daí, essas grandes criações, esses tipos fora do normal,
aprumados, e cujos nomes permanecem. Ao contrário, homens simples se reduzem e se colocam a seu nível,
quando experimentamos a preocupação única de escrever uma obra verdadeira, ponderada, que seja o termo
fiel de uma aventura qualquer. [...] A beleza de uma obra não se encontra mais na ampliação de uma
personagem, [...] ela está na verdade indiscutível do testemunho humano, na realidade absoluta das pinturas,
em que todos os detalhes ocupam seu lugar. O que incomoda quase sempre nos romances de Balzac é o
exagero de seus heróis; nunca crê fazê-los gigantescos o bastante; seus poderosos punhos de criador só sabem
forjar gigantes. Na fórmula naturalista, essa exuberância do artista, esse capricho de composição movendo
uma personagem de grandeza fora do normal no meio de personagens anãs, são forçosamente condenados.
Semelhante nível abaixa todas as cabeças, pois são raras as ocasiões em que se pode realmente colocar em
cena um homem superior.
69
palavra, que estava em uso em várias literaturas estrangeiras; eu a
apliquei, no máximo, à evolução natural de nossa literatura nacional.”
(ZOLA, 1979, p.87)
Mas, se não podemos atribuir ao escritor o mérito da criação de um neologismo, podemos,
no entanto, aferir a ele o de ser o responsável pela recuperação e pela fusão de todas as
significações e valores do termo naturalismo : científico, filosófico, artístico e literário.
Ainda segundo Henri Mitterant, em Zola théoricien et critique du roman, quando, em 1880,
O Romance Experimental chegou às bancas, Zola não esperava atingir, através dessa
publicação, um grande sucesso de vendas. Para ele, O Romance Experimental era uma
maneira de coroar uma carreira, já antiga, de cronista e crítico literário; de afirmar uma
maturidade de chefe de escola e, sobretudo, de mostrar que suas obras, que tinham
provocado escândalo – e que lhe trouxeram fortuna – respondiam a uma estética deliberada,
forte e profunda. Era, também, uma maneira de afirmar, aos quarenta anos de idade, uma
maestria comparável à de Balzac, Stendhal, Flaubert e dos Goncourt.
Em 1866, com apenas vinte e seis anos, Zola publica Mes Haines e, logo em seguida, Mon
Salon, seu primeiro estudo sobre a arte dos pintores. Um ano e meio mais tarde, o prefácio
para a segunda edição de Thérese Raquin. Essas publicações confirmavam a intenção do
autor de seguir a mesma escola de Balzac, Taine e dos Goncourt, recomendando que fosse
transferido, para a arte, o mesmo espírito de observação, de análise, método e de pesquisa
responsáve l pelo progresso das ciências, a despeito de todo dogma ou de toda reverência
religiosa ou retórica.
De 1868 a 1872, Zola se dedicou principalmente à crônica política e à preparação dos
Rougon-Macquart. Durante esse período, foram raras as ocasiões em que pôde expressar
sua admiração pela estética realista e desenvolver seus pressupostos teóricos. Entretanto,
num período em que a “ordem moral” vigorava , a ousadia política de Zola faria com que as
portas da imprensa francesa se fechassem para ele. Assim, em 1875, ele se torna
colaborador na revista Messager de l´Europa na longínqua Rússia . Lá, o escritor retomaria
sua vocação teórica, responsável pela inserção definitiva do conceito de Naturalismo na
história da Literatura.
70
Em 1878, o escritor Henry Céard, amigo íntimo de Zola, emprestou ao romancista um
exemplar de Introduction à l’étude de la médicine expérimentale do fisiologista francês,
Claude Bernard. Aparentemente, ele nunca devolveu o livro ao amigo. Nos seus arquivos
familiares foi encontrado um exemplar da Introduction com inúmeras anotações feitas à
mão pelo escritor. Fascinado pela teoria do médico francês, ele acrescentaria um
componente novo, extremamente polêmico e definitivo às suas teses : “o método
experimental”. Assim, os princípios incorporados às teorias de Zola pela obra de Bernard
dariam origem ao longo artigo publicado no le Messeger de l’ Europe, em 1879, e que abre
o Romance Experimental.
Em 1880, o livro que carregava o título de Le roman
expérimental reunia, em um único volume, sete trabalhos publicados por Zola no ano
anterior em periódicos russos e franceses: Le roman expérimental, Lettre à la jeunesse, Le
Naturalisme au théâtre, L´argent dans la littérature, Du Roman, De la critique e la
république et la littérature. Dessa forma, podemos constatar que o título Le roman
expérimental acabou generalizando-se para o volume inteiro. No entanto, é no primeiro
estudo que ocupava as páginas 55 a 97, da edição Garnier-Flammarion, que Zola expõe os
fundamentos da sua teoria científico- literária. E é esse primeiro estudo que hoje
conhecemos com o nome de Romance Experimental.
O médico e fisiologista Claude Bernard começou sua vida acadêmica em 1847, como
suplente de François Magendie no Collège de France. Em 1855, com a morte de Magendie,
torna-se o titular da cadeira de fisiologia experimental e passa a se dedicar a pesquisas
múltiplas sobre a digestão, o sistema nervoso, a ação dos venenos e os líquidos do
organismo. Célebre, suas conferências atraíam um público heterogêneo, do qual faziam
parte escritores famosos, como : os irmãos Goncourt, Théophile Gautier e Flaubert. Entre
1855 e 1859, Bernard publicou diversos trabalhos que alimentaram seu curso no Collège de
France e se tornou um opositor incansável das escolas de medicina que seguiam um
programa e que se propunham a transmitir as aquisições do passado. Para ele, a fisiologia
deveria ser experimentada em um laboratório :
“Jusqu´ici je me suis tourjours abstenu dans mes cours de géneralisations
et de systématisations, parce que je pensais que l´état de la science
physiologique ne le permettait pas. Je me suis borné à étudier des sujets
71
variés de physiologie expérimentale...Je transportais , pour ainsi dire, mon
laboratoire sous vos yeux et je vous faisais toujours assister à mes
recherches en quelque sorte improvisées sans jamais vous dissimuler en
rien les imperfections, les erreurs et les difficultés qui les
accompaggnaient inévitablement.” 8 ( BERNARD, 1966, p.9)
Em 1865, devido a problemas de saúde, Claude Bernard é obrigado a deixar, não só o
laboratório que lhe era tão caro, mas também, Paris, e a se recolher na sua cidade natal,
Saint-Julien. O repouso e a solidão estimulam o fisiologista a meditar e é dessa reflexão
que nasce L´introdution à l´étude de la médicine expérimentale, livro que traduzia a ânsia
nutrida por Bernard durante anos de ascender a medicina, que até então tinha suas bases no
empirismo, à categoria de ciência experimental. A obra deveria servir de introdução a um
conjunto vasto de princípios que permaneceria inacabado: Principes de médicine
expérimentale. Assim, é com a proposta de conservar a saúde e curar as doenças, através de
uma medicina científica, que Bernard inicia sua tese :
Conserver la santé et guérir les maladies : tel est le problème que la
médecine a posé dès son origine et dont elle poursuit encore la solution
scientifique. L'état actuel de la pratique médicale donne à présumer que
cette solution se fera encore longtemps chercher. Cependant, dans sa
marche à travers les siècles, la médecine, constamment forcée d'agir, a
tenté d'innombrables essais dans le domaine de l'empirisme et en a tiré
d'utiles enseignements. Si elle a été sillonnée et bouleversée par des
systèmes de toute espèce que leur fragilité a fait successivement
disparaître, elle n'en a pas moins exécuté des recherches, acquis des
notions et entassé des matériaux précieux, qui auront plus tard leur place
et leur signification dans la médecine scientifique. De notre temps, grâce
aux développements considérables et aux secours puissants des sciences
physico-chimiques, l'étude des phénomènes de la vie, soit à l'état normal,
soit à l'état pathologique, a accompli des progrès surprenants qui chaque
jour se multiplient davantage. Il est ainsi évident pour tout esprit non
prévenu que la médecine se dirige vers sa voie scientifique définitive. Par
la seule marche naturelle de son évolution, elle abandonne peu à peu la
région des systèmes pour revêtir de plus en plus la forme analytique, et
rentrer ainsi graduellement dans la méthode d'investigation commune aux
sciences expérimentales. 9 (BERNARD, 1966,p.25)
8
Até aqui sempre me abstive, nos meus cursos, de generalizações e de sistematizações, porque eu pensava
que o estado da ciência fisiológica não o permitia. Eu me limitei a estudar sujeitos variados de fisiologia
experimental... Transportava, por assim dizer, meu laboratório sob vossos olhos e sempre fazia com que
assistísseis às minhas pesquisas, de certa maneira, improvisadas sem jamais dissimular em nada as
imperfeições, os erros e as dificuldades que as acompanhava inevitavelmente. (tradução nossa)
9
Conservar a saúde e curar as doenças : tal é o problema que a medicina apresentou desde a sua origem e para
o qual ela ainda persegue a solução científica. O estado atual da prática mé dica leva a presumir que essa
72
Por conseguinte, o Romance Experimental, que se fundamenta no tratado de Claude
Bernard, traçaria suas bases partindo do seguinte argumento :
Je n'aurai à faire ici qu'un travail d'adaptation, car la méthode
expérimentale a été établie avec une force et une clarté merveilleuses par
Claude Bernard, dans son Introduction à l'étude de la médecine
expérimentale . Ce livre, d'un savant dont l'autorité est décisive, va me
servir de ba se solide. Je trouverai là toute la question traitée, et je me
bornerai, comme arguments irréfutables, à donner les citations qui me
seront nécessaires. Ce ne sera donc qu'une compilation de textes; car je
compte, sur tous les points, me retrancher derrière Claude Bernard. Le
plus souvent, il me suffira de remplacer le mot "médecin" par le mot
"romancier", pour rendre ma pensée claire et lui apporter la rigueur d'une
vérité scientifique. Ce qui a déterminé mon choix et l'a arrêté sur
l'Introduction, c'est que précisément la médecine, aux yeux d'un grand
nombre, est encore un art, comme le roman. Claude Bernard a, toute sa
vie, cherché et combattu pour faire entrer la médecine dans une voie
scientifique. Nous assistons là aux balbutiements d'une science se
dégageant peu à peu de l'empirisme pour se fixer dans la vérité, grâce à la
méthode expérimentale. 10 (ZOLA, 1964, p. 257)
No entanto, a proposta de Zola é tão ousada e ilusória, quanto paradoxal. Sedutora, é bem
verdade, já que foi minuciosamente lapidada por um mestre da retórica e, talvez, venha daí
solução ainda será procurada durante muito tempo. Entretanto, na sua marcha através dos séculos, a medicina,
constantemente forçada a agir, tentou inúmeros ensaios no domínio do empirismo e deles tirou ensinamentos
úteis. Se ela foi aberta e revolvida por sistemas de todas as espécies cuja fragilidade fez desaparecer
sucessivamente, ela executou pesquisas, adquiriu noções e acumulou materiais preciosos, os quais, mais tarde,
terão seu lugar e sua significação na medicina científica. No nosso tempo, graças ao desenvolvimento
considerável e a ajuda poderosa das ciências fisico-químicas, o estudo dos fenômenos da vida, seja no estado
normal, seja no estado patológico, acumulou progressos surpreendentes que cada dia se multiplicam mais.
Assim, é evidente, para todo espírito desprevenido, que a medicina se dirige na direção da sua via científica
definitiva. Simplesmente pelo caminhar natural da sua evolução, ela abandona pouco a pouco a região dos
sistemas, para assumir cada vez mais a forma analítica e entrar, assim, gradualmente, no método de
investigação comum às ciências experimentais. (tradução nossa)
10
Farei aqui tão somente um trabalho de adaptação, pois o método experimental foi estabelecido com uma
força e uma clareza maravilhosas por Claude Bernard, em sua Introdução ao Estudo da Medicina
Experimental. Este livro, de um cientista cuja autoridade é decisiva, vai servir-me de base sólida. Nele,
encontrarei toda a questão tratada e limitar-me -ei, como argumentos irrefutáveis, a dar as citações que me
serão necessárias. Será apenas uma compilação de textos, uma vez que pretendo, em todos os pontos,
entrincheirar-me atrás de Claude Bernard. No mais das vezes, bastará substituir a palavra “médico” pela
palavra “romancista”, para tornar claro o meu pensamento e conferir-lhe o rigor de uma verdade científica. O
que determinou minha escolha, fixando-a na Introdução, foi justamente o fato da Medicina ser ainda para
muitos uma arte, como o romance. Claude Bernard procurou e combateu durante toda a sua vida para fazer a
Medicina entrar em um caminho científico. Com ele, assistimos ao balbuciar de uma ciência que se desprende
pouco a pouco do empirismo para fixar-se na verdade, graças ao método experimental.
73
o maior mérito do escritor, o de ser um alquimista das letras e, com elas, recobrir as vestes
etéreas da imaginação com fios de ouro, disfarçando-a de realidade. A proposta é ilusória,
porque afinal, como o romancista poderia provocar, literariamente, uma experiência no
sentido mais rigoroso do termo ? E paradoxal porque Zola afirma entrincheirar-se atrás do
fisiologista francês, quando o próprio Claude Bernard dá a seguinte definição das artes e
das letras, na Introduction à l'étude de la médecine expérimentale:
Pour les arts et les lettres, la personnalité domine tout. Il s'agit là d'une
création spontanée de l'esprit, et cela n'a plus rien de commun avec la
constatation des phénomènes naturels, dans lesquels notre esprit ne doit
rien créer. Le passé conserve toute sa valeur dans ces créations des arts et
des lettres ; chaque individualité reste immuable dans le temps et ne peut
se confondre avec les autres. Un poète contemporain a caractérisé ce
sentiment de la personnalité de l'art et de l'impersonnalité de la science par
ces mots : l'art, c'est moi ; la science, c'est nous.11 (BERNARD, 1966, p.
76)
Zola demonstra estar extremamente decepcionado com a afirmação de Bernard, pois
surpreende-se ao se deparar com um cientista, considerado por ele dos mais ilustres, na
contingência de negar às letras a entrada do domínio científico. Com o objetivo de justificar
o médico fisilogista, ele tenta acreditar que essa definição se refere apenas à poesia lírica,
convencendo-se de que seria impossível que, ao elaborá- la, ele tenha pensado no romance
experimental ou nas obras de Balzac e Stendhal. Entretanto, outra definição de Bernard
deixaria o autor do Romance Experimental ainda mais indignado :
D'abord qu'est-ce qu'u n artiste ? C'est un homme qui réalise dans une
œuvre d'art une idée ou un sentiment qui lui est personnel. Il y a donc
deux choses : l'artiste et son œuvre ; l'œuvre juge nécessairement l'artiste.
Mais que sera le médecin artiste ? Si c'est un médecin qui traite une
maladie d'après une idée ou un sentiment qui lui sont personnels, où sera
alors l'œuvre d'art, qui jugera cet artiste médecin ? Sera-ce la guérison de
la maladie ? Outre que ce serait là une œuvre d'art d'un genre singulier,
cette œuvre lui sera toujours fortement disputée par la nature. Quand un
grand peintre ou un grand sculpteur font un beau tableau ou une
magnifique statue, personne n'imagine que la statue ait pu pousser de la
11
Quanto às artes e às letras, a personalidade domina tudo. Trata-se de uma criação espontânea do espírito, e
esse não tem mais nada em comum com a constatação dos fenômenos naturais, nos quais nosso espírito nada
deve criar. O passado conserva todo o seu valor nessas criações das artes e das letras; cada individualidade
permanece imutável no tempo e não pode se confundir com as outras. Um poeta contemporâneo caracterizou
esse sentimento da personalidade da arte e da impessoalidade da ciência com estas palavras: A arte, sou eu; a
ciência, somos nós.(tradução nossa)
74
terre ou que le tableau ait pu se faire tout seul, tandis qu'on peut
parfaitement soutenir que la maladie a guéri toute seule et prouver souvent
qu'elle aurait mieux guéri sans l'intervention de l'artiste.12 (grifo nosso)
(BERNARD, 1966, p. 286)
Zola repudia a definição grifada e que viria seguida de uma explicação de Bernard,
alegando que o sentimento pessoal do artista sempre fica submetido ao controle da verdade,
e é assim que ele chega à hipótese. Para o escritor, o artista parte do mesmo ponto que o
cientista, ou seja, ele se coloca diante da natureza, tem uma id éia e trabalha de acordo com
essa idéia. Somente quando leva sua idéia até o final, sem verificar a sua exatidão pela
observação e pela experiência, é que ele se separa do cientista. Ele continua sua
argumentação, afirmando que os escritores devem abrir o caminho aos cientistas e que,
quando o homem começou a tentar explicar os fenômenos, os poetas disseram sua maneira
de sentir e os cientistas vieram logo após para controlar as hipóteses e fixar a verdade. Para
o romancista, este papel de pioneiros que Claude Bernard atribui aos filósofos, hoje cabe,
também, aos escritores. No entanto, ele insiste que todas as vezes que uma verdade é
fixada pelos cientistas, os escritores devem abandonar imediatamente sua hipótese para
adotar essa verdade.
Finalmente, diante desses dois autores que se dispõem a fazer da literatura uma ciência e do
romance a reprodução da realidade, resta-nos alguns questionamentos sobre essas duas
teorias utópicas e sobre os elementos que fazem do jogo literário proposto por elas, uma
bem orquestrada sinfonia de ilusões.
Afinal, que experiência é essa que Zola nos propõe, na qual a doença são os males que
corrompem a alma humana, em que o laboratório é a sociedade e o resultado a própria
vida? O jogo de metáforas apresentado por esses dois ficcionistas nada mais é do que um
12
O que é um artista? É um homem que realiza numa obra de arte uma idéia ou um sentimento que lhe é
pessoal. Existem, portanto, duas coisas : o artista e sua obra; a obra julga, necessariamente, o artista. Mas, o
que será o médico artista ? Se for um médico que trata de uma doença de acordo com uma idéia ou um
sentimento que lhe são pessoais , onde estará então a obra de arte, que julgará esse artista? Será essa a cura da
doença? Por outro lado, essa seria uma obra de arte de um gênero singular, ele sempre disputaria esta obra
com a natureza. Quando um grande pintor ou um grande escultor faz um belo quadro ou uma magnífica
estátua, ninguém imagina que a estátua possa ter nascido da terra ou que o quadro possa ter sido feito sozinho,
enquanto podemos, perfeitamente, sustentar que a doença se curou sozinha e provar, freqüentemente, que ela
teria sarado melhor sem a intervenção do artista. (tradução nossa)
75
terreno fértil para que a imaginação floresça e atinja sua plenitude. Somente um mestre da
ficção como Balzac seria capaz de nos transportar para um universo em que a sociedade
francesa, personificada na figura de um historiador, dita para o jovem autor da Comédia
Humana o inventário dos nossos vícios e virtudes, os principais eventos da sociedade e os
mais importantes episódios das paixões, enfim, a história dos costumes. Mergulhados nesse
universo ficcional, indagamo-nos sobre que face teria esse historiador. Certamente, a de
uma divindade, pois, somente a um deus ou a uma deusa caberia o papel de ditar a um
redator os conceitos do bem e do mal. Mas qual? Atena, deusa da sabedoria e da justiça;
Dionísio, deus da luxúria e do vinho; ou Eros deus do amor e da paixão ? Tendo em vista
os personagens que povoam a Comédia Humana, trata-se de um Deus sem face que pode
ser todos ou nenhum. Assim como Sherazade não foi descrita nas Mil e uma noites,
também o historiador que personifica a sociedade francesa não se revela; ele é qualquer
uma das figuras míticas que povoam a nossa imaginação, já que o rosto da sociedade
depende de quem vê.
Dessa forma, fica claro que o escritor realista não detém a patente da verdade histórica e
que o naturalista não faz experiência alguma, ambos apenas reúnem o maior número
possível de documentos a respeito de um tema e, assim, elegem uma trama. Em seguida,
após estudá- la até a exaustão, imiscuem-se, no contexto, para sentir a natureza daque le
universo e juram exprimí- la tal qual, como se ela fosse inteiramente perceptível, como se o
autor pudesse desaparecer por trás da obra. Na realidade, esses romancistas são, antes de
mais nada, contadores de histórias, donos de uma imaginação e de uma capacidade ímpar
de criar personagens, engendrar enredos e de jogar com a realidade do universo ficcional.
As contradições presentes nos textos teóricos de Balzac e Zola nos permitem verificar com
que elementos os dois escritores jogam, a fim de velar o imaginário e vestir a Literatura
com uma roupagem de ciência. Elas, também, nos possibilitam deflagrar os momentos em
que o imaginário, intensamente subliminado, escapa, retira o véu e se mostra lírico, tenaz e
pungente.
Balzac, no início do seu prefácio, afirma:
76
Si Buffon a fait um magnifique ouvrage en essayant de réprésenter dans
un livre l´ensemble de la zoologie, n´y avait-il pas une oeuvre de ce genre
à faire pour la société? 13 (BALZAC,1964,p.191)
Mais adiante, ele prossegue:
Ainsi l´oeuvre à faire devait avoir une triple forme: Les hommes, les
femmes et les choses, c´est-à-dire les personnes et la représentation
matérielle qu´ils donnent de leur pensée; enfin l´homme et la vie, car la
vie est notre vêtement. 14 ( BALZAC, 1964, p.192)
E finalmente, anuncia a sua proposta:
Ce travail n'était rien encore. S'en tenant à cette reproduction rigoureuse,
un écrivain pouvait devenir un peintre plus ou moins fidèle, plus ou moins
heureux, patient ou courageux des types humains, le conteur des drames
de la vie intime, l'archéologue du mobilier social, le nomenclateur des
professions, l'enregistreur du bien et du mal; mais, pour mériter les éloges
que doit ambitionner tout artiste, ne devais-je pas étudier les raisons ou la
raison de ces effets sociaux, surprendre le sens caché dans cet immense
assemblage de figures, de passions et d'événements. Enfin, après avoir
cherché, je ne dis pas trouvé, cette raison, ce moteur social, ne fallait -il
pas méditer sur les principes naturels et voir en quoi les Sociétés s'écartent
ou se rapprochent de la règle éternelle, du vrai, du beau? 15 (BALZAC,
1964, p.195)
Zola, por sua vez, inicia o Romance experimental com o seguinte questionamento :
Avant tout, la premiére question qui se pose est celle -ci: en littérature, où
jusquìci l´observation paraît avoir été seule employée, l´expérience estelle possible? 16 ( ZOLA, 1964, p.260)
13
Se Buffon fez uma obra magnífica ao tentar representar, em um livro, o conjunto da zoologia, não haveria
uma obra desse mesmo gênero a ser feita para a sociedade? (tradução nossa)
14
Assim, a obra a ser feita deveria ter uma forma tripla: Os homens, as mulheres e as coisas, ou seja, as
pessoas e a representação material que elas dão do seu pensamento; enfim, o homem e a vida, porque a vida é
a nossa vestimenta.
15
Este trabalho não é nada ainda. Atendo-se a essa reprodução rigorosa, um escritor poderia tornar-se um
pintor mais ou menos fiel, mais ou menos feliz, paciente ou corajoso dos tipos humanos. O narrador dos
dramas da vida íntima, o arqueólogo do mobiliário social, o nomenclador das profissões, o registrador do bem
e do mal; mas, para merecer os elogios que deve ambicionar todo artista, eu não deveria estudar a razão ou as
razões desses efeitos sociais? Surpreender o sentido escondido neste imenso conjunto de figuras, de paixões e
de acontecimentos. Enfim, depois de ter procurado, eu não digo encontrado, essa razão, esse motor social, não
seria preciso meditar sobre os princípios naturais e ver no que as sociedades se afastam ou se aproximam da
regra eterna, do verdadeiro, do belo? (tradução nossa)
16
Antes de mais nada, a primeira questão que se coloca é esta: será que em literatura – onde até aqui apenas a
observação parece ter sido empregada – a experiência é possível?
