SANDRA REGINA GUIMARÃES O IMPÉRIO POSITIVISTA E A VINGANÇA DO IMAGINÁRIO : O ENTRE-LUGAR DO DISCURSO FICCIONAL EM BALZAC E ZOLA Dissertação apresentada ao Curso de Pós graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Literaturas Francófonas. Orientadora: Profa. Dra. MARIA ELIZABETH CHAVES DE MELLO Niterói 2006 1 SANDRA REGINA GUIMARÃES O IMPÉRIO POSITIVISTA E A VINGANÇA DO IMAGINÁRIO : O ENTRE-LUGAR DO DISCURSO FICCIONAL EM BALZAC E ZOLA Dissertação apresentada ao Curso de Pós graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Literaturas Francófonas. Aprovada em dezembro de 2006 BANCA EXAMINADORA _________________________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Elizabeth Chaves de Mello (orientadora) UFF _________________________________________________________________________ Profa. Dra. Stela Maria Sardinha Chagas de Moraes UERJ _________________________________________________________________________ Prof. Dr.Roberto Acízelo Quelha de Souza UFF/UERJ _________________________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Ruth Machado Fellows Cap-UERJ _________________________________________________________________________ Prof. Dr. José Luiz Jobim UFF/UERJ Niterói 2006 2 Àquele que me ensiou a acreditar que o impossível só é impossivel até que o tornemos possível. A meu melhor amigo, meu PAI. 3 AGRADECIMENTO ESPECIAL À minha querida orientadora que sempre teve a dose exata de firmeza e ternura, paciência e sabedoria para me fazer superar aquele que poderia ter sido o maior e o pior dos meus algozes, nesse longo caminho: eu mesma. 4 AGRADECIMENTOS A todos os meus professores, pela generosidade com que partilharam o seu conhecimento. Aos meus colegas da UFF, que me receberam com tanto carinho. À querida amiga e eterna professora Tania Maria Costa de Abreu e Silva, pela inspiração À Ana Lúcia Morais, que me ajudou a chegar até aqui. Ao meu irmão, pelo incentivo. À minha mãe, pela paciência A todos os amigos, pelo carinho com que souberam entender a minha ausência. 5 SUMÁRIO : 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS...........................................................................p.10 2. INTRODUÇÃO ..................................................................................................p.14 3. CAPÍTULO I : ENTRE A MODERNIDADE E A MODERNIZAÇÃO: A TRILHA LITERÁRIA DE BALZAC E ZOLA : .....................................................................................p.29 4. CAPÍTULO II A OBSESSÃO MIMÉTICA E O CONTROLE DO IMAGINÁRIO EM BALZAC E ZOLA : .................................................................................................................p.62 5. CAPITULO III A VINGANÇA DO IMAGINÁRIO : LE PÈRE GORIOT E AU BONHEUR DES DAMES : A TEORIA NA PRÁTICA SERIA OUTRA? .......................................p.88 6. (IN)CONCLUSÃO..............................................................................................p.138 7. BIBLIOGRAFIA..................................................................................................p.142 6 RESUMO Este trabalho apresenta um estudo crítico e comparativo das teorias desenvolvidas por Honoré de Balzac e Emile Zola, no Prefácio da Comédia Humana e no Romance Experimental, textos em que os autores, visando transformar suas obras em reproduções da sociedade e de suas doenças e a atribuir um caráter científico à Literatura, negam, sistematicamente, tanto a subjetividade quanto o caráter ficcional inerentes a ela. Partiremos do momento histórico e literário em que nascem essas teorias, para analisar quais as justificativas encontradas por cada autor, para estabelecer uma ligação entre a Ciência, a História e a Literatura. Tentaremos compreender como vivenciaram, na prática, os princípios teóricos que nortearam a edificação da Comédia Humana e a saga dos Rougon-Macquar, para, finalmente, captar os momentos em que a subjetividade e os elementos do imaginário emergem nas entrelinhas dos textos teóricos e na ficção, nas obras desses dois escritores. Propomo-nos, portanto, questionar o lugar do ficcional, da literalidade e da subjetividade, no auge do Realismo e do Naturalismo, momento em que a Literatura se dedicava acima de tudo a “imitar o real.” 7 RÉSUMÉ Ce travail présente une étude critique et comparative des théories développées par Honoré de Balzac et Emile Zola, dans la Préface de la Comédie Humaine et dans le Roman Experimental. Dans ces deux textes, leurs auteurs, visant à rendre leurs oeuvres des reproductions de la société et de ses maladies, et à attibuer un statut scientifique à la littérature, renient, de façon systématique, aussi bien la subjectivité que le statut du fictionnel qui lui sont inhérents. Nous aurons comme point de départ le moment historique et littéraire où surgissent ces théories, pour vérifier les explications données par chacun des deux auteurs, pour établir une liaison entre la Science, l’Histoire et la Littérature. Nous essayerons de comprendre comment ils ont mis en pratique les principes théoriques qui ont guidé la construction de la Comédie Humaine et la saga des Rougon-Macquart, pour saisir les moments où la subjectivité et les éléments de l’imaginaire émergent dans les interlignes des textes de fiction des deux écrivains. Nous nous proposons, donc, de mettre en question la place du fictionnel, de la littéralité et da subjetivité, à l’apogée du Réalisme et du Naturalisme, quand la Littérature se tournait vers l’ « imitation du réel ». 8 “En littérature, le vrai n'est pas concevable. Tantôt par la simplicité, tantôt par la bizarrerie, tantôt par la précision trop poussée, tantôt par la négligence, tantôt par l'aveu de choses plus ou moins honteuses, mais toujours choisies, — aussi bien choisies que possible, — toujours, et par tous moyens, qu'il s'agisse de Pascal, de Diderot, de Rousseau ou de Beyle et que la nudité qu'on nous exhibe soit d'un pécheur, d'un cynique, d'un moraliste ou d'un libertin, elle est inévitablement éclairée, colorée et fardée selon toutes les règles du théâtre mental. Nous savons bien qu'on ne se dévoile que pour quelque effet.” Paul VALÉRY,1957 9 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS : Muito se tem discorrido sobre as escolas Realista e Naturalista, que pretendem “imitar o real”, transformando suas obras em reproduções da sociedade e de suas doenças. Este trabalho pretende pesquisar como, por baixo dessa camada “cientificista” e “realista”, Balzac e Zola, dois grandes representantes desses movimentos na França, deixam escapar, tanto nas entrelinhas dos seus textos “teóricos”, quanto nas suas obras de ficção, elementos que nos permitem questionar o lugar do ficcional, da literariedade e da subjetividade nas suas obras. Em O Controle do Imaginário, Luiz Costa Lima nos lembra que, a partir do fim da Idade Média, momento em que a razão inicia o seu império no ocidente, o discurso ficcional começa, paulatinamente, a perder status para o discurso histórico, seja em nome da verdade historiográfica, seja em nome da moral cristã. Essa repulsa, entretanto, passa de forma quase imperceptível pelos humanistas do Renascimento e da Contra-Reforma, que continuavam a atribuir notoriedade a todo aquele que soubesse falar e escrever bem. Salvo pela retórica, o poeta ainda teria pela frente o desafio de assegurar a sua existência dentro dos valores e da moral cristã. Considerado como a primeira expressão máxima do individualismo e, portanto, da subjetividade inerente a este, o Renascimento veria crescer a necessidade de diferenciação das formas discursivas, ou seja, o discurso interessado em 10 declarar a verdade, daquele que deleitava sem instruir: o histórico, do fictício. Necessidade essa que foi estimulada, sobretudo, por dois motivos: a importância concedida à instância subjetiva e o desenvolvimento da imprensa. Nasce, então, o conflito entre as poéticas escolástica e humanista, colocando, de um lado, os religiosos ortodoxos que não admitiam o poético senão como manifestação didática, e de outro, os humanistas que, apoiados numa falsa interpretação da Metafísica de Aristóteles, defendiam a poesia como forma de acesso ao divino. Embora adotassem posições divergentes, tanto os escolásticos quanto os humanistas não cogitavam questionar o cristianismo; ao contrário, debatiam a possibilidade de servi-lo, ou não, de duas maneiras distintas: como escritor ou como propagador da fé. Além disso, ambas as posições consideravam a nobreza da linguagem uma condição indispensável para a obra que pretendiam realizar. Portanto, embora pareça paradoxal que o individualismo característico do período renascentista possa ter se amoldado ao Classicismo e ao formalismo cristãos, a conciliação entre os pensamentos eclesiásticos e humanistas tornou-se possível, a partir do momento em que a imitatio dos antigos foi eleita como critério ímpar e a palavra poética foi relegada a uma posição a priori inferior. Dessa maneira, evitava-se o questionamento das verdades teológicas e a subjetividade – bem como um dos seus discursos possíveis, o ficcional – era previamente controlada e sujeita a modelos legitimados: Deuses e figuras pagãs podiam continuar a transitar nas obras dos artistas cristãos desde que suas obras fossem de tal modo afeiçoadas que permitissem uma leitura domesticante. O maravilhoso, o extravagante, poderiam passar desde que fosse admissível uma grade controladora. (COSTA LIMA, 1986, p.44) Diante desse quadro, o escritor “moderno”, que não é mais nem um clérigo, nem um erudito, mas o escritor profissional que emergia no século XVI, deveria aprender a controlar a subjetividade e o imaginário, de acordo com os valores universais do belo e do verdadeiro. No final do século XVII, os valores universais até então afirmados começam a ser postos em dúvida, dando indícios da crise que se estenderia ao longo do século XVIII. À medida que a religião perdia a sua força, o pensamento filosófico sedimentou a idéia de que o nosso 11 saber não derivava senão das sensações. A falência da ordem clássica torna-se, então, inevitável, levando à contestação da história sacra e provocando um efeito imediato, tanto na expressão literária quanto na reflexão à qual ela se dedicava. O recolhimento em si, característico do período romântico, estimularia o caráter auto-reflexivo da poesia e a liberação do imaginário. Entretanto, o florescimento das idéias iluministas, o desenvolvimento científíco e tecnológico e o nascimento das ciências naturais que marcam o final do século XVIII e o início do século XIX, conduziriam o ocidente para uma nova era, caracterizada pelo predomínio da razão. O mundo das idéias, dominado então pela ordem capitalista, passa a reagir contra a subjetividade romântica e, através de concepções empiristas e positivistas do mundo, irá reafirmar o aparente e negar o essencial. A Filosofia positivista, base das escolas Realista e Naturalista, acreditava que a vida espiritual autêntica não é uma vida interior, mas a atividade científica que se desenvolve através do tempo. Augusto Comte afirmava que o pensamento humano, em seu esforço para explicar o universo, passou sucessivamente por três estados distintos: o teológico ou fictício, o metafísico e o positivo. No primeiro estado, o teológico, o mundo e a humanidade teriam sido explicados através dos deuses e dos espíritos e os fenômeno s naturais eram atribuídos a causas e forças divinas; no segundo, o estado metafísico, os fenômenos eram explicados através das essências, de causas finais e de outras abstrações; e, finalmente, no terceiro estado, o estado positivo, considerado por Comte como a idade adulta da humanidade, o homem procurava conhecer e explicar a natureza por meio da observação e da experimentação, buscando as leis que a regem. Nesse estado, não se buscam, entretanto, leis gerais além do que é permitido pela experimentação ou raciocínio matemático. Tudo o que fica além desse domínio é metafísico e, por conseguinte, não tem valor. Tendo por método dois critérios, o histórico e o sistemático, Comte concluiu que outras ciências, antes da Sociologia, haviam atingido a positividade: a Matemática, a Astronomia, a Física, a Química e a Biologia e, por isso, ele se dispôs a usar (em sua nova ciência, chamada de física social e, posteriormente, Sociologia) da experimentação, da comparação, da classificação e da filiação histórica como método para a obtenção dos 12 dados reais. Ao longo do século XIX, tanto a História quanto a Literatura iriam incorporar os preceitos da Filosofia Positivista, o que levaria realistas e naturalistas a aderirem à tese de que o estado teológico e o metafísico das ciências tinham em comum a predominância da imaginação sobre a observação e, para se elevarem ao estágio positivo das ciências exatas, as ciências humanas deveriam abandonar a promiscuidade com o aleatório, com a subjetividade, com o imaginário. Paralelamente, o determinismo de Hyppolite Taine, também incorporado por essas escolas, explicava todas as ocorrências humanas e sociais pelo condicionamento do indivíduo ao meio, à raça ou ao fato histórico, o que tornava o homem presa do ambiente em que vive ou viveu e da hereditariedade. Seduzido por esses ideais, o escritor do século XIX passa, então, a desejar que a Literatura também assuma um caráter científico e, para tanto, decide negar a subjetividade inerente a ela e impor um veto à ficção. Desse desejo, nascem o Realismo e o Naturalismo, duas estéticas que modificariam radicalmente as estruturas do romance moderno e cujos reflexos são sentidos, ainda hoje, na literatura contemporânea. 13 2 INTRODUÇÃO : Com o advento do Iluminismo, o escritor começa a se interessar por todos os assuntos e a desenvolver o desejo de se aprofundar em conhecimentos especificamente científicos. Apesar de uma nova perda do contato com o real provocada pela comoção romântica, que se segue à Revolução Francesa, Balzac tenta, num momento em que ainda predominam o subjetivismo e o sentimentalismo românticos, estabelecer um diálogo entre a Literatura, a História e a Ciência, através do edifício da Comédia Humana, obra que buscava assentarse nas “sólidas bases” da História Natural. O aspecto documental da literatura realista, que procurava, sobretudo, descrever minuciosamente a realidade, será reforçado por escritores como Flaubert e os irmãos Goncourt. Para retratar o real com a mais rigorosa exatidão, os romancistas não mais se contentam em observar e passam a se documentar de modo sistemático, lendo textos de Ciências Naturais, de Fisiologia, de Medicina. Os tratados de Darwin e de Claude Bernard começam, então, a exercer um extraordinário fascínio sobre os literatos, entre eles Zola, que, partindo dos princípios do Realismo, tenta fazer da Literatura uma tentativa de experimentação do mundo real. Com o objetivo de desvelar o conteúdo subjetivo, lírico e ficcional que se esconde por baixo da camada cientificista e historiográfica que envolve a Literatura Realista e Naturalista, propomo-nos a começar nosso estudo pela análise do Prefácio da Comédia 14 Humana, no qual Balzac lança o desafio que norteará toda a organização da sua obra “ Si Buffon a fait un magnifique ouvrage en essayant de représenter dans un livre l’ensemble de la zoologie, n’y avait-il pas une oeuvre de ce genre à faire pour la Société?”1 (BALZAC, 1842, p.191). Num primeiro momento, procuraremos refletir sobre a tentativa do escritor de configurar seus romances, a partir de um inventário das espécies sociais, semelhante ao que foi feito por Buffon sobre as espécies animais. Balzac se propõe a descrever, de maneira minuciosa, todas as categorias sociais, as diversas classes sócio-econômicas, todas as profissões e os lugares por onde transitam seus personagens (Paris, a província, o campo), a rua, a casa, a roupa e os hábitos, além do contexto histórico no qual eles estão inseridos. Tencionamos também refazer o percurso que liga o historiador ao sociólogo. Em seu prefácio, o romancista chega a personificar a Sociedade Francesa, referindo-se a ela como o historiador e a si mesmo como secretário deste. Um secretário que, ao fazer o inventário dos vícios e das virtudes humanas, estaria escrevendo a parcela da História esquecida pelos historiadores : La société française allait être l’historien, je ne devais être que le secrétaire. En dressant l’inventaire des vices et des vertus, en rassemblant les principaux faits des passions, en peignant les caractères, en choisissant les événements principaux de la Société, en composant des types par la réunion des traits de plusieurs caractères homogènes, peut-être pouvais-je arriver à écrire l’histoire oubliée par tant d’historiens, celle des moeurs. 2 ( BALZAC, 1842, p.194) Serão, ainda, objetos do nosso estudo a ambição balzaquiana de ir além da descrição. Mais do que pintar um quadro perfeito da espécie humana, Balzac desejava compreender as engrenagens e as leis que regiam a sociedade, a fim de que suas descrições pudessem ser acompanhadas de uma explicação. Ele examina, então, à maneira de Geoffroy Saint1 Se Buffon fez uma obra magnífica ao tentar representar em um livro o conjunto da zoologia, não haveria uma obra desse mesmo gênero a ser feita para a sociedade ? (tradução nossa) 2 A sociedade francesa iria ser o historiador, eu deveria ser somente o secretário. Redigindo o inventário dos vícios e das virtudes, reunindo os principais feitos das paixões, pintando os caracteres, escolhendo os acontecimentos principais, compondo tipos a partir da reunião dos traços de diversos caracteres homogêneos, talvez eu pudesse chegar a escrever a História esquecida por tantos historiadores, a história dos costumes. (tradução nossa) 15 Hilaire, as diversas camadas da sociedade sob todos os ângulos – filosófico, psicológico, moral, político, econômico, social – e faz com que cada uma das partes de sua obra se dedique a explorar um aspecto em particular. Esse processo se assemelha aos caminhos percorridos por Zola na elaboração da teoria científico- literária que norteia a construção da saga dos Rougon-Macquart . Em nossa análise, buscaremos refletir sobre as bases encontradas pelo autor para atribuir um caráter científico à Literatura. Para estabelecê- las ele parte do seguinte questionamento : “Avant tout, la première question que se pose est celle-ci : en littérature, où jusqu’ici l’observation paraît avoir été seule employée, l’expérience est-elle possible?”3 (ZOLA, 1880, p.260). Já nas primeiras linhas de O Romance Experimental, Zola revela a fonte de suas reflexões : a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental, do fisiólogo francês, Claude Bernard. Da mesma forma que Bernard, o escritor pensava ser possível a adequação do rigor metodológico, empregado nas ciências dos corpos brutos, às ciências dos corpos vivos e, por conseguinte, às dos homens. Indo ainda mais longe, o romancista chega a prever o dia em que a ciência será capaz de encontrar o determinismo das manifestações cerebrais e sensuais do ser humano. Como Bernard utilizou esse raciocínio para elevar a medicina – até então considerada uma ciência empírica – à categoria de ciência experimental, Zola tencionava fazer o mesmo pela Literatura. Assim, seu objetivo literário passa a ser conhecer o determinismo dos fatos sociais para poder dirigi- los. Por considerar que a experiência era o único critério válido para a obtenção dos resultados que almejava, passa a defender a tese de que o escritor, assim como o cientista, deveria abster-se de qualquer capricho ou crença pessoal, fossem elas religiosas, filosóficas ou mesmo científicas, a fim de que somente a autoridade dos fatos observados prevalecesse. Defensor ardoroso das teorias evolucionistas de Charles Darwin e discípulo convicto de Hippolyte Taine – para quem o homem seria um produto do meio, da raça e do momento histórico em que vive – Zola parte dos preceitos científicos do primeiro e filosóficos do segundo para propor um novo papel para o escritor. Observador-experimentador, o romancista naturalista deveria 3 Antes de mais nada, a primeira questão que se coloca é esta: em Literatura – onde até aqui apenas a observação parece ter sido empregada – a experiência é possível. 16 redigir a ata de uma experiência, conceber uma intriga, na qual as personagens provem, pelo seu comportamento, que a sucessão dos fatos é conforme ao determinismo dos fenômenos estudados e descrever o mecanismo das perturbações cerebrais e sensuais que comprometem a saúde do corpo social. Em outras palavras, ele defende que o papel do escritor é fazer uma experiência para “mostrar” e, a partir daí, caberá à sociedade continuar produzindo esse fenômeno, ou não, conforme seu resultado seja útil ou perigoso. Finalmente, com o objetivo de verificar como Balzac e Zola vivenciam os princípios teóricos que legitimaram a edificaç ão da Comédia Humana e da saga Des RougonMacquart e, assim, estabelecer uma dialética entre os pressupostos teóricos realistas e naturalistas e a literatura que floresce a partir dessas estéticas, selecionamos os romances Le Père Goriot, de Balzac, e Au Bonheur des Dames, de Zola, para ilustrar nossa análise. Nossa escolha baseou-se no fato de que os dois romances incorporam plenamente os principais preceitos da literatura cientificista e historiográfica imaginada por seus autores, além de sintetizarem, com maestria, a obsessão mimética e o ideal positivista que nortearam a obra de Balzac e de Zola. No prefácio da Comédia Humana, escrito em 1842, Balzac explica a origem e o plano que tinha em mente para traçar um quadro perfeito da sociedade e do homem de seu tempo, com tudo aquilo que ele possuía de bom e de mau, de vício e de virtude. Consciente da ousadia do seu projeto – pintar entre duas e três mil figuras que fossem representativas de uma época, de uma geração – ele conclui que, para descrever um número tão grande de tipos humanos, teria que dividi- los em quadros, ou, até mesmo, em galerias. Diante disso, ele anuncia uma classificação sociológica para sua obra semelhante às classificações zoológicas feitas por Buffon : cenas da vida privada, de província, parisiense, política, militar e do campo. Esse conjunto foi reunido com o nome de Estudo dos costumes e, ao lado dos Estudos Filosóficos e dos Estudos Analíticos, formam o conjunto da Comédia Humana. O projeto Balzaquiano nasce do desejo do escritor de estabelecer uma comparação entre os seres humanos e as espécies animais, baseada na obra de Buffon, naturalista francês que 17 tentou classificar, em um livro, o conjunto das espécies animais. Discípulo de Locke, Buffon era defensor da razão humana e do poder do entendimento, seu objetivo era descobrir as verdadeiras leis da natureza. Ele acreditava que os seres vivos eram demasiado complexos para serem classificados a partir de uma única característica. Por isso, não se propôs a simplesmente descrever e nomear as diversas espécies de acordo com o seu gênero, mas a anotar sistematicamente, para cada indivíduo analisado, o seu meio ambiente, história e hábitos. Reunindo espécies fisiologicamente semelhantes, mas com hábitos e habitats diferentes, ele constitui diferentes famílias, partindo de uma unidade biológica. Buffon conclui que o povoamento inicial da terra teria sido feito por um certo número de espécies, as quais teriam sofrido uma sucessão de variações adaptativas, de acordo com as condições geográficas e a alimentação do local para onde teriam migrado. Essa variação seria a conseqüência das sucessivas degenerações da espécie inicial, ou seja, ele possuía uma visão transformista do mundo natural. Da mesma maneira que Buffon, Geoffroy SaintHilaire era defensor da teoria da transformação dos seres vivos ao longo do tempo. Para o naturalista, cada grupo de seres vivos respondia a um plano de organização único, modificado ao longo dos séculos pelo meio ambiente. Suas idéias evolucionistas, próximas às de Lamarck, iriam conduzi- lo a afrontar, na academia de ciências, o fixismo de Curvier, que considerava que uma vez surgidas, as espécies se mantinham inalteradas ao longo do tempo. Partidário das teorias transformistas, Balzac defendia a tese de que, assim como no reino animal, a existência de diferentes tipos humanos era uma conseqüência do meio em que cada indivíduo se desenvolve e da sociedade com a qual ele é obrigado a interagir e a se adaptar. Convencido da semelhança entre a sociedade e a natureza, ele incorpora as teorias de Buffon e Saint-Hilaire ao seu prefácio : Il n’y a qu’un animal. Le créateur ne s’est servi que d’un seul et même patron pour tous les êtres organisés. L’animal est un principe qui prend sa forme extérieure, ou, pour parler plus exactement, les différences de sa forme, dans les milieux où il est appelé à se développer. Les Espèces Zoologiques résultent de ces différences. 4 (BALZAC, 1842, p.191). 4 Só existe um animal. O criador se serviu de um padrão único e idêntico para todos os seres organizados. O animal é um princípio que adquire sua forma exterior, ou, para falar com mais exatidão, as diferenças da sua 18 Entretanto, como o objetivo do romancista era o de representar, através de sua obra, o conjunto dos seres humanos, ele prevê que seu projeto implicaria em uma tarefa bem mais árdua do que a realizada por Buffon : Enfin, entre les animaux, il y a peu de drames, la confusion ne s’y met guère; ils courent sur les uns aux autres, voilà tout. Les hommes courent bien aussi les uns sur les autres; mais leur plus ou moins d’intelligence rend le combat autrement compliqué. [...] Buffon a trouvé la vie excessivement simple chez les animaux. L’animal a peu de mobilier, il n’a ni arts ni sciences; tandis que l’homme, par une loi qui est à rechercher, tend à représenter ses moeurs , sa pensée et sa vie dans tout ce qu’il approprie à ses besoins.5 (BALZAC, 1842, p.192) Partindo dessas considerações, percebemos que, embora o escritor se propusesse a edificar uma obra essencialmente científica, em determinados momentos, a percepção de que a subjetividade é inerente ao ser humano parece estar implícita na concepção do projeto. Ainda assim, ele se propõe a ser o copista da sociedade de seu tempo e a escrever a História esquecida pelos historiadores, a de todos os tipos humanos que fizeram parte da sociedade francesa no período que vai da Restauração à Monarquia de julho. Consciente de que seu objetivo só poderia ser alcançado através de um realismo minucioso e exaustivo, de uma descrição metodicamente estruturada, erguida a partir de um sistema coerente e comparável às tabelas científicas que tanto o fascinavam, Balzac se entrega à reprodução rigorosa da realid ade , acreditando que só assim um escritor poderia se tornar o pintor dos diversos tipos humanos, o contista dos dramas da vida íntima, o arqueólogo do mobiliário social, o classificador das profissões, enfim, um registrador do bem e do mal. Mas seu propósito consistia em ir além do simples registro. Balzac desejava estudar as razões ou a razão dos resultados sociais, surpreender o sentido escondido nesse imenso arsenal de figuras forma, nos meios em que ele é convidado a se desenvolver. As espécies zoológicas resultam dessas diferenças. (tradução nossa) 5 Enfim, entre os animais existem poucos dramas, a confusão se estabelece raramente, eles atacam uns aos outros, e isso é tudo. Os homens também atacam uns aos outros; mas a sua maior ou menor inteligência torna o combate complicado.[...] Buffon achou a vida excessivamente simples entre os animais. O animal possui pouco mobiliário, ele não tem nem artes nem ciências, enquanto o homem, por uma lei que deve ser pesquisada, tende a representar seus costumes, seu pensamento em tudo aquilo que ele adequa às suas necessidades.(tradução nossa) 19 humanas, de paixões e de acontecimentos, além de meditar sobre os princípios naturais e verificar em que pontos as sociedades se distanciam, ou se aproximam, da regra eterna do verdadeiro e do belo. “Ainsi depeinte, la societé devait porter avec elle la raison de son mouvement.” 6 (BALZAC, 1842, p.195) Balzac pauta sua obra sobre dois pilares, a monarquia e o cristianismo, que seriam, segundo o escritor, os únicos suportes capazes de controlar os instintos e as aptidões humanas, tanto para o bem quanto para o mal. Ele reprova a teoria de Rousseau, afirma que a sociedade, longe de corromper o homem, tende a aperfeiçoá-lo, a torná- lo melhor e atribui ao interesse a responsabilidade pelo desenvolvimento das tendências negativas no ser humano. Com base nessas premissas, ele define qual deveria ser o papel social do romancista e da literatura. No caso da Literatura, pondera que cabe a ela o dever de ir além da História e de se tornar o leimotiv para a evolução humana. Quanto ao romancista, acredita que seu papel consiste em levar as pessoas a refletirem ainda que, para isso, corra o risco de ser tachado de imoral: Les écrivains qui ont un but, fût-ce un retour aux principes qui se trouvent dans le passé par cela même qu’ils sont éternels, doivent toujours déblayer le terrain. Or, quiconque apporte sa pierre dans le domaine des idées, quiconque signale un abus, quiconque marque d’un signe le mauvais pour être retranché, celui-là passe toujours pour être immoral.7 (BALZAC, 1842, p.198) Assim, a análise das conseqüências sofridas pelos personagens em função de seus atos é que conduziriam o leitor no momento de suas escolhas pessoais : [...] dans le tableau que j’en fais, il se trouve plus de personnages vertueux que de personnages répréhensibles. Les actions blâmables, les fautes, les 6 Assim pintada, a sociedade devia trazer consig o a razão de seu movimento 7 Os escritores que têm um objetivo, mesmo que seja um retorno aos princípios que se encontram no passado e que por isto mesmo são eternos, devem sempre desobstruir o caminho. Ora, quem quer que traga sua contribuição para o domínio das idéias, quem quer que sinalise um abuso, quem uqe marque com um sinal o mal a ser subtrído, esse é sempre considerado imoral. (tradução nossa) 20 crimes, depuis les plus légers jusqu’aux plus graves, y trouvent toujours leur punition humaine ou divine, éclatante ou secrète.8 (BALZAC, 1842, p.199) A obsessão balzaquiana pela verdade não consegue, entretanto, dissimular a enorme capacidade do escritor para transfigurar a realidade. Na segunda página do livro “Le Père Goriot”, ele afirma ser aquela uma história verdadeira e, interagindo com o leitor, convidao a reconhecer os elementos do drama ali descrito dentro de si, ou dentro do próprio coração. Mas, nem assim, o romance consegue omitir o poder do imaginário de seu autor. Movido pela paixão, Balzac deixa seus sentimentos intervirem durante toda a narrativa. Obcecado pela verdade, mas consciente do poder da sua imaginação, ele acaba se traindo, ao traçar os parâmetros do que seria o seu ideal de ficção: “uma augusta mentira, verdadeira nos detalhes”: L’histoire n’a pas pour loi, comme le roman, de tendre vers le beau idéal. L’histoire est ou devrait être ce qu’elle fut; tandis que le roman doit être le monde meilleur, a dit Mme Necker , un des esprits les plus distingués du dernier siècle. Mais le roman ne serait rien si, dans cet auguste mesonge, il n’était pas vrai dans les détails. 9 ( BALZAC, 1962, p.200) Escrito em 1834, o romance “Le père Goriot” pode ser considerado um símbolo dos anseios balzaquianos. Em meio a inúmeras intrigas envolvendo mulheres adúlteras, assassinatos, desejos ocultos, dissimulações e paixões obsessivas numa sociedade desumana e regida pelo poder do dinheiro, desenvolve-se um enredo simples: Balzac narra a história de um pai, arruinado e abandonado pelas próprias filhas, mas assistido por um jovem estudante que faz dessa experiência o elemento principal da sua educação. Enquadrado pelo autor entre as Cenas da vida privada, trata-se de um romance de aprendizagem. Ávido por desvendar os segredos que lhe abririam as portas da sociedade, 8 No quadro que eu faço, encontram-se mais personagens virtuosos que repreensíveis. As ações censuráveis, as faltas, os crimes, dos mais leves aos mais graves, nele encontram sempre sua punição humana ou divina, reluzente ou secreta.