77
Alguns parágrafos após, ele mesmo elabora a resposta:
Eh bien ! en revenant au roman, nous voyons également que le romancier
est fait d'un observateur et d'un expérimentateur. L'observateur chez lui
donne les faits tels qu'ils les a observés, pose le point de départ, établit le
terrain solide sur lequel vont marcher les personnages et se développer les
phénomènes. Puis l'expérimentateur paraît et institue l'expérience, je veux
dire fait mouvoir les personnages dans une histoire particulière, pour y
montrer que la succession des faits y sera telle que l'exige le déterminisme
des phénomènes mis à l'étude. C'est presque toujours ici une expérience
« pour voir », comme l'appelle Claude Bernard. Le romancier part à la
recherche d'une vérité. 17 ( ZOLA, 1964, p. 263)
A tentativa de desmistificar a pretensão cientificista de Balzac e Zola abre, assim, espaço
para que consideremos algumas reflexões de Wolfgang Iser, para quem a Literatura,
enquanto estudo ou reflexão do que é humano, não pode buscar os padrões de sua descrição
noutra disciplina, pois nesse caso, ela, a literatura, estaria fadada ao mesmo destino que já
sofreu com a psicanálise : servir de ilustração às suas premissas. Iser considera ainda que
como o fictício e o imaginário fazem parte do que é específico do ser humano, existem
também na vida real, não se limitando à literatura, o que nos leva a pensar sobre de que
forma as escolas realista e naturalista poderiam reproduzir literariamente a realidade,
impondo um veto à ficção. Para o teórico, o que caracteriza a literatura é a articulação
organizada do fictício e do imaginário e, dessa articulação, a Literatura emerge e, assim,
diferenc ia-se de outros meios, levando em conta que os fenômenos da arte por si só não
existem, como também, não existem as constantes supostamente antropológicas. Apesar de
considerar que hoje a distinção entre realidade e ficção já faça parte do nosso “saber tácito”,
ou seja, do nosso repertório de certezas, Iser afirma que ainda existe espaço para se discutir
até que ponto os textos “ficcionados” são de fato ficcionais, e os que assim não se dizem
são de fato isentos de ficção. O que ele propõe é que a relação dupla da ficção com a
realidade seja substituída por uma relação tríplice: o real, o fictício e o imaginário. Isso
porque, como ele afirma, o texto ficcional contém elementos do real sem que se esgote na
17
Pois bem, voltando ao romance, vemos também que o romancista é feito de um observador e de um
experimentador. Nele, o observador apresenta os fatos tal qual os observou, define o ponto de partida,
estabelece o terreno sólido no qual as personagens vão se desenvolver. Depois, o experimentador surge e
institui a experiência, quer dizer, faz as personagens evoluírem numa história particular, para mostrar que a
sucessão dos fatos será tal qual a exige o determinismo dos fenômenos estudados. Trata-se quase sempre de
uma experiência “para ver”, como designa Claude Bernard. O romancista sai em busca da verdade.
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descrição desse real. Portanto, o seu componente fictício não tem caráter de uma finalidade
em si mesma, mas é, fingindo, a preparação de um imaginário. Podemos concluir, a partir
daí, que o fictício é uma decisão, enquanto que o imaginário é uma conseqüência. Mas, até
que ponto pode o autor controlar os efeitos de suas decisões?
Antes de prosseguir, porém, gostaríamos de esclarecer que não é nossa intenção, aqui,
entrar profundamente na discussão ficção/realidade, até porque, esta nos parece uma
questão inesgotável e que, por isso mesmo, sozinha, já renderia várias teses. Por outro lado,
também acreditamos ser muito difícil falar do cientificismo literário proposto por Balzac e
Zola sem tocar nesse tema. Os dois autores, em seus textos teóricos, não só disparam
abertamente sua artilharia contra o lirismo romântico, como afirmam que uma literatura que
pretenda ser científica deve se submeter à “realidade” observada e reproduzi-la. Portanto,
durante a nossa análise dos textos teóricos de Balzac e Zola, pretendemos partir das
definições de realidade e ficção propostas por Iser, aceitando a substituição da relação
opositiva usual entre esses dois termos pela tríade do real, fictício e imaginário.
Iser
justifica o fato de ter proposto a substituição, argumentando que há no texto ficcional muita
realidade que, não só deve ser identificável como realidade social, mas que, também, pode
ser de ordem sentimental e emocional. Ele afirma ainda que essas realidades, por certo
diversas, não são ficções e que, ao surgirem no texto ficcional, não se repetem nele por
efeito de si mesmas. Dessa forma, se o texto ficcional se refere à realidade, sem se esgotar
nessa referência, então, a repetição é um ato de fingir e, se o fingir não pode ser deduzido
da realidade repetida, nele emerge um imaginário. Assim, é no fingir que emerge um
imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. O ato de fingir, então,
ganha marca própria, que é provocar a repetição no texto da realidade, atribuindo, por meio
dessa repetição, uma configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida (fictício) se
transforma em signo e o imaginário em efeito do que assim é referido. Por fim, quando a
realidade repetida no fingir se transforma em signo, ocorre forçosamente uma transgressão
de sua determinação. O ato de fingir é, portanto, uma transgressão de limites. Nisso se
expressa sua aliança com o imaginário. Iser prossegue, dizendo que, primeiramente, o
imaginário é experimentado por nós de modo difuso, fluido, sem um objeto de referência.
Assim, verificamos que o fingir também não é idêntico ao imaginário. Entretanto, como o
79
fingir se relaciona com o estabelecimento de um objetivo, devem ser mantidas
representações de fins que são uma premissa para que o imaginário se diferencie dos
fantasmas, projeções e sonhos diurnos, pelos quais ele penetra diretamente na nossa
experiência e, através de uma transgressão de limites, passe do difuso ao determinado.
Outro elemento ao qual os dois escritores se atêm, para assegurar a possibilidade de
controle do imaginário e justificar o veto ao ficcional, é o pacto com a história, que
pressupõe a eliminação de qualquer elemento do fictício e a certeza de que os fatos
descritos são verdadeiros :
Le hasard est le plus grand romancier du monde: pour être fécond, il n'y a
qu'à l'étudier. La Société française allait être l'historien, je ne devais être
que le secrétaire. En dressant l'inventaire des vices et des vertus, en
rassemblant les principaux faits des passions, en peignant les caractères,
en choisissant les événements principaux de la Société, en composant des
types par la réunion des traits de plusieurs caractères homogènes, peutêtre pouvais-je arriver à écrire l'histoire oubliée par tant d'historiens, celle
des moeurs. 18 . (BALZAC, 1964, p. 194)
Eh bien! avec l'application de la méthode expérimentale au roman, toute
querelle cesse. L'idée d'expérience entraîne avec elle l'idée de
modification. Nous partons bien des faits vrais, qui sont notre base
indestructible; mais, pour montrer le mécanisme des faits, il faut que nous
produisions et que nous dirigions les phénomènes; c'est là notre part
d'invention, de génie dans l'œuvre. 19 ( ZOLA, 1964, p. 265)
Neste momento visualizo um espaço propício à reflexão sobre as formas através das quais a
Literatura e a História poderiam se cruzar, partindo do prisma de historiadores que, como
Hayden White, contestam as pretensões da História de ocupar uma cátedra entre as ciências
ditas positivas e ressaltam o caráter ficcional e a subjetividade presente nas reconstruções
históricas.
18
O acaso é o maior historiador do mundo: para ser fecundo basta estudá-lo. A sociedade francesa seria o
historiador, eu deveria ser somente o secretário. Redigindo o inventário dos vícios e das virtudes, reunindo os
principais feitos das paixões, pintado os caracteres, escolhendo os acontecimentos principais, compondo tipos
a partir da reunião dos traços de diversos caracteres homogêneos, talvez eu pudesse chegar a escrever a
história esquecida por tantos historiadores, a história dos costumes.( tradução nossa)
19
Pois bem, com a aplicação do método experimental ao romance, cessam todas as querelas. A idéia de
experiência traz em si a idéia de modificação. Partimos realmente dos fatos verdadeiros, que constituem nossa
base indestrutível; mas, para mostrar o mecanismo dos fatos, temos que produzir e dirigir fenômenos. Esta é a
nossa parte de invenção e de gênio na obra.
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Antes, porém, é preciso recordar algumas considerações feitas por José Luiz Jobim, em
Formas da Teoria. Jobim afirma, retomando os pressupostos teóricos de Wolfgang Iser,
que toda narrativa se dirige a um outro, ou seja, a um leitor implícito, o que nos permite
concluir que o narrador escreve para ser compreendido e que a narrativa traz inserida em si
o desejo de ser legitimada. Ele considera ainda que, como toda narrativa pertence a uma
determinada cultura, ela acaba por inscrever-se em uma história social e em um sistema de
convenções que definem a sua forma, o seu gênero e a sua estrutura, uma vez que o
narrador é obrigado a utilizar os recursos e as normas disponíveis naquele momento para
atingir o seu objetivo. Assim, para contar uma história ou compreendê- la, tanto o escritor
quanto o leitor precisam ir além da sua subjetividade e fazer uso da herança cultural
inerente à narrativa, herança essa que possibilita que a história tenha um sentido real. No
entanto, embora na área de Letras já exista um número enorme de estudos relativos à
questão da narrativa, só recentemente essa questão começou a ser vista como algo que vai
além das fronteiras literárias. Afinal, contar histórias não é um privilégio somente dos
romancistas; também o historiador se dedica a esse ofício, ainda que, sem maiores
questionamentos, ele quase sempre tenha associado a sua narrativa a um pretenso pacto
com a realidade.
Em O valor da narratividade na representação da realidade, Hyden White lembra que a
idéia de que a narrativa deveria ser considerada mais como uma maneira de falar do que
como uma forma de representação de eventos, sejam eles reais ou imaginários, foi
elaborada dentro de uma discussão da relação entre discurso e narrativa, nos primórdios do
Estruturalismo e está associada à obra de Jakobson, Benveniste, Genette, Todorov e
Barthes. White recorda também que a distinção entre discurso e narrativa é baseada
somente na análise dos traços gramaticais de dois modos de discurso em que a
“objetividade” de um e a “subjetividade” do outro são definíveis, primariamente, por uma
“ordem lingüística de critérios”. Assim sendo, a “subjetividade” do discurso é dada pela
presença implícita ou explícita de um ego, ou seja, da pessoa que mantém o discurso,
enquanto a “objetividade” da narrativa é definida pela ausência de qualquer referência do
narrador. Partindo desses preceitos, White menciona o ponto de vista de Benveniste, para
quem, no discurso narrativizante “verdadeiramente não existe mais um narrador. Os
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eventos são cronologicamente registrados da forma como aparecem no horizonte da
História. Ninguém fala. Os eventos parecem contar-se a si próprios.”( WHITE, 1991, p.7).
No entanto, o que White questiona é justamente o fato de que eventos reais não deveriam
falar, não deveriam contar-se a si próprios, eles deveriam simplesmente ser. Para o
historiador, é possível falar sobre os eventos reais e, também, utilizá-los como referentes de
um discurso, porém, eles não deveriam fazer-se passar por sujeitos de uma narrativa. White
acredita que a invenção tardia do discurso histórico na história humana e a dificuldade de
sustentá-lo em tempos de colapso cultural, como no início da idade média, por exemplo,
inspiraram a artificialidade da noção de que eventos reais poderiam ser representados como
“contando sua própria estória”. Entretanto, é somente a partir do momento em que a
distinção entre eventos reais e imaginários é imposta ao contador de histórias, que tal ficção
se torna um problema.
Enfim, se a narrativa histórica, como a literária, é construída, a partir de um ponto de vista
particular, não caberia ao narrador, em ambos os discursos, o atributo de selecionar os
elementos da narrativa e de estabelecer um padrão e uma ordem entre eles, de acordo com o
que considera imprescindível ou mais importante? Porém, não são raros os historiadores
que se acreditam capazes de, através de um relato histórico, dispor os fatos para o público
exatamente como ocorreram. É justamente a partir daí que Hayden White se torna uma
exceção entre seus colegas, pois ele argumenta que, para construir uma história, é preciso
muito mais do que um conjunto de dados históricos registrados. Para White, tal construção
é um processo que implica no manuseio desses dados. Assim, enquanto uns são eliminados,
outros ganham destaque, alguns ganham cores, tons e ângulos distintos; além disso, existem
também inúmeras estratégias descritivas que podem ser usadas nessa construção. Enfim,
encontramos, nas narrativas históricas, os mesmos recursos utilizados no enredo de um
romance ou de uma peça de teatro. Isso evidencia que, como a história , também a ficção
literária é uma forma de representação da realidade e, sobretudo, ambas constroem e
“inventam” histórias, ainda que de formas distintas. Portanto, podemos considerar a história
um artefato literário, pois, de alguma forma, Literatura e História se completam, já que as
duas importam as “técnicas” utilizadas para contar suas histórias do acervo discursivo do
ocidente e, finalmente, ambas são meios utilizados para refletir sobre o homem.
82
Voltando ao romance do século XIX e à sua pretensão de pacto com a realidade através de
um vínculo com a históriografia, percebemos que não é a presença da História que
contribuirá para que o romance perca seu status de obra de ficção. Ao contrário, o que
verificamos é que o imaginário se alimenta da realidade para dar novos significados aos
acontecimentos e, principalmente, que, em momento algum, a narrativa histórica consegue
anular a presença da imaginação no seu discurso. Na verdade, ao compararmos a Literatura
com a História observamos que, embora a primeira trabalhe com um discurso relativo ao
imaginário, enquanto a segunda constrói um discurso baseado no real, ambas só conseguem
atribuir um significado ao discurso que elaboraram através da escrita e, portanto, tanto uma
quanto outra, não começam pelos fatos, mas pela palavra escrita. Assim, podemos concluir
que os acontecimentos narrados não são considerados reais porque aconteceram, mas
porque são lembrados e representados através da narrativa.
White alega, contudo, que ainda existe uma certa relutância, por parte dos historiadores, em
aceitar que as narrativas históricas são ficções verbais que trazem, inseridas em si, alguns
conteúdos “achados” e outros “inventados”. Eles também são refratários quanto a admitir
que a História possa ter mais em comum com as contrapartidas da Literatura do que com as
das ciências. No ensaio O valor da narratividade na representação da realidade, publicado
em 1980, White afirma :
Os próprios historiadores é que transformaram a narratividade, de uma
maneira de falar em um paradigma da forma com que a própria realidade
se apresenta a uma consciência “realista”. Eles é que transformaram a
realidade em um valor, cuja presença em um discurso que lida com
eventos “reais” assinala imediatamente sua objetividade, sua seriedade e
seu realismo. O que procurei sugerir é que este valor atribuído à
narratividade na representação de eventos reais nasce de um desejo de que
os eventos reais apresentem a coerência, integridade, plenitude e
conclusão de uma imagem da vida que é e só pode ser imaginária. A
noção de que seqüências de eventos reais possuem os atributos formais
das estórias que contamos sobre eventos imaginários só poderia ter sua
origem em desejos, fantasias e devaneios .(WHITE, 1991,p.29)
No ensaio Topics of discourse – Essays in cultural Criticism, White irá assegurar que um
mesmo conjunto de eventos poderia ser utilizado para construir uma história trágica,
cômica, romântica, etc, dependendo da maneira como o escritor organiza esses eventos, do
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tom que ele dá à narrativa, do público em questão. Entretanto, embora sua argumentação, a
princípio, possa nos levar a concluir que existem elementos em si dissociáveis de, ou
associáveis a qualquer enredo, o exemplo utilizado pelo próprio historiador nos aponta
outra direção. White diz não acreditar que alguém aceite a criação de um enredo cômico
sobre a vida do presidente Kennedy, ainda que a história do presidente americano
possibilite a criação de um enredo romântico ou trágico, só para citar alguns exemplos.
Dessa forma, ele nos mostra que, mesmo acreditando ser a partir da sutileza do historiador
ao combinar eventos históricos que uma determinada situação histórica vai adquirir um
significado e não outro, e que essa operação é também uma operação literária, não
podemos esquecer que a narrativa é, igualmente, um evento e que, como todo evento, está
inserida em uma determinada cultura. Portanto, o narrador estará sempre submetido a um
número de possibilidades de uma comunidade produtora de sentido e, também, a uma
prática geral da objetividade historicamente delimitada.
A partir desses pressupostos, observamos que os romances históricos nos apontam os
diversos ângulos de uma mesma “ verdade” e que a narrativa de um fato nada mais é do que
uma leitura aceita em um determinado universo. Também podemos colocar em questão a
“verdade” do discurso histórico, partindo do fato de que é impossível recuperar uma
realidade anterior. Assim, o historiador irá sempre representar o passado, com toda a
bagagem cultural implícita em seu presente e, por conseguinte, a representação da realidade
que estará no papel será a do tempo do narrador, que olha “ hoje” para o passado, fazendo
com que a história que narra esteja sempre limitada pela escrita.
O que podemos concluir, enfim, é que tanto o historiador quanto o romancista constroem
mundos para representar suas ações. Porém, enquanto o historiador está preocupado em
construir um mundo baseado em documentos, registros e evidências concretas que atribuam
veracid ade à sua narrativa, o romancista se entrega livremente à sua imaginação, à
subjetividade. Mas, no caso específico dos romances realistas e naturalistas, em que os
escritores se propõem a fazer um tipo de romance vinculado com a “ verdade” e com a
História, o que ocorre é que eles recriam um mundo já criado pelos historiadores. Não é que
o escritor perca a liberdade de inventar e selecionar personagens e eventos, mas esse tipo de
84
relato exige dele talvez a mesma pesquisa que é exigida do historiador, para que o fato
histórico a ser reinventado no romance seja aceito como real. Se a história faz parte de um
romance histórico, é natural que seus elementos dependam do “mundo real”. Por fim, ao
questionar a objetividade dos relatos históricos, deparamo - nos com duas evidências: a
primeira é que tanto a historiografia como a Literatura são capazes de forjar um passado e a
segunda é que nem uma nem outra são capazes de reprimir seus elementos ficcionais.
No entanto, aliada à História e investida de uma pseudo-cientificidade, a Literatura do
século XIX insistiria na concepção de uma arte racional, que imita minuciosamente o real e,
dessa forma, opõe-se, radicalmente, ao lúdico, ao onírico e ao ornamental. Tal discurso nos
leva a questionar até que ponto o autor detém o controle sobre sua obra:
Notre querelle est là, avec les écrivains idéalistes. Ils partent toujours
d'une source irrationnelle quelconque, telle qu'une révélation, une
tradition ou une autorité conventionnelle. Comme Claude Bernard le
déclare: «Il ne faut admettre rien d'occulte; il n'y a que des phénomènes et
des conditions de phénomènes.» Nous, écrivains naturalistes, nous
soumettons chaque fait à l'observation et à l'expérience; tandis que les
écrivains idéalistes admettent des influences mystérieuses échappant à
l'analyse, et restent dès lors dans l'inconnu, en dehors des lois de la nature.
Cette question de l'idéal, scientifiquement, se réduit à la question de
l'indéterminé et du déterminé. Tout ce que nous ne savons pas, tout ce qui
nous échappe encore, c'est l'idéal, et le but de notre effort humain est
chaque jour de réduire l'idéal, de conquérir la vérité sur l'inconnu. 20
( ZOLA, 1964, p. 287)
Hans Robert Jauss pondera que a concepção positivista da História como descrição
“objetiva” de uma seqüência de acontecimentos num passado já morto falha, tanto no que
se refere ao caráter artístico da Literatura, quanto no que diz respeito à sua historicidade
específica. Para Jauss, a obra literária não é um objeto que exista por si só, propondo a cada
20
Esta é nossa controvérsia com os escritores idealistas. Eles partem sempre de uma fonte irracional qualquer,
tal como uma revelação, uma tradição ou uma autoridade convencional. Como Claude Bernard o declara:
“Não se deve admitir nada de oculto; só existem fenômenos e condições de fenômenos”. Nós, escritores
naturalistas, submetemos cada fato à observação e à experiência; enquanto que os escritores idealistas
admitem influências misteriosas que escapam à análise, e permanecem por isso no desconhecido, fora das leis
da natureza. Esta questão do ideal, cientificamente, reduz-se à questão do indeterminado e do determinado.
Tudo o que não sabemos, tudo o que escapa ainda, é o ideal; e o alvo de nosso esforço humano é reduzir dia a
dia o ideal, conquistar a verdade ao desconhecido.
85
observador, em cada época, um aspecto único, idêntico. Ele acredita que a obra literária não
é um monumento a revelar monologicamente seu Ser atemporal:
Ela é, antes, como uma partitura voltada para a ressonância sempre
renovada da leitura, libertando o texto da matéria das palavras e
conferindo-lhe existência atual: “Parole qui doit, en même temps qu’elle
lui parle, créer un interlocuteur capable de l’entendre”21 . É esse caráter
dialógico da obra literária que explica por que razão o saber filológico
pode apenas consistir na continuada confrontação com o texto, não
devendo congelar-se num saber acerca dos fatos.” (JAUSS, 1994, p.25)
Luiz Costa Lima vai ainda mais longe quando faz um paralelo entre os sonhos e a
experiência poética. Em O Controle do Imaginário, ele afirma que a experiência poética
opera por uma via muito semelhante à dos sonhos, ou seja, da mesma forma que a nossa
imagem pode estar presente nos sonhos alheios, sem que sejamos responsáveis pelo que
então fazemos ou dizemos, também na experiência literária o autor não comanda a sua
recepção e ela pode ser sintonizada como produto ficcional, ainda que haja um veto,
imposto pelo autor, ao uso da ficção.
Outro aspecto levantado por Costa Lima se refere à mimesis literária. Para ele, a primeira
sensação que a mimesis provoca é uma sensação de semelhança, já que ela supõe a
concordância do que ali se enuncia com o quadro de referências de quem a recebe. Essa
concordância se traduz na sensação de semelhança do enunciado com o que o receptor é
capaz de considerar como realizável. No entanto, nem a categoria “correspondência” nem
a sensação de “semelhança” esgotam a experiência da mimesis literária. Ela se cumpre
dentro do circuito da experiência estética que supõe que o agente nela envolvido saiba que
o tempo da sala de teatro não é idêntico ao tempo da cena teatral; que o tempo onde habita
o poema não se confunde com o tempo em que se move o eu empírico, cotidiano do poeta;
enfim, que as experiências e valores do narrador e das personagens não são indistintos
quanto às experiências e valores de seu autor. Em resumo, a obra encena experiências
imagináveis, de acordo com um quadro de referências e admissíveis conforme os valores do
autor e a sensação inicial de semelhança, provocada pela mimesis literária, é precedida por
uma sensação de diferença. Finalmente, Costa Lima pondera que a narrativa literária exige
21
O texto grifado é de G. PICON e foi extraído da Introduction à une esthétique de la littérature. Paris, 1953,
p.34
86
de seu receptor muito mais do que a capacidade de decodificar o que lê ou escuta, visto
que os seus segmentos, diferentemente da narrativa cotidiana, científica ou filosófica, com
freqüência, contradizem-se, criando vazios que impõem a interpretação do leitor. E como
essa interpretação não se limita a explicitar o que o texto já traz implícito – pois não existe
uma única interpretação possível – essa intervenção do receptor está submetida à atividade
do imaginário: “A mimesis é assim um processo que se concretiza na forma de ficção”
(COSTA LIMA, 1984, p. 69)
87
CAPÍTULO III
5.A VINGANÇA DO IMAGINÁRIO: LE PÈRE GORIOT ET AU BONHEUR DES DAMES :
A TEORIA NA PRÁTICA SERIA OUTRA?