( tradução nossa) 9 A História não tem por lei, como o romance, inclinar-se na direção do belo ideal. A História é, ou deveria ser, o que ela foi, enquanto o romance deve ser o mundo melhor, disse Madame Necker, um dos espíritos mais distintos do último século. Mas o romance não seria nada se, nesta augusta mentira, ele não fosse verdadeiro nos detalhes. (tradução nossa) 21 Eugène de Rastignac tem, ao longo de sua trajetória, três iniciadores principais: a viscondessa de Beauséant, a fada madrinha; Goriot, um Cristo da paternidade e Vautrin, a encarnação do diabo. Através desse romance, o escritor nos incita a refletir sobre a evolução conseqüente do amadurecimento e da perda da inocência. O jovem provinciano, que chega a Paris ingênuo e sem armas para confrontar uma sociedade impiedosa com todos aqueles que não dominam suas regras, chega ao final da trama como um homem maduro, e com malícia suficiente para desafiar a cidade que lhe serviu de escola. Rastignac se transformou em um homem cuja personalidade é o resultado das diversas lições que recebeu e do me io que o acolheu. O drama se passa entre 1819 e 1820, e a sociedade da Restauração se distribui em territórios dentro de Paris. Uma pequena distância separa o fauboug Saint-Germain e a pensão Vauquer e, no entanto, existe um abismo entre eles. Ao criar personagens intermediários entre esses dois mundos, Balzac leva o leitor a ponderar sobre a segregação social e os critérios extremamente arbitrários sobre os quais ela repousa. Le père Goriot mostra justamente que, no momento em que as máscaras caem, mesmo em uma sociedade extremamente hierarquizada, a verdade funde dois mundos, a princípio separados por barreiras intransponíveis. Além disso, o romance faz um inventário de situações absolutamente primitivas que afloram o instinto “animal” inerente a todo ser humano. Todos os personagem balzaquianos são movidos pela paixão, uma paixão quase sempre desmedida, desregrada e que, levada a extremos, transforma-se em doença, vício, loucura. A narrativa gira em torno de dramas pessoais, da perniciosidade das relações humanas e das disputas pelo poder e pelo dinheiro, todos descritos de forma crua, mas, nem por isso, menos subjetiva. Enfim, Balzac se propõe a esmiuçar a sociologia das grandes cidades e convida o leitor a se reconhecer nesse percurso : Ainsi ferez-vous, vous qui tenez ce livre d’une main blanche, vous que vous enfoncez dans un moelleux fauteuil en vous disant: Peut-être ceci va-t-il m’amuser. Après avoir lu les secrètes infortunes du père Goriot, vous dînerez avec appétit en mettant votre insensibilité sur le compte de l’auteur, en le tachant d’exagération, en l’accusant de poésie. Ah! Sachez-le: ce drame n’est ni une fiction, ni un roman. “All is true”, il est si véritable que chacun peut en reconnaître les éléments chez soi, dans son coeur peutêtre.10 ( BALZAC, 1971, p. 22) 10 Assim fará o leitor, que segura este livro com as mãos limpas, leitor recostado numa poltrona macia dizendo a si mesmo : “ talvez isto me divirta”. Após ler os infortúnios secretos do pai Goriot, jantará com apetite, atribuindo sua insensibilidade ao autor, taxando-o de exagerado, acusando-o de poesia. Mas que fique 22 A tentativa da Literatura de compreender as engrenagens sociais, de diagnosticar a força motriz que conduz o homem para o bem ou para o mal, seria sentida ainda na geração seguinte. Além de se considerar o legítimo herdeiro e continuador do Realismo, Zola se propunha também a aperfeiçoar a estética Balzaquiana, fazendo com que a Literatura se pautasse pelos mesmos métodos cientificistas que marcaram o seu século. O Romance Experimental nasce, portanto, do desejo do escritor de atribuir à Literatura o mesmo status de ciência experimental que Claude Bernard acabara de conseguir para a Medicina. Com o objetivo de vivenciar, na prática, o seu novo “método” literário, ele tenta empregar todos os preceitos teóricos desenvolvidos no Romance Experimental para contar a saga dos RougonMacquart , um conjunto de vinte livros em que o escritor, a partir da árvore genealógica de uma família, narra os dramas e as paixões vivenciadas por seus descendentes, durante o Segundo Império. Através da trajetória dos Rougon-Macquart, Zola nos oferece ainda um quadro minucioso da sociedade francesa e das principais transformações econômicas, sociais, políticas e científicas que fizeram a história do século XIX. Assim como na obra de Balzac, seus romances se desenrolam tanto nas grandes cidades, quanto na província e no campo, ainda que Paris, um dos cenários preferidos do autor, tenha servido de palco a diversos romances. De acordo com os preceitos Naturalistas seguidos pelo escritor, a escolha do cenário era determinante, pois, como discípulo de Taine, Zola estava, ao eleger a paisagem, propondo-se a observar, por exemplo, a influência das modificações radicais empreendidas na capital francesa pelo então prefeito, o Barão de Haussmann, do florescimento do capitalismo, do nascimento da publicidade, das grandes especulações financeiras, da revolução comercial e do desenvolvimento dos grands magasins, nos personagens que introduz nesse universo. Enfim, foi o vasto contexto histórico do Segundo Império, que permitiu ao escritor, não só espelhar o mundo financeiro e a sociedade burguesa parisiense, mas também, retratar uma classe social até então esquecida pela Literatura francesa, a classe operária. Selecionado o palco para o desenrolar da história, faltava ainda, dirigir e claro: este drama não é ficção ao romance. All is true, é tão verdadeiro, que todos poderão reconhecer-lhe os elementos dentro de si, quem sabe em seus corações. 23 configurar a trama. Para tanto, Zola faz uso dos preceitos enunciados no Romance experimental, tentando negar, na construção da narrativa ficcional, a subjetividade e os elementos do imaginário no estudo e no relato literário dos sent imentos, dos desejos, das paixões, dos vícios e das virtudes, enfim, de todas as manifestações humanas. Ao excluir todas as explicações metafísicas do estudo do comportamento humano, o escritor sugere uma Literatura em que os mecanismos da paixão sejam analisados com o mesmo rigor metodológico e científico que, desde 1839, já era proposto pela pintura naturalista. Para os defensores dessa nova estética pictórica, a arte era a expressão da vida em todas as suas formas e graus e tinha, como objetivo único, reproduzir a natureza no máximo do seu poder e da sua intensidade, ou seja, ela era a verdade em equilíbrio com a ciência. No prefácio dos Rougon-Macquart, publicado pela primeira vez em 1871, Zola não só anuncia a história que pretende narrar, L’Histoire naturelle et sociale d’une famille sous le Seconde Empire, mas também , expõe o caráter científico do método empregado : Les Rougon-Macquart, le groupe, la famille que je me propose d’étudier a pour caractéristique le débordament des appétits, le large soulèvement de notre âge, qui se rue aux jouissances. Physiologiquement, ils sont la lente succession des accidents nerveux et sanguins qui se déclarent dans une race, à la suite d’une première lésion organique , et qui déterminent, selon les milieux, chez chacun des individus de cette race, les sentiments, les désirs, les passions, toutes les manifestations humaines, naturelles et instinctives, dont les produits prennent les noms convenus de vertus et de vices. Historiquement, ils partent du peuple, ils s’irradient dans toute la société contemporaine, ils montrent à toutes les situations, par cette impulsion essentiellement moderne que reçoivent les basses classes en marche à travers le corps social, et ils racontent ainsi le second Empire à l’aide de leurs drames individuels, du guet-apens du coup d’État à la trahison de Sedan. 11 (ZOLA, 1990, p.455). 11 Os Rougon-Macquart, o grupo, a família que me proponho a estudar tem por característica o transbordamento dos apetites, a imensa agitação do nosso tempo, que se entrega aos prazeres. Fisiologicamente, eles são a lenta sucessão dos acidentes nervosos e sangüíneos que se pronunciam em uma raça, depois de uma primeira lesão orgânica, e que determinam, de acordo com o meio, em cada um dos indivíduos dessa raça, os sentimentos, os desejos, as paixões, todas as manifestações humanas, naturais e instintivas, cujos produtos adquirem os nomes convenientes de virtudes e de vícios. Historicamente, eles partem do povo, irradiam-se por toda a sociedade contemporânea, expõem-se a todas as situações, por esta impulsão essencialmente moderna que recebem as classes baixas em marcha através do corpo social, e assim eles narram o Segundo Império com a ajuda de seus dramas individuais, da emboscada do golpe de Estado à traição de Sedan. (tradução nossa) 24 A intenção exposta no prefácio des Rougon-Macquart reforça o método e a definição do papel do escritor anunciados por Zola no Romance experimental: Le romancier expérimentateur est donc celui qui accepte les faits prouvés, qui montre dans l’homme et dans la société les mécanismes des phénomènes dont la science est maîtresse, et qui ne fait intervir son sentiment personnel que dans les phénomènes dont el détermisme n’est point encore fixé, en tâchant de contrôler le plus qu’il le paurra ce sentiment personnel, cette idée “a priori” , par l’observation et par l’expérience.12 (ZOLA, 1962, p.303). Entretanto, ao definir o papel do escritor naturalista, o próprio Zola admite a interferência do sentimento pessoal do autor nos fenômenos cujo determinismo ainda não está, de forma alguma, fixado e propõe ao romancista que ele controle “o mais que puder” o sentimento pessoal, reconhecendo, assim, a existência de limites nesse controle. O décimo primeiro volume da vasta coleção Les Rougon Macquart, Au Bonheur des Dames, foi publicado pela primeira vez em 1883. Entretanto, a história se passa entre 1864 e 1869, ou seja, tem como cenário uma Paris vítima de uma imigração maciça que é responsável pela quase duplicação da população em menos de meio século. Esses novos imigrantes são, na grande maioria, vítimas do êxodo rural provocado pela revolução industrial, embora um pequeno número entre eles chegue à capital francesa trazendo idéias novas, dinheiro e muita ambição. Assim como Octave Mouret, protagonista de Au Bonheur des Dames, durante o Segundo Império, os fundadores dos grands magasins franceses faziam parte desta pequena elite de imigrantes. Mas, se por um lado existia em Paris uma burguesia próspera, ávida de luxo e de opulência e pronta a ser seduzida pelos apelos mercadológicos, por outro, a cidade, que ainda guardava traços medievais, não estava preparada para receber tamanho fluxo populacional, o que a tornou também palco da 12 O romancista experimentador é, portanto, aquele que aceita os fatos provados, que mostra, no homem e na sociedade, o mecanismo dos fenômenos que a ciência domina, e que faz o seu sentimento pessoal intervir apenas nos fenômenos cujo determinismo ainda não está de forma alguma fixado, procurando controlar o mais que puder este sentimento pessoal, esta idéia a priori, pela observação e pela experiência. 25 miséria, da fome e dos vícios de todos aqueles que foram naturalmente excluídos do mercado de trabalho, pelas rígidas leis que regiam o sistema capitalista. Assim, a velha capital, que em tão pouco tempo assistiu a uma completa transformação de suas estruturas sociais, também deveria se modificar para se adaptar a essa nova realidade. Pelas mãos do Barão de Haussmann, a Paris romântica se moderniza, ganha imensos conjuntos arquitetônicos, as antigas ruelas estreitas são substituídas por grandes avenidas. O centro e a parte oeste da cidade se transformam em elegantes zonas residenciais, onde a elite burguesa se fixa, empurrando as classes operárias para a periferia da cidade. As modificações são tantas que Paris se tornará o ícone de um século de progresso. Definido o contexto no qual os personagens serão inseridos e observados, Zola convida o leitor a acompanhar o nascimento e a evolução de uma grande loja de departamentos e as transformações sociais das quais ele é, ao mesmo tempo, símbolo e agente. Au Bonheur des Dames é a primeira obra de Zola que nasce de uma reflexão sobre a evolução das sociedades e traduz, portanto, as idéias desenvolvidas pelo escritor no Romance Experimental. Durante toda a narrativa, o autor tenta confirmar sua convicção de que o universo ficcional não deve obedecer à imaginação do romancista e às suas paixões, mas deve ser determinado por leis e princípios científicos. O universo ficcional escolhido por Zola é anunciado no título do livro; Au Bonheur des Dames é o nome de uma grande loja de departamentos parisiense, cujo processo de ascensão será narrado pelo escritor. Entre as leis e os princípios que ele aplica a essa máquina, como se refere ao magasin, estão a lei de Darwin sobre a origem das espécies, os princípios filosóficos de Hippolyte Taine e alguns princípios do capitalismo, como o liberalismo econômico. O grand magasin, em toda a sua escala hierárquica, obedece ao princípio desumano e eficaz da concorrência. Mouret aplica ao Bonheur des Dames um sistema em que cada vendedor tem um percentual do lucro de acordo com as suas vendas, o que transforma a loja em um campo de batalha e dá origem a uma guerra tão dissimulada e perniciosa quanto o próprio sistema que a engendra. Em nome do bom funcionamento da máquina, os apetites humanos afloram e os mais fortes começam a devorar os mais fracos. Exatamente como constatou o naturalista inglês Charles Darwin, a luta pela sobrevivência será determinada por uma seleção natural, na qual só serão preservados os mais aptos ou melhores adaptados. Zola observa e descreve essa relação seguindo a doutrina filosófica de Taine que se baseava na existência de três fatores : 26 raça, meio e momento, ou seja, hereditariedade, ambiente e momento histórico, resultando na faculté maitrêsse, que determina o caráter do escritor e suas obras. Dentre as inúmeras considerações a serem feitas sobre a ambição das narrativas realista e naturalista de incorporar os preceitos cientificos e historiográficos, podemos começar refletindo sobre o fato de que, ao propor a descrição literária de uma realidade objetiva, a partir da aparência dos fenômenos, o Positivismo e o Determinismo estariam negligenciando a necessidade da expressão do não imediatamente perceptível e, por conseguinte, negam à Literatura uma de suas funções primordiais, a de expressar a essencialidade dos fenômenos. Afinal, como ela poderia, a partir da descrição do aparente, registrar o essencial do objeto estudado e não descuidar das contradições sociais? Ao opor ficção e realidade, caracterizando a ficção justamente pela eliminação dos atributos que definem a realidade, não estariam essas escolas excluindo da Literatura os elementos que, embora existentes, não possuem o caráter de realidade? Também é passível de questionamento se, ao contar uma história, o escritor não faz uso necessariamente de uma herança cultural e se essa herança não é essencialmente subjetiva, pois, mesmo quando ambiciona deixar os personagens terem voz própria, seja nos textos históricos, seja nos literários, existe a mão de um narrador configurando a fala e as ações desses personagens, configuração essa, feita a partir do horizonte de expectativa do autor. Finalmente, quando um escritor seleciona os elementos de sua narrativa e estabelece uma relação entre eles, ele dá a esses elementos uma ordem semântica proveniente de uma visão particular da realidade. A narrativa, histórica ou literária, é, conseqüentemente, configurada a partir do que foi selecionado pelo narrador e, assim sendo, a operação literária ambicionada pelas escolas Realista e Naturalista não teria como escapar da subjetividade do escritor que, ao combinar uma estrutura específica, dá o significado que deseja a eventos históricos específicos. Indo ainda mais longe, poderíamos acompanhar algumas reflexões de Wolfgang Iser, sobre de que forma o Realismo e Naturalismo reproduziriam literariamente a realidade, impondo um veto à ficção. Para o teórico, o que caracteriza a Literatura é a articulação organizada do fictício e do imaginário e, dessa articulação, a Literatura emerge e, assim, diferencia-se 27 de outros meios. Apesar de considerar que hoje a distinção entre realidade e ficção já faça parte do nosso “saber tácito”, ou seja, do nosso repertório de certezas, Iser afirma que ainda existe espaço para se discutir até que ponto os textos “ficcionados” são de fato ficcionais e os que assim não se dizem são de fato isentos de ficção. O que ele propõe é que a relação dupla da ficção com a realidade seja substituída por uma relação tríplice: o real, o fictício e o imaginário. Isso porque, como afirma, o texto ficcional contém elementos do real sem que se esgote na descrição desse real e, por isso o seu componente fictício não tem caráter de uma finalidade em si mesma, mas é, fingindo, a preparação de um imaginário. A partir daí, podemos concluir que o fictício é uma decisão, enquanto que o imaginário é uma conseqüência. Mas, se é assim, fica a questão que norteará nossa pesquisa: até que ponto pode o autor controlar os efeitos de suas decisões? 28 CAPÍTULO I 3 ENTRE A MODERNIDADE E A MODERNIZAÇÃO: A TRILHA LITERÁRIA DE BALZAC E ZOLA Ao incorporar ao universo literário os princípios positivistas que, a partir do Iluminismo, passam a nortear quase todos os campos do saber, o Realismo e o Naturalismo conseguiram impor novos paradigmas à Literatura e modificar radicalmente a construção da narrativa romanesca. Neste capítulo, pretendemos analisar as modificações estruturais sofridas pelo romance, a partir dos esforços empreendidos por Balzac e Zola para alcançar um utópico controle do imaginário, além de refletir sobre os elementos que inserem esses dois escritores dentro da modernidade literária. Para tanto, partiremos do conceito de modernidade estabelecido por Charles Baudelaire em Le peintre de la vie moderne: Il est beaucoup plus commmode de déclarer que tout est absolument laid dans l’habit d’une époque, que de s’appliquer à en extraire la beauté mystérieuse qui y peut être contenue, si minime ou si légére qu’elle soit. La modernité, c’ est le transitoire, le fugitf, le contingent, la moitié de l’art, dont, l’autre moitié est l’éternel et l’imuable. Il y a eu une modernité pour chaque peintre ancien; la plupart des beaux portraits qui nous restent des temps antérieures sont revêtus des costumes de leur époque. Ils sont parfaitement harmonieux, par ce que le costume, la coiffure e même le geste, le regard et le sourire( chaque époque a son port, son regard et son sourire) forment un tout d’une compète vitalité.1 (BAUDELAIRE, 1968, p.533) ( Grifo nosso) 1 É muito mais cômodo declarar que tudo é absolutamente feio na indumentária de uma época do que se dedicar a extrair a beleza misteriosa que pode estar contida nela, por menor ou mais leve que ela seja. A modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é o eterno e o imutável. Houve uma modernidade para cada pintor antigo; a maioria dos belos quadros que nos restam de tempos anteriores é revestida dos trajes da sua época. Eles são perfeitamente harmoniosos, porque o traje, o penteado e mesmo o gesto, o olhar e o sorriso (cada época tem o seu porte, seu olhar e seu sorriso) formam um todo de uma completa vitalidade.