Diante da censura que lhe é imposta por uma literatura que segue obstinadamente os ideais
realistas, ostentados no Prefácio da Comédia Humana e no Romance Experimental, teria o
imaginário realmente suc umbido e se deixado banir do universo literário para dar lugar a
uma ficção em que All is true, ou teria ele, dissimuladamente, se inserido nas entrelinhas do
texto e, disfarçado de realismo, ocupado os espaços vazios, iniciando, dessa forma, uma
ardilosa vingança? Uma vez incógnito nos vazios do texto, o imaginário poderia retalhar o
veto e engendrar uma vingança arguta e cruel:
emergir inesperadamente no jogo
performático a que se propõe o romance, deixando cair sua máscara e obrigando o real a
abrir espaço para o poético, para o lírico, para o subjetivo, enfim, para o romanesco. Dessa
forma, ele deixaria claro que a literatura é muito mais do que simplesmente o real, já que
ela é o real, o fictício e o imaginário, e que ela não pode ser apenas a imitação da vida,
porque como diria Fernando Pessoa : “A literatura, como toda arte, é a confissão de que a
vida não basta.” (PESSOA,1982,p.504)
Os romances Le Père Goriot e Au Bonheur des Dames são representativos do Realismo e
do Naturalismo, por encarnarem co m maestria os ideais de imitação do real propostos por
seus autores. Portanto, é através deles que pretendemos verificar se o imaginário sucumbe
ou se vinga, analisando como Balzac e Zola vivenciam, na ficção, os princípios teóricos
que serviram de alicerces para a criação da Comédia Humana e da saga dos RougonMacquart. A experiência literária dos elementos de reflexão teórica permite também medir
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até que ponto a subjetividade e o ficcional se mostram submissos ao veto, ou se afinal a
teoria na prática seria outra.
O romance Le Père Goriot começa, no ano de 1819, em uma pequena pensão da rua
Neuve-Sainte-Geneviève, conhecida como Maison Vauquer em alusão ao nome de sua
proprietária. Infecta e nauseabunda, a pensão abriga tanto figuras pérfidas, grotescas e
banais, a grande maioria; quanto almas mais ingênuas e idealistas, que são, no entanto,
bem mais raras.
Logo no início da narrativa, Balzac nos apresenta seus
personagens, inventariando,
minuciosamente, os traços físicos e psicológicos de cada um, de forma que, após as
primeiras páginas do romance, o leitor atento pressinta o drama que eles anunciam. Talvez,
por isso, os pensionistas de Madame Vauquer pareçam reunir todas as misérias do mundo.
As primeiras páginas do romance também dão lugar a uma descrição que, posteriormente,
seria considerada uma das mais clássicas da Comédia Humana, o momento em que
Madame Vauquer aparece na cena. Em quatro páginas, Balzac consegue não só prenunciar
a trama que pretende narrar, mas também, sintetizar alguns dos principais pressupostos que
compõem o plano estrutural da sua obra. O retrato da proprietária é feito a partir de um
elemento principal, a harmonia entre Madame Vauquer e sua pensão, ou seja, a narrativa
parte da tese do homem como produto do seu meio social. No entanto, também estão
presentes, na descrição que abre o romance, a comparação entre a humanidade e a zoologia,
os preceitos da unidade de composição orgânica, além de alguns elementos
historiográficos.
Eugène de Rastignac é um jovem estudante de direito que acaba de chegar a Paris para
tentar a sorte e fazer fortuna. Pobre, porém de origem nobre, Rastignac teria diante de si o
desafio de aprender as regras que, então, regiam o universo aristocrático, pois só assim
poderia satisfazer a sua ambição de enriquecer, ascender socialmente e, enfim, ser aceito
nas altas rodas da sedutora sociedade parisiense.
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O quarto vizinho ao de Rastignac era ocupado por um velho macarroneiro, taciturno e de
aspecto imbecil, conhecido entre os pensionistas como pai Goriot. O Sr Goriot havia
chegado à pensão, em 1813, com sessenta e nove anos de idade, logo após deixar seus
negócios. Tendo arregimentado, ao longo da vida, economias suficientes para uma boa
aposentadoria, ocupava, na época, o melhor quarto da Maison Vauquer. A proprietária da
pensão se encarregava de cobri-lo de mimos, visto que nutria internamente um desejo
inconfesso de que um dia ele viesse a desposá- la, quando, finalmente, poderia abandonar a
pensão e o fétido subúrbio parisiense, para viver num dos quarteirões nobres da cidade. No
entanto, com o passar dos anos, a fortuna do Sr Goriot diminuiu de forma progressiva e
misteriosa. O ancião foi subindo de andar em andar e ocupando quartos cada vez mais
simples, até que em 1819, quando o romance começa, o pobre homem, transformado em
bode expiatório de todas as mazelas dos demais pensionistas, encontra-se instalado em um
humilde sótão ao lado de Rastignac. Nada mais era capaz de provocar um gesto de
entusiasmo ou evocar alguma emoção no velho macarroneiro, a não ser a visita de duas
belas jovens, com ares nobres e ricamente vestidas, que, de tempos em tempos, apareciam
na pensão. Entretanto, até mesmo essas visitas tinham diminuído com o passar dos anos, o
que não impedia que os outros pensionistas levantassem, ainda que de forma leviana,
suposições extremamente maliciosas, associando a ruína financeira do pobre macarroneiro
a um possível affaire entre ele e as duas jovens.
Encarregado pelos seus colegas de pensão de descobrir o segredo em torno do infeliz
ancião, Eugène de Rastignac, movido inicialmente pela curiosidade e, posteriormente, por
simpatia e afeto, não tardaria a desvendar o mistério. Quando recebe o diploma de bacharel
em Letras e Direito, ele já havia se deixado contaminar por Paris e pelas ambições que
pairavam no ar da capital francesa. Compreendendo, ainda que vagamente, o papel que
cabia às mulheres no jogo teatral que a sociedade insistia em representar, Rastignac,
desejoso de se lançar naquele mundo, consegue, por intermédio de uma tia, Madame de
Marcillac, uma carta de apresentação destinada à viscondessa de Beauséant, uma prima
distante que, tanto pela fortuna quanto pela genealogia, era reconhecida como uma das
figuras mais proeminentes da aristocracia parisiense. Como resposta, ele recebe um convite
para um dos inúmeros bailes que a nobre dama promovia regularmente. Preceptora do
90
jovem aprendiz, caberia, portanto, à viscondessa, não só a tarefa de abrir para Eugène as
portas da alta sociedade, mas também, a de desvelar diante de seus olhos, ainda ingênuos, o
segredo dos infortúnios que pairavam sobre o pobre pai Goriot. Nos seus salões, Rastignac
conheceria as duas jovens que, freqüentemente, visitavam o velho macarroneiro.
O infeliz era pai das duas belas damas que brilhavam nos salões de Paris. Por ter enviuvado
muito cedo, Goriot havia dedicado às filhas um amor exclusivo, cego, uma paixão paternal
que, de tão exagerada, acabou por transformá-lo em um “cristo da paternidade”. Tendo
sido presidente de uma das quarenta e oito seções em que a França fora dividida durante a
Revolução, Goriot aproveitou-se das relações que mantinha com o Comité de Salut
Publique e, quando Robespierre, dentre outras medidas, estabeleceu um rigoroso controle
dos preços, provocando o desaparecimento de muitas mercadorias, conseguiu reunir uma
pequena fortuna, fornecendo tais mercadorias à aristocracia a preços muito acima do
permitido. No entanto, apesar de ter conseguido enriquecer, ainda sonhava em assistir às
filhas desfilarem nas altas rodas da sociedade e, para realizar esse sonho, tão logo elas
atingiram a idade adulta, casou uma com o “nome” e a outra, com o “dinheiro”. Anastasie,
a primogênita, desposou um membro da alta aristocracia, o conde de Restaud e Delphine, a
mais nova, um banqueiro israelita, o Barão de Nucingen. Para assegurar casamentos tão
suntuosos, o pai acabou por se desfazer de boa parte de seus bens em favor das filhas e,
como recompensa, obteve dos genros o desprezo e das filhas, a rejeição. Eles se
envergonhavam do velho macarroneiro que, através dos gestos e das atitudes, revelava
desconhecer os rígidos códigos de conduta que reinavam nos salões de Paris. No entanto,
como as duas belas damas estavam sempre metidas em intrigas de toda sorte – Anastasie
era amante de Maxime de Trailles e Delphine, no início do romance, mantinha um affaire
com De Marsay – elas não se intimidavam de recorrer ao pai, quando necessitavam de
dinheiro para sustentar seus amores clandestinos. Assim, com o passar dos anos, o pobre
homem assistiu à fortuna se esvair por entre seus dedos, no mesmo ritmo em que sua alma
ia deixando seu corpo e a vontade de viver, o seu coração.
Nesse, como na maioria de seus romances, a fim de ressaltar o caráter realista da trama,
Balzac faz com que seus personagens participem dos principais eventos históricos que
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marcaram o século XIX, tornando-os, assim, produtos não só do meio social, mas também
do contexto histórico em que vivem. O período que segue a Revolução Francesa se
caracteriza, principalmente, pela ruptura da estratificação social que vigorou durante o
Antigo Regime e pela ascensão da classe burguesa ao poder. Nesse sentido, tanto Goriot
quanto seus genros são figuras representativas da nova ordem social que começava a se
estabelecer. A Constituição Francesa de 24 de junho de 1793, foi, na realidade, uma
constituição extremamente liberal e baseada nos princípios da Revolução de 1789. No
entanto, diante das diversas ameaças, tanto internas quanto externas, de desmantelamento
do novo governo, os deputados franceses optaram por substituir, provisoriamente, a
aplicação das leis constitucionais por um regime ditatorial, o qual eles chamaram de
Governo Revolucionário. A partir de julho de 1793 , a Convenção que governava a França
desde agosto de 1792, elege um Comité de Salut Public, composto por doze deputados
encarregados de elaborar as medidas emergenciais do governo provisório. Pressionada de
todos os lados, a Convenção acabaria aceitando as medidas repressoras propostas pelo
Comité e instaurando um regime que ficou conhecido como La Terreur. Dentre as novas
medidas, quase todas extremamente reacionárias, estava uma lei que ordenava a prisão
imediata, sem julgamento, de todos os indivíduos considerados suspeitos e também a
taxação dos gêneros de primeira necessidade. Diante da taxação, muitos gêneros
alimentícios desapareceram completamente, passando a serem vendidos apenas no mercado
negro, quase sempre, pelo dobro, ou pelo triplo, do preço estipulado. Como Goriot era
presidente de uma das quarenta e oito seções em que Paris fora dividida durante a
Revolução, ele não só tinha a oportunidade de contrabandear as mercadorias taxadas, como
também, tinha acesso direto aos membros do Comité, com quem ele dividia o lucro. É,
portanto, usando o contexto histórico que Balzac explica a origem da fortuna do velho
macarroneiro. Quanto aos genros de Goriot, eles também são um reflexo da nova ordem
social que o século XIX anuncia. O advento da industrialização, ao mesmo tempo em que
confere à burguesia o status de classe dominante, decreta a decadência dos aristocratas. No
romance, o Conde de Restaud e o Barão de Nucingen representam, respectivamente, a alta
aristocracia – então, em pleno declínio, mas, ainda assim, detendora das regras de conduta
social e do poder conferido pelo nome – e a nova classe emergente, cujo dinheiro
comprava, não só a entrada nos salões aristocráticos, como também, os títulos de nobreza.
92
Balzac mostra também que, a partir da queda do Antigo Regime, as diversas castas sociais
começam a se misturar.
Rastignac volta daquele primeiro baile fascinado pelo bairro de Saint-Germain e
hipnotizado pelo palácio e pelos salões da viscondessa, repletos de homens e mulheres
ricamente vestidos e majestosamente ornados. Ali tudo era luz, brilho e beleza. Nos dias
que se seguiram ao baile, ele faria mais duas vistas, uma à condessa de Restaud e outra à
viscondessa de Beauséant, recebendo, assim, suas primeiras lições. Apesar de estar vestido
com o seu melhor traje, a aparência simples do jovem provinciano foi motivo de chacota e
espanto para os serviçais da mansão e do palácio. Além disso, como Rastignac ignorava as
regras de etiquetas reinantes no círculo social parisiense, não foram poucas as indiscrições
cometidas por ele. As portas da mansão da condessa de Restaud, por quem ele tinha
começado a nutrir uma certa paixão, lhe foram fechadas logo após a visita. O contraste
entre aquele mundo e o seu torna-se, então, desesperadoramente evidente e, a cada vez que
ele retornava à rua Neuve-Saint-Geneviève e à Maison Vauquer, sua realidade lhe parece
ainda mais lúgubre, miserável e triste do que antes. Ao perceber o desprezo que a alta
sociedade destina aos que não conheciam os seus códigos e valores, seu coração se enche
de mágoa e de rancor. A chama da cobiça e da inveja começa, então, a flamejar em seus
olhos e sua alma, ainda em estado bruto, mais do que nunca, anseia por ser lapidada para,
enfim, incorporar-se à nobre casta que constitui a aristocracia. No entanto, sua ânsia
advinha do fato de que Eugène ignorava quem, na verdade, compunha o ritmo e a cadência
da valsa bailada naquele universo. Orquestrada pela hipocrisia, ali soava apenas uma
melodia trágica, fadada a ferir, a angustiar e a corromper as almas que por ela eram
conduzidas.
Romance de iniciação, Le Père Goriot faz parte dos Estudos dos Costumes e das Cenas da
Vida Privada, livros em que Balzac se propõe a reunir os fatos e os gestos que formam a
história geral da sociedade e representar épocas específicas da vida humana :
Ce n'était pas une petite tâche que de peindre les deux ou trois mille
figures saillantes d'une époque, car telle est, en définitif, la somme des
types que présente chaque génération et que La Comédie humaine
93
comportera.[...] De là, les divisions si naturelles, déjà connues, de mon
ouvrage en Scène s de la vie privée, de province, parisienne, politique,
militaire et de campagne. Dans ces six livres sont classées toutes les
Etudes de moeurs qui forment l'histoire générale de la Société, la
collection de tous ses faits et gestes, eussent dit nos ancêtres. Ces six
livres répondent d'ailleurs à des idées générales. Chacun d'eux a son sens,
sa signification, et formule une époque de la vie humaine.[...] Les Scènes
de la vie privée représentent l'enfance, l'adolescence et leurs fautes.[...].
Chacune de ces trois parties a sa couleur locale: Paris et la province, cette
antithèse sociale a fourni ses immenses ressources. Non-seulement les
hommes, mais encore les événements principaux de la vie, se formulent
par des types. Il y a des situations qui se représentent dans toutes les
existences, des phases typiques, et c'est là l'une des exactitudes que j'ai le
plus cherchées.1 (BALZAC, 1964, p.203)
O romance mostra, portanto, quais eram os padrões de comportamento e os gestos
característicos de indivíduos que pertenciam a classes e origens socio-culturais distintas, no
período da Restauração à Monarquia de Julho. Ao contrastar os hábitos e costumes do
jovem provinciano com os da elite parisiense, o escritor tipifica cada classe e ressalta suas
diferenças comportamentais. A passagem da infância para a idade madura, outro elemento
predominante na estética balzaquiana, também é abordada aqui. Rastignac inicia a trama
com a pureza característica da adolescência, porém, ao longo da narrativa, os obstáculos
que se interpõem em seu caminho e as angústias e decepções que experimenta, não só
fazem com que ele perca a inocência e atinja a idade madura, mas também, que adquira a
personalidade extremamente determinada e o caráter malicioso, que espelham a sua
trajetória. O aprendizado e o amadurecimento de Rastignac aparecem, portanto, como uma
dessas diversas situações, ou “fases típicas”, que Balzac acreditava que estavam presentes
em todas as existências.
1
Não é uma tarefa pequena a de pintar as duas ou três mil figuras representativas de uma época, porque essa
é, definitivamente, a soma dos tipos que cada geração apresenta e que a Comédia Humana comportará.[...]
Daí , as divisões tão naturais, já conhecidas, da minha obra em Cenas da vida privada, de província,
parisiense, política, militar e do campo. Nesses seis livros estão classificados todos os Estudos dos costumes
que formam a história geral da sociedade, a coleção de todos os seus fatos e seus gestos, teriam dito nossos
ancestrais. Cada um deles tem o seu sentido, sua significação, e formula uma época da vida humana.[...] As
Cenas da vida privada representam a infância, a adolescência e suas faltas, [...]Cada uma dessas três partes
tem a sua cor local : Paris e a província, esta antítese social forneceu seus imensos recursos. Nã o somente os
homens, mas também, os eventos principais da vida, formulam-se por tipos. Existem situações que se
apresentam em todas as existências, fases típicas, e ai está uma das exatidões que eu mais procurei. (tradução
nossa)
94
Dominado pela revolta e pela ambição, Eugène torna-se uma presa fác il nas mãos do
misterioso Vautrin. Homem colossal, aparentando cerca de quarenta anos, ele se destacava
dos demais pensionistas com suas costeletas tingidas e uma peruca negra. Detentor de um
caráter cínico e malicioso, Vautrin seria um dos preceptores de Rastignac e se encarregaria
de apresentar-lhe o lado cruel e maquiavélico do ser humano. Apesar de se dizer um excomerciante, o enigmático personagem deixava transparecer, através de seus diálogos, que
era, na verdade, um homem do mundo e uma espécie de encarnação do diabo, cujo papel
consistia em conquistar e corromper aqueles a quem seduzia. Ao observar secretamente o
jovem provinciano, Vautrin logo pressente a ambição e os sentimentos confusos que se
apoderaram do seu coração. Um dia, chamando-o à parte e dizendo não desejar nada além
do seu bem, ele lhe expôs, abruptamente, suas perversas teorias sociais. Num jogo ardiloso
de sedução, Vautrin, ao mesmo tempo em que excitava a ambição de Rastignac, também
fazia questão de mostrar- lhe os infortúnios da sua condição social e os inúmeros obstáculos
que se interpõem no caminho de jovens que, como ele, sonham ascender socialmente,
abraçando a magistratura. Discursando magnificamente, Vautrin alegou saber que ele
desejava vencer na vida, mas que esse era, também, o problema para o qual cinqüenta mil
jovens na sua posição buscavam uma resposta e, proferindo argumentos cada vez mais
contundentes, explicou que, para alcançar o sucesso, seria preciso abrir mão de todo e
qualquer escrúpulo. Sem deixar que Rastignac retomasse o fôlego, ele apresentou,
finalmente, sua insólita proposta : atingir a prosperidade através de um crime.
Na Maison Vauquer, vivia uma jovem chamada Victorine Taillefer. Frágil e doce, ela era
órfã de mãe e renegada pelo pai, um milionário que acreditava possuir razões para não
reconhecê- la, para dedicar somente ao filho o seu afeto e a sua atenção e, finalmente, para
deserdá- la em favor do irmão. Imaginando que, com o desaparecimento do filho predileto,
o pai ver-se- ia obrigado a restituir os direitos da única filha, Vautrin se oferece para tirar o
jovem herdeiro do caminho, desde que Rastignac se encarregue de conquistar o amor de
Victorine e, conseqüentemente, sua fortuna.
Embora seduzido pela soma vultuosa que Vautrin desfila diante de seus olhos, o jovem
advogado se revolta contra essa proposta indecente, ao mesmo tempo em que vislumbra a
95
possibilidade de vencer na vida, através das filhas do pai Goriot, de quem se tornara amigo.
Após fracassar junto à condessa de Restaud, Rastignac acabou se envolvendo,
verdadeiramente, com Delphine de Nucingen. O romance é encorajado pelo pai da
baronesa, que vê na união dos dois amantes a possibilidade de se reaproximar da filha.
Paralelamente, Vautrin, seguro de que havia atraído Rastignac através de seu magnetismo
e de seus argumentos, prossegue com seu plano e paga um espadachim para matar o irmão
de Victorine. No entanto, no mesmo dia em que o jovem Taillefer é morto, o mandante do
crime é traído por uma colega da pensão – a senhorita Michenneau, uma solteirona
descarnada e de olhar insípido que aceita espioná- lo em troca de dois mil francos – e
entregue à polícia. A prisão é feita diante dos demais pensionistas que, só então, descobrem
a verdadeira identidade do misterioso Vautrin. Tratava-se de um fugitivo do presídio de
Toulon, cujo nome real era Jacques Collin. Conhecido no submundo pela alcunha de
“engana-morte”, Collin era uma espécie de banqueiro dos presidiários, sendo responsável
pela gerência do capital dos seus colegas do presídio e pela administração dos interesses
financeiros de uma associação de contraventores, conhecida como Sociedade dos Dez Mil.
Ao deixar a pensão, Vautrin se despede de todos e, em particular, de Rastignac, deixando,
enfim, transparecer a natureza dos sentimentos que nutria pelo jovem provinciano.
Na realidade, a verdadeira identidade de Vautrin vai sendo revelada, gradativamente, ao
longo da narrativa. Em clima de suspense, o escritor oferece inúmeros indícios sobre o
caráter do personagem, a fim de provar, mais uma vez que, como todo homem é produto e
reflexo do meio em que vive, também Vautrin espelha o submundo em que viveu e os
presídios por onde passou. Assim, nas primeiras páginas do romance, Balzac se encarrega,
ele mesmo, de denunciar o famoso trompe-la-mort :
Si quelque serrure allait mal, il l'avait bientôt démontée, rafistolée, huilée,
limée, remontée, en disant: Ça me connaît. " Il connaissait tout d'ailleurs,
les vaisseaux, la mer, la France, l'étranger, les affaires, les hommes, les
événements, les lois, les hôtels et les prisons. Si quelqu'un se plaignait par
trop, il lui offrait aussitôt ses services. Il avait prêté plusieurs fois de
l'argent à madame Vauquer et à quelques pensionnaires; mais ses obligés
seraient morts plutôt que de ne pas le lui rendre, tant, malgré son air
bonhomme, il imprimait de crainte par un certain regard profond et plein
96
de résolution. A la manière dont il lançait un jet de salive, il annonçait un
sang-froid imperturbable qui ne devait pas le faire reculer devant un crime
pour sortir d'une position équivoque. Comme un juge sévère, son oeil
semblait aller au fond de toutes les questions, de toutes les consciences, de
tous les sentiments.[...] Quoiqu'il eût jeté son apparente bonhomie, sa
constante complaisance et sa gaieté comme une barrière entre les autres et
lui, souvent il laissait percer l'épouvantable profondeur de son caractère.