(traduçao nossa) 29 Conduzidos por essa definição e acompanhando as reflexões de Marshall Berman no livro Tudo o que é Sólido Desmancha no Ar, podemos concluir que, para Baudelaire, o pintor (ou romancista, ou filósofo) da vida moderna é aquele que retrata “sua moda, sua moral e suas emoções”, no instante em que vive e com todas as sugestões de eternidade que ele contém. Através dessa concepção da modernidade, o poeta irá romper com as antiquadas fixações clássicas que, então, dominavam a cultura francesa e introduzir um novo conceito de moderno. Para ele, todos os mestres antigos tiveram a sua própria modernidade, o que faz de todos os tempos, em suas épocas, “tempos modernos”. O conceito baudelairiano de modernidade nasce a partir da visão anticonvencional do poeta de uma sociedade na qual beleza e miséria dividiam o mesmo espaço. Em meio ao turbilhão de mudanças que marca o século XIX, o homem assiste, perplexo, a hegemonias políticas e geográficas, de classe e nacionalidade serem contestadas; a valores e conceitos ideológicos serem anulados. Em contrapartida, o desenvolvimento científico e tecnológico, o progresso e a modernização são uma promessa de esperança, alegria, crescimento e prosperidade. Assim, enquanto uma nova sociedade é gerada, a sociedade capitalista, os indivíduos experimentam as angústias de viverem em um universo ainda desprovido de valores sólidos. E esse novo mundo que se desvela – ambíguo e paradoxal – provoca no ser humano um misto de estupefação e horror, de assombro e melancolia, enfim, uma sensação de mal-estar que perpetuaria durante quase cem anos de história. Durante a primeira metade do século XIX, a França, assim como os demais países europeus, seria surpreendida por um desenvolvimento científico e industrial sem precedentes. No continente do capital, Paris desponta como uma metrópole proeminente, onde, em 1826, é inaugurada a Bolsa de Valores e, em 1828, começam a circular os primeiros ônibus puxados a cavalo. A utilização do vapor e da eletricidade, como fontes de energia, também data desse período que se caracteriza, sobretudo, por um processo de transição econômica. A Revolução Industrial propicia a passagem de uma economia agrária e artesanal, fechada em células praticamente autônomas, para um sistema econômico mais 30 ágil, aberto, dominado pela indústria e pelo capital. No campo, a agricultura deixa de ser um meio de subsistência e passa a visar à obtenção de lucro, fazendo com que um número enorme de trabalhadores rurais, que não dispunham de meios para investir na terra, começassem a deixar o campo e a buscar trabalho nas cidades. Eles iriam constituir uma nova classe de operários que seria absorvida, principalmente, pelas fábricas e pelas usinas. O aumento da circulação entre o interior e a capital também estimula a ampliação da rede ferroviária, que seria financiada, em parte pelo estado e, em parte, por um sistema bancário, mais moderno, dinâmico e compatível com o advento do capitalismo. Enfim, nasce uma nova ordem social que, pautada pelos princípios do liberalismo econômico, não só provoca a ruína de todas as estruturas e valores tidos como sólidos até então, mas também, engendra outra estratificação social. De um lado, ela assegura à burguesia, proprietária do capital, o papel de nova classe dominante e, de outro, atrai para as cidades um contingente enorme de trabalhadores que, vivendo em condições de higiene e salubridade precárias, com salários extremamente baixos e sem nenhuma lei ou garantia trabalhista, corporificavam a massa de operários que, posteriormente, seria chamada por Marx de classe proletária. Assim que a nova ordem se estabelece, filósofos e pensadores começam a idealizar formas mais humanas de reorganização política e social. Entre eles, o teórico Saint-Simon, cuja filosofia, que na época teve uma enorme aceitação entre os intelectuais, daria origem ao socialismo utópico. Saint-Simon acreditava que a sociedade de então havia sido organizada de forma anárquica e injusta. Por um lado, ela tinha alçado ao poder as classes “inúteis” e reduzido à condição de subalternos os verdadeiros produtores e, por outro, baseava -se na exploração do homem pelo homem. Diante disso, a solução imaginada por ele, para humanizar o novo quadro social, era a criação de um estado industrial, no qual as forças produtivas fossem administradas coletivamente pelas elites detentoras do saber. Ou seja, um estado em que o governo caberia a filósofos, artistas e cientistas e a execução dos projetos elaborados por eles, aos trabalhadores. Na nova organização imaginada pelo filósofo francês também não haveria lugar para a propriedade privada, muito embora ela não fosse fundada sobre os princípios de liberdade e igualdade, mas sobre os de autoridade e hierarquia. Em contrapartida, apesar de defender concepções sociais antidemocráticas e antiigualitárias, Saint-Simon foi o primeiro a perceber que o conflito de classes estava 31 relacionado com a economia e que o futuro da indústria estava nas mãos dos trabalhadores, desde, é claro, que eles fossem guiados por alguém. Entre os discípulos de Saint-Simon, um dos mais entusiastas foi o também filósofo Augusto Comte, criador do Positivismo. A doutrina – largamente difundida em toda a Europa, devido ao progresso das ciências naturais, e uma das principais correntes filosóficas desse período – foi sistematizada por Comte no início do século e baseia-se na “ lei dos três estados”. De acordo com essa lei, a mente humana, na busca pela compreensão dos fenômenos naturais, dá, inicialmente, uma explicação teológica, depois, uma explicação metafísica e, finalmente, a explicação positiva, que propõe o abandono da busca das causas pela observação objetiva dos fenômenos, visando à descoberta de suas leis. Comte também elaborou uma classificação das ciências que ia da mais geral – a matemática – à mais específica, a física social, uma ciência nova, criada por ele – que propunha a observação científica dos fatos sociais – e que, posteriormente, receberia o nome de sociologia. Ao longo do século XIX, tanto a literatura quanto a historiografia absorvem preceitos positivistas e passam a considerar as ciências experimentais como o modelo por excelência do conhecimento humano, em detrimento das especulações metafísicas ou teológicas. Paralelamente a essa revolução no campo da filosofia, as teorias evolucionistas de Lamarck e Saint-Hilaire iriam deflagrar uma batalha ideológica sem precedentes, no âmbito das ciências naturais. Em 1749, o filósofo e naturalista francês, Georges Louis Leclerc, conhecido como Conde de Buffon, publicou o primeiro dos 44 volumes de Histoire naturelle, générale et particulière, obra que traz a primeira versão naturalista da história da terra, incluindo uma completa descrição de sua mineralogia, botânica e zoolo gia e antecipa algumas idéias evolutivas que, posteriormente, seriam defendidas por Lamarck e Darwin. No início do século, Jean-Baptiste Lamarck, naturalista francês considerado o precursor do evolucionismo, iria defender a teoria de que os seres vivos teriam se modificado ao longo do tempo, em decorrência da ação do meio sobre o comportamento e sobre os órgãos. Lamarck acreditava, também, que as plantas e os animais inferiores sofriam uma ação mais direta do meio, ao passo que nos seres vivos que apresentavam um sistema nervoso mais complexo, a vontade (sentiment intérieur) e a inteligência eram os principais fatores 32 adaptativos. Assim, para o naturalista, o meio agia sobre a vontade e a inteligência, através das necessidades que determinava e das reações suscitadas por tais necessidades. A base da argumentação de Lamarck era a suposição de que as modificações somáticas (que não distinguia das genéticas) de um organismo seriam hereditárias. Além disso, ele foi o primeiro a afirmar que a evolução é regida por leis e o primeiro a enunciá- las. De 1800 a 1806, nas aulas inaugurais dos cursos que ministrava no Museu de Paris, Lamarck expôs as idéias que, em 1809, foram publicadas no livro Philosophie zoologique (Filosofia zoológica) e desenvolvidas na obra Histoire naturelle des animaux sans vertèbres (História natural dos animais invertebrados), publicada entre 1815 e 1822. No entanto, a defesa da teoria evolucionista o levaria a ser duramente criticado pelo também biólogo e naturalista, Georges Cuvier, defensor do fixismo, teoria segundo a qual as espécies vivas permaneceram as mesmas desde a criação. Após a morte de Lamarck, Geoffroy Saint-Hilaire, seu sucessor na Academia de Ciências de Paris, iniciaria um violento debate ideológico com Cuvier. Em 1795, Saint-Hilaire publicou o livro Histoire des Makis, ou singes de Madagascar (História dos maquis ou macacos de Madagascar), em que expressava pela primeira vez suas idéias sobre a unidade da composição orgânica e, entre 1818 e 1822, lançou sua obra principal, Philosophie anatomique (Filosofia anatômica), na qual defendia a idéia do equilíbrio dos órgãos, afirmando que o crescimento ou diminuição de um prejudica ou beneficia os outros. Ao tentar aplicar essa teoria aos invertebrados, Saint-Hilaire iniciou a violenta polêmica que resultou no debate travado com Cuvier, em 1830, na Academia de Ciências, e que mobilizou toda a comunidade científica. A complexidade das transformações vivenciadas pela sociedade francesa, na primeira metade do século XIX, evidencia, portanto, o quão ousada era a proposta balzaquiana de criar uma literatura que, assim como a história, fosse o espelho de um universo em plena mutação e que, para tanto, incorporasse todos os princípios positivistas e cientificistas que marcaram a sua geração. No entanto, a ousadia de se debruçar sobre esse projeto visionário – pintar todas as nuances da sociedade francesa da Restauração à Monarquia de Julho – acabou levando o romancista a criar uma estética para a sua obra que a insere, plenamente, 33 dentro do conceito baudelairiano de modernidade. Ao afirmar que “a modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é o eterno e imutável,” Baudelaire manifesta que o artista moderno deve se dedicar menos a reproduzir o que havia de glorioso no passado e mais a desvelar o presente para a posteridade. Balzac, por sua vez, é o precursor de uma literatura cuja essência expressa o que há de transitório, fugidio e contingente na sua geração e são justamente esses elementos que fazem com que a Comédia Humana consiga traduzir, de forma magistral, a ânsia baudelairiana de ver em toda e qualquer obra de arte a marca de seu tempo : En un mot, pour que toute modernité soit digne de devenir antiquité, il faut que la beauté mystérieuse que la vie humaine y met involontairement en ait été extraite.[...] j’ai dit que chaque époque avait son port, son regard et son gest. C´est surtout dans une vaste galerie de portraits (celle de Versailles, par exemple) que cette proposition devient facile à verifier. Mas elle peut s’étendre plus loin encore. Dans l’unité qui s’appele nation, les professions, les castes, les siècles introduisent la variété, nonseulement dans les gestes et les manières, mais aussi dans la forme positive du visage.2 (BAUDELAIRE, 1968, p.554) Malheur à celui qui étudie dans l’antique autre chose que l’art pur, la logique, la méthode général! Pour s’y trop plonger, il perd la mémoire du présent; il abdique la valeur et les privilèges fournis par la circonstance; car presque toute notre originalité vient de l’estampille que le temps imprime à nos sensations. 3 ( BAUDELAIRE, 1968, p.554) Ao esboçar suas intenções no Prefácio da Comédia Humana, Balzac se mostra consciente do labirinto que teria que atravessar para fazer da literatura o retrato de todos os anseios, conflitos, dramas, angústias e glórias de sua geração mas, mesmo pressentindo o quão árduo seria o seu caminho, ele jamais poderia supor que, ao mergulhar a literatura no universo científico e historiográfico, faze ndo com que dela emergisse um profundo estudo 2 Em uma palavra, para que toda modernidade seja digna de se tornar antiguidade, é necessário que a beleza misteriosa que a vida coloca nela involuntariamente tenha sido dela extraída.[...] eu disse que cada época tem o seu porte, seu olhar, seu gesto. É sobretudo em uma vasta galeria de retratos (a de Versalhes, por exemplo) que esta proposição se torna fácil de verificar. Mas ela pode se estender mais longe ainda. Na unidade que se chama nação, as profissões, as castas, os séculos introduzem a variedade, não somente nos gestos e nas maneiras, mas também na forma positiva da face.(tradução nossa) 3 Desgraçado aquele que estuda no antigo outra coisa que não seja a arte pura, a lógica, o método geral! De tanto mergulhar no antigo, ele perde a memória do presente; ele abdica do valor e dos privilégios fornecidos pelas circunstâncias; porque quase toda a nossa originalidade vem do timbre que o tempo imprime em nossas sensações. (tradução nossa) 34 do comportamento social, ele estava também reinventando o romance, ou melhor, inventando o romance moderno. No entanto, ao entrelaçar suas tramas e enredos a pressupostos extraídos do mundo da ciência, Balzac deu início a uma viagem literária tão revolucionária quanto os preceitos científicos que ele tentava absorver: L'animal est un principe qui prend sa forme extérieure, ou, pour parler plus exactement, les différences de sa forme, dans les milieux où il est appelé à se développer. Les Espèces Zoologiques résultent de ces différences. La proclamation et le soutien de ce système, en harmonie d'ailleurs avec les idées que nous nous faisons de la puissance divine, sera l'éternel honneur de Geoffroi Saint-Hilaire, le vainqueur de Cuvier sur ce point de la haute science, et dont le triomphe a été salué par le dernier article qu'écrivit le grand Goethe. Pénétré de ce système bien avant les débats auxquels il a donné lieu, je vis que, sous ce rapport, la Société ressemblait à la Nature. La Société ne fait-elle pas de l'homme, suivant les milieux où son action se déploie, autant d'hommes différents qu'il y a de variétés en zoologie? Les différences entre un soldat, un ouvrier, un administrateur, un avocat, un oisif, un savant, un homme d'état, un commerçant, un marin, un poète, un pauvre, un prêtre, sont, quoique plus difficiles à saisir, aussi considérables que celles qui distinguent le loup, le lion, l'âne, le corbeau, le requin, le veau marin, la brebis, etc. Il a donc existé, il existera donc de tout temps des Espèces Sociales comme il y a des Espèces Zoologiques. Si Buffon a fait un magnifique ouvrage en essayant de représenter dans un livre l'ensemble de la zoologie, n'y avait -il pas une oeuvre de ce genre à faire pour la Société? Mais la Nature a posé, pour les variétés animales, des bornes entre lesquelles la Société ne devait pas se tenir. 