Souvent une boutade digne de Juvénal, et par laquelle il semblait se
complaire à bafouer les lois, à fouetter la haute société, à la convaincre
d'inconséquence avec elle-même, devait faire supposer qu'il gardait
rancune à l'état social, et qu'il y avait au fond de sa vie un mystère
soigneusement enfoui.2 (BALZAC, 1971,p.37)
Determinado a ser um dos preceptores de Rastignac, Vautrin utiliza maliciosamente a visão
dura e crua que tinha da sociedade em que vivia, para apagar todo e qualquer vestígio de
ingenuidade romântica que o jovem provinciano ainda pudesse nutrir em relação à vida. Ao
expor diante dos olhos atônitos de Rastignac as reais possibilidades que a sociedade
burguesa do século XIX oferecia a jovens como ele, o ex-presidiário consegue, ao mesmo
tempo, ceifar os sonhos românticos do jovem e justificar sua natureza pérfida e seu caráter
diabólico como sendo produtos dessa mesma sociedade. Em Mímesis e Modernidade, Costa
Lima menciona que a concentração industrial em cidades como Paris, não só gerou
enormes contradições sociais, mas também, fez diminuir, significativamente, as
oportunidades que a capital oferecia a jovens ambiciosos, mas sem dinheiro – como os
personagens balzaquianos, Eugène de Rastignac ou Lucien de Rubempré. O discurso de
Vautrin aborda, justamente, esse aspecto da realidade social do período, ressaltando,
portanto, o caráter moderno da obra e o seu vínculo com as questões sociais daquele
momento histórico. A obsessão realista de Balzac faria com que alguns de seus personagens
2
Se alguma fechadura não funcionava, logo a desmontava, consertava, azeitava, limava, tornava a montar,
dizendo: “disso eu entendo”. Aliás, entendia de tudo, de barcos, de mar, da França, do exterior, dos negócios,
dos homens, dos acontecimentos, das leis, dos hotéis e das prisões. Se alguém se queixava um pouco,
imediatamente oferecia-lhe seus serviços. Por várias vezes emprestara dinheiro à senhora Vauquer e a alguns
pensionistas; mas seus devedores preferiam morrer a não lhe devolver o empréstimo, de tanto que, apesar de
seu ar bonachão, imprimia terror por um certo olhar profundo e cheio de determinação. Pela maneira como
lançava um jato de saliva, anunciava um sangue frio imperturbável que não devia fazê-lo recuar diante de um
crime para sair de uma situação equívoca. Como juiz severo, seu olhar parecia alcançar o fundo de todas as
questões, de todas as consciências, de todos os sentimentos. [...] Embora erigisse sua aparente bonomia, sua
constante complacência e sua alegria como uma barreira entre os outros e ele, muitas vezes deixava que se
entrevisse a terrível profundidade de seu caráter. Muitas vezes uma tirada digna de Juvenal, pela qual parecia
se comprazer em ridicularizar as leis, açoitar a alta sociedade, convencê-la de inconseqüência consigo
mesma, dava a entender que tinha rancor das condições sociais e que havia no fundo de sua vida um mistério
cuidadosamente dissimulado.
97
fossem criados a partir de modelos reais, numa tentativa de confirmar sua tese que a
sociedade, assim como o conjunto da zoologia, é composta por tipos específicos, passíveis
de serem catalogados. Para criar Vautrin, Balzac se inspirou em um famoso policial
chamado Vidocq, um ex-presidiário que o escritor teve a oportunidade de conhecer na casa
de Benjamin Appert, um filantropo que dirigiu vários presíd ios. Em uma carta escrita a
Hippolyte Castille, em 1846, Balzac reafirma sua fonte de inspiração :
Je puis vous affirmer que le modèle existe, qu’il est d’une épouvontable
grandeur et qu´il a trouvé sa place dans le monde de notre temps. Cet
homme était tout ce qu’était Vautrin, moins la passion que je lui prêtée. Il
était le génie du mal, utilisé ailleurs.3 (THERENTY,1995,p 45)
Em contrapartida, contrastando com a cena dramática da prisão de Vautrin, logo em
seguida, Goriot chega à Maison Vauquer transbordando de alegria e convida Rastignac para
jantar com ele e Delphine. O motivo do convite era mostrar o belo apartamento que ele
havia comprado, na rua d’Artois, para os dois amantes. No jantar, o ancião conta a
Delphine que Eugène havia renunciado aos milhões de Victorine para viver ao lado dela e
revela o montante que havia despendido para oferecer aos dois jovens aquele aconchegante
ninho de amor, onde ele também pretendia desfrutar, junto com a filha e Rastignac, o resto
de felicidade que a vida ainda podia lhe proporcionar. A afeição que Goriot demonstrava
pela filha era tão desmedida que começa a provocar em Rastignac um ciúme
desconcertante. Na verdade, o velho macarroneiro desejava viver junto com eles, no
pequeno apartamento, como um espírito que vaga pela casa sem jamais ser visto, saciando,
assim, o amor incestuoso que nutria pela filha, como um voyeur que satisfaz o seu desejo,
espionando um casal de amantes.
Entretanto, a felicidade iminente do casal e do ancião seria ameaçada pelos genros de
Goriot que, pressentindo as intrigas amorosas de suas esposas, ameaçavam arruiná- las.
Enquanto se preparava para deixar a Maison Vauquer e mudar-se para o novo apartamento,
Rastignac ouve uma conversa entre Delphine e Goriot, na qual a jovem confessa ao pai que
o barão só a deixaria livre para se unir a ele caso ela abrisse mão de seu dote, por pelo
3
Eu posso afirmar que o modelo existe, que ele é de uma grandiosidade espantosa e que encontrou o seu
lugar na sociedade do nosso tempo. Esse homem era tudo o que era Vautrin, com exceção da paixão que eu
lhe emprestei. Ele era o gênio do mal, utilizado em outros lugares.(tradução nossa)
98
menos dois anos, deixando que ele continuasse a gerir a sua fortuna. Logo em seguida, é a
vez de Anastasie implorar a ajuda do pai. A condessa havia penhorado as jóias da família
do marido para pagar as dívidas de seu amante, e, agora, era pressionada por todos os lados,
pelo marido que ameaçava tomar- lhe o dote e por Maxime que ainda necessitava de doze
mil francos para terminar de saldar suas dívidas. Ao descobrir que o pai havia empenhado
seus últimos francos em um apartamento para Delphine, Anastasie se volta violentamente
contra a irmã e a hostilidade que se estabelece entre as duas tem o efeito de um golpe
mortal sobre pai.
Eugène passa a noite com Delphine no apartamento da rua d’Artois e, na manhã seguinte,
ao retornar à pensão, percebe que o estado de saúde do pai Goriot é crítico. Ele previne
Delphine de que seu pai está morrendo, mas a baronesa ignora suas advertências,
preocupada que estava em assistir ao baile que deveria marcar a despedida da viscondessa
de Beauséant da sociedade parisiense. A nobre dama havia decidido se retirar para a
Normandia, ao saber do casamento de seu amante, o senhor d´Ajuda Pinto, com a senhorita
Rochefide. Assim, enquanto as filhas desfilavam pelos ricos salões do quarteirão de SaintGermain, o velho macarroneiro, tomado por uma crise de apoplexia, definhava no leito
fétido da Maison Vauquer. No auge de sua agonia, ele implora para ver as filhas uma
última vez, mas nenhuma das duas ouve o seu chamado. Somente Rastignac e Bianchon –
jovem pensionista, estudante de medicina – assistem o pobre velho. Antes de morrer,
Goriot tem uma crise de lucidez e maldiz as filhas mas, logo em seguida, perdoa- lhes a
ausência. Esse triste desenlace conclui, enfim, o aprendizado de Rastignac. Após o solitário
enterro do pai Goriot, pago pelo jovem com as poucas economias que ainda tinha,
Rastignac sobe ao ponto mais alto do cemitério Père-Lachaise e, com um olhar ávido,
porém maduro, lança o se u desafio diante de Paris: “Agora, é entre nós dois!”
O romance Le Père Goriot consegue incorporar, através do jogo performático que usa para
contar essa história, todos os elementos que seu autor julga essenciais para a construção de
um drama realista. Balzac situa, precisamente, a história no tempo e no espaço, mostrando,
com fidelidade aos documentos de que dispunha e aos fatos históricos que presenciou, a
situação política que vigorava na França durante o período da Restauração. Narrador
99
onisciente e, ao mesmo tempo, extremamente discreto, usa todos os artifícios que possui
para tentar desaparecer da narrativa e, ludibriando o leitor, colocá- lo como se fosse
testemunha direta do seu universo ficcional. Assim, a descrição minuciosa das pessoas e
dos lugares, a composição dos personagens em forma de tipos facilmente identificáveis e
até mesmo os nomes próprios utilizados por ele, muitos inspirados em pessoas reais,
servem para aumentar a credibilidade da história, dissimular o poder de criação do autor e
sustentar a ilusão de realidade.
Assim como Le père Goriot é um modelo do romance realista idealizado por Balzac,
também
Au Bonheur des Dames é emblemático do que Zola propõe no Romance
Experimental. Para contar a história do nascimento de uma grande loja de departamentos,
na segunda metade do século XIX, o escritor estabelece um ponto de partida, a força das
ambições e dos apetites humanos, um terreno sólido, a Paris que acabara de ser
modernizada pelas obras do barão de Haussmann; cria, em seguida, os fenômenos que vão
se desenvolver nesse cenário, única parte em que o escritor permite que a invenção e o
gênio do autor tenham lugar em um romance naturalista. Por fim, através dos dramas
protagonizados por Denise Baudu e Octave Mouret, ele tenta mostrar que a sucessão dos
fatos será tal qual a exige o determinismo dos fenômenos estudados.
O romance começa quando Denise Baudu, jovem normanda de 20 anos, chega à capital
francesa em companhia dos dois irmãos Jean, de dezesseis anos e Pépé, de cinco. Após a
morte do pai, sem ter como sobreviver na sua cidade natal, Valognes, ela procura por seu
tio Baudu, dono de uma pequena e tradicional loja parisiense, na esperança de poder
trabalhar e viver com ele. No entanto, ao chegar a Paris, Denise descobre que, graças a uma
enorme loja de departamentos – “Au Bonheur des Dames” – localizada, exatamente, em
frente à
lojinha de seu tio – os pequenos comerciantes, vizinhos daquele templo de
consumo, agonizavam lentamente, vítimas da concorrência desproporcional e perversa
impetrada por aquele ícone do capitalismo selvagem.
Fundada pelos irmãos Deluze, em 1822, “Au Bonheur des Dames” começou como uma loja
modesta. Octave Mouret, filho de François Mouret e Marthe Rougon, tornou-se o seu
100
proprietário ao casar-se com a única herdeira dos dois irmãos, Caroline Hédoin, (nascida
Deluze), viúva de Charles Hédoin. Como era um comerciante de idéias arrojadas, pouco a
pouco, Mouret
foi adquirindo as casas vizinhas à sua loja e, antes que os demais
comerciantes percebessem, se u pequeno negócio se transformou em uma enorme loja de
departamentos. Em um determinado momento, de tão próspera, ela começa a engolir seus
vizinhos, principalmente, todos os que, como Baudu, se mantinham presos às práticas
comerciais tradicionais, desejosos de que suas lojinhas permanecessem como sempre
foram, apesar de todas as modificações trazidas pela modernidade. Com o falecimento
prematuro de sua esposa, Mouret torna-se o único proprietário do “Bonheur”.
Dentre as principais características do Segundo Império estão o rápido desenvolvimento
urbanístico e econômico, além da adoção de uma nova política comercial que forçaria a
modernização imediata da indústria francesa. Durante a sua juventude, Napoleão foi
fortemente influenciado pelos saint-simonist es, o que o levou a defender a teoria de que o
progresso industrial era uma condição fundamental para o progresso social. Ao substituir o
tradicional sistema protecionista pela eliminação, ou por uma significativa redução das
tarifas aduaneiras, Napoleão forçou a indústria francesa a modernizar seu maquinário e a
reduzir os preços. Quem também se beneficiou com essa nova política econômica foram as
grandes lojas de departamento que já comercializavam toda sorte de artigos e que agora
poderiam oferecer uma diversidade ainda maior. As grandes lojas de departamento
apareceram precocemente na capital francesa. O Pygmalion, a primeira delas, foi
inaugurado em 1793. No entanto, durante a primeira metade do século, as grandes lojas não
eram numerosas o suficiente para incomodar as pequenas lojinhas que muitas vezes
vendiam os mesmos artigos que aquelas, porém, a preços muito mais elevados. Mas a partir
de 1850, a nova política comercial favorece o rápido crescimento desse tipo de comércio e
Paris assiste à abertura de seus principais templos de consumo. Datam desse período o Bon
Marché (1852), o Louvre (1855) e a Samaritaine (1869). Luxuosas e modernas, elas
também foram responsáveis pela introdução das novas concepções mercadológicas que
revolucionaram o comércio : se contentavam com um pequeno benefício sobre cada
mercadoria, concentrando-se na obtenção de lucro, a partir da venda de grandes
quantidades do produto; comercializavam artigos de várias partes do mundo (graças à nova
101
política aduaneira de Napoleão) e, além disso, traziam inovações surpreendentes para a
época, como a venda a preço fixo, que evitava que vendedor e cliente perdessem tempo ou
se aborrecessem negociando o preço; o acesso às lojas passou a ser liberado a todos e os
vendedores se dispunham a mostrar os objetos para os clientes, sem que esses tivessem,
obrigatoriamente, que comprá- los. Essa nova dinâmica comercial iria destruir o equilíbrio
existente entre as grandes lojas de departamento e as pequenas lojinhas e desencadear uma
verdadeira guerra entre os pequenos e os grandes comerciantes. Zola se aproveita desse
contexto histórico e mergulha seus personagens nesse universo, criando um romance que,
ao mesmo tempo em que espelha todas as nuances da batalha que era travada, também faz
uma crítica veemente aos princípios do capitalismo e do liberalismo econômico.
A crise das pequenas butiques leva Denise a procurar trabalho no “Bonheur des Dames” e,
graças à perspicácia de Mouret – o único a perceber a beleza e o charme que a jovem trazia
ocultos –, seu olhar triste e os trajes simples de camponesa não a impedem de ser
contratada. Porém, tão logo ela chega à secção para a qual fora admitida, seus sapatos
surrados e seus cabelos difíceis de pentear tornam-se motivos de deboche. Começa, assim,
a série de humilhações impostas por suas colegas de trabalho, das quais ela seria vítima e
que visavam, sobretudo, impedi- la de participar de qualquer venda mais importante. Logo,
Denise iria descobrir que a estrutura que sustentava aquele templo tão fascinante era
extremamente cruel e desumana. Por trás de tanta beleza, era travada uma verdadeira
batalha pela vida, uma luta capaz de aflorar os piores sentimentos humanos como a
ambição, a inveja, o rancor e a ganância. Pelo poder valia tudo: vender o corpo, a alma, a
dignidade. Numa batalha tão sórdida, permanecia uma certeza, a de que só os fortes
sobreviveriam.
Defensor convicto tanto dos preceitos evolucionistas de Darwin quanto da ideologia
socialista, Zola aplica à sua grande loja de departamento os princípio s do capitalismo e do
liberalismo econômico, com o objetivo de demonstrar, através da teoria da seleção natural,
que tais princípios engendrariam uma batalha pela vida, na qual só os mais fortes
sobreviveriam. Zola tenta evidenciar também o quão desumano e destrutivo era um sistema
que se baseava na livre concorrência, uma estrutura cujo bom funcionamento dependia do
102
apetite desenfreado que levava um homem a devorar seu próprio semelhante. Entretanto, o
romance Au Bonheur de Dames, ao mesmo tempo em que se revela como uma poderosa
crítica à estrutura social vigente no Segundo Império, é também, uma verdadeira ode aos
tempos modernos. Por mais paradoxal que possa parecer, Zola, como os grandes
modernistas de sua geração, vê com bons olhos o nascimento da publicidade, a urbanização
da capital francesa, a beleza das novas obras arquitetônicas e do novo comércio, além de
mergulhar cegamente na euforia cientificista que marcou essa geração. Seu otimismo só se
arrefece realmente diante das desigualdades sociais que essa nova estrutura engendra. Uma
questão cuja solução ele vislumbrava através da substituição daquele sistema capitalista
desumano e selvagem por um socialismo que, hoje, consideramos utópico e extremamente
romântico.
Além da rotina penosa, Denise ainda tinha que conviver com a angústia e com o temor de
não conseguir dinheiro suficiente para pagar à senhora que cuidava de Pépé e cobrir as
despesas de Jean que, a cada dia, revelava-se mais manipulador e inconseqüente e,
ludibriando a irmã, solicitava somas cada vez maiores para despender nas suas aventuras
amorosas.
Apesar do martírio físico e psicológico que experimentava, com os cabelos domados e um
vestido de seda, Denise adquire uma aparência delicada e suave. Ela também se torna
amiga de Pauline Cugnot, da seção de lingerie, que a aconselha a seguir o exemplo das
demais vendedoras e encontrar um amante para suprir suas necessidades financeiras.
Entretanto, a jovem não suporta nem mesmo imaginar tal idéia, preferindo a fatigante tarefa
de passar as noites fazendo nós em gravatas. Seis meses se passam até que ela e Mouret se
encontrem novamente. Ele fica admirado com a transformação e com a beleza, agora
evidente, da jovem vendedora, e surpreende-se ao perceber a ambigüidade dos sentimentos
que ela é capaz de lhe despertar, uma mistura de medo, encanto e ternura.
Em julho, com a chegada do verão, as vendas começam a cair e inicia-se o período das
demissões em massa. Ao recusar os avanços do inspetor Jouve, Denise se torna vítima da
sua vingança. Havia um rumor entre os vendedores de que Jean era amante de Denise e
103
Pépé, filho dos dois. Uma tarde, Jouve surpreende Denise conversando com Jean, que mais
uma vez tinha procurado a irmã para pedir dinheiro e delata a jovem para Boudoncle, braço
direito de Mouret. Denise é demitida imediatamente e Mouret só toma conhecimento
quando já é muito tarde.
Como ela e o tio estavam estremecidos desde que Denise começou a trabalhar no
“Bonheur”, a jovem é obrigada a alugar um quarto na casa de Bourras, um artesão que
fabricava guarda-chuvas e que a emprega por caridade. Pouco depois, ela é contratada por
Robineau, que adquire uma das lojas próximas ao “Bonheur” e lança uma nova seda no
mercado para tentar concorrer com a “Paris-bonheur” de Mouret. Esse, por sua vez, liquida
os estoques da “Paris-Bonheur” a preços extremamente baixos com o único objetivo de
levar o concorrente à falência. Robineau ainda resiste por algum tempo, mas acaba
perdendo a batalha.
Mouret e Denise só se encontrariam novamente um ano após a demissão da vendedora,
durante o passeio habitual que ela e Pépé faziam ao “Jardin des Tulieries”. Após travarem
um longo diálogo, Mouret fica muito surpreso por se dar conta de que os dois tinham as
mesmas concepções sobre o comércio e que ela também possuía uma mente aberta e repleta
de idéias arrojadas sobre a lógica do mercado consumidor. Cada vez mais fascinado, ele
mostra estar ciente do mal entendido que causou sua demissão e a convida a retornar ao
“Bonheur”. Inicialmente, Denise recusa, mas com a ruína de Roubineau, ela não encontra
outra alternativa.
Dois outros temas que permeiam toda a obra de Zola também aparecem em Au Bonheur
Des Dames: a condição feminina e a questão da hereditariedade. O perfil psicológico que o
romancista cria para Denise Baudu torna a personagem uma antítese da mulher da sua
geração e ressalta, através desse contraste, as dificuldades da condição feminina na
sociedade burguesa do século XIX. Denise segue na contramão da mulher do seu tempo
que, sem nenhuma outra opção, era obrigada a se submeter aos códigos de conduta de uma
estrutura extremamente machista, opressora e, por vezes, até brutal. Ao criar uma
protagonista com idéias arrojadas, defensora da evolução da indústria, das novas técnicas
104
comerciais e que não se submete à figura masculina, Zola consegue denunciar o quanto a
condição feminina – principalmente nas classes mais baixas – ainda era desumana e cruel,
ainda que para isso – talvez inconscientemente – tenha dado vida a uma personagem
essencialmente româ ntica. Quanto ao protagonista, esse encarna plenamente os princípios
da hereditariedade que norteiam a construção de toda a saga dos Rougon-Macquart e que
ligam todos os membros dessa família entre si. Filho de François Mouret e Marthe Rougon,
ele herdou, de seu pai, o dom para o comércio e, de sua mãe, uma certa febre nervosa que
fazem dele um espírito entusiasta, obsessivo e passional. Juntos, os seus traços hereditários
o transformaram em um gênio do comércio e em um homem extremamente sedutor.
O retorno de Denise é triunfal. Ela se torna o objeto de desejo de Mouret que, não medindo
esforços para seduzi- la, promove sua ascensão na escala hierárquica da loja, designando-a
para cargos cada vez mais importantes. Embora aceite as novas condições de trabalho, ela
recusa, veementemente, todos os avanços e presentes do patrão, mostrando-se, por vezes,
indignada. No entanto, essas recusas só contribuem para aumentar ainda mais a obsessão de
Mouret que, nunca tendo conhecido uma mulher que resistisse às suas táticas de sedução,
torna-se cada vez mais fascinado por Denise. Paralelamente, a jovem, que agora ocupa um
cargo proeminente, faz o possível para humanizar o relacionamento entre os vendedores e
sugere a Mouret uma série de medidas para melhorar os salários e as condições de vida dos
seus colegas.
Cada vez mais apaixonado, Mouret começa a sentir um ciúme doentio de Denise.
Sentimento permanentemente fomentado por Bourdoncle, que invejava o fascínio que o
patrão nutria pela jovem. Sentindo-se injustiçada quando Mouret a acusa de ter vários
amantes, Denise decide deixar Paris. Desesperado, Mouret consegue, finalmente, convencêla de seu amor e fazê-la aceitar sua proposta de casamento.
Ao analisarmos essas duas histórias, verificamos que o desejo das estéticas realista e
naturalista – fazer uma literatura que fosse quer uma réplica perfeita de uma sociedade em
seu tempo, quer um laboratório científico em que as experiências realizadas reproduzissem
os fenômenos da natureza, revelando ao observador a verdade e o determinismo dos fatos –
105
fez com que os precursores dessas estéticas elegessem temas específicos que norteariam
toda a sua obra. Alguns desses temas são comuns ao Realismo e ao Naturalismo como : os
hábitos e costumes das diferentes classes sociais; o papel do dinheiro, da mulher, da família
e do casamento como engrenagens da sociedade e como alicerces para o sucesso; a história
e a ciência como agentes determinantes do comportamento humano; o contrataste entre a
vida urbana e a rural; o homem como produto do seu meio, dentre outras. No entanto,
apesar de possuírem uma identidade inicial, essas duas escolas diferem em muitos aspectos.
Assim, enquanto Balzac privilegia o papel da história e da sociologia na construção dos
diversos tipos humanos e, inspirando-se em Buffon, tenta estabelecer um paralelo entre a
espécie humana e o conjunto da zoologia, Zola, por sua vez, encarna o ideal positivista de
Augusto Conte e volta sua atenção, sobretudo, para os efeitos da aplicação dos princípios
da hereditariedade, da seleção natural e da influência do meio sobre as espécies em uma
sociedade fragmentada pelos efeitos da modernização e na qual impera um capitalismo
selvagem.
Em função da abordagem temática a que Balzac e Zola se propuseram, a descrição adquire
um papel determinante na obra dos dois escritores, sobretudo, porque eles acreditavam que
quanto mais minuciosa e exaustiva ela fosse, mais a narrativa se aproximaria da
objetividade (utópica) ambicionada pelo realismo e pelo naturalismo e maior seria o
vínculo com a realidade (ilusório) estabelecido por ela.