4 (BALZAC, 1964, p.191) 4 O animal é um princípio que adquire a sua forma exterior, ou, para falar mais exatamente, as diferenças da sua forma, nos meios em que ele é chamado a se desenvolver. As espécies zoológicas resultam dessas diferenças. A proclamação e a sustentação deste sistema, em harmonia, aliás, com as idéias que fazemos da força divina, será a eterna honra de Geoffroi Saint-Hilaire, o vencedor de Cuvier neste ponto da alta ciência, e cujo triunfo foi saudado no último artigo escrito pelo grande Goethe. Penetrado por esse sistema bem antes dos grandes debates aos quais ele deu lugar, eu vi que nesse aspecto, a sociedade se assemelhava à natureza. A sociedade não faz do homem, de acordo com os meios em que suas ações se desdobram, tantos homens diferentes quanto existem variedades zoológicas? As diferenças entre um soldado, um operário, um administrador, um advogado, um desocupado, um sábio, um estadista, um comerciante, um marinheiro, um poeta, um pobre, um padre são, ainda que mais difíceis de apreender, tão consideráveis quanto aquelas que distinguem o lobo, o leão, o asno, o corvo, o tubarão, a foca, a ovelha, etc. Portanto, existiu e existirá em todos os tempos Espécies Sociais como existem Espécies Zoológicas. Se Buffon fez uma obra magnífica ao tentar representar em um livro o conjunto da zoologia, não haveria uma obra deste mesmo gênero a ser feita para a sociedade ? Mas a natureza pôs, para as variedades animais, limites aos quais a sociedade não deveria se ater. (tradução nossa) 35 Já os conteúdos historiográfico e sociológico da Comédia Humana – evidentes na forma enciclopédica como ela é organizada e na tentativa genuína de Balzac de que ela incorporasse a soma de todos os tipos humanos que estivessem, de uma forma ou de outra, inseridos na história do seu tempo – alçam o romancista a uma nova categoria, não a de cientista, mas a de gênio moderno da arte de narrar : Ce n'était pas une petite tâche que de peindre les deux ou trois mille figures saillantes d'une époque, car telle est, en définitif, la somme des types que présente chaque génération et que La Comédie humaine comportera. Ce nombre de figures, de caractères, cette multitude d'existences exigeaient des cadres, et, qu'on me pardonne cette expression, des galeries. De là, les divisions si naturelles, déjà connues, de mon ouvrage en Scènes de la vie privée, de province, parisienne, politique, militaire et de campagne. Dans ces six livres sont classées toutes les Etudes de moeurs qui forment l'histoire générale de la Société, la collection de tous ses faits et gestes, eussent dit nos ancêtres. Ces six livres répondent d'ailleurs à des idées générales. Chacun d'eux a son sens, sa signification, et formule une époque de la vie humaine. Je répéterai là, mais succinctement, ce qu'écrivit, après s'être enquis de mon plan, Félix Davin, jeune talent ravi aux lettres par une mort prématurée. Les Scènes de la vie privée représentent l'enfance, l'adolescence et leurs fautes, comme les Scènes de la vie de province représentent l'âge des passions, des calculs, des intérêts et de l'ambition. Puis les Scènes de la vie parisienne offrent le tableau des goûts, des vices et de toutes les choses effrénées qu'excitent les moeurs particulières aux capitales où se rencontrent à la fois l'extrême bien et l'extrême mal. Chacune de ces trois parties a sa couleur locale: Paris et la province, cette antithèse sociale a fourni ses immenses ressources. Non-seulement les hommes, mais encore les événements principaux de la vie, se formulent par des types. Il y a des situations qui se représentent dans toutes les existences, des phases typiques, et c'est là l'une des exactitudes que j'ai le plus cherchées. J'ai tâché de donner une idée des différentes contrées de notre beau pays. Mon ouvrage a sa géographie comme il a sa généalogie et ses familles, ses lieux et ses choses, ses personnes et ses faits; comme il a son armorial, ses nobles et ses bourgeois, ses artisans et ses paysans, ses politiques et ses dandies, son armée, tout son monde enfin! Après avoir peint dans ces trois livres la vie sociale, il restait à montrer les existences d'exception qui résument les intérêts de plusieurs ou de tous, qui sont en quelque sorte hors la loi commune: de là les Scènes de la vie politique . Cette vaste peinture de la société finie et achevée, ne fallait-il pas la montrer dans son état le plus violent, se portant hors de chez elle, soit pour la défense, soit pour la conquête? De là les Scènes de la vie militaire, la portion la moins complète encore de mon ouvrage, mais dont la place sera laissée dans cette édition, afin qu'elle en fasse partie quand je l'aurai terminée. Enfin, les Scènes de la vie de campagne sont en quelque sorte le soir de cette longue journée, s'il m'est permis de nommer ainsi le drame social. Dans ce livre, se trouvent les plus purs caractères et l'application des grands principes d'ordre, de politique, de moralité. Telle est l'assise pleine de 36 figures, pleine de comédies et de tragédies sur laquelle s'élèvent les Etudes philosophiques, Seconde Partie de l'ouvrage, où le moyen social de tous les effets se trouve démontré, où les ravages de la pensée sont peints, sentiment à sentiment, et dont le premier ouvrage, La Peau de chagrin, relie en quelque sorte les Etudes de moeurs aux Etudes philosophiques par l'anneau d'une fantaisie presque orientale où la Vie elle -même est peinte aux prises avec le Désir, principe de toute Passion. Au-dessus, se trouveront les Etudes analytiques, desquelles je ne dirai rien, car il n'en a été publié qu'une seule, La Physiologie du mariage . D'ici à quelque temps, je dois donner deux autres ouvrages de ce genre. D'abord la Pathologie de la vie sociale, puis l'Anatomie des corps enseignants et la Monographie de la vertu.5 (BALZAC, 1964, p.203) 5 Não é uma tarefa pequena a de pintar as duas ou três mil figuras representativas de uma época, porque essa é, definitivamente, a soma dos tipos que cada geração apresenta e que a Comédia Humana comportará. Esse grande número de figuras, de caracteres, essa multidão de existências, exigiriam quadros, e, que me perdoem a expressão, galerias. Daí , as divisões tão naturais, já conhecidas, da minha obra em Cenas da vida privada, de província, parisiense, política, militar e do campo. Nesses seis livros estão classificados todos os Estudos dos costumes que formam a história geral da sociedade, a coleção de todos os seus fatos e seus gestos, teriam dito nossos ancestrais. Cada um deles tem o seu sentido, sua significação, e formula uma época da vida humana. Eu repetirei aqui, mais sucintamente, aquilo que escreveu, após ter indagado sobre o meu plano, Félix Davin, jovem talento arrebatado das letras por uma morte prematura. As Cenas da vida privada representam a infância, a adolescência e suas faltas, como as Cenas da vida de província representam a idade das paixões, dos cálculos, dos interesses e da ambição. Em seguida, as Cenas da vida parisiense oferecem o quadro dos gostos, dos vícios e de todas as coisas desenfreadas que excitam os costumes particulares das capitais onde se encontram, ao mesmo tempo, o extremo do bem e o extremo do mal. Cada uma dessas três partes tem a sua cor local : Paris e a província, esta antítese social forneceu seus imensos recursos. Não somente os homens, mas também, os eventos principais da vida, formulam-se por tipos. Existem situações que se apresentam em todas as existências, fases típicas, e ai está uma das exatidões que eu mais procurei. Esforcei-me para dar uma idéia das diferentes regiões de nosso belo país. Minha obra tem a sua geografia, como tem a sua genealogia e famílias, lugares e coisas, pessoas e fatos; como tem seu armorial, seus nobres e seus burgueses, artesões e camponeses, políticos e dândis, exército, todo o seu mundo enfim! Após ter pintado nesses três livros a vida social, restava mostrar as existências de exceção que resumem os interesses de muitos ou de todos que estão de alguma forma fora da lei comum : daí as Cenas da vida política. Esta vasta pintura da sociedade terminada e perfeita, não seria necessário mostrá-la no seu estado mais violento; dirigindo-se para fora da própria casa, seja para a defesa, seja para a conquista ? Daí, as Cenas da vida militar, a porção menos completa da minha obra até agora, mas cujo lugar será deixado nessa edição a fim de que faça parte dela quando eu a tiver terminado. Enfim, as Cenas da vida do campo são de alguma forma o crepúsculo dessa longa jornada, se me é permitido chamar assim o drama social. Neste livro se encontram os mais puros caracteres e a aplicação dos grandes princípios de ordem, de política e de moralidade. Tal é a base plena de figuras, comédias e tragédias sobre a qual se elevam os Estudos filosóficos, segunda parte da obra, na qual o meio social de todos os efeitos se encontra demonstrado, na qual os danos da mente são pintados, sentimento a sentimento e, cuja primeira obra, La Peau de Chagrin, une de alguma forma os Estudos dos Costumes aos Estudos filosóficos através do anel de uma fantasia quase oriental na qual a própria vida é pintada lutando contra o desejo, princípio de toda paixão. Acima, se encontram os Estudos analíticos, sobre os quais não direi nada, porque deles somente uma obra foi publicada, La Physiologie du Mariage. Daqui a algum tempo, devo dar duas outras obras do mesmo gênero. Primeiro a Pathologie de la Vie Sociale , e em seguida L´Anatomie des Corps Enseignants e Monographie de la Vertu.(tradução nossa) 37 Em 1880, quase quarenta anos após a publicação do prefácio da Comédia Humana, Zola, seguindo a trilha deixada por Balzac, publica o Romance experimental e se lança no desafio de introduzir na Literatura a esperança, moderna por excelência, do milagre científico. Em uma sociedade ingênua o suficiente para acreditar no poder sobrenatural da ciência, um poder capaz, até mesmo, de apurar e de regenerar a espécie humana, Zola se propõe a transformar a literatura em um grande laboratório no qual a mecânica do comportamento humano, que vigorava naquele momento histórico, – a segunda metade do século XIX – pudesse ser observada e experimentada, fornecendo aos espectadores condições para detectar o órgão doentio, a fim de saná- lo ou extirpá- lo, conforme a sua conveniência. Embora, ao longo da primeira metade do século XIX, Paris tenha se tornado o centro – em processo de industrialização – de um império colonial, até início do Segundo Império, a cidade ainda guardava a mesma estrutura arcaica remanescente da Idade Média. Em 1848, Napoleão III é eleito Presidente da República e, quatro anos depois, após um golpe de estado, torna-se imperador. Sensível às questões sociais; impressionado pelas teorias higienistas que foram largamente difundidas, principalmente, depois que Pasteur conseguiu provar que as bactérias e os micróbios eram responsáveis por diversas doenças humanas; temeroso de que a estrutura medieval da cidade facilitasse a organização de barricadas e permitissem novas insurreições populares, como as que ocorreram de 1830 a 1848 e, finalmente, ansioso por transformar Paris em um ícone do seu império, Napoleão não mediria esforços para modernizar a capital francesa. No fim dos anos 50 e ao longo de toda a década seguinte, Georges Eugène Haussman, prefeito de Paris, investido no cargo por um mandato imperial, iria iniciar um complexo projeto de reurbanização da velha cidade medieval, transformando-a em um canteiro de obras no qual uma estranha harmonia orquestrava a insólita convivência entre a beleza e o caos. De acordo com Marshall Berman em Tudo o que é Sólido Desmancha no Ar, para implantar uma vasta rede de bulevares no coração da cidade, Napoleão e Haussmann conceberam novas vias e artérias que deveriam funcionar como um sistema circulatório, criando uma estrutura altamente revolucionária para a vida urbana do século XIX. O amplo sistema de planejamento urbano de Haussman incluía ainda mercados centrais, pontes, 38 esgotos, fornecimento de água, a Ópera e outros monumentos culturais, além de uma grande rede de parques. Um empreendimento quixotesco que pôs abaixo centenas de edifícios, deslocou milhares de pessoas e destruiu inteiramente bairros seculares, mas que também criou novas bases econômicas, sociais e estéticas para a cidade e contribuiu para transformá - la em um espetáculo particularmente sedutor, em uma festa para os olhos e para os sentidos. Paradoxalmente, toda essa modernização teria também um efeito extremamente cruel. À medida que a cidade torna-se mais próspera e luminosa, a população pobre – composta, sobretudo, pela enorme massa de trabalhadores que havia emigrado para a cidade, atraída pelas fábricas e pelas usinas – foi progressivamente sendo desalojada e expulsa para a periferia, a fim de abrir “espaços livres” e abolir a escuridão e o congestionamento que reinaram em Paris até então. Finalmente, o centro, a parte nobre de cidade, torna-se o local onde vive e passeia o banqueiro, o dândi, as mulheres de luxo; onde se realizam as exposições universais da indústria e do comércio e onde, no Camp-de-Mars, acontecem os desfiles militares e as corridas de cavalo. A população pobre teria que contentar-se com os arredores, com a Paris feia e distante dos olhares românticos. Costa Lima nos lembra, em Mímesis e Modernidade, que os contingentes de trabalhadores que se deslocaram para Paris desde o início do século XIX foram capazes de sustentar as lutas de classe do período, prolongadas na Comuna de 1870, e de suscitar o pensamento socialista utópico (tema que seria profundamente explorado na obra de Zola), embora o romantismo ideológico dessas classes tornasse seus esforços insuficientes para quebrar o comando da burguesia. Em virtude da concentração industrial e das poucas oportunidades que a capital oferecia a jovens ambiciosos, mas sem dinheiro – como os personagens balzaquianos Eugène de Rastignac ou Lucien de Rubempré – as contradições sociais tornam-se cada vez mais evidentes. Aos poucos, as ruas deixavam de ser estreitas para que por elas se estreitassem as diferenças entre as classes. O plano urbanístico de Haussmann alarga o espaço para que nele se estampe a diferença de tempos de seus habitantes. Pelas avenidas e bulevares de Paris, o passante não é mais um transeunte, mas, a parcela anônima e quase sempre indistinta da multidão. 39 Quantos às contribuições científicas e filosóficas, os estudos realizados na segunda metade do século não foram, de forma alguma, menos significativos que os da primeira metade; ao contrário, levaram a descobertas que, de tão surpreendentes, serviram para fortalecer ainda mais o – já consolidado – império da razão. A propagação da ideologia marxista – doutrina que parte da Filosofica Clássica alemã, da Economia Política inglesa e do Socialismo francês – ganharia uma força imensa na segunda metade do século, sobretudo, em razão das condições de trabalho subumanas a que as classes operárias eram submetidas, dando origem ao comunismo científico, doutrina filosófica que mudaria radicalmente a história política da humanidade. Na realidade, o filósofo e economista alemão, Karl Marx, iniciou a obra de difusão de sua ideologia revolucionária ainda na primeira metade do século, quando, juntamente com Engels, redige o famoso Manifesto Comunista, primeiro esboço das suas principais idéias políticas e filosóficas – o materialismo dialético e a teoria da luta de classes – e que seria publicado ao mesmo tempo em que, na França, estourava a revolução, em fevereiro de 1848. Após a revolução passa a viver na capital inglesa onde, graças à ajuda de Engels, pôde levar a cabo a elaboração de sua principal obra, O Capital, cujo primeiro volume seria publicado em 1867. Por considerar a dialética de Hegel como a maior descoberta da filosofia Clássica alemã, Marx tentou aplicá- la na sua interpretação materialista da natureza e da História, opondo-se ao próprio Hegel, que era idealista. Enquanto para esse último o processo do pensamento era o criador do real, para Marx o pensamento não passava de um reflexo da realidade na consciência do homem. A aplicação do Materialismo Dialético ao estudo dos fenômenos sociais deu origem à concepção materialista da História. Dessa forma, de acordo com a doutrina marxista, não são as idéias (superestrutura) que governam o mundo, mas, ao contrário, é o conjunto das forças produtivas materiais (infraestrutura) que determina todas as idéias e tendências. Ao se aprofundar no estudo da História, Marx elaborou a teoria da luta de classes, através da qual explica a evolução das instituições sociais. A partir da análise da sociedade capitalista, Marx observa que a propriedade privada dos meios de produção, característica fundamental do sistema capitalista, só existe com a apropriação da mais- valia – aumento do valor de um bem ou de uma renda, após a sua avaliação ou aquisição, em virtude de fatores econômicos que independem de qualquer transformação intrínseca desse bem ou dessa renda – pela classe dominante, o que torna a exploração do 40 homem pelo homem fundamental para o capitalismo. Ele conclui, a partir daí, que somente em uma sociedade sem classes sociais essa exploração não aconteceria e passa a defender que só o proletariado poderia, por uma luta política consciente e conseqüente de seu papel, derrubar o capitalismo. Não para constituir um Estado para si, mas para desmantelá-lo como instrumento político de existência das classes sociais. No entanto, para o teórico, entre o fim do capitalismo e o advento do comunismo, seria necessário um longo período de transição, que ele denominou socialismo. Essa etapa serviria para que a ditadura da burguesia, que imperava na sociedade capitalista, fosse substituída pela ditadura do proletariado. Cumprido esse período de transição, seria, enfim, instaurada a sociedade comunista, com a posse coletiva da totalidade dos meios de produção e o desaparecimento definitivo das classes, das diferenças entre a cidade e o campo e entre trabalho intelectual e manual. Ainda no campo da filosofia, o filósofo, historiador e crítico francês, Hippolyte Taine, também iria despertar a atenção dos intelectuais e, sobretudo, da comunidade literária, ao defender a aplicação da filosofia determinista à arte e à literatura. De acordo com essa doutrina, todos os fenômenos da natureza estão ligados entre si por rígidas relações de causalidade e leis universais que excluem o acaso e a indeterminação, de tal forma que uma inteligência capaz de conhecer o estado presente do universo, necessariamente, estaria apta também a prever o futuro e reconstituir o passado. Portanto, para os deterministas, todos os acontecimentos, inclusive as vontades e as escolhas humanas, estão interligados e são decorrentes de causas anteriores, o que torna o homem um produto do meio, da raça e do momento histórico em que vive. Ao aplicar esses preceitos à arte e à literatura, Taine partiu do princípio de que ambas eram funções naturais do homem, exercidas sob a influência de uma faculdade mestra, própria de cada nação e de cada artista e que essa faculdade era determinada pelas condições geográficas, além da raça, do momento histórico e do meio ambiente. Professor de Estética e História da Arte, ele consagrou-se ainda à análise da evolução artística, com base na fisiologia e na sociologia. Em 1857, publicou a obra que o tornaria conhecido como um dos mais proeminentes chefes do positivismo literário: Les Philosophes français du XIXème siècle. 41 A medicina e, sobretudo, a fisiologia deram um salto enorme na segunda metade do século XIX, o que foi fundamental para o aumento da expectativa de vida e para a diminuição dos índices de mortalidade infantil, já que tal desenvolvimento promoveu a cura e o controle de diversas doenças. Pode-se afirmar também que o estudo dos processos físico-químicos que ocorrem nas células, tecidos, órgãos e sistemas dos seres vivos não teria alcançado o presente grau de desenvolvimento sem o trabalho e as descobertas do médico e fisiologista francês, Claude Bernard, um dos principais pesquisadores a abrir novos caminhos para o conhecimento dos mecanismos que controlam o metabolismo humano. Em 1865, ele publicou sua obra mais importante, Introduction à la médecine expérimentale (Introdução à medicina experimental), uma tentativa de alçar a medicina, que até então se fundamentava em mé todos empíricos, à categoria de ciência experimental. Com seus trabalhos, o fisiólogo contribuiu ainda para a correta aplicação do método experimental ao estudo dos processos biológicos. Finalmente, o naturalista Britânico Charles Darwin revoluciona, definitivamente, a história científica do século XIX e derruba todas as concepções, que então vigoravam sobre a origem das espécies, ao publicar, em 1859, o livro On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life (Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural, ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida). Em 1831, Darwin foi convidado a participar, como naturalista, da viagem de circunavegação do navio britânico Beagle. Ao longo da viagem, que durou cinco anos, ele observou não só que, à medida que passava de uma região para outra, um mesmo animal podia apresentar características distintas, mas também, que as espécies atuais possuíam traços em comum com outras já extintas, ainda que esses traços fossem bem diferenciados. Essas observações conduziram- no ao estudo da diversificação das espécies e, em 1838, ao desenvolvimento da teoria da Seleção Natural. Consciente de que outros antes dele tinham sido severamente punidos por sugerirem idéias como aquela, ele as confiou apenas a amigos próximos e continuou a sua pesquisa tentando antecipar possíveis objeções. Contudo, a informação de que Alfred Russel Wallace tinha desenvolvido uma idéia similar forçou a publicação conjunta da teoria, em uma revista científica, em 1858. Para elaborar a teoria da seleção natural, Darwin partiu do princípio de que não existem 42 dois membros de uma mesma espécie exatamente iguais, ou seja, cada um tem uma combinação exclusiva de traços herdados, como tamanho, cor, capacidade de suportar o frio, dentre outros. Em seguida, ele observou que a existência de reservas limitadas de alimentos, água e outros elementos necessários à vida, faz com que os organismos vivos tenham de competir constantemente nã o só para suprir suas necessidades, mas também, para se defender contra outros perigos, como os animais predadores. Finalmente, ele constatou que – como em todos os ambientes, alguns membros de uma mesma espécie possuíam uma combinação de traços que os ajudavam na luta pela vida, enquanto outros tinham características que os tornam menos adequados – existia um processo de seleção natural que determinava quais os membros de uma espécie morreriam prematuramente e quais iriam sobreviver e procriar. Naturalmente, os organismos que possuíam os traços adequados eram os que tinham mais chances de sobreviver, reproduzir-se e transmitir esses traços a sua prole. Os outros organismos, sendo menos aptos para competir, tinham mais possibilidade de morrer prematuramente, ou de dar prole menor ou inferior. Como resultado, os traços favoráveis sobreviviam e os desfavoráveis desapareciam com o tempo. A controvérsia gerada pela publicação do livro, ultrapassou, e muito, o âmbito acadêmico, principalmente, por chocar-se, diretamente, com a crença religiosa da criação, apresentada na Bíblia, no livro de Gênesis. A partir da análise de todas essas transformações e seguindo as reflexões de Marshall Berman, percebemos que, se nos adiantarmos cerca de um século, para tentar id entificar os timbres e ritmos peculiares da modernidade do século XIX, a primeira coisa que observaremos será a nova paisagem, altamente desenvolvida, diferenciada e dinâmica, na qual tem lugar a experiência moderna. Trata-se de uma paisagem de engenhos a vapor, fábricas automatizadas, amplas zonas industriais; de cidades que crescem da noite para o dia, quase sempre com conseqüências aterradoras para o ser humano; de jornais diários, telégrafos, telefones e outros instrumentos de mídia, que se comunicam em escala cada vez maior; de estados nacionais cada vez mais fortes e conglomerados multinacionais de capital. Além de tudo isso, há uma intensificação dos movimentos sociais de massa, que lutam contra essas modernizações de cima para baixo e que contam, para esse fim, apenas com seus próprios meios de modernização de baixo para cima. A mesma modernidade 43 também nos permite vislumbrar o nascimento de um mercado mundial que a tudo abarca e que, em crescente expansão, engendra um desperdício e uma devastação estarrecedores. Um mercado que se mostra, cada vez mais, capaz de tudo, exceto de solidez e estabilidade. Ainda segundo Berman, todos os grandes modernistas do século XIX atacam esse ambiente com paixão e se esforçam por fazê- lo ruir ou por explorá- lo, a partir do seu interior. Apesar disso, todos se sentem surpreendentemente à vontade em meio a isso tudo, sensíveis às novas possibilidades, positivos ainda em suas negações radicais, jocosos e irônicos ainda em seus momentos de mais grave seriedade e profundidade. A complexidade e a riqueza do século XIX, bem como a sua modernidade, podem ser melhor compreendidas através de algumas reflexões de Nietzche, no livro Além do Bem e do Mal, que organizadas por Berman, definem o quão contraditória era a sociedade que Balzac tentou reproduzir rigorosamente, descrevendo os tipos humanos, com a mesma precisão com que Buffon retratou o conjunto da zoologia, e que Zola pretendia, a partir da observação, transformar em um laboratório literário de experiências científicas. Nesses pontos limiares da história exibem-se – justapostos quando não emaranhados um no outro – uma espécie de tempo tropical de rivalidade e desenvolvimento, magnífico, multiforme, crescendo e lutando como uma floresta selvagem, e, de outro lado, um poderoso impulso de destruição e autodestruição, resultante de egoísmos violentamente opostos, que explodem e batalham por sol e luz, incapazes de encontrar qualquer limitação, qualquer empecilho, qualquer consideração dentro da moralidade ao seu dispor. (...) Nada a não ser novos “porquês”, nenhuma fórmula comunitária; um novo conluio de incompreensão e desrespeito mútuo; decadência, vício, e os superiores desejos atracados uns aos outros, de forma horrenda, o gênio da raça jorrando solto sobre a cornucópia de bem e mal; uma fatídica simultaneidade de primavera e outono. (...) Outra vez o perigo se mostra, mãe da moralidade – grande perigo – mas desta vez deslocado sobre o indivíduo, sobre o mais próximo e mais querido, sobre a rua, sobre o filho de alguém, sobre o coração de alguém, sobre o mais profundo e secreto recesso do desejo e da vontade de alguém. (BERMAN, 1993, p.210) 6 Enfim, o caráter inovador, as descobertas científicas e as novas concepções filosóficas da segunda metade do século XIX, além de provocar modificações estruturais sem precedentes 6 As passagens citadas por Berman podem ser encontradas nas seções 262, 223 e224 do livro Beyond Good and Evil, Chicago, Henry Regnery Company, 1955, p. 146-50, 210-1) 44 em todas as instâncias sociais, iriam, mais uma vez, transbordar e contaminar a literatura, fazendo com que a mesma ousadia que marcou a Comédia Humana, pudesse, agora, ser encontrada nos romances de seu herdeiro e sucessor, Zola. Ao impregnar a literatura Naturalista com a nova paisagem urbana do Barão de Haussmann, com a utopia socialista que conduz à luta de classes desse período e leva ao desenvolvimento da filosofia marxista, com o determinismo de Taine e com as teorias evolucionistas de Darwin, Zola consegue capturar a essência do Segundo Império e produzir uma literatura que traduz o transitório, o fugidio e o contingente de um tempo e de uma geração. Elaborada para ser a imagem social do Segundo Império, a saga dos Rougon-Macquart prenuncia a sua modernidade já no prefácio, explicita no Romance Experimental e, finalmente, vivencia em seus romances. Assim, no prefácio, Zola anuncia : Je désire montrer comment une famille, un petit groupe d'êtres se comporte en s'épanouissant pour donner naissance à dix, à vingt individus, qui paraissent, au premier coup d'oeil, profondément dissemblables, mais que l'analyse révèle comme intimement liés les uns aux autres. L'hérédité a ses lois, ainsi que la pesanteur.[...]Les Rougon-Macquart, le groupe, la famille que je me propose d'étudier a pour caractéristique le débordement des appétits, le large soulèvement de notre âge, qui se rue aux jouissances. Physiologiquement, ils sont la lente succession des accidents nerveux et sanguins qui se déclarent dans une race, à la suite d'une première lésion organique, et qui déterminent, selon les milieux, chez chacun des individus de cette race, les sentiments, les désirs, les passions, toutes les manifestations humaines, naturelles et instinctives, dont les produits prennent les noms convenus de vertus et de vices. Historiquement, ils partent du peuple, ils s'irradient dans toute la société contemporaine, ils montent à toutes les situations, par cette impulsion essentiellement moderne que reçoivent les basses classes en marche à travers le corps social, et ils racontent ainsi le second empire à l'aide de leurs drames individuels, du guet-apens du coup d'état à la trahison de Sedan. 7 (ZOLA, 1991,p.454) 7 Desejo mostrar como uma família, um pequeno grupo de seres se comporta expandindo-se para dar vida a dez, a vinte indivíduos, que parecem, à primeira vista, profundamente diferentes, mas que a análise revela serem intimamente ligados uns aos outros. A hereditariedade tem suas leis, da mesma forma que o peso. [...] Os Rougon-Macquart, o grupo, a família que me proponho estudar tem por característica o transbordamento dos apetites, a imensa agitação do nosso tempo, que se entrega aos prazeres . Fisiologicamente, eles são a lenta sucessão dos acidentes nervosos e sangüíneos que se pronunciam em uma raça, depois de uma primeira lesão orgânica, e que determinam, de acordo com o meio, em cada um dos indivíduos dessa raça, os 45 No Romance Experimental, ele esclarece : Sans me risquer à formuler des lois, j'estime que la question d'hérédité a une grande influence dans les manifestations intellectuelles et passionnelles de l'homme. Je donne aussi une importance considérable au milieu. Il faudrait sur la méthode aborder les théories de Darwin; mais ceci n'est qu'une étude générale expérimentale appliquée au roman, et je me perdrais, si je voulais entrer dans les détails. Je dirai simplement un mot des milieux. Nous venons de voir l'importance décisive donnée par Claude Bernard à l'étude du milieu intra-organique, dont on doit tenir compte, si l'on veut trouver le déterminisme des phénomènes chez les êtres vivants. Eh bien! dans l'étude d'une famille, d'un groupe d'êtres vivants je crois que le milieu social a également une importance capitale. Un jour, la physiologie nous expliquera sans doute mécanisme de la pensée et des passions; nous saurons comment fonctionne la machine individuelle de l'homme, comment il pense, comment il aime, comment il va de la raison à la passion et à la folie; mais ces phénomènes, ces faits du mécanisme des organes agissant sous l'influence du milieu intérieur, ne se produisent pas au dehors isolément et dans le vide. L'homme n'est pas seul, il vit dans une société, dans un milieu social, et dès lors pour nous, romanciers, ce milieu social modifie sans cesse les phénomènes. Même notre grande étude est là, dans le travail réciproque de la société sur l'individu et de l'individu sur la société. Pour le physiologiste, le milieu extérieur et le milieu intérieur sont purement chimiques et physiques, ce qui lui permet d'en trouver les lois aisément. Nous n'en sommes pas à pouvoir prouver que le milieu social n'est, lui aussi, que chimique et physique. Il l'est à coup sûr, ou plutôt il est le produit variable d'un groupe d'êtres vivants, qui, eux, sont absolument soumis aux lois physiques et chimiques qui régissent aussi bien les corps vivants que les corps bruts. Dès lors, nous verrons qu'on peut agir sur le milieu social, en agissant sur les phénomènes dont on se sera rendu maître chez l'homme. Et c'est là ce qui constitue le roman expérimental: posséder le mécanisme des phénomènes chez l'homme, montrer les rouages des manifestations intellectuelles et sensuelles telles que la physiologie nous les expliquera, sous les influences de l'hérédité et des circonstances ambiantes, puis montrer l'homme vivant dans le milieu social qu'il a produit lui-même, qu'il modifie tous les jours, et au sein duquel il éprouve à son tour une transformation continue. Ainsi donc, nous nous appuyons sur la physiologie, nous prenons l'homme isolé des mains du physiologiste, pour continuer la solution du problème et résoudre scientifiquement la question sentimentos, os desejos, as paixões, todas as manifestações humanas, naturais e instintivas, cujos produtos adquirem os nomes convenientes de virtudes e vícios. Historicamente, eles partem do povo, irradiam-se por toda a sociedade contemporânea, expõem-se a todas as situações, por esta impulsão essencialmente moderna que recebem as classes baixas em marcha através do corpo social, e assim eles narram o Segundo Império com a ajuda de seus dramas individuais, da emboscada do golpe de Estado à traição de Sedan. (tradução nossa) 46 de savoir comment se comportent les hommes, dès qu'ils sont en société. 8 (ZOLA, 1964,p.273) Por fim, os romances de Zola nos permitem, não só reviver meio século de história , mas também, captar a essência e a alma de um século, de um tempo, de uma geração. Nas páginas de La curée, de 1871, encontram-se as monumentais obras de reurbanização da capital francesa, realizadas pelo barão Haussmann, além das grandes especulações imobiliárias e dos prazeres efêmeros aos quais a emergente burguesia começava a se entregar. O fascínio do escritor por uma das principais ino vações arquitetônicas do Segundo Império, também construído durante a reurbanização da cidade, Os Halles de Paris, faria com que ele transformasse aquele deslumbrante monstro metálico de ferro e vidro em personagem do romance Le ventre de Paris, de 1873. O universo da Bolsa de valores e dos grandes escândalos financeiros, como o do canal do Panamá, é o tema de L´Argent, de 1891; enquanto o nascimento da publicidade, o desenvolvimento das grandes 8 Sem me arriscar a formular leis, julgo que a questão da hereditariedade tem uma grande in fluência nas manifestações intelectuais e passionais do homem. Também dou uma importância considerável ao meio. Seria preciso abordar as teorias de Darwin; mas isto é apenas um estudo geral sobre o método experimental aplicado ao romance, e eu me perderia, se quisesse entrar em pormenores. Direi apenas uma palavra sobre os meios. Acabamos de ver a importância decisiva dada por Claude Bernard ao estudo do meio intra-orgânico, que se deve levar em conta, quando se quer encontrar o determinismo dos fenômenos nos seres vivos. Pois bem, no estudo de uma família, de um grupo de seres vivos, creio que o meio social tem igualmente uma importância capital. Um dia, a Fisiologia nos explicará possivelmente o mecanismo do pensamento e das paixões; saberemos como funciona a máquina individual do homem, como ele pensa, como ele ama, como ele vai da razão à paixão e à loucura. Mas, estes fenômenos, estes fatos do mecanismo dos órgãos que agem sob a influência do meio interior, não se produzem, externamente, de modo isolado e no vazio. O homem não está só, ele vive numa sociedade, num meio social; assim, para nós romancistas este meio social modifica constantemente os fenômenos. Aliás, nosso grande estudo reside nisso, no trabalho recíproco da sociedade sobre o indivíduo e do indivíduo sobre a sociedade. Para o fisiólogo, o meio exterior e o meio interior são puramente químicos e físicos, o que permite encontrar facilmente suas leis. Ainda não estamos em condições de provar que o meio social também é apenas químico e físico. Ele o é, certamente, ou antes, ele é o produto variável de um grupo de seres vivos que, estes sim, são absolutamente submetidos às leis físicas e químicas que regem tanto os corpos vivos quanto os corpos brutos. Assim sendo, veremos que podemos agir sobre o meio social, se agirmos sobre os fenômenos que tivermos dominado no homem. E é isto que constitui o romance experimental: possuir o mecanismo dos fenômenos do homem, mostrar a engrenagem das manifestações intelectuais e sensuais, tal qual a fisiologia nô-las explicará, sob as influências da hereditariedade e das circunstâncias-ambiente e, depois, mostrar o homem vivendo no meio social que ele mesmo produziu, que modifica todos os dias e, no seio do qual, experimenta por sua vez uma transformação contínua. Assim, portanto, nós nos apoiamos na fisiologia, tomamos o homem isolado das mãos do fisiólogo para continuar a solução do problema e resolver cientificamente a questão de se saber como se comportam os homens, desde que estão em sociedade. 