Balzac abre o romance Le père Goriot com uma descrição tão metódica e bem estruturada
do cenário e dos personagens da trama, quanto às tabelas científicas de zoologia elaboradas
por Geoffroy Saint-Hilaire, a quem ele dedica o romance. Esse início é também o reflexo
de uma das ambições que o escritor confessa no Prefácio da Comédia Humana : através de
uma literatura essencialmente mimética, tornar-se o copista da sociedade de seu tempo :
S'en tenant à cette reproduction rigoureuse, un écrivain pouvait devenir un
peintre plus ou moins fidèle, plus ou moins heureux, patient ou courageux
des types humains, le conteur des drames de la vie intime, l'archéologue
du mobilier social, le nomenclateur des professions, l'enregistreur du bien
et du mal. 4 ( BALZAC, 1964, p.195)
4
Ao se ater a esta reprodução rigorosa, um escritor poderia tornar-se um pintor mais ou menos fiel, mais ou
menos feliz, paciente ou corajoso dos tipos humanos. O narrador dos dramas da vida íntima, o arqueólogo do
mobiliário social, o nomenclador das profissões, o registrador do bem e do mal. (tradução nossa)
106
Através das citações abaixo, é possível verificar como Balzac se utiliza, insistentemente,
do jogo do texto para tentar construir uma narrativa que se limite à reprodução dos seus
mundos de referência :
Cette première pièce exhale une odeur sans nom dans la langue, et qu'il
faudrait appeler l'odeur de pension. Elle sent le renfermé, le moisi, le
rance ; elle donne froid, elle est humide au nez, elle pénètre les vêtements
; elle a le goût d'une salle où l'on a dîné ; elle pue le service, l'office,
l'hospice. Peut-être pourrait -elle se décrire si l'on inventait un procédé
pour évaluer les quantités élémentaires et nauséabondes qu'y jettent les
atmosphères catarrhales et sui generis de chaque pensionnaire, jeune ou
vieux. [...]Pour expliquer combien ce mobilier est vieux, crevassé, pourri,
tremblant, rongé, manchot, borgne, expirant, il faudrait en faire une
description qui retarderait trop l'intérêt de cette histoire, et que les gens
pressés ne pardonneraient pas. Le carreau rouge est plein de vallées
produites par le frottement ou par les mises en couleur. Enfin, là règne la
misère sans poésie ; une misère économe, concentrée, râpée. Si elle n'a
pas de fange encore, elle a des taches ; si elle n'a ni trous ni haillons, elle
va tomber en pourriture.5 ( BALZAC, 1971, p.26-28)
Cette pièce est dans tout son lustre au moment où, vers sept heures du
matin, le chat de Madame Vauquer précède sa maîtresse, saute sur les
buffets, y flaire le lait que contiennent plusieurs jattes couvertes
d'assiettes, et fait entendre son rourou matinal. Bientôt la veuve se montre,
attifée de son bonnet de tulle sous lequel pend un tour de faux cheveux
mal mis ; elle marche en traînassant ses pantoufles grimacées. Sa face
vieillotte, grassouillette, du milieu de laquelle sort un nez à bec de
perroquet ; ses petites mains potelées, sa personne dodue comme un rat
d'église, son corsage trop plein et qui flotte, sont en harmonie avec cette
salle où suinte le malheur, où s'est blottie la spéculation et dont Madame
Vauquer respire l'air chaudement fétide sans en être écoeurée. Sa figure
fraîche comme une première gelée d'automne, ses yeux ridés, dont
l'expression passe du sourire prescrit aux danseuses à l'amer
renfrognement de l'escompteur, enfin toute sa personne explique la
5
Esse primeiro cômodo exala um odor inexprimível, que se deveria chamar odor de pensão. Cheira a
fechado, a mofo, a ranço; dá frio, o nariz sente sua umidade, penetra nas roupas; seu gosto é de uma sala onde
se jantou; fede a serviço, a escritório, a hospital. Talvez fosse possível descrevê-lo caso se inventasse um
procedimento para avaliar as quantidades elementares e nauseabundas ali despejadas pelos bafos catarrais e
suis generis de cada pensionista, jovem ou velho.[...] Para explicar o quanto o mobiliário é velho, esburacado,
podre, capenga, corroído, manco, coalho, inválido, agonizante, seria necessário fazer uma descrição que
retardaria demais o interesse desta história, e as pessoas apressadas não perdoariam. As lajotas vermelhas
estão cheias de vales produzidos pelas mãos de tinta. Finalmente, ali reina a miséria sem poesia; uma miséria
econômica, concentrada, surrada. Se ainda não tem lodo, tem manchas; se ainda não tem buracos ou farrapos,
vai cair de podre.
107
pension, comme la pension implique sa personne. Le bagne ne va pas sans
l'argousin, vous n'imagineriez pas l'un sans l'autre. L'embonpoint blafard
de cette petite femme est le produit de cette vie, comme le typhus est la
conséquence des exhalaisons d'un hôpital. Son jupon de laine tricotée, qui
dépasse sa première jupe faite avec une vieille robe, et dont la ouate
s'échappe par les fentes de l'étoffe lézardée, résume le salon, la salle à
manger, le jardinet, annonce la cuisine et fait pressentir les pensionnaires.
Quand elle est là, ce spectacle est complet. âgée d'environ cinquante ans,
Madame Vauquer ressemble à toutes les femmes qui ont eu des malheur.
Elle a l'oeil vitreux, l'air innocent d'une entremetteuse qui va se gendarmer
pour se faire payer plus cher, mais d'ailleurs prête à tout pour adoucir son
sort, à livrer Georges ou Pichegru, si Georges ou Pichegru étaient encore à
livrer.6 (BALZAC, 1971, p. 28-29)
Ao questionarmos a teoria com a prática literária dos dois autores, a partir desses dois
extratos do livro Le père Goriot, verificamos que, embora o apelo descritivo seja eficiente
no que concerne à abordagem temática proposta pelo autor – e portanto, no romance, a
comparação entre a humanidade e a animalidade, a análise do homem como produto do
meio, e a tentativa de mostrar toda uma categoria social ou psicológica através de um
indivíduo, propostas no prefácio da Comédia Humana, fiquem evidentes – em
contrapartida, ele é totalmente estéril no que se refere ao veto ao imaginário, à
subjetividade e ao lirismo que, mais do que nunca, mostram-se inerentes ao jogo proposto
pelo texto ficcional.
6
O cômodo está brilhando no momento em que, por volta das sete horas da manhã, o gato da senhora
Vauquer precede sua dona, salta sobre os aparadores, onde fareja o leite em várias gamelas cobertas de pratos
e faz ouvir seu ronron matinal. Logo aparece a viúva, ataviada com sua touca de tule da qual escapam os
cabelos de uma peruca mal colocada; ela caminha arrastando os seus chinelos enrugados. Seu rosto velhote,
gorducho, do meio do qual sai um nariz de papagaio, suas mãozinhas rechonchudas, sua pessoa roliça como
um rato de igreja, seu corpete cheio demais e flutuando, combinam com a sala que recende a desventura, onde
a especulação se insinuou e cujo ar quente e fétido a senhora Vauquer respira sem ficar enojada. Seu rosto
fresco como a primeira geada de outono, as rugas em seus olhos, cuja expressão passa do sorriso prescrito às
dançarinas à amarga contração do cambista, enfim, toda a sua figura explica a pensão, como a pensão implica
a sua figura. Os condenados a trabalhos forçados não se mexem sem o beleguim, não dá para imaginar os
primeiros sem os segundos. A corpulência macilenta da mu lherzinha é o produto dessa vida, como o tifo é
conseqüência das exalações de um hospital. Seu saiote de lã tricotada, que ultrapassa sua primeira saia feita
com um vestido velho, e cujo forro escapa pelas fendas do tecido esburacado, resume a sala de estar, a sala de
jantar, o jardinzinho, anuncia a cozinha e prenuncia os pensionistas. Quando está ali, o espetáculo fica
completo. Com cerca de cinqüenta anos, a senhora Vauquer assemelha-se a todas as mulheres que tiveram os
seus desgostos. Seus olhos não brilham, ele tem a aparência inocente de uma alcoviteira que se irrita para que
lhe paguem mais, mas pronta a tudo para suavizar o seu destino, a entregar Georges ou Pichegru, se Georges
ou Pichegrou ainda estivessem sendo procurados.
108
No prefácio da Comédia Humana encontramos as seguintes afirmações :
L'idée première de la Comédie humaine fut d'abord chez moi comme un
rêve, comme un de ces projets impossibles que l'on caresse et qu'on laisse
s'envoler[...]. Mais la chimère, comme beaucoup de chimères, se change
en réalité[...] Cette idée vint d'une comparaison entre l'Humanité et
l'Animalité. 15 (BALZAC,1964, p.190)
[...]je vis que, sous ce rapport, la Société ressemblait à la Nature. La
Société ne fait-elle pas de l'homme, suivant les milieux où son action se
déploie, autant d'hommes différents qu'il y a de variétés en zoologie ? 16
(BALZAC, 1964, p.191)
Ce n'était pas une petite tâche que de peindre les deux ou trois mille
figures saillantes d'une époque, car telle est, en définitif, la somme des
types que présente chaque génération et que La Comédie humaine
comportera. Ce nombre de figures, de caractères, cette multitude
d'existences exigeaient des cadres, et, qu'on me pardonne cette expression,
des galeries. 17 (BALZAC, 1964, p.203)
As citações extraídas do romance, salientam, portanto, que Balzac tencionava respaldar, na
literatura, a teoria naturalista do homem como um produto de seu meio, descrevendo
Madame Vauquer como um produto do seu universo particular e concebendo, da mesma
forma, esse universo como um espelho dos atos e das feições da dona da pensão. Também
fica evidente, através do paralelo que o escritor institui entre o nariz da personagem e o
bico de um papagaio, ou mesmo entre a sua figura e a de um rato de igreja, sua tentativa de
buscar no reino animal elementos que possibilitem a criação de uma relação de
equivalência entre o aspecto e o comportamento dos animais e os
traços físicos e
psicológicos dos seus personagens. Por fim, essa descrição nos permite ainda perceber a
defesa que Balzac faz da sua tese – de que um único indivíduo (personagem) pode
15
A idéia primeira da Comédia Humana foi para mim, a princípio, como um sonho, como um destes projetos
impossíveis que acalentamos e deixamos alçar vôo [...] Mas a quimera, como muitas quimeras, se transforma
em realidade[...]. Essa idéia veio da comparação entre a humanidade e a animalidade.
16
[...] eu vi que, a esse respeito, a sociedade se assemelhava à natureza. A sociedade não faz do homem, de
acordo com os meios em que suas ações se desdobram, tantos homens diferentes quanto existem variedades
zoológicas? ( tradução nossa)
17
Não é uma tarefa pequena a de pintar as duas ou três mil figuras representativas de uma época, porque essa
é, definitivamente, a soma dos tipos que cada geração apresenta e que a Comédia Humana comportará. Esse
grande número de figuras, de caracteres, essa multidão de existências, exigiriam quadros, e, que me perdoem
a expressão, galerias. (tradução nossa)
109
representar toda uma categoria social – em razão da analogia que ele estabelece entre
Madame Vauquer e todas as mulheres que tiveram os seus desgostos.
Entretanto, embora a narrativa tenha sido concebida como uma espécie de inventário,
seguindo uma ordem rígida e lógica, a própria adjetivação que circunda cada elemento
inventariado já é indício da presença da pluralidade de interpretações que o texto evoca.
Numa tentativa de controle dessas interpretações, o autor inicia um processo de interação
com o leitor que permeará todo o romance. No entanto, longe de conferir uma objetividade
realista ao texto, as constantes interrupções do autor, aliada a essa abundância de
qualificativos, abrem inúmeros espaços vazios passíveis de serem preenchidos pelo
imaginário do leitor. Além disso, esses elementos permitem que a subjetividade e o lirismo
encontrem frestas para escapar, justamente, nas brechas abertas pelos artifícios que
deveriam suprimi- los. A subjetividade revela-se, por exemplo, quando Balzac, não podendo
furtar-se às nuances da narrativa, sob pena de comprometer o verdadeiro significado das
circunstâncias que narra, faz uso da ironia.; ou quando, na ânsia de transportar literalmente
o leitor para aquele universo, transforma percepções particulares em sensações universais.
Assim, ao afirmar que o cômodo tem um inexprimível odor de pensão, que ali reina a
miséria sem poesia, ou que a sala recende à desventura, ele não só abre o texto para as
inúmeras possibilidades de intelecção que diferentes horizontes de expectativa podem
depreender desse contexto, como também dá à narrativa um tom eminentemente poético. O
lirismo também transparece, de forma inesperada, quando Balzac, com o intuito de tornar a
descrição rítmica e harmoniosa, permite que ela assuma características simbolistas. Ao
abusar de sinestesias, aliterações e assonâncias, ele consente que o texto seja invadido por
inúmeros recursos poéticos e acaba transformando prosa e poesia em gêneros quase
indistintos : “Elle sent le renfermé, le moisi, le rance ; elle donne froid, elle est humide au
nez, elle pénètre les vêtements ; elle a le goût d'une salle où l'on a dîné ; elle pue le service,
l'office, l'hospice.” Por fim, ao fazer alusão a personagens históricos, como Georges e
Pichegru, ele conduz o leitor para um outro contexto, e esse apelo para um quadro de
referências externas engendra uma intertextualidade que, mais uma vez, quebra a seqüência
da narrativa, abrindo vazios passíveis de serem preenchidos pela imaginação.
110
O que podemos observar, através da análise do romance, é que todos esses elementos
rompem completamente com a objetividade proposta pelo Realismo e funcionam como
instâncias ativadoras do imaginário. Ao falar sobre a interação entre o fictício e o
imaginário, Iser pondera que o imaginário não é um potencial que ativa a si mesmo, mas
uma instância que precisa ser mobilizada por algo externo, seja pelo sujeito (Coleridge),
pela consciência (Sartre) ou pela psique e pelo sócio - histórico (Castoriadis), o que não
esgota as possibilidades de ativação. Portanto, fica claro que o imaginário não possui
intencionalidade, mas é, entretanto, atraído por ela, de acordo com o uso que dele é feito
em cada caso. Justamente por ser destituído de intencionalidade, o imaginário mostra-se
receptivo a qualquer intenção. Com isso, as intenções vinculam-se ao que mobilizaram,
fazendo com que sempre ocorra algo às instâncias ativadoras. Assim sendo, o imaginário
nunca
coincide
inteiramente
com
sua
mobilização
intencionalmente
realizada,
desenvolvendo-se antes como jogo com suas ins tâncias ativadoras.
O teórico alemão defende que como a oscilação, o deslizamento, a interferência e a
figuração dão origem a movimentos que se realizam assimetricamente e que, normalmente,
fazem referência a vários campos, é possível concluir que o transitório é a marca do jogo,
até porque o seu movimento diferenciado de vaivém não é finalidade em si mesma, mas
cumpre determinadas finalidades.
Iser observa ainda que, uma vez que a forma como o jogo se realiza depende da instância
ativadora, as possibilidades do caráter transitório podem ser desenvolvidas mais livremente
quando as finalidades pragmáticas são menos importantes. Nesse sentido, o fictício,
enquanto mobilização do imaginário no texto literário, induz uma espera por outra
constelação de jogo, pois o texto literário não se orienta em função do cumprimento de
finalidades, como ocorre no que diz respeito ao sujeito, à consciência e ao sócio -histórico
que, sem exceção, inserem o imaginário em determinados usos. Isso faz com que o
imaginário, ativado como jogo, adquira mais variações quando a instância mobilizadora,
com o objetivo de cumprir metas dadas, não utiliza desde o início o movimento transitório
do jogo. Assim, o fictício, que desenvolve o imaginário em suas possibilidades de jogo, se
distingue de qualquer filosofia do jogo que objetive o movimento transitório através de
símbolos. O fictício não pode, portanto, ser entendido como definição de jogo, mas como
111
instância específica, fazendo com que o imaginário seja acessível para além de seu uso
pragmático.
O teórico prossegue afirmando que o que distingue o fictício das instâncias ativadoras é a
sua estrutura de duplicação. Ele cita a bucólica (poesia) como um exemplo clássico nesse
sentido, visto que ela conecta um mundo artificial, inventado, a um mundo sócio histórico e
apresenta-se nessa duplicação como auto-reflexão da ficcionalidade literária.
Ele também considera que a bucólica (poesia)10 pode ser entendida como um metatexto da
ficcionalidade literária, e que o paradigma bucólico ilustra a fórmula estrutural da
ficcionalidade literária, tanto pela transgressão de limites quanto pelo engaste iterativo dos
dois mundos. No entanto, a estrutura de duplicação não se limita a esse sistema, que se
espalha por outros gêneros. O que na bucólica (poesia) se transforma em imagem, está
presente nos atos de fingir como função. Os próprios atos provocam os ‘dois mundos’ e,
através dessa duplicação, abrem em cada texto um espaço de jogo.
Para o teórico alemão existe, no espaço do jogo, três atos os quais ele denomina de atos de
fingir : o de seleção, o de combinação e o de auto- indicação. O primeiro deles, o ato de
seleção, provoca uma fragmentação do campo de referência correspondente, à medida que
os elementos escolhidos para figurar no texto só adquiram sua valorização com a rejeição
de outros elementos. Sem essa relação, a desordem passível de evento no âmbito do texto
não teria vez, manifestando-se como tensão e indicando, com isso, que o ‘mundo’
transgredido está presente nele. Além disso, o ato de seleção também invade outros textos,
produzindo, com isso, a intertextualidade. Esse emaranhado de textos aumenta muito a
complexidade do espaço de jogo, já que as alusões e as citações revestem novas dimensões
tanto na sua relação com seus contextos antigos quanto com os novos. Como os contextos
se atualizam, surge uma co-existência de discursos diferentes, que desenvolvem seus
contextos como um jogo mútuo de aparecimento e desaparecimento. Dessa forma, quanto
mais um texto acumula outros textos, mais intensamente se manifesta a duplicação
produzida pelo ato de seleção. Essa se mostra como espaço de jogo que reúne todos os
10
Poesia Bucólica: que trata de temas campestres e pastoris. (Houaiss)
112
discursos, transformando-se, dessa forma, na matriz para uma multiplicidade, em princípio
imprevisível, de relações do texto com seus contextos.
O ato de combinação, por sua vez, produz transgressões intratextuais de limites, que vão do
léxico às constelações de personagens. Através dele, cada palavra se torna dialógica, e cada
campo semântico é duplicado por outro. Esse discurso de ‘duas vozes’ aponta em tudo o
que é dito sempre algo outro, fazendo com que o ato de combinação desdobre um espaço de
jogo em que o presente é sempre duplicado pelo ausente e, à medida que o presente se põe
a serviço do ausente, o dito deixa de significar a si mesmo, presentificando o não dito.
Assim, a relação dos segmentos do texto surge pela impressão mútua de sua
diferenciabilidade e , em conseqüência, em todo segmento de texto está presente o traço de
um outro. Quanto mais significante é o segmento correspondente, mais variados serão os
traços que nele se cruzam. Se o traço assinala igualmente a diferença dos segmentos e sua
interação, o ato de combinação abre o potencial de jogo de cada segmento.
Por fim, a auto- indicação da ficcionalidade literária produz um ato de duplicação bem
distinto. À medida que o texto literário, em função dos sinais estabelecidos pelo contrato
entre autor e leitor, se evidencia como discurso encenado, o mundo do texto é colocado sob
o signo do como se, e o receptor tem consciência de que se trata de “ fazer de conta” a
atitude natural em relação ao que lhe é oferecido. Os sinais de ficcionalidade também
“fazem de conta” o mundo apresentado pelo texto, indicando, ao mesmo tempo, que esse
mundo não só deve ser visto dessa forma, mas também, entendido como um mundo que
não existe empiricamente. Em conseqüência, há uma diferença entre esse e aquele mundo,
separados pelo “faz de conta”. O mundo do texto exibe seu contorno em decorrência do
fato de a seleção e a combinação deformarem, a princípio, os sistemas contextuais do texto
e, depois, devolverem os elementos aí enclausurados em uma multiplicidade de aspectos
relacionados. A diferença sinaliza, portanto, a existência de dois mundos que se apresentam
à medida que o mundo do texto não significa o que designa e metaforiza o mundo empírico,
presente para ele.
Resumindo, o ato de seleção engendra a intertextualidade ao invadir outros textos e gera
uma co-existência de discursos diferentes e uma multiplicidade, inicialmente imprevisível,
113
de relações do texto com seus contextos. Já o ato de combinação produz transgressões
intratextuais (do léxico aos personagens), estabelecendo um espaço de jogo em que o
presente é sempre duplicado pelo ausente. E, finalmente, a auto -indicação origina um ato
próprio de duplicação literária. Graças aos sinais estabilizados pelo contrato entre o autor e
o leitor, o texto literário se evidencia como discurso encenado e o seu mundo é colocado
sob o signo do como se. Para Iser, os atos de fingir se diferenciam, ent re si, pela natureza da
sua duplicação, a partir da qual emergem espaços de jogo diferentes em cada caso: o ato de
seleção abre um espaço de jogo entre os campos referenciais e sua deformação no texto; o
ato de combinação abre outro espaço de jogo entre a interação recíproca dos segmentos
textuais; e o ato do como se abre um espaço de jogo entre um mundo empírico e sua
metaforização.
O teórico alemão pondera, finalmente, que se a estrutura de duplicação do fictício se realiza
ao abrir um espaço de jogo, ela ainda não é um jogo, apesar de ser causa do movimento
iterativo do que foi duplicado. Se o fingir como transgressão de limites excede o que é
dado, a intenção que se manifesta é certamente um sentido de orientação que visa a algo
que não se pode controlar totalmente.
Assim, o fictício, como ativação de jogo, devido à sua estrutura de duplicação, libera o
imaginário, de forma diferente das orientações pragmáticas permitidas pelos paradigmas.
Se o fictício precisa do imaginário para se realizar, o inverso também é verdadeiro. Sem o
imaginário, o fictício permaneceria uma forma vazia da consciência; sem o fictício, o
imaginário não alcançaria a sua contraposição.
Com a passagem para o Naturalismo, a descrição manteve o papel relevante que adquiriu
na configuração do romance realista. Entretanto, ela evolui e adquire novos significados.