47 lojas de departamento e as conseqüências sociais do advento do capitalismo e da aplicação dos princípios do liberalismo econômico povoam as páginas de Au Bonheur des Dames, de1883. Mas Zola também fez questão de espelhar, em seus romances, o comportamento social que caracterizava as diferentes classes e meios sociais. Assim, em Pot-Bouille, de 1882, ele tentou mostrar a mesquinhez e a falsidade que forjavam o caráter do burguês parisiense e em La terre, de 1887, faz uma pintura brutal, crua e chocante da realidade dos camponeses franceses. Além disso, ao selecionar os diversos quadros que constituiriam o círculo romanesco da Histoire naturelle et sociale d’une famille sous le Second Empire, ele se preocupou em transitar tanto pelo submundo quanto pelas mais altas instâncias do poder. Em Nana, de 1880, ele percorre o universo da prostituição e, em La conquête des Plassans, de 1874, ele parte de elementos como a vida provinciana, a loucura hereditária e os conchavos políticos envolvendo a Igreja para construir o romance. O conteúdo ousado e transgressivo que caracterizam a Saga dos Rougon-Macquart, se manifesta, principalmente, na diversidade e na originalidade da temática que a obra aborda. Pela primeira vez na literatura francesa, a classe operária se torna fonte de inspiração romanesca, levando Zola a criar uma de suas obras mais importantes. Em 1877, ele publicou L’Assomoir, primeiro romance que denunciava a condição de vida miserável a que estavam sujeitas as classes operárias, além de mostrar as conseqüências físicas e morais dessa miséria, e finalmente, em 1885, Zola lança o seu romance mais célebre, Germinal. A trama de Germinal gira em torno do início da organização política e sindical da classe operária, das primeiras greves, da divisão dos operários entre as ideologias marxista e anarquista e da alienação burguesa. Durante toda a narrativa, o escritor incita o leitor (burguês) a uma reflexão sobre as condições subumanas a que o capitalismo submete as classes laboriosas e sobre a revolta que tal situação produz, além de fazer um prognóstico catastrófico caso a sociedade opte pela permanência desse sistema. A enorme preocupação do escritor em produzir uma literatura extremamente fiel aos principais acontecimentos históricos que marcaram sua geração prevalece em toda a obra. 48 No entanto, percebemos que ela se evidencia, ainda mais, em determinados momentos, como, quando, após situar a saga dos Rougon -Marquart entre o início e o fim do Segundo Império, ele transforma a ascensão e a queda de Napoleão em elementos essenciais para a construção dos seus romances. A trama de La fortune des Rougon, de 1871, desenrola-se nos dias que sucedem o golpe de estado de 2 de dezembro de 1851 e, também, marca o início da genealogia dos Rougon-Marquart. A linhagem começa quando Adélaïde Fouque casa-se com o jardineiro Rougon e, dessa união, nasce Pierre Rougon. Após a morte do marido, ela se torna amante de um certo Marquart, com quem tem mais dois filhos Ursule e Antoine Maquart. Ao enviuvar pela segunda vez, Adélaïde enlouquece e acaba sendo internada no hospício de Tulettes, em 1851. Seus filhos dariam origem aos três ramos da família Rougon-Maquart : os Rougon, cujos descendentes herdariam dos ancestrais a ganância e a sede de poder; os Mouret (sobrenome adotado por Ursule após seu casamento), ramificação em que a fragilidade mental de Adélaïde tende sempre a reaparecer e, finalmente, os Maquart, o ramo mais frágil da família que herda a loucura de Adelaide misturada ao alcoolismo e à violência de seu amante. Em La Débâcle, de 1892, Zola transforma a derrota do exército francês na batalha de Sedan, e a conseqüente queda do império napoleônico, em palco para o desenrolar de uma trama que se propõe, entre outras coisas, a fazer uma crítica implacável à violência e aos horrores da guerra. As diversas tentações que o século XIX ofereceu aos seus contemporâneos, bem como o percurso daqueles que se deixavam escravizar por seus desejos, tornando-se vítimas de suas próprias paixões, também não poderiam ficar de fora dos romances de Zola. Son Excellence Eugène Rougon, de 1876, retra ta o universo político e mostra a ascensão profissional e o declínio moral de um homem dominado pela paixão, pelo dinheiro e pelo poder. Em La Faute de l’abbé Mouret, de 1875, o escritor trata da eclosão da sexualidade reprimida pelo celibato. Em La bête humaine, de 1890, além de trazer para o romance o mundo dos que trabalham nas linhas férreas e o advento da locomotiva a vapor, a história narra a luta de um homem para reprimir seu instinto assassino. Em L´Oeuvre, de 1886, o escritor conduz o leitor pelo terreno das artes, através da história de um pintor maldito. Além disso, a fragilidade psíquica e a personalidade obsessiva que, freqüentemente, vêm à tona, durante a puberdade, são o tema de Une page d´amour, de 1878; a fé e o misticismo 49 populares são tratados em Le Rêve, 1888; e a esperança, a alegria e a vontade de viver são exploradas no romance La Joie de vivre, de 1884. Finalmente, com Le docteur Pascal, Zola conclui, em 1893, a saga da família RougonMacquart. No romance, Pascal Rougon é um médico que dedicou a vida ao estudo da hereditariedade, a partir da análise de sua própria família. Ao longo de trinta anos, para desgosto de sua mãe, ele conseguiu reunir documentos contendo as principais informações sobre a terrível genealogia dos Rougon-Maquart. Com a ajuda da empregada e da sobrinha de Pascal – Martine e Clotilde – sua mãe, Félicité, fará de tudo para destruir o dossiê organizado por seu filho, temendo que ele comprometa a posteridade da família. O desenrolar da trama evidencia o papel do médico como legítimo representante da cultura e do progresso científico e o das três mulheres como símbolos do obscurantismo e da ignorância. Ao escolher esse personagem para protagonizar o derradeiro romance de sua série, além de estabelecer, definitivamente, um fio condutor entre todos os seus romances, Zola, mais uma vez, atesta sua convicção nas teorias mais polêmicas de sua geração: o evolucionismo de Darwin e os preceitos deterministas de Taine. Após essa viagem pelos elementos que serviram de alicerces para a construção da Comédia Humana e da Saga dos Rougon-Macquart, fica ainda mais nítido que o mesmo painel vertiginoso dos tempos modernos que induz Baudelaire a definir a modernidade, também inspira Balzac e Zola na elaboração do prefácio da Comédia Humana e do Romance Experimental. Portanto, muito embora, o poeta e os romancistas ocupassem lados opostos de um mesmo palco - enquanto Baudelaire se mantinha fiel ao princípio de que a arte deve privilegiar o lirismo, a imaginação e a beleza, os dois romancistas vetavam esses elementos em nome do real e do verdadeiro – tanto Baudelaire quanto os precursores do Realismo e do Naturalismo criaram uma literatura impregnada por essa mistura de beleza e caos que o progresso trouxe para o século XIX e que iria inserir os três artistas dentro do conceito baudelairiano de modernidade. Entretanto, é importante ressaltar que, de certa forma, Baudelaire sempre pressentiu a impossibilidade de se transformar a arte em uma tradução literal da realidade. Daí a sua 50 crítica aos escritores que, na tentativa de recuperar o status que a razão roubara da literatura, pretendiam alçá-la à categoria de ciência, vetando, para tanto, a subjetividade, o imaginário e o ficcional. Para ele, a arte deveria, antes, voltar-se para o lírico, ainda que o sonho refletido por ela fosse inspirado pelo mundo que se desvelava diante dos olhos do escritor. A critica que o poeta faz aos seus contemporâneos é, ao mesmo tempo, um desabafo de alguém que não concebe a literatura dissociada da poesia : Depuis plusieurs années, la part d'intérêt que le public accorde aux choses spirituelles était singulièrement diminuée; son budget d'enthousiasme allait se rétrécissant toujours. Les dernières années de Louis-Philippe avaient vu les dernières explosions d'un esprit encore excitable par les jeux de l'imagination; mais le nouveau romancier se trouvait en face d'une société absolument usée, - pire qu'usée, - abrutie et goulue, n'ayant horreur que de la fiction, et d'amour que pour la possession. Dans des conditions semblables, un esprit bien nourri, enthousiaste du beau, mais façonné à une forte escrime, jugeant à la fois le bon et le mauvais des circonstances, à dû se dire : “Quel est le moyen le plus sûr de remuer toutes ces vieilles âmes? Elles ignorent en réalité ce qu'elles aimeraient; elles n'ont un dégoût positif que du grand; la passion naïve, ardente, l'abandon poétique les fait rougir et les blesse. - Soyons donc vulgaire dans le choix du sujet, puisque le choix d'un sujet trop grand est une impe rtinence pour le lecteur du XIXe siècle. Et aussi prenons bien garde à nous abandonner et à parler pour notre propre compte. Nous serons de glace en racontant des passions et des aventures où le commun du monde met ses chaleurs ; nous serons, comme dit l'école, objectif et impersonnel. “Et aussi, comme nos oreilles ont été harassées dans ces derniers temps par des bavardages d'école puérils, comme nous avons entendu parler d'un certain procédé littéraire appelé réalisme, - injure dégoûtante jetée à la face de tous les analystes, mot vague et élastique qui signifie pour le vulgaire, non pas une méthode nouvelle de création, mais une description minutieuse des accessoires, nous profiterons de la confusion des esprits et de l'ignorance universelle. Nous étendrons un style nerveux, pittoresque, subtil, exact, sur un canevas banal. Nous enfermerons les sentiments les plus chauds et les plus bouillants dans l'aventure la plus triviale. Les paroles les plus solennelles, les plus décisives, s'échapperont des bouches les plus sottes.9 (BAUDELAIRE, 1988 p.450-1) 9 Há muitos anos, a parte de interesse que o público concede às coisas espirituais foi singularmente reduzida; sua reserva de entusiasmo ia sempre se estreitando. Os últimos anos de Louis Philippe tinham visto as últimas explosões de um espírito ainda excitável pelos jogos da imaginação; mas o novo romancista se encontrava diante de uma sociedade absolutamente gasta – pior que gasta – embrutecida e voraz, não tendo horror senão à ficção e amor apenas à posse. Em condições semelhantes, um espírito bem nutrido, entusiasta do belo, mas habituado a uma forte esgrima, julgando, ao mesmo tempo, o bom e o mau das circunstâncias deve ter dito para si mesmo : “Qual é a forma mais segura de comover todas essas velhas almas?” Elas ignoram, na realidade, aquilo que amariam; têm apenas um desgosto positivo pelo grande; a paixão inocente, ardente, o abandono poético as fazem enrubescer e ferem-nas. Sejamos então vulgares na escolha do tema, porque a escolha de um tema grandioso é uma impertinência para o leitor do século XIX. E também tomemos muito cuidado ao nos descuidarmos e ao falarmos por nossa própria conta. Nós seremos gelados ao contarmos 51 Berman resume bem a linguagem que Baudelaire considerava a ideal para o escritor moderno : No prefácio a Spleen de Paris, Baudelaire proclama que a vida moderna exige uma nova linguagem: “uma prosa poética, musical, mas sem ritmo e sem rima, suficientemente flexível e suficientemente rude para adaptar-se aos impulsos líricos da alma, às modulações do sonho, aos saltos e sobressaltos da consciência.” Sublima que “esse ideal obsessivo nasceu, acima de tudo, da observação das cidades enormes e dos cruzamentos de suas inúmeras conexões”. O que Baudelaire procura comunicar através dessa linguagem, antes de mais nada, é aquilo que chamarei de cenas modernas primordiais: experiências que brotam da concreta vida cotidiana da Paris de Bonaparte e de Haussmann, mas estão impregnadas de uma ressonância e uma profundidade míticas que as impelem para além de seu tempo e lugar, transformando-as em arquétipos da vida moderna. 10 (BERMAN, 1993,p.144) Entretanto, em momento algum, Baudelaire escondeu a enorme admiração que nutria por dois dos principais representantes da literatura realista, Balzac e Flaubert. Paradoxalmente, para o poeta, a genialidade dos dois escritores estava justamente no lirismo e na ironia que era inerente a seus romances, mas que eles tanto insistiam em negar : Les héros de l'Iliade ne vont qu'à votre cheville, ô Vautrin, ô Rastignac, ô Birotteau [...] et vous, ô Honoré de Balzac, vous le plus héroïque, le plus singulier, le plus romantique et le plus poétique parmi tous les personnages que vous avez tirés de votre sein![...] La vie parisienne est féconde en sujets poétiques et merveilleux. Le merveilleux nous enveloppe et nous abreuve comme l’atmosphère; mais nous ne le voyons pas.11 ( BAUDELAIRE,1988,p.261) aventuras e paixões em que o comum do mundo coloca o seu calor; seremos, como diz a escola, objetivos e impessoais. “E também, como nossas orelhas estavam extenuadas nesses últimos tempos pelas tagarelices pueris de escola; como nós ouvimos de um certo procedimento literário chamado Realismo, – injúria repugnante jogada na face de todos os analistas, palavra vaga e elástica que significa para o vulgar, não um novo método de criação, mas uma descrição minuciosa de acessórios, – nós nos aproveitaremos da confusão dos espíritos e da ignorância universal. Estenderemos um estilo nervoso, pitoresco, sutil, exato, sobre uma lona banal. Encerraremos os sentimentos mais quentes e os mais efervescentes na aventura mais trivial. As palavras mais solenes, mais decisivas, escaparão das bocas mais tolas. (tradução nossa) 10 As citações feitas por Berman podem ser encontradas em: BAUDELAIRE, Charles: Oeuvres Complètes,Paris, Èditions du Seuil, 1988, p.146. 11 Os Heróis da Ilíada são como pigmeus, comparados a vocês, Vautrin, Rastignac, Biroteau [...] e a você, Honoré de Balzac, você, o mais heróico, o mais extraordinário, o mais romântico e o mais poético de todos os 52 O poeta estava certo e o tempo comprovaria a sua tese. A imaginação, eterna soberana do reino das artes, jamais cederia seu trono para a ciência, ainda que o mundo clamasse por um império regido pela razão. No entanto, dessa batalha nasceria uma nova maneira de se contarem histórias, um novo romance, o romance moderno. As contribuições que o Realismo e o Naturalismo trouxeram para a construção desse novo romance podem ser melhor compreendidas a partir das reflexões de Georges Jean em Le Roman e de Erich Auerbach em Mimesis. De acordo com Georges Jean, com Balzac a realidade se torna ficção e a ficção realidade. E é por isso que as teses que opõem o romancista realista ao fantástico, e vice-versa, não dão conta, nem uma nem outra, da leitura do escritor, visto que ele inventa uma realidade mais verdadeira do que o real, ao descrever um universo imaginário. Georges Jean acredita também que, mesmo para os leitores contemporâneos, os romances de Balzac contêm o romance do futuro, ou melhor, contêm a morte do romance que não coloca em questão, através do texto, a sociedade que descreve ou reflete. Para ele, ler Balzac hoje – além dos prazeres e das informações que a sua pesquisa gigantesca sobre uma sociedade real nos trazem – é estar encerrado dentro do romance, nesse universo de palavras, de frases, nesse texto, enfim, em que a nossa leitura de uma ficção e a nossa leitura da história e do cotidiano se confundem. O teórico acha justo portanto que, em certo sentido, se compreenda que, após Balzac, o romance esteja condenado ou a morrer, ou a não ser mais o romance, porque ele é um escritor do passado e do futuro. Quanto ao Romance Experimental, Georges Jean considera que a tese defendida por seu autor é muito fértil. Para ele, embora o fundamento da experimentação de Zola seja frágil e largamente ultrapassado, o princípio de um romance concebido como um instrumento científico e destinado a funcionar racionalmente ainda é extremamente difundido. Não que ele alegue que alguém, nos dias de hoje, possa acreditar verdadeiramente que os RougonMacquart verificam as leis da hereditariedade. No entanto, para o autor, a árvore genealógica que serve de estrutura central para a obra é a prefiguração destes romances heróis produzidos por sua imaginação. A vida parisiense contemporânea é rica em assuntos poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e nos embebe como uma atmosfera, mas não o vemos. 53 modernos que combinam, minuciosamente, mecanismos orgânicos ou abstratos, disposições em andares, cadeias, etc. Georges Jean argumenta também que, embora o leitor, certamente, não tenha uma consciência clara e imediata do trabalho de Zola, pouco a pouco, ele descobre que o romancista constrói seu texto pedra por pedra, ou seja, palavra por palavra, ao redor de uma armadura sólida. Razão pela qual ele acredita ser falso e injusto reprovar em Zola sua técnica de empreiteiro das palavras, para admirar o lirismo e a poesia de certas páginas, uma vez que, se ele é lido como um poeta, isso ocorre na medida em que o contraste entre uma minuciosa investigação sobre o real e um texto que instaura um real imaginário se manifesta. O escritor acredita que Zola retém os leitores contemporâneos porque ele foi um dos primeiros autores a abrir o romance para o fantástico social e, particularmente, para o fantástico urbano. Ele apreendeu o aspecto alucinatório das grandes multidões. Os detalhes “pitorescos” dos romances de Zola são tão capazes de datá- los quanto essa história confessa de “uma família sob o Segundo Império”. A greve de Germinal é uma greve de um outro tempo, a grande loja de departamentos de Au Bonheur Des Dames é uma loja de antigamente, tanto a perversidade do herói de La Curée quanto o erotismo de Nana são de uma outra época. No entanto, todos esses elementos e inúmeros outros permanecem profundamente contemporâneos, o que gera a sensação de que, ao ler Zola, está-se, de certa forma, lendo uma repetição do que ia acontecer na nossa sociedade e na nossa civilização. Por fim, o teórico afirma que o texto de Zola, sucessivamente laborioso e torrencial, visto de longe, assemelha-se a todos os textos Realistas ou Naturalistas do final do século XIX, mas, visto de perto, mostra-se como a trama extremamente fechada de uma tapeçaria que se desfaz diante das coisas, que faz com que as coisas apareçam na sua matéria, sob e dentro das palavras. Enquanto Flaubert anuncia o começo da literatura pura, Zola prefigura “outra coisa”, outras artes além da Literatura (o cinema e a televisão, por exemplo). Georges Jean termina com a reposta dada por Mallarmé, em 1891, a uma enquete sobre a evolução literária: J’ai une grande admiration pour Zola. Il a fait moins, à vrai dire de véritable littérature, que de lárt évocatoire; en se servant, le moins qu'il est possible, des éléments littéraires ; il a pris les mots, c'est vrai, mais c'est tout; le reste provient de sa merveilleuse organisation et se répercute tout de suite dans l'esprit de la foule. Il a vraiment des qualités puissantes; sons sens inouï de la vie, ses mouvements de foule, la peau de Nana, dont nous avons tous caressé le grain, tout cela peint en de prodigieux lavis, c'est 54 l'oeuvre d'une organisation vraiment admirable! Mais la littérature a quelque chose de plus intellectuel que cela: les choses existent, nous n'avons pas à les créer; nous n'avons qu'à en saisir les rapports; et ce sont les fils de ces rapports qui forment les vers et les orchestres. 12 (MALLARMÉ, 2003, p.701-2) A análise feita por Erich Auerbach sobre as modificações estruturais sofridas pelo romance, a partir dos novos paradigmas literários introduzidos por Balzac e Zola, também nos ajuda a compreender melhor os elementos que inserem a obra desses dois escritores dentro da modernidade literária e as novas perspectivas que se abrem para o romance a partir do século XIX. Auerbach afirma que em toda a sua obra, Balzac sentiu os meios, por mais diferentes que fossem, como unidades orgânicas, demoníacas até, e tentou transmitir essa sensação ao leitor. Ele não se preocupou apenas em localizar os seres cujo destino contava seriamente, na sua moldura histórica e social perfeitamente determinada, como fazia Stendhal, mas também, considerou essa relação como necessária: todo espaço vital torna -se para ele uma atmosfera moral e física, cuja paisagem, habitação, móveis, acessórios, vestuário, corpo, caráter, trato, ideologia, atividade e destino permeiam o ser humano, ao mesmo tempo em que a situação histórica geral aparece, novamente, como atmosfera que abrange todos os espaços vitais individuais. Para levantar as principais inovações que a Comédia Humana introduziria na literatura e que fariam do seu autor o criador do romance moderno, Auerbach parte das declarações do próprio Balzac sobre os elementos que norteariam a edificação da sua obra. Em 26 de outubro de 1834, Balzac escreve a madame Von Hanska sobre o plano que paulatinamente ia se formando dentro dele e que deveria conduzir o conjunto da sua obra : 12 Eu tenho uma grande admiração por Zola. Ele fez menos, para dizer a verdade, de verdadeira literatura, que de arte evocatória; servindo-se o mínimo possível dos elementos literários; ele pegou as palavras, é verdade, mas isso é tudo; o resto provém da sua maravilhosa organização e repercute imediatamente no espírito da multidão. Ele tem verdadeiramente qualidades poderosas; seu senso extraordinário da vida, seus movimentos de multidão, a pele de Nana, a qual todos nós acariciamos o grão; tudo isso pintado em prodigiosa aquarela, é obra de uma organização verdadeiramente admirável. Mas a literatura tem alguma coisa de mais intelectual do que isso: as coisas existem, nós não temos que acreditar nelas, nós temos somente que prender as relações e são os fios dessas relações que formam os versos e os orquestram. (tradução nossa) 55 Les Etudes des Moeurs répresenteront tous les effets sociaux sans que ni une situation de la vie, ni une physionomie, ni um caractère d’homme ou de femme, ni une manière de vivre, ni une profession, ni une zone sociale, ni un pays français, ni quoi que se soi de l’enfance, de la veillesse, de l´âge mûr, de la politique, de la justice, de la guerre ait éte oblié. Cela posé, l’histoire du coeur humain tracée fil à fil, l’histoire sociale faite dans toutes ses parties, voilà la base. Ce ne seront pas des faits imaginaires; ce sera ce qui se passe partout. 13 (BALZAC,1967,p.269) Tomando como referência essa interpretação que Balzac faz da Comédia Humana, Auerbach levanta três motivos a serem salientados dentro da obra do escritor. Ele alega que dois desses motivos podem ser reconhecidos imediatamente. O primeiro é o caráter universal e vitalmente enciclopédico da intenção, nenhuma parte da vida deve faltar; logo depois, percebe-se a realidade casual: ce qui se passe partout; e, finalmente, o terceiro motivo reside na palavra histoire. No entanto, para Auerbach, essa histoire du coeur humain ou histoire sociale não se refere à “História” no sentido corrente, ou seja, não se trata da investigação científica de acontecimentos ocorridos, mas de uma invenção relativamente livre; não se trata de history, mas de fiction (os termos ingleses são especialmente claros); não se trata de forma alguma do passado, mas do presente contemporâneo, que se estende, quando muito, por alguns anos ou décadas no passado. Quando Balzac designa os seus Études des moeurs au dix-neuvième siècle como história, significa, em primeiro lugar, que ele considera a sua atividade criativa e artística como uma atividade histórico-representativa, de natureza mesmo histórico- filosófica, o que pode ser percebido de forma muito clara no Avant-propos. Em segundo lugar, significa que ele enxerga o presente como história; isto é, o presente é algo que ocorre surgindo da história. De fato, os seus homens e ambientes, por mais presentes que sejam, estão sempre representados como fenômenos que emana ram dos acontecimentos e das forças históricas. Auerbach cita, como exemplos, a descrição da origem da fortuna de Grandet (Eugénie 13 Os Estudos dos Costumes representaram todos os efeitos sociais sem que nenhuma situação da vida, nenhuma fisionomia, nenhum caráter de homem ou de mulher, nenhuma maneira de viver, nenhuma profissão, nenhuma província francesa, nada do que disser respeito à infância, à velhice, à idade madura, à política, à justiça, à guerra, tenha sido esquecido. Isto posto, a história do coração humano traçada fio por fio, a história social feita em todas as suas partes, eis a base. Não serão fatos imaginários; será o que acontece em toda parte. (O texto citado por Auerbach foi extraído de Lettres à L’Etrangère, Paris, Calmann-Lévy,1899, p.205) 56 Grandet) e a carreira de Du Bousquier (La vielle Fille) e a do velho Goriot (Le pére Goriot). Para o autor, nada semelhante, tão consciente, nem tão exato se encontra em parte alguma, antes do aparecimento de Sthendal e de Balzac, sendo que Balzac vai muito mais longe do que Stendhal no que se refere à ligação orgânica entre o homem e a história. Quanto ao segundo motivo: ce ne seront pas des faits imaginaires; ce sera ce qui ce passe partout. Auerbach pondera que, com isso, fica dito que a invenção não provém da livre força imaginativa, mas da vida real, tal como se apresenta em toda parte. E ainda, que Balzac possui, diante desta vida – múltipla, embebida de história, representada sem disfarces, com tudo o que tiver de cotidiano, prático, feio e comum – uma posição semelhante à que Stendhal já possuíra: leva-a a sério e até a considera tragicamente, nesta forma real, quotid iana intra-histórica. O teórico alemão alega que isso não existiu em parte alguma na época posterior ao surgimento do gosto clássico; nem antes, nessa forma prática e intra-histórica, dirigida para a auto-responsabilização social do homem. A partir do Classicismo francês e, sobretudo, após o Absolutismo, não somente o tratamento do quotidiano -real tinha se tornado muito mais limitado e decoroso, mas também a atitude que se tinha diante dele privava -se, por assim dizer, fundamentalmente, do trágico e do problemático. Um objeto da realidade prática podia ser tratado de forma cômica, satírica, didático-moralizante; certos objetos de campos bem circunscritos e determinados do contemporâneo e quotidiano atingiam até o nível estilístico mediano do comovente; mas não iam além. A vida real-quotidiana, mesmo das camadas médias da sociedade, era considerada como de estilo baixo. O engenhoso Henry Fielding, que toca tantos problemas morais estéticos e sociais, mantém a representação sempre nos limites do tom satíricomoralista e diz que no Tom Jones : ...That kind of novels which, like this I am writing, is of the comic class (AUERBACH, 2004, p. 430) (...esse tipo de romance, como o que eu estou escrevendo, pertence ao gênero cômico). Auerbach prossegue e afirma que a novidade da atitude e a nova espécie de objetos que eram tratados séria, problemática e tragicamente, tiveram como efeito o desenvolvimento progressivo de uma espécie totalmente nova de estilo sério ou, se se quiser, elevado. Não seria possível transferir para os novos objetos, sem mais nem menos, os níveis antigos 57 (cristãos, shakespearianos, racinianos) de percepção e expressão. Entretanto, num primeiro momento, ainda havia uma certa insegurança em se adotar essa nova espécie de atitude grave. Por isso, Stendhal, cujo realismo surgira a partir de uma resistência contra um presente que lhe era desprezível, ainda conservou, na sua atitude, muito dos instintos do século XVIII. Nos seus heróis, ainda aparecem espectros das lembranças de figuras como Romeu, Don Juan e Valmont (das Liaisons Dangeureses). Balzac, em contrapartida, submerge seus heróis bem mais profundamente na temporalidade. Com isto, perdem-se-lhe a medida e os limites daquilo que, anteriormente, era considerado trágico. Qualquer enredo, por mais trivial ou corriqueiro que seja, é por ele tratado grandiloqüentemente, como se fosse trágico; qualquer mania é por ele vista como paixão. Está sempre disposto a marcar qualquer infeliz como herói ou como santo; se se tratar de uma mulher, compara-a com um anjo ou com uma madona. Demoniza todo e qualquer malvado vigoroso e, em geral, qualquer figura levemente sombria e chega, até mesmo, a chamar o coitado do velho Goriot de Christ de la paternité. Com a passagem do Realismo para o Naturalismo, a representação do real se tornou mais crua, bruta e, por vezes, até mesmo violenta, fazendo com que, inicialmente, os romances naturalistas causassem um enorme estranhamento e fossem recebidos com resistência por uma elite burguesa muito pouco consciente das questões sociais do seu tempo. Auerbach afirma que, quando das primeiras aparições das obras de Zola, nos últimos trinta anos do século XIX, algumas como Germinal, La terre, La Bête Humanine, dentre outras, provocaram repulsa e horror, mas também, junto a uma minoria notável, grande admiração. Muitos dos seus romances alcançaram, logo após a sua publicação, grandes tiragens, ao mesmo tempo em que começava um movimento pró ou contra a justificação de tal arte. Quem não soubesse nada acerca disso e não conhecesse a obra do escritor poderia acreditar, ao ler alguns parágrafos de um dos seus romances, que se tratava da forma literária de um naturalismo grosseiro que já se conhecia da pintura flamenga e, sobretudo, da pintura holandesa do século XII. Não seria mais do que uma orgia de bebida e de dança nas camadas mais baixas da população, como as retratadas nas obras de Rubens ou Jordaens, de Brouwer ou Ostade, embora, na literatura de Zola não fossem camponeses os que bebiam e dançavam, mas operários industriais. Além disso, como Zola conferiu um grande valor ao 58 elemento puramente sensorial da “pintura literária” de uma orgia da plebe, poder-se-ia achar, por um instante, que o que se desenrolava na frente do leitor não era mais do que um processo vigoroso de estilo baixo, uma devassa grosseira. Como exemplo, Auerbach cita o texto abaixo extraído de Germinal : Jusqu’à dix heures, on resta. Des femmes arrivaient toujours, pour rejoindre et emmener leurs hommes; des bandes d'enfants suivaient à la queue; et les mères ne se gênaient plus, sortaient des mamelles longues et blondes comme des sacs d'avoine, barbouillaient de lait les poupons joufflus; tandis que les petits qui marchaient déjà, gorgés de bière et à quatre pattes sous les tables, se soulageaient sans honte. C'était une mer montante de bière, les tonnes de la veuve Désir éventrées, la bière arrondissant les panses, coulant de partout, du nez, des yeux et d'ailleurs. On gonflait si fort, dans le tas, que chacun avait une épaule ou un genou qui entrait chez le voisin, tous égayés, épanouis de se sentir ainsi les coudes. Un rire continu tenait les bouches ouvertes, fendues jusqu'aux oreilles. Il faisait une chaleur de four, on cuisait, on se mettait à l'aise, la chair dehors, dorée dans l'épaisse fumée des pipes; et le seul inconvénient était de se déranger, une fille se levait de temps à autre, allait au fond, près de la pompe, se troussait, puis revenait. Sous les guirlandes de papier peint, les danseurs ne se voyaient plus, tellement ils suaient; ce qui encourageait les galibots à culbuter les herscheuses, au hasard des coups de reins. Mais, lorsqu'une gaillarde tombait avec un homme par- dessus elle, le piston couvrait leur chute de sa sonnerie enragée, le branle des pieds les roulait, comme si le bal se fût éboulé sur eux. 14 (ZOLA, 1966, p.155-6) Auerbach alega, no entanto, que, só por causa disso, os contemporâneos de Zola não teriam se irritado tanto. Entre os seus inimigos, que se encarniçavam contra o repugnante, o sujo, o obsceno da sua arte, havia, certamente, muitos que aceitavam o realismo grosseiro ou cômico de épocas anteriores, mesmo nas suas representações mais cruas ou mais amorais, 14 Ficou-se até as dez. Continuavam a chegar mulheres, para juntar-se e para levar embora os seus homens; bandos de crianças seguiam-nos; e as mães não faziam cerimônia, punham para fora mamas longas e loiras como sacos de aveia, borravam de leite os seus bebês bochechudos; enquanto os pequenos que já andavam, empanturrados de cerveja e de quatro sob as mesas , aliviavam-se sem vergonha. Era uma maré alta de cerveja, os tonéis da viúva Désir, estripados, a cerveja arredondando as panças, correndo em toda parte, do nariz, dos olhos e de outras partes. Estavam tão inchados e enroscados que cada um tinha um ombro ou um joelho que entrava no seu vizinho, todos alegres, expansivos por se sentirem assim acotovelados. Um riso contínuo mantinha todas as bocas abertas, fendidas até as orelhas. Fazia um calor de forno, cozinhava-se, ficava-se à vontade, a carne de fora