Balzac via na reprodução rigorosa do cenário e das características dos personagens uma
forma do escritor se tornar um pintor dos diversos tipos humanos, um arqueólogo do
mobiliário social. Já para Zola, a descrição só tinha sentido como forma de completar e
determinar o homem e, por isso, ele condenava, veementemente, o ato de descrever como
um capricho e um prazer retóricos
114
Par exemple, le zoologiste qui, en parlant d'un insecte particulier, se
trouverait forcé d'étudier longuement la plante sur laquelle vit cet insecte,
dont il tire son être, jusqu'à sa forme et sa couleur, ferait bien une
description, mais cette description entrerait dans l'analyse même de
l'insecte, il y aurait là une nécessité de savant, et non un exercice de
peintre. Cela revient à dire que nous ne décrivons plus pour décrire, par un
caprice et un plaisir de rhétoricien. Nous estimons que l'homme ne peut
être séparé de son milieu, qu'il est complété par son vêtement, par sa
maison, par sa ville, par sa province; et, dès lors, nous ne noterons pas un
seul phénomène de son cerveau ou de son cour, sans cri chercher les
causes ou le contre-coup dans le milieu. De là ce qu'on appelle nos
éternelles descriptions. 11 (ZOLA, 1989, p. 60)
Após analisar como a descrição foi empregada pelas diversas correntes literárias que o
precederam, Zola afirma, no livro Du Roman, que o romance do século XVII se dedicou a
criações puramente intelectuais que se moviam sobre um fundo neutro, indeterminado,
convencional; e que, como os personagens eram simples mecânicas de sentimentos e
paixões, funcionando fora do tempo e do espaço, o meio não importava, e a natureza não
tinha nenhum papel a representar na obra. Com a chegada do século XVIII, a natureza
começa a despontar no Romance, embora o escritor alegue que ela aparecia apenas em
dissertações filosóficas ou em parti pris de emoções idílicas. Finalmente, no século XIX,
Zola vê o emprego científico da descrição começar a se estabelecer – após o que ele chama
de “orgias descritivas do Romantismo” – graças a Balzac, Flaubert e os Goncourt, dentre
outros. No entanto, para o romancista, a nova fórmula ainda necessitaria de algum tempo
para se balancear e atingir a sua expressão exata. Segundo o autor do Romance
Experimental, os irmãos Goncourt, por exemplo, nem sempre permaneciam no rigor
científico do estudo dos meios, unicamente subordinado ao completo conhecimento dos
personagens e, por vezes, deixavam-se levar pelo prazer de descrever, como artistas que
brincando com a língua põem-se a dobrá-la às mil dificuldades do representado. Apesar
disso, ele acreditava que o trabalho dos Goncourt seria muito precioso numa história da
11
Por exemplo, o zoólogo que, ao falar de determinado inseto, se achasse forçado a estudar longamente a
planta sobre a qual vive esse inseto, do qual extrai sua existência, até sua forma e sua cor, faria uma descrição;
mas essa descrição entraria na própria análise do inseto, haveria aí uma necessidade de cientista, e não um
e xercício de pintura. Isso significa dizer que já não descrevemos por descrever, por um capricho e prazer
retóricos. Achamos que o homem não pode ser separado de seu meio, que ele é completado por sua roupa, por
sua casa por sua cidade, por sua província; e, dessa forma, não notaremos um único fenômeno de seu cérebro
ou de seu coração sem procurar as causas ou a conseqüência no meio. Daí o que se chama nossas eternas
descrições.
115
evolução naturalista, porque além da capacidade genial que possuíam de traduzir a natureza
de forma extremamente viva, eles sempre punham sua retórica a serviço da humanidade, ou
seja, neles, a descrição era, invariavelmente, observada nas suas relações com o homem.
Em contrapartida, Zola confessou não nutrir nenhuma admiração pelo talento descritivo de
Théophile Gautier, justamente, por encontrar nele somente a descrição pela descrição, sem
nenhuma preocupação com a humanidade. Por fim, o escritor defende que Flaubert seria o
romancista que até então teria emprega do a descrição com a maior medida , superando,
inclusive, Balzac, porque enquanto o autor da Comédia Humana obstruía o começo dos
seus romances com longas enumerações de leiloeiro oficial, Flaubert reduzia essas
exposições à estrita necessidade. É partindo dessas reflexões que Zola sustenta a sua
definição de qual deveria ser o papel da descrição na construção do romance moderno:
Et je finirai par une déclaration: dans un roman, dans une étude humaine,
je blâme absolument toute description qui n'est pas, selon la définition
donnée plus haut, un état du milieu qui détermine et complète l'homme.
J'ai assez péché pour avoir le droit de reconnaître la vérité.12 ( ZOLA,
1989, Pag 66)
Aliando essa técnica descritiva a uma pesquisa meticulosa e profunda sobre o tema que
pretendia abordar, Zola acreditava estar eliminando a subjetividade, a imaginação e o
lirismo dos seus romances e obrigando o romancista a buscar, observar, experimentar e
depois transcrever a verdade. No Livro Au Bonheur des Dames analyse critique, Colette
Becker relata que, para escrever Au Bonheur des Dames, durante um mês, o autor passou
todas as tardes visitando grandes lojas de departamentos de Paris, como o Le Bon Marché e
o Louvre, além de percorrer inúmeras lojas de luxo. Ele costumava permanecer de cinco a
seis horas por dia nessas lojas, não só observando o ambiente, a decoração, vendedores e
vendedoras, as condições de trabalho, as gírias e as relações entre chefes e subordinados,
como também, coletando informações diretas de consumidores e funcionários. O seu
objetivo era o de transportar para a literatura, da forma mais verossímil possível, a realidade
que ele havia experienciado e transformar essa realidade – a de uma grande loja de
departamentos parisiense – no laboratório em que desenvolveria sua experiência científica.
12
E terminarei por uma declaração: num romance, num estudo humano, censuro abs olutamente toda descrição
que não é, segundo a definição dada mais acima, um estado do meio que determina e completa o homem.
Pequei o suficiente para ter o direito de reconhecer a verdade.
116
Eh bien! en revenant au roman, nous voyons également que le romancier
est fait d'un observateur et d'un expérimentateur. L'observateur chez lui
donne les faits tels qu'il les a observés, pose le point de départ, établit le
terrain solide sur lequel vont marcher les personnages et se développer les
phénomènes. Puis, l'expérimentateur paraît et institue l'expérience, je veux
dire fait mouvoir les personnages dans une histoire particulière, pour y
montrer que la succession des faits y sera telle que l'exige le déterminisme
des phénomènes mis à l'étude. C'est presque toujours ici une expérience
"pour voir" comme l'appelle Claude Bernard. Le romancier part à la
recherche d'une vérité. 13( ZOLA, 1964, p263)
O que Zola propõe é que o romancista proceda diante do personagem, exatamente, como o
crítico em relação ao autor , transformando o romance em uma análise do comportamento e
das paixões humanas dentro de um contexto pré-estabelecido. Por isso, ele condena todos
os exercícios da arte pela arte e os encantos do belo estilo, que devem ser substituídos por
um detalhamento minucioso da ecologia humana que será examinada à luz da razão. A
proposta é ambiciosa e a tentativa de realizá- la genuína.
Em Au Bonheur des Dames, a escolha das experiências a que os personagens deveriam ser
expostos teve sua origem, sobretudo, nas transformações que a Revolução comercial, o
nascimento da publicidade e as modificações estruturais decorrentes da modernização de
Paris engendraram na sociedade. Diferentemente de Balzac, que tendia a concentrar a
descrição nas primeiras páginas dos seus livros, Zola tenta dividir a documentação que
acumulou nos quatorze capítulos do romance e, assim, ao longo de toda a narrativa,
podemos observar a descrição do func ionamento social a partir de uma concepção
darwiniana, dos efeitos sociais da economia capitalista e do poder de sedução da
publicidade. Entretanto, apesar da escolha de uma temática realista fundamentada em
preceitos científicos, algumas das “experiências” que Zola reproduz literariamente
dificilmente poderiam ser descritas de forma mais poética :
Derrière le rideau de pluie qui tombait, cette apparition reculée, brouillée,
prenait l'apparence d'une chambre de chauffe géante, où l'on voyait passer
les ombres noires des chauffeurs, sur le feu rouge des chaudières. Les
13
Pois bem, voltando ao romance, vemos também que o romancista é feito de um observador e de um
experimentador. Nele, o observador apresenta os fatos tal qual os observou, define o ponto de partida,
estabelece o terreno sólido no qual as personagens vão se desenvolver. Depois, o experimentador surge e
institui a experiência, quer dizer, faz as personagens evoluírem numa história particular, para mostrar que a
sucessão dos fatos será tal qual a exige o determinismo dos fenômenos estudados. Trata-se quase sempre de
uma experiência “para ver”, como designa Claude Bernard. O romancista sai em busca da verdade.
117
vitrines se noyaient, on ne distinguait plus, en face, que la neige des
dentelles, dont les verres dépolis d'une rampe de gaz avivaient le blanc; et,
sur ce fond de chapelle, les confections s'enlevaient en vigueur, le grand
manteau de velours, garni de renard argenté, mettait le profil d'une femme
sans tête, qui courait par l'averse à quelque fête, dans l'inconnu des
ténèbres de Paris. Denise, cédant à la séduction, était venue jusqu'à la
porte, sans se soucier du rejaillissement des gouttes, qui la trempait. À
cette heure de nuit, avec son éclat de fournaise, le Bonheur des Dames
achevait de la prendre tout entière. Dans la grande ville, noire et muette
sous la pluie, dans ce Paris qu'elle ignorait, il flambait comme un phare, il
semblait à lui seul la lumière et la vie de la cité. Elle y rêvait son avenir,
beaucoup de travail pour élever les enfants, avec d'autres choses encore,
elle ne savait quoi, des choses lointaines dont le désir et la crainte la
faisaient trembler. L'idée de cette femme morte dans les fondations lui
revint; elle eut peur, elle crut voir saigner les clartés; puis, la blancheur
des dentelles l'apaisa, une espérance lui montait au coeur, toute une
certitude de joie ; tandis que la poussière d'eau volante lui refroidissait les
mains et calmait en elle la fièvre du voyage. 14 ( ZOLA, 1998, p. 33)
Nessa citação, o romancista retrata o momento exato em que Denise se rende ao fascínio
provocado pelas vitrines do “Bonheur des Dames” e procura desvelar as artimanhas da
recém-nascida publicidade no exercício da sua ciência, seduzir. Diante do laboratório, o
“Bonheur”, a personagem Denise é exposta ao fenômeno, às técnicas de sedução de um
templo de consumo. No entanto, ao invés de mostrar o determinismo dos fatos e a
“verdade”, o escritor acaba deixando brechas nas entrelinhas do texto para que emerja um
universo lúdico na medida em que transcreve, através do olhar da personagem, a sua visão
subjetiva do mundo. Ao narrar as emoções vividas pela jovem, o romancista abusa de
figuras pictóricas, da descrição de “estados d’alma” e das sinestesias. Assim, diversos
traços impressionistas se revelam e sobressaem na narrativa, sobretudo, nos momentos em
14
Por trás da cortina de chuva que caía, esta aparição recuada, confusa, adquiria a aparência de uma fornalha
gigante, na qual se via passar as sombras escuras dos fornalheiros, sobre o fogo vermelho das caldeiras. As
vitrines submergiam, na frente, só era possível distinguir a neve das rendas, cujo branco era reavivado pelos
vidros mal polidos de uma rampa de gás; e, sobre esse fundo de capela, as confecções fascinavam pelo vigor,
o grande casaco de veludo, adornado com pele de raposa, colocava o perfil de uma mulher sem cabeça, que
corria pelo aguaceiro para qualquer festa, no desconhecido das trevas de Paris. Denise, cedendo à sedução,
veio até a porta, sem se preocupar com o repicar das gotas que a encharcavam. Àquela hora da noite, com sua
resplandecência de fornalha, o Bonheur des Dames acabava de arrebatá-la inteiramente. Na grande cidade,
escura e muda sob a chuva, nessa Paris que ela ignorava, ele flamejava como um farol, parecia ser a única
luz e vida da cidade. Ela sonhava com um futuro ali, muito trabalho para criar as crianças, com outras coisas
além disso, não sabia quais, coisas longínquas cujo desejo e o medo a faziam tremer. A idéia daquela mulher
morta na fundação retornou-lhe; ela teve medo, acreditou ver a claridade sangrar; logo após, a brancura das
rendas a apaziguou, uma esperança subia ao seu coração, toda uma certeza de felicidade; enquanto as
partículas de água que voavam lhe refrescavam as mãos e acalmavam nela a febre da viagem.
(tradução
nossa)
118
que Zola – amigo e crítico de Manet e Césanne e um ardoroso defensor da pintura
impressionista – ao tentar traduzir as sensações experimentadas pela personagem diante da
vitrine, mostrando ao leitor o resultado da “experiência”, deixa-se contaminar pela arte de
Monet, Césanne e Renoir e representa, no texto, de forma genial, o jogo de luzes e sombras,
de planos, tons, cores e volumes que caracterizam o impressionismo, transformando, ao
mesmo tempo, a sua descrição na “impressão” subjetiva do mundo que ele tenta captar.
Zola considerava que a hereditariedade, a influência do meio e as teorias de Darwin sobre a
origem das espécies por via da seleção natural tinham uma grande influência nas
manifestações intelectuais e passionais do homem, como ele afirma no Romance
Experimental :
Sans me risquer à formuler des lois, j'estime que la question d'hérédité a
une grande influence dans les manifestations intellectuelles et
passionnelles de l'homme. Je donne aussi une importance considérable au
milieu. Il faudrait sur la méthode aborder les théories de Darwin; mais
ceci n'est qu'une étude générale expérimentale appliquée au roman, et je
me perdrais, si je voulais entrer dans les détails. 15( ZOLA, 1964, p.272)
E reforça no prefácio do Rougon-Macquart, de 1870 :
Je désire montrer comment une famille, un petit groupe d'êtres se
comporte en s'épanouissant pour donner naissance à dix, à vingt individus,
qui paraissent, au premier coup d'oeil, profondément dissemblables, mais
que l'analyse révèle comme intimement liés les uns aux autres. L'hérédité
a ses lois, ainsi que la pesanteur. Je tâcherai de trouver et de suivre, en
résolvant la question double des tempéraments et des milieux, le fil qui
conduit mathématiquement d'un homme à un autre homme. Et, quand je
tiendrai tous les fils, quand j'aurai entre les mains tout un groupe social, je
ferai voir ce groupe à l'oeuvre, je le créerai agissant dans la complexité de
ses efforts, j'analyserai à la fois la somme de volonté de chacun de ses
membres et la poussée générale de l'ensemble. 16 ( ZOLA, 1998, p. 454)
15
Sem me arriscar a formular leis, julgo que a questão da hereditariedade tem uma grande influência nas
manifestações intelectuais e passionais do homem. Também dou uma importância considerável ao meio. Seria
preciso abordar as teorias de Darwin; mas isto é apenas um estudo geral sobre o método experimental
aplicado ao romance, e eu me perderia se quisesse entrar em pormenores.
16
Eu desejo mostrar como uma família, um pequeno grupo de seres se comporta expandindo-se para dar
vida a dez, a vinte indivíduos, que parecem, ao primeiro olhar, profundamente diferentes, mas que a análise
revela serem intimamente ligados uns aos outros. A hereditariedade tem suas leis, da mesma forma que o
119
A complexidade que envolve as relações humanas e a influência das características
hereditárias e do meio social no comportamento dos homens, quando esses se vêem diante
da evolução social e da luta pela sobrevivência, figurariam, portanto, dentre os temas
preponderantes de toda a saga Des Rougon-Macquart. No livro Au Bonheur des Dames, a
loja de Mouret se transforma em um campo de batalha onde a concorrência – não só entre
os diferentes tipos de comércio (a grande loja de departamento e as pequenas lojas do
bairro), mas também, entre vendedores e vendedoras – leva os mais fortes a devorarem os
mais frágeis. Na sociedade que Zola retrata não há espaço para a solidariedade, porque é
justamente o apetite desenfreado, que a luta pela vida engendra e que leva uns a engolir os
outros, que serve de combustível para o seu funcionamento. É exatamente essa guerra que
faz com que a “máquina” – forma metafórica como o escritor se refere ao “Bonheur”, da
qual se pode depreender uma alusão ao sistema capitalista – se torne cada vez mais
próspera e resplandecente. A loja se revela , então, o ícone de uma sociedade em mutação,
na qual só os indivíduos capazes de se adaptarem poderiam sobreviver ao advento da
modernidade :
Et, ayant fini de signer les traites, il se leva, il vint donner des tapes
amicales sur les épaules de l'intéressé, qui se remettait difficilement. Cet
effroi des gens prudents, autour de lui, l'amusait. Dans un des accès de
brusque franchise, dont il accablait parfois ses familiers, il déclara qu'il
était au fond plus juif que tous les juifs du monde : il tenait de son père,
auquel il ressemblait physiquement et moralement, un gaillard qui
connaissait le prix des sous ; et, s'il avait de sa mère ce brin de fantaisie
nerveuse, c'était là peut-être le plus clair de sa chance, car il sentait la
force invincible de sa grâce à tout oser.18 (ZOLA, 1998, p. 40)
peso. Eu me encarregarei de encontrar e de seguir, resolvendo a dupla questão dos temperamentos e dos
meios, o fio que conduz matematicamente de um homem a um outro homem. E quando tiver todos os fios,
quando tiver entre as mãos todo um grupo social, eu mostrarei esse grupo trabalhando, o criarei agindo dentro
da complexidade dos seus esforços, analisarei ao mesmo tempo a quantidade de vontade de cada um desses
membros e o impulso geral do conjunto. (tradução nossa)
18
E tendo terminado de assinar os contratos, ele se levantou, veio dar tapas amistosos nas costas do
interessado que voltava a si com dificuldade. Esse temor das pessoas prudentes, ao seu redor, o divertia. Em
um acesso brusco de franqueza, que por vezes desconcertava seus familiares, ele declarou que era, no fundo,
mais judeu do que todos os judeus do mundo: tinha de seu pai, com o qual parecia fisicamente e moralmente,
uma malícia que conhecia o preço dos vinténs; e se possuía de sua mãe esse fio de fantasia nervosa, lá estava
talvez a maior parcela da sua sorte, porque ele sentia a força invisível da capacidade de tudo ousar. (tradução
nossa)
120
Alors, avant de descendre dans le magasin jeter leur coup d'oeil habituel,
tous deux réglèrent encore certains détails. Ils examinèrent le spécimen
d'un petit cahier à souches que Mouret venait d'inventer pour les notes de
débit. Ce dernier, ayant remarqué que les marchandises démodées, les
rossignols, s'enlevaient d'autant plus rapidement que la guelte donnée aux
commis était plus forte, avait basé sur cette observation un nouveau
commerce. Il intéressait désormais ses vendeurs à la vente de toutes les
marchandises, il leur accordait un tant pour cent sur le moindre bout
d'étoffe, le moindre objet vendu par eux : mécanisme qui avait bouleversé
les nouveautés, qui créait entre les commis une lutte pour l'existence, dont
les patrons bénéficiaient. Cette lutte devenait du reste entre ses mains la
formule favorite, le principe d'organisation qu'il appliquait constamment.
Il lâchait les passions, mettait les forces en présence, laissait les gros
manger les petits, et s'engraissait de cette bataille des intérêts.19( ZOLA,
1998, p. 41)
Mouret regardait, sans prononcer une parole. Mais, dans ses yeux clairs,
cette débâcle de marchandises qui tombait chez lui, ce flot qui lâchait des
milliers de francs à la minute, mettait une courte flamme. Jamais encore il
n'avait eu une conscience si nette de la bataille engagée. C'était cette
débâcle de marchandises qu'il s'agissait de lancer aux quatre coins de
Paris.20 (Zola, 1998,p. 42)
Através dessas três citações, percebemos que, embora Zola se mantenha, insistentemente,
fiel à temática e às premissas teóricas que instituiu, ele é, mais uma vez, maliciosamente,
traído pelo imaginário, que surge pungente nos espaços abertos pelas metáforas e símbolos
que invadem o texto. A pluralidade de interpretações que o escritor inspira ao tentar
configurar a lógica da intuição : “il tenait de son père, auquel il ressemblait physiquement
et moralement, un gaillard qui connaissait le prix des sous ; et, s'il avait de sa mère ce brin
de fantaisie nerveuse”; ao estabelecer uma analogia entre um estado capitalista e um campo
19
Então, antes de descer para a loja, dar sua espiadela habitual, os dois acertaram ainda alguns detalhes.
Examinaram uma espécie de caderninho de talões que Mouret acabara de inventar para as notas dos débitos.
Esse último, tendo percebido que as peças fora de moda, os rouxinóis, saíam muito mais rápido quando as
comissões dadas aos balconistas eram mais significativas, baseou nessa observação um novo comércio. Ele
interessava os seus vendedores pela venda de todas as mercadorias e lhes concedia um tanto por cento sobre a
menor ponta de tecido, o menor objeto vendido por eles : mecanismo que tinha subvertido as novidades, que
criava entre os balconistas uma luta pela sobrevivência, da qual os patrões se beneficiavam. De resto, essa luta
se tornava entre suas mãos a fórmula favorita, o princípio de organização que ele aplicava constantemente.
Libertava as paixões, colocava as forças presentes, deixava os grandes comerem os pequenos e engordava,
através dessa batalha de interesses. (tradução nossa)
20
Mouret olhava sem pronunciar uma palavra. Mas, nos seus olhos claros, essa saída de mercadorias da sua
loja, esse fluxo que liberava milhares de francos por minuto, acendia uma breve chama. Nunca antes ele tinha
tido uma consciência tão clara da batalha engajada. Era essa saída de mercadoria que teria que ser
disseminada pelos quatros cantos de Paris. (tradução nossa)
121
de batalha, entre devorar o pão e o inimigo, entre a sociedade e a selva, entre as fomes de
alimento, de vida e de fortuna; e, enfim, toda a intertextualidade que a narrativa evoca,
retomando Iser, “funcionam como instâncias ativadoras do imaginário” e, portanto, levam o
leitor para um universo à parte, onde a imaginação completa o que as palavras calam.
Ao trazer para a literatura o discurso científico, selecionando dentro da realidade cotidiana
os elementos que se aplicam a esse discurso e ao tentar usar o universo ficcional como
laboratório para suas experiências, Zola faz claramente uso de todos os atos de fingir a que
Iser se refere. Aqui o romancista invade outros textos, provoca a duplicação de sentido dos
diferentes campos semânticos que constituem a narrativa e, através de sinais óbvios de
ficcionalidade, ele evidencia um discurso encenado que coloca o mundo do texto sob o
signo do como se, abrindo, assim, um espaço de jogo entre o mundo empírico e a sua
metaforização. O fingir como transgressão de limites excede o que é dado, impossibilitando
toda e qualquer tentativa de controle e faz com que o fictício, por meio da sua estrutura de
duplicação, libere o imaginário de uma forma muito diferente daquela permitida por suas
orientações pragmáticas.
Juntamente com a descrição, a pesquisa histórica seria um dos principais recursos
empregados tanto pelo Realismo quanto pelo Naturalismo, com o objetivo de consolidar o
caráter mimético que essas estéticas atribuíam à literatura . A fim de estruturar a narrativa,
de acordo com os princípios da historiografia positiva, além de se documentarem
sistematicamente, os romancistas inseriam a trama dentro de um contexto “real”, o que lhes
permitia aludir a eventos e a personagens históricos, a sistemas políticos e econômicos que
estiveram ou que estavam em vigor e a analisar as transformações sócio -culturais que tais
contextos motivaram.
No Prefácio da Comédia Humana, Balzac reafirma a sua intenção de estabelecer uma
aliança entre a literatura e a história:
En dressant l'inventaire des vices et des vertus, en rassemblant les
principaux faits des passions, en peignant les caractères, en choisissant les
événements principaux de la Société, en composant des types par la
réunion des traits de plusieurs caractères homogènes, peut-être pouvais-je
arriver à écrire l'histoire oubliée par tant d'historiens, celle des moeurs.
122
Avec beaucoup de patience et de courage, je réaliserais, sur la France au
dix-neuvième siècle, ce livre que nous regrettons tous, que Rome,
Athènes, Tyr, Memphis, la Perse, l'Inde ne nous ont malheureusement pas
laissé sur leurs civilisations, et qu'à l'instar de l'abbé Barthélemy, le
courageux et patient Monteil avait essayé pour le Moyen-Age, mais sous
une forme peu attrayante. 21( BALZAC, 1964, p. 194)
Intenção essa que ele já havia evidenciado nas páginas do romance “Le Père Goriot”:
Oui, ce Moriot a été président de sa section pendant la Révolution; il a été
dans le secret de la fameuse disette, et a commencé sa fortune par vendre
dans ce temps-là des farines dix fois plus qu’elles ne lui coûtaient. Il en a
eu tant qu’il en a voulu. L’intendant de ma grand-mère lui en a vendu
pour des sommes immenses. Ce Goriot partageait sans doute, comme tous
ces gens-là, avec le Comité de Salut Public. Je me souviens que
l’intendant disait à ma grand-mère qu’elle pouvait rester en toute sûreté à
Grandvilliers, parce que ses blés étaient une excellente carte civique. Eh
bien! ce Loriot, qui vendait du blé aux coupeurs de têtes, n’a eu qu’une
passion. Il adore, dit-on, ses filles. Il a juché l’aînée dans la maison de
Restaud, et greffé l’autre sur le baron de Nucingen, un riche banquier qui
fait le royaliste. Vous comprenez bien que, sous l’Empire, les deux
gendres ne se sont pas trop formalisés d’avoir ce vieux Quatre-vingt-treize
chez eux; ça pouvait encore aller avec Buonaparte. Mais quand les
Bourbons sont revenus, le bonhomme a gêné monsieur de Restaud, et plus
encore le banquier. 22 ( BALZAC, 1971 p. 112)
Herdeiro e continuador da estética realista, Zola acreditava que os romancistas deveriam ser
os juízes de instrução dos homens e de suas paixões e que, para compreender o mecanismo
dessas, era preciso saber o que uma dada paixão, agindo num certo meio e em certas
21
Redigindo o inventário dos vícios e das virtudes, reunindo os principais feitos das paixões, pintando os
caracteres, escolhendo os acontecimentos principais, compondo tipos a partir da reunião dos traços de
diversos caracteres homogêneos, talvez eu pudesse chegar a escrever a história esquecida por tantos
historiadores, a história dos costumes. Com muita paciência e coragem, realizarei, na França, no século XIX,
este livro que todos nós lamentamos, que Roma, Atenas, Tiro, Mênfis, a Pérsia, a Índia, infelizmente, não nos
deixaram em suas civilizações e que, a exemplo do abade Barthélemy, corajoso e paciente Monteil havia
tentado na Idade Média, mas de uma forma pouco atraente. (Tradução nossa)
22
- Realmente, que esse Moriot foi presidente de sua seção durante a Revolução; estava a par do segredo da
famosa penúria e começou a fazer fortuna vendendo naquela época a farinha por dez vezes mais do que lhe
custava. Ganhava o que queria. O procurador de minha avó vendeu-lhe enormes quantidades de trigo por
somas imensas. Decerto esse Goriot dividia o lucro com o Comitê de Salvação Pública, como toda aquela
gente. Lembro-me que o procurador dizia à minha avó que ela poderia permanecer com toda a segurança em
Granvilliers porque seu trigo era um excelente cartão de visita cívico. Bem, esse Loriot, que vendia trigo aos
cortadores de cabeça, teve uma única paixão. Dizem que adora suas filhas. Empoleirou a mais velha na casa
de Restaud e enxertou a outra junto ao barão de Nucingen, um banqueiro rico que finge ser monarquista. É
compreensível que durante o Império os dois genros não se incomodassem muito por ter aquele velho
noventa-e-três em casa; isso ainda era possível com o Buonaparte. Mas, quando os Bourbons voltaram, o
pobre homem passou a estorvar o senhor Restaud e, mais ainda, o banqueiro.
123
circunstâncias - ou seja, sob as condições políticas e econômicas específicas de um
momento histórico – produziria no indivíduo e na sociedade :
Le problème est de savoir ce que telle passion, agissant dans tel milieu et
dans telles circonstances, produira au point de vue de l'individu et de la
société; et un roman expérimental, la Cousine Bette par exemple, est
simplement le procès-verbal de l'expérience, que le romancier répète sous
les yeux du public. En somme, toute l'opération consiste à prendre les faits
dans la nature, puis à étudier le mécanisme des faits, en agissant sur eux
par les modifications des circonstances et des milieux, sans jamais
s'écarter des lois de la nature.23 (ZOLA, 1964, p263)
Isso levaria o escritor a atribuir ao determinismo histórico um papel fundamental na sua
obra, como ele explica no prefácio dos Rougon-Macquart :
Les Rougon-Macquart, le groupe, la famille que je me propose d'étudier a
pour caractéristique le débordement des appétits, le large soulèvement de
notre âge, qui se rue aux jouissances. Physiologiquement, ils sont la lente
succession des accidents nerveux et sanguins qui se déclarent dans une
race, à la suite d'une première lésion organique, et qui déterminent, selon
les milieux, chez chacun des individus de cette race, les sentiments, les
désirs, les passions, toutes les manifestations humaines, naturelles et
instinctives, dont les produits prennent les noms convenus de vertus et de
vices. Historiquement, ils partent du peuple, ils s'irradient dans toute la
société contemporaine, ils montent à toutes les situations, par cette
impulsion essentiellement moderne que reçoivent les basses classes en
marche à travers le corps social, et ils racontent ainsi le second empire à
l'aide de leurs drames individuels, du guet-apens du coup d'état à la
trahison de Sedan.Depuis trois années, je rassemblais les documents de ce
grand ouvrage, et le présent volume était même écrit, lorsque la chute des
Bonaparte, dont j'avais besoin comme artiste, et que toujours je trouvais
fatalement au bout du drame, sans oser l'espérer si prochaine, est venue
me donner le dénouement terrible et nécessaire de mon œuvre. Celle-ci
est, dès aujourd'hui, complète; elle s'agite dans un cercle fini; elle devient
le tableau d'un règne mort, d'une étrange époque de folie et de honte.
Cette œuvre, qui formera plusieurs épisodes, est donc, dans ma pensée,
l'histoire naturelle et sociale d'une famille sous le second empire. Et le
23
O problema consiste em saber o que determinada paixão, agindo num certo meio e em certas circunstâncias,
produzirá sob o ponto de vista do indivíduo e da sociedade; e um romance experimental, A prima Bette por
exemplo, é simplesmente o relatório da experiência que o romancista reproduz sob as vistas do público. Em
suma, toda a operação consiste em pegar os fatos da natureza e depois estudar o mecanismo dos fatos agindo
sobre os mesmos pelas modificações das circunstâncias e dos meios, sem nunca se afastar das leis da
natureza.
124
premier épisode : la Fortune des Rougon, doit s'appeler de son titre
scientifique : Les Origines.24 (ZOLA, 1998, p.4550)
Portanto, assim como para Balzac o pacto da história com a literatura seria um dos fios
condutores da obra de Zola. No Romance Au Bonheur des Dames, por exe mplo, o autor
centra a trama em Paris, entre os anos de 1864 e 1869, período em que a cidade vive uma
verdadeira revolução comercial. O vertiginoso crescimento do comércio era motivado,
sobretudo, pela construção das estradas de ferro, que fizeram de Paris o principal centro de
convergência comercial da França, pelas obras do Barão de Haussmann, que a
transformaram numa capital moderna e fascinante, e pela ascensão das grandes lojas de
departamento, um dos ícones dessa revolução. E é justamente a realidade das novas
técnicas de comércio que Zola tenta reproduzir no Romance, a fim de estudar os efeitos
sociais dessa circunstância histórica agindo sobre as paixões humanas :
La grande puissance était surtout la publicité. Mouret en arrivait à
dépenser par an trois cent mille francs de catalogues, d’annonces et
d’affiches. Pour sa mise en vente des nouveautés d’été, il avait lancé deux
cent mille catalogues.[...]Il professait que la femme est sans force devant
la réclame, qu’elle finit fatalement par aller au bruit. Du reste, il lui
tendait des pièges plus savants, il l’analysait en grand moraliste. Ainsi, il
avait découvert qu’elle ne résistait pas au bon marché, qu’elle achetait
sans besoin, quand elle croyait conclure une affaire avantageuse; et, sur
cette observation, il basait son système des diminutions de prix, il baissait
progressivement les articles non vendus, préférant les vendre à perte,
fidèle au principe du renouvellement rapide des marchandises. Puis, il
avait pénétré plus avant encore dans le cœur de la femme, il venait
24
Os Rougon-Macquart, o grupo, a família que me proponho a estudar tem por característica o
transbordamento dos apetites, a imensa agitação do nosso tempo, que se entrega
aos prazeres.
Fisiologicamente, eles são a lenta sucessão dos acidentes nervosos e sangüíneos que se pronunciam em uma
raça, depois de uma primeira lesão orgânica, e que determinam, de acordo com o meio, em cada um dos
indivíduos dessa raça, os sentimentos, os desejos, as paixões, todas as manifestações humanas, naturais e
instintivas, cujos produtos adquirem os nomes convenientes de virtudes e de vícios. Historicamente, eles
partem do povo, irradiam-se por toda a sociedade contemporânea, expõem-se a todas as situações, por esta
impulsão essencialmente moderna que recebem as classes baixas em marcha através do corpo social e, assim,
eles narram o Segundo Império com a ajuda de seus dramas individuais, da emboscada do golpe de Estado à
traição de Sedan. Há três anos, eu juntava os documentos dessa grande obra, o presente volume foi escrito,
justamente, quando da queda de Bonaparte, da qual eu precisava como artista, e que eu sempre encontrava
fatalmente à beira do drama, sem ousar esperá-la tão próximo, veio dar-me o desenlace terrível e necessário
de minha obra. Aquela é, a partir de hoje, completa; Ela se agita dentro de um círculo terminado; torna-se o
quadro de um reino morto, de uma estranha época de loucura e vergonha. Essa obra, que formará vários
episódios, é portanto, no meu pensamento, a história natural e social de uma família sob o Segundo Império.
E o primeiro episódio: A fortuna dos Rougon, deve se chamar no seu título científico: As origens. (Tradução
nossa)
125
d’imaginer « les rendus », un chef d’œuvre de séduction jésuitique. «
Prenez toujours, madame : vous nous rendrez l’article, s’il cesse de vous
plaire.» Et la femme, qui résistait, trouvait là une dernière excuse, la
possibilité de revenir sur une folie; elle prenait, la conscience en règle.25
(ZOLA, 1998, p.245)
Entretanto, é preciso lembrar que mesmo inserindo os seus personagens em contextos
históricos muito bem definidos, para submeter suas obras ficcionais às regras
historiográficas, Balzac e Zola precisaram de muito mais do que associá-las a um conjunto
de fatos registrados. Eles foram obrigados a manusear dados históricos, eliminando alguns
e dando destaque a outros, isso sem falar nas estratégias descritivas que foram utilizadas
para configurar a narrativa dentro do contexto desejado e que a tornaram, mais do que tudo,
coerente com a ideologia dos seus autores. Finalmente, quando inseridos em um discurso,
os fatos históricos sempre adquirem – seja na literatura, seja na historiografia – a forma
como são lembrados por escritores e historiadores. Assim, se um grupo de indivíduos se
dispuser a narrar um mesmo evento, teremos várias versões de uma mesma história e, ainda
que todas sejam verdadeiras, elas terão, sem dúvida, nuances diferentes, porque a maneira
como cada um recorda e narra um acontecimento é subjetiva e está intrinsecamente
vinculada a uma representação imaginária da realidade. O que verificamos aqui é que o
imaginário dos dois escritores se alimentou da realidade, fazendo com que os
acontecimentos históricos ganhassem novos significados no romance.
Nesse sentido, através das reflexões de Costa Lima, podemos compreender melhor o
porquê de os escritores realistas e naturalistas associarem o discurso histórico à reprodução
da realidade e as razões pelas quais esse discurso, assim como o ficcional, não se mostra
eficaz para esse propósito. No livro Historia. Ficção. Literatura, Costa Lima afirma que a
escrita dominante no século XIX cumpria um propósito, já enunciado por Ranke, de
25
A grande força era sobretudo a publicidade. Mouret chegava a gastar por ano trezentos mil francos em
catálogos de anúncios e cartazes. Para o lançamento das novidades de verão, ele lançou duzentos mil
catálogos [...]. Ele defendia que a mulher fica sem forças diante do reclame, que ela termina fatalmente por
seguir o ruído. De resto, só estendia armadilhas inteligentes, ele a analisava como um grande moralista.
Assim, ele tinha descoberto que ela não resistia aos preços baixos, que comprava sem necessidade quando
acreditava concluir um negócio vantajoso; e, sob essa observação ele baseava seu sistema de diminuição de
preços, baixava progressivamente os artigos não vendidos, preferindo liquidá-los, fiel ao princípio de
renovação rápida das mercadorias. Em seguida, ele havia penetrado mais longe ainda no coração das
mulheres. Acabava de imaginar “as devoluções,” uma obra prima de sedução jesuítica. “Compre sempre,
madame : você nos devolverá o artigo caso ele não lhe agradar” (Traduçao nossa)
126
mostrar o passado “como foi” , isto é, uma espécie de mímesis, no sentido tradicional do
termo, que privilegiava o passado.
O teórico argumenta ainda que, por influência das ciências da natureza, acreditava-se que a
memória era capaz de conservar a lembrança na íntegra, como se fosse um dado material e
que a linguagem funcionaria como um meio de conservação incapaz de modificar o teor da
lembrança. O trabalho do agente individual entregaria ao analista um mundo uniforme,
igual ao que houve desde sempre e, para o historiador, o papel da memória seria
preponderante e indiscutível.
Em Sociedade e Discurso ficcional, citando Nibet, Costa Lima diz que o século XIX era
“intoxicado pelo progresso” e que essa enorme crença na evolução do homem, que chegara
ao estado positivo, conjugava-se com a primazia da ciência, que passa a ser entendida como
o discurso da objetividade, do ultrapasse dos caprichos individuais. Além disso, a
importância significativa adquirida pelos estados nacionais contribuiu para tornar a
produção historiográfica do século extremamente ligada ao nacional e profundamente
consciente da sua objetividade científica. Isso explica o privilégio concedido ao fato e ao
documento, considerados capazes de restituir a integralidade da vida como fo i. Nessa
sociedade, o documento passa a ser reverenciado pelo historiador, de forma análoga à que,
anteriormente, os fiéis referenciavam os santos e a Bíblia.
Costa Lima prossegue e relata que esse domínio da história factual interferiu na produção
literária do século, tanto de dentro quanto de fora. De dentro, fazendo com que o gênero
dominante, o romance, se mostrasse uma sucursal da história e, de fora, tal influência fez
com que a maneira mais sistemática de estudar a literatura consistisse em desdobrá-la em
uma diacronia nacional. Assim, para que fosse levada a sério, a literatura precisava ser
dissecada como um fato.
No entanto, como a história é um produto da escolha do material, da maneira como ele é
interpretado e da teoria que condiciona o olhar, Costa Lima questiona se ela não seria
também uma forma de ficção e, se a ficção, no terreno da codificação verbal, alcança outra
área além da literária, como ficaria a alegada especificidade de sua formação discursiva.
127
Ele indaga também se a história não seria, na verdade, uma integrante da literatura ou se é a
própria idéia de literatura que se mostra um passadismo. Para responder a essas questões, o
teórico recorre a uma citação de Mehlman :
.
[...] Se a “literatura”, como o “totemismo” de Lévi-Strauss, fosse uma
miragem historicamente datada, a tarefa da análise estrutural deveria ser
desmantelar aquele constructo ideológico pelo exame das articulações
latentes dos próprios textos (incluindo Proust), pelos quais a miragem é
celebrada. “Analisar-se-ia” a literatura como Lévi-Strauss “dissolveria o
homem”, revelando a estrutura do espaço que fornece a possibilidade de
seu funcionamento. (COSTA LIMA, 1986, p.236)
Para o teórico, essas considerações conduzem ao reverso do factualismo documentalista, o u
seja, a separação rigorosa entre a exatidão científica e o veto ao ficcional inverte-se de
maneira drástica. A literatura se vinga, revelando-se como a ponta que denuncia a fluidez
oceânica das “ciências” sociais.
Assim, embora não haja mais por que negar que o documento não possui a transparência
testemunhal que se lhe acreditava; e que hoje já consideramos que nem o cientista social
nem o historiador são mestres da neutralidade, a afirmação de que algo só se torna
significativo de acordo com um determinado ponto de vista, não converte o documento em
uma falácia ou mito. Da mesma forma, já se aceita que há um núcleo autobiográfico em
todo discurso que lida com um objeto de que o próprio sujeito faz parte. Portanto, se o
objeto de estudo de um geólogo não pode ser diretamente afetado pela subjetividade do
analista, o mesmo não ocorre com um especialista em instituições sociais, porque ele
sempre trará consigo uma imagem, consciente ou inconsciente, da instituição
correspondente em sua cultura e sociedade. Contudo, essa interpenetração do sujeito com o
objeto não abolem as diferenças entre os rendimentos discursivos. Assim, “uma mesma
mancha biográfica assume direções variadas de acordo com o discurso que se produza.”
Partindo desses pressupostos, ele defende que existe um critério de verdade no discurso
ficcional. No entanto, essa verdade não é nem de ordem geral (filosófica ou científica), nem
de ordem pragmática. Para ele, trata-se da verdade de como um sujeito empírico concebe
128
uma certa situação, considerando que essa situação nem vale para todos e nem tampouco,
expressa, necessariamente, os valores do autor. Dessa forma, o ficcional implica a
dissipação tanto de uma legislação generalizada, quanto da expressão do eu. No ficcional,
o eu se torna móvel, isto é, sem se fixar em um ponto, assume diversas nucleações
possibilitadas pelo ponto que o autor empírico ocupa. A essa movência do ficcional, Costa
Lima dá o nome de ângulo de refração. Para ele, essa dissipação do eu não o torna
inexistente, levando o autor de uma obra ficcional a anular seus próprios valores, normas de
conduta e sentimentos, mas, através da imaginação, o eu irrealiza-se enquanto sujeito, para
realizar-se em uma proposta de sentido. Portanto, da mesma forma que as palavras de um
verso, também as personagens são pontos visualizáveis, a partir da refração do eu, marcas
na trajetória de uma linha de fuga. Através da ficção, o poeta inventa possibilidades,
consciente de que não será confundido com nenhuma delas. Entretanto, tais possibilidades
não se inventariam sem uma motivação biográfica.
Portanto, quanto à tentativa de Balzac e de Zola de criar obras de ficção que imitassem a
realidade e de impor um veto ao imaginário e à subjetividade, inerentes ao texto ficcional,
através de um pacto com a história, podemos concluir com Costa Lima :
“Menos do que disfarce, a ficção, poemática ou em prosa é uma produção
direcionada pela unidade( instável) do eu. Produção que sempre pode ser
percorrida ao revés, por um poeta ao revés, isto é, por um leitor ou por um
analista, que, dependendo de seu talento, poderá interpretar aquilo de que
a refração é “documento”. Mas temos que escrever as palavras entre
aspas, porque a ficção não documenta senão estarmos em uma área
discursiva onde se admite a movência do sujeito. Seria pretensioso
pretender que antevemos todos as conclusões que daí se escreve. Mas
posso saber que daí não se deduz que o discurso ficcional esteja
enclausurado em si mesmo, que seja estranho ao mundo de que se teria
alheado. E sei também que o discurso ficcional não tematiza uma cena
única, a que simplística e dogmaticamente chamamos de ‘realidade’. Toda
vez que se lhe exige isso, ele se torna apenas ilustração do que decretemos
ser o mundo.” ( COSTA LIMA, 1986, p.239).
Existe, ainda, um último aspecto dos romances de Balzac e Zola que gostaríamos de
abordar antes de concluir esse capítulo: a forma como cada um constrói os seus
personagens e em que momentos esses personagens deixam de espelhar o mundo real que
129
os inspirou e –
traindo seus criadores – tornam-se, no texto, sombras da realidade,
fantasmas que, transgredindo o modelo, convertem os tipos humanos de seus criadores em
heróis românticos, lúdicos ou imaginários.
Balzac desejava que a Comédia Humana fosse um reflexo do espetáculo do mundo, ou
melhor, do seu mundo: a sociedade francesa que assistiu ao desenrolar de suas paixões,
angústias, sonhos e desilusões entre Restauração e a Monarquia de julho. Para tanto, cada
um dos seus tipos humanos deveria, através de sua origem sócio-cultural e dos seus traços
psicológicos, espelhar toda uma categoria social :
[...]en composant des types par la réunion des traits de plusieurs caractères
homogènes, peut-être pouvais-je arriver à écrire l’histoire oubliée par tant
d’historiens, celle des mœurs.26 (BALZAC, 1964, p194)
Ce n’était pas une petite tâche que de peindre les deux ou trois mille
figures saillantes d’une époque, car telle est, en définitif, la somme des
types que présente chaque génération et que La Comédie Humaine
comportera. Ce nombre de figures, de caractères, cette multitude
d’existences exigeaient des cadres, et, qu’on me pardonne cette
expression, des galeries.27 (BALZAC, 1964, p.203)
Os heróis balzaquianos são, portanto, idealizados para se tornarem ícones de um tempo e
de uma sociedade, simbolizando seus medos, ambições, anseios, enfim, suas paixões.
Assim, ao compor seus heróis ficcionais, o autor seleciona, no mundo real, características
que levem o leitor a estabelecer uma identidade com o personagem e é partindo dessa
verossimilhança que ele sustenta a ausência da subjetividade e da imaginação na literatura
realista: “Ce drame n’est ni une fiction, ni un roman, All is true, il est si veritable, que
chacun peut en reconnaître les éléments chez soi, dans son coeur peut-être.”
26
[...] compondo tipos, a partir da reunião dos traços de diversos caracteres homogêneos, talvez eu pudesse
chegar a escrever a história esquecida por tantos historiadores, a história dos costumes. ( Tradução nossa)
27
Não foi uma tarefa pequena a de pintar as duas ou três mil figuras proeminentes de uma época, porque esta
é, em definitivo, a soma dos tipos que cada geração apresenta e que a Comédia Humana comportará. Esse
número de figuras, de caracteres, essa multidão de existências exigiam quadros e que me perdoem a
expressão, galerias. (tradução nossa)
130
Tomando como exemplo o romance Le père Goriot, observamos que os três protagonistas :
Rastignac, Goriot e Vautrin são, ao mesmo tempo, paradigmas e produtos da sociedade na
qual se inserem. Através de Rastignac, Balzac tenta pintar o quadro de uma juventude ávida
de sucesso e reconhecimento social, mas sem os recursos necessários para atuar no mundo.
Típico herói de iniciação, ele se encontra no cerne da trama, exposto aos desejos e às
tentações do mundo. À medida que experimenta a vida, o personagem se transforma num
espelho das angústias humanas, uma espécie de “consciência” que incita a refletir sobre as
armadilhas engendradas pelas paixões. Através de Vautrin, o romancista retrata o lado
diabólico, ambicioso e inescrupuloso do homem. Inspirado em um “personagem” real e
lendário , François Vidocq, Vautrin revela quanto o lado obscuro do ser humano pode ser
sedutor. Finalmente, através de Goriot, ele ilustra um amor passional que, levado ao
extremo, transforma-se em vício, em loucura.
No entanto, por mais que Balzac selecione elementos da realidade para compor os seus
personagens, haverá sempre o não-dito. Afinal, quem são Rastignac, Vautrin e Goriot ?
Seriam eles respectivamente sinônimos de angústia e conflito, perversidade e sedução,
vício e loucura? Também. Mas nenhum ser humano pode ser definido somente por sua
loucura ou por sua lucidez. Assim, por mais minuciosa que seja a descrição dos
personagens balzaquianos, eles permanecem incompletos, pois haverá sempre um espaço
vazio a ser preenchido. Ao compor personagens que representam toda uma categoria social,
o romancista criou, na verdade, tipos caricaturais que transcendem a realidade. Esses
personagens “incompletos” só se tornam “reais” no mundo concorrente para o qual foram
projetados, o ficcional, no exato momento em que o texto cala e o não-dito é preenchido
pela imaginação do leitor.
Também determinado a retirar seus personagens do mundo real, Zola acreditava que, ao
submetê-los aos mesmos traumas que desencadeiam a desagr egação social, ele poderia
observar como o ser humano se comporta quando vítima das paixões e, assim, estabelecer
o determinismo dos fatos para poder controlá- los :
Le circulus social est identique au circulus vital: dans la société comme
dans le corps humain, il existe une solidarité qui lie les différents
131
membres, les différents organes entre eux, de telle sorte que, si un organe
se pourrit, beaucoup d'autres sont atteints, et qu'une maladie très complexe
se déclare. Dès lors, dans nos romans, lorsque nous expérimentons sur une
plaie grave qui empoisonne la société, nous procédons comme le médecin
expérimentateur, nous tâchons de trouver le déterminisme simple initial,
pour arriver ensuite au déterminisme complexe dont l'action a suivi. Je
reprends l'exemple du baron Hulot, dans la Cousine Bette. Voyez le
résultat final, le dénouement du roman; une famille entière détruite, toutes
sortes de drames secondaires se produisant, sous l'action du tempérament
amoureux de Hulot. C'est là, dans ce tempérament, que se trouve le
déterminisme initial. Un membre, Hulot, se gangrène, et aussitôt tout se
gâte autour de lui, le circulus social se détraque, la santé de la société se
trouve compromise. Aussi, comme Balzac a insisté sur la figure du baron
Hulot, comme il l'a analysée avec un soin scrupuleux! L'expérience porte
avant tout sur lui, parce qu'il s'agissait de se rendre maître du phénomène
de cette passion pour la diriger; admettez qu'on puisse guérir Hulot, ou du
moins le contenir et le rendre inoffensif, tout de suite le drame n'a plus de
raison d'être, on rétablit l'équilibre, ou pour mieux dire la santé dans le
corps social. Donc, les romanciers naturalistes sont bien en effet des
moralistes expérimentateurs. 28 (ZOLA, 1964, p 280)
Mas não teria ele caído na mesma armadilha que Balzac? Afinal como poderia a realidade
cotidiana funcionar como referência para uma experiência literária que pretendia
reproduzi- la tal qual? O Casal Octave Mouret e Denise Baudu, do livro Au Bonheur de
Dames, é um bom exemplo do que tentamos explicitar. Mouret, de certa forma, encarna os
ideais da sociedade que Zola tencionava descrever, uma sociedade moderna, dinâmica,
sinônimo de progresso e prosperidade. Ao dar vida a um personagem paradigma desses
ideais, o romancista estava criando um herói na acepção literal do termo. Mouret é belo,
sedutor, elegante, eloqüente, divertido e confiante no futuro. Dotado de gênio comercial
ímpar, sua mente fervilhante de idéias oscila entre a imaginação e a praticidade, a fantasia e
28
O circulus social é idêntico ao circulus vital: na sociedade, tanto quanto no corpo humano, existe uma
solidariedade que liga os diferentes órgãos entre si, de tal modo que, se um apodrece, muitos outros são
atingidos e uma doença muito complexa se declara. Assim sendo, quando em nossos romances fazemos
experiência sobre uma ferida grave que envenena a sociedade, procedemos como um médico experimentador:
tentamos encontrar o determinismo simples inicial, para chegar depois ao determinismo complexo cuja ação
ocorreu em seguida. Vamos retomar o exemplo do Barão Hulot, em A prima Bette. Vejam o resultado final, o
desfecho do romance: uma família inteira destruída e ocorrência de vários dramas secundários, sob a ação do
temperamento amoroso de Hulot. É neste temperamento que se encontra o determinismo inicial. Com a
gangrena de um simples membro, Hulot, logo tudo se estraga ao seu redor, o circulus social se emperra, a
saúde da sociedade fica comprometida. Por isso, como Balzac deu ênfase à figura de Hulot, como a analisou
com escrupuloso cuidado! A experiência visa sobretudo a ele, porque era necessário tornar-se mestre do
fenômeno desta paixão para dirigi-la. Admitamos que se possa curar Hulot, ou pelo menos contê-lo e torná-lo
inofensivo; de imediato, o drama não tem mais razão de ser, fica restabelecido o equilíbrio, ou melhor
dizendo, a saúde do corpo social. Logo, os romancistas naturalistas são realmente moralistas
experimentadores.
132
a lógica, fa zendo com que ele sempre saiba o momento certo de ousar para seduzir. Talvez,
o único ponto fraco do personagem seja sua insensibilidade que se manifesta, sobretudo,
através da postura que ele assume diante das mulheres, as quais considera como meros
instrumentos de prazer ou mecanismos para edificar sua fortuna. Porém, é justamente essa
maneira fria e utilitária de perceber o outro que o torna invencível e estabelece um
contraponto entre a sua personalidade e a de Denise.
Ao contrário de Mouret, a jovem não seduz ao primeiro olhar, mas é, no entanto,
idealizada como um modelo de virtude. Sua escolha como protagonista seria determinante
no caráter essencialmente romântico que a trama assume. Através de Denise, Zola inventa
um ideal de mulher. Ela é uma jovem muito à frente da sua época, com idéias e ideais
próprios, e que, assim como o próprio escritor, se mostra atraída e indignada pela mecânica
dos novos tempos. Ao longo do romance, Denise iria se revelar uma espécie de porta voz
de Zola. Ela é o centro da trama e todos os elementos da narrativa giram ao seu redor.
Sobrinha de Baudu, empregada de Bourra, vendedora do “Bonheur des Dames” e da loja de
Roubineu, ela penetra em todas as casas, está envolvida em todas as intrigas e desperta
sentimentos antagônicos de amor, ternura, ódio e inveja. A jovem também experimenta as
dores e as angústias da vida moderna. Desde que desembarca em Paris, com os dois irmãos
mais jovens, ela sofre humilhações e privações de toda sorte, mas em momento algum se
deixa corrompe r. Denise é íntegra, doce e sensível, ainda que consciente da inevitabilidade
do progresso que tanto a atrai. Portanto, se a trama apresenta Mouret como um ícone do
progresso, Denise seria a sua humanização. O “Bonheur de Dames”, como produto do
sistema capitalista, é um signo de desenvolvimento e prosperidade, mas o avanço que ele
preconiza é extremamente desumano, pois além de riqueza, também gera miséria e
desigualdade. A união de Mouret e Denise aparece como a solução para a experiência, ela
seria o remédio para a ferida social produzida pela revolução comercial. Assim, o final feliz
sugerido pelo escritor adquire um duplo significado : ao unir razão e sensibilidade, Zola
humaniza o progresso; e ao juntar dois personagens de classes diferentes, ele propõe a
igualdade social.
133
Toda essa estrutura revela que o desejo do escritor de experienciar, nas páginas de um
romance, a revolução do grande comércio resultou, na verdade, em uma história de amor
que espelha, sobretudo, o seu ideais subjetivos. Os heróis, assim como os balzaquianos,
transcenderam o real que os inspirou e tornaram-se ícones de progresso, integridade e
sensibilidade. Idealizados, não conseguem traduzir a complexidade humana; incompletos,
comprovam a “impossibilidade de se colocar o todo de uma personalidade em um
livro”(Bennett). Denise e Mouret são, portanto, românticos na literatura e reais no universo
imaginário que os completa.
As reflexões de Iser no capítulo A interação do texto com o leitor, do livro A literatura e o
leitor, explicitam e dão consistência às considerações que acabamos de expor. Partindo de
uma citação de Arnold Bennett : “Não se pode pôr o todo de uma personalidade em um
livro,”29 o teórico alemão faz uma reflexão sobre a discrepância que existe entre a vida dos
homens e a forma limitada de sua representação possível. Iser pondera, com Ingarden, que
existe uma série de aspectos esquematizados, através dos quais o personagem é
representado, que preenche a qualidade incompleta de cada aspecto pelo seguinte, de forma
que, aos poucos, tem-se a ilusão de uma representação completa. No entanto, quando se
volta a atenção para as decisões seletivas, tomadas para que o personagem seja mostrado
como ele foi idealizado, sobressaem, neste caso, não a sua realidade simulada, mas os
padrões de realidade externa, dos quais foram escolhidos os elementos do personagem.
Contudo, para o leitor, essas decisões seletivas não possuem a determinação revelada nos
aspectos formulados do personagem, mesmo que estes só recebam a sua significação
através de sua não formulada origem. Para Iser, a realidade independentemente da maneira
como nós a compreendamos, não oferece essa referência. Portanto, mesmo quando o
personagem consegue simular a realidade, esta não é um fim em si mesmo, mas um signo.
E o emprego dessa realidade simulada como signo não se esgota na vontade de descrever a
realidade conhecida.
Iser chega mesmo a fazer uma analogia entre o cinema realista e a literatura, a partir da
observação de Stanley Cavell : “[...] se uma pessoa visse um filme de um dia inteiro da sua
29
Citação extraída de : novelists on the novel, Columbia paperback, new York, 1966,p.290.
134
vida, ficaria louca”. 30 O teórico alemão observa que diretores como Antonini e Godard
exploraram esse fato porque a equivalência progressiva entre a vida cotidiana e a sua
apresentação acentua os limites de tolerância no espectador. Para ele, o fato de o cinema
explorar tal semelhança, fazendo com que o efeito dependa do caráter insuportável da
repetição, mostra que mesmo no cinema, a realidade cotidiana não funciona como referente
da apresentação. Regra essa, que vale também para as decisões que organizam o texto
literário, como sinaliza uma observação de Adorno: “A arte de fato é o mundo outra vez,
tão igual a ele, quanto dele desigual.”31
Iser prossegue e conclui que o texto ficcional é, portanto, igual ao mundo à medida que
projeta um mundo concorrente, porém, difere das idéias existentes no mundo porque não
pode ser deduzido dos conceitos vigentes na realidade. Assim, se ficção e realidade fossem
medidas apenas pelo seu caráter de objeto, mesmo como mentira, a ficção se mostraria um
meio deficiente, uma vez que não possui os critérios de realidade, ainda que pareça simulálos. Nesse caso, seria impossível tornar a realidade comunicável pela ficção. Contudo, o
texto ficcional adquire sua função, não pela comparação ruidosa com a realidade, mas pela
mediação de uma realidade que se organiza por ela. Dessa forma, podemos dizer que a
ficção mente quando julgada do ponto de vista da realidade dada, mas, em contrapartida,
ela oferece caminhos de entrada para a realidade que finge, quando a julgamos do ponto de
vista de sua função: comunicar.
Como estrutura de comunicação, a ficção não é idêntica nem com a realidade a que se
refere, nem com o repertório de disposições do seu possível receptor, porque torna virtual,
tanto a forma preponderante de interpretação da realidade, que dá origem a seu repertório,
quanto o conjunto de normas e valores do receptor. Dessa forma, a não identidade da ficção
com o mundo e com o receptor é a condição constitutiva do seu caráter de comunicação.
Essa falta de correspondência se manifesta nos graus de indeterminação, que se revelam
muito mais na relação estabelecida entre o texto e o leitor, do que no texto como tal. Isso
porque a formulação é um componente essencial de um sistema, do qual se tem apenas um
30
Citado por Stanley Cavell em : Must we mean what we say?, Nova York, 1969, p.119.
Citação extra ída do livro de ADORNO, W. Theodor : Ästhetische Theorie (Gesammelte Schriften 7),
Frankfurt, 1970,p.449.
31
135
conhecimento incompleto. Assim, embora os valores do repertório textual sejam
recodificados, a razão da recodificação permanece oculta. Como o não-dito é constitutivo
para o que diz o texto, a sua “formulação” pelo leitor resulta em uma reação às posições
apresentadas pelo texto, que, por via de regra, apresentam realidades simuladas. Iser
termina, afirmando que, o fato de a “formulação” do não-dito se transformar na reação do
leitor, significa que a ficção sempre transcende o mundo a que se refere.
Tudo isso evidencia que ao tentar conferir à literatura o status de ciência, Balzac e Zola –
autores em pleno domínio de suas ferramentas de expressão, mestres do perfeccionismo
narrativo, do diálogo vivo e extraordinariamente verdadeiro e donos de uma capacidade
ímpar de análise do comportamento humano –
lograram impor novos paradigmas à
literatura e modificar radicalmente a estrutura do romance. Quanto mais eles tentavam se
aproximar de um real objetivo, mais as suas obras extrapolavam a realidade imitada,
criando uma nova estética para o romance e uma nova forma de expressar a subjetividade.
Assim, o esforço empreendido por eles para alcançar um utópico controle do imaginário,
acabou evidenciando que o real para a literatura não é o real da vida, do nosso cotidiano,
mas o real que ela, a literatura, traz inserido em si. Balzac e Zola conseguiram, enfim,
realizar seu desejo inicial, o de alçar a literatura a um novo patamar, ainda que,
paradoxalmente, provando, através de obras geniais, que mais do que ciência, literatura é,
acima de tudo, arte. Eles tentaram impor um veto à ficção e criaram uma nova forma de
ficção, um novo modelo para a narrativa e um novo herói : humano, falível, complexo, nem
bom, nem mau. Enfim, aproximaram, com maestria, o anti-herói inaugurado por Cervantes,
do cotidiano e do mundo real.
Hoje, podemos constatar que os frutos gerados pelo Realismo e pelo Naturalismo
amadureceram e foram colhidos pelo romance contemporâneo, ainda que este se caracterize
pela livre expressão da subjetividade, do imaginário e do ficcional. O status que Freud
atribuiu ao imaginário, ao assegurar- lhe um caráter científico, funcionou como um
passaporte para que ele desabrochasse livremente na literatura, ainda que as modificações
estruturais sofridas pelo romance, decorrentes do veto à ficção, já não tivessem mais como
ser apagadas. O que se viu, então, foi a eclosão da imaginação e da subjetividade que antes
136
escapavam por entre os dedos do autor ou pelas entrelinhas do texto, fosse nas obras de
ficção, fosse nos pressupostos teóricos que insistiam em negá- las. A literatura do século
XX, legítima herdeira do Realismo e do Naturalismo, passa, assim, a produzir romances
repletos dos mesmos recursos narrativos que eternizaram aquelas escolas, mas que, livres
do veto, assumem-se como instâncias ativadoras do imaginário. Entre eles estão o discurso
indireto livre, consagrado por Flaubert, as novas formas de compor o perfil psicológico dos
personagens, o estilo narrativo detalhista e minucioso e, até mesmo, a tentativa de imitação
do real, embora as novas realidades descritas – agora envoltas numa auréola de sonhos,
crenças e rituais lendários – produzam um novo Realismo, um “Realismo mágico”. Não se
pode negar, portanto, que as obras literárias contemporâneas – que em grande parte primam
justamente pela expressão de um mundo fragmentado e pela desconstrução do real –
devem um enorme tributo às estéticas Realista e Naturalista, cuja modernidade abriu novos
caminhos para essa velha arte de contar histórias à qual chamamos Literatura.
E enfim, o imaginário, vetado, reprimido, se libera e vinga-se. Poderia haver desforra maior
do que se mostrar infinitamente belo, em obras cuja genialidade consiste no fracasso de
tentar suprimi- lo? Depois de bradar, aos quatros cantos dos romances, que na prática a
teoria é outra, se ainda lhe restasse voz, talvez respondesse a Balzac quando esse afirma
que All is true, com as palavras de Valery :
En littérature, le vrai n'est pas concevable. Tantôt par la simplicité, tantôt
par la bizarrerie, tantôt par la précision trop poussée, tantôt par la
négligence, tantôt par l'aveu de choses plus ou moins honteuses, mais
toujours choisies, — aussi bien choisies que possible, — toujours, et par
tous moyens, qu'il s'agisse de Pascal, de Diderot, de Rousseau ou de Beyle
et que la nudité qu'on nous exhibe soit d'un pécheur, d'un cynique, d'un
moraliste ou d'un libertin, elle est inévitablement éclairée, colorée et
fardée selon toutes les règles du théâtre mental. Nous savons bien qu' on
ne se dévoile que pour quelque effet.32 (VALÉRY,1957,p.570)
32
Em literatura, o verdadeiro não é concebível. Tanto pela simplicidade, tanto pela precisão radicalizada,
quanto pela confissão de coisas mais ou menos vergonhosas, mas sempre escolhidas – tão escolhidas quanto
possível – sempre e por todos os meios, quer se trate de Pascal, de Diderot, de Rousseau, ou de Beyle, e que
a nudez que se nos exibe seja de um pecador, de um cínico, de um moralista ou de um libertino, ela é
inevitavelmente aclarada, colorida e pintada conforme todas as regras do teatro mental. Bem sabemos que só
se revela para um certo efeito.
137
5 (IN) CONCLUSÃO
A trilha literária que acabamos de percorrer, através dos princípios teóricos que deram
origem à Comédia Humana e à História natural de uma família sob o Segundo Império,
Les Rougon-Macquart, é uma dessas viagens tão extraordinárias quanto insólitas que
ganhamos de presente da vida e em que a escassa bagagem do instante da partida vai sendo
acrescida, ao longo do caminho, de algumas poucas certezas, de muitas reflexões e de
outras tantas dúvidas. Partimos para essa viagem em busca dos momentos mágicos em que
o fictício e o imaginário emergiam em dois textos teóricos que insistem em negá - los, o
Prefácio da Comédia Humana e o Romance Experimental e acabamos descobrindo que,
como pressentiam Balzac e Zola, a arte pode e deve imitar a vida. Ela só não pode e não
consegue é deixar de ir além da vida, para que essa também possa imitar a arte.
Descobrimos que os universos da Comédia Humana e da Saga dos Rougon-Macquart,
juntos, são capazes de proporcionar um mergulho em cem anos de história, de progresso e
de profundas transformações em todos os campos do saber. Os romances de Balzac e Zola
nos permitem viver e reviver as turbulências do período da Restauração, os desmandos da
Monarquia de Julho, a utopia e o romantismo da Republica de 1848, a ascensão e a queda
de Napoleão através dos dramas e das alegrias, dos sonhos e das angústias de heróis, tão
138
densos e passionais, tão humanos e, por isso mesmo, tão falíveis que “todos poderão
reconhecer- lhes os elementos dentro de si, quem sabe em seus corações.”
A obsessão mimética de Balzac e Zola, sem dúvida, contribuiu para que seus heróis nos
convencessem da complexidade do seu caráter, da realidade dos seus dramas e de que
estavam, verdadeiramente, inseridos na história do seu tempo, colaborando para produzir os
vícios e as virtudes, o que havia de bom e de mal, na sociedade francesa do século XIX.
No entanto, se o caráter realista desses romances torna verdadeiros os seus heróis, é,
justamente, a subjetividade incontida que escapa lúcida e veemente pelas entrelinhas do
texto, que dá vida a esses mesmos personagens, conferindo- lhes a alma e a essência que os
tornam tão humanos.
Somente o olhar sensível e subjetivo de um mestre da descrição, como Balzac, poderia
narrar, com tamanha precisão, as nuances do desejo em uma mulher de trinta anos, o
momento exato em que se perdem as ilusões, os esplendores e as misérias das cortesãs,
enfim, de compor um arsenal tão grande de figuras humanas que, segundo o próprio
escritor, para reuni- las, talvez, fossem necessárias galerias. Ao tornar concreto um plano
que nasceu como uma quimera – fazer pela Literatura o que Buffon fez pela Zoologia –
Balzac trilhou o percurso que liga o sociólogo ao historiador, modificou as estruturas do
romance, e nos provou, paradoxalmente, que o imaginário, uma vez reprimido, libera-se e
se vinga, mostrando-se ainda mais pungente, principalmente nas obras que insistem em
negá- lo.
Da mesma forma que Balzac, também Zola tentou dar vazão a seu sonho de transformar a
sociedade do Segundo Império em um grande laboratório literário – no qual pudesse
submergir seus personagens em uma história particular, provando que a sucessão dos fatos
é tal qual a exige o determinismo dos fenômenos estudados – e, assim, descobrir o que
determinada paixão, agindo num certo meio e em determinadas circunstâncias, produz no
homem e na sociedade. No entanto, o que ele conseguiu evidenciar é que o universo
literário é, por excelê ncia, território livre da imaginação, que ali vaga altiva e soberana no
trono de um reino em que tudo é permitido, até mesmo, simular, através do mágico
139
sortilégio que emana das metáforas, que uma operação puramente imaginária é um
procedimento científico. E assim, ele descreveu os dramas do Segundo Império, contou a
história de uma sociedade totalmente fragmentada – na qual a miséria convivia com o luxo,
a fome com a abundância e a beleza com o caos; e em que o homem se alimentava do
próprio homem para fazer girar as engrenagens que moviam o sistema – enfim, ele
inventariou as misérias, os vícios, a brutalidade e a loucura humanas, sem jamais perder a
esperança. Uma esperança ardente que, aliada a um certo idealismo, transbordou pelas
entrelinhas dos romances e acabou contaminando os seus heróis. Em cada personagem
sentimos, portanto, um pouquinho do autor.
Zola se mostra presente no idealismo
romântico de Étienne Lantier (Germinal), no temperamento progressista de Mouret, na
consciência social de Denise (Au Bonheur des Dames), ou mesmo no espírito cientificista
de doutor Pascal (Docteur Pascal), dentre outros. Ele sonhou introduzir na literatura a
esperança – essencialmente moderna – do milagre científico, que contaminou o seu
século e que o fez acreditar que, uma vez disfarçada de ciência, a Literatura seria investida
do mesmo poder sobre-humano que tornava o progresso científico capaz de regenerar a
espécie humana e de torná- la melhor.
Enfim, partindo de um sonho, esses dois escritores souberam, como poucos, traduzir o
espírito do seu tempo, quebrar as antigas estruturas do romance e construir novos
paradigmas para a Literatura. Eles também mostraram que a arte de contar histórias pode,
mesmo sem perder o seu caráter lúdico e subjetivo, engendrar uma reflexão social
extremamente profunda e passível de ser estendida para outros campos do saber. A
Literatura ainda não logrou regenerar a espécie humana, mas tampouco o fez a Ciência ou a
História. Em contrapartida, as reflexões iniciadas por Balzac e Zo la abriram espaços para
que florescessem outras maneiras de se pensar o homem, contribuíram para a criação de
uma nova ciência, a sociologia e, sobretudo, continuam extremamente atuais, o que permite
que elas não pereçam. Baudelaire define a modernidade co mo “o transitório, o fugidio, o
contingente, a metade da arte cuja outra metade é o eterno e o imutável.” A obra de Balzac
e a de Zola são modernas porque captam essencialmente o transitório, o fugidio e o
contingente de seu tempo, mas elas são, acima de tudo, integralmente, arte, pois possuem
também essa outra metade que as torna eternas.
140
No entanto, mesmo após esse longo percurso, muitas são as perguntas que ainda
permanecem sem resposta. Hoje, temos a certeza de que ao contarmos, no presente, uma
história do passado, ainda que verdadeira, ela sempre trará nas entrelinhas algo de lúdico,
de imaginário, de subjetivo; um certo lirismo ou uma certa poesia, enfim, que existirá
sempre, em cada verdade narrada, um toque de ficção. Entretanto, ainda não sabemos, até
que ponto pode essa ficção transcender o universo literário em que foi gerada e, através dos
ardilosos artifícios da retórica, transformar o mundo real. Termino esse trabalho com a
certeza de que essa é apenas uma das infinitas dúvidas que o questionamento dos limites
que cercam o universo imaginário ainda deixam sem resposta, e que, por isso mesmo,
servem- nos de estímulo e de passaporte para o início de uma nova viagem.
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Dissertação de Mestrado - Universidade Federal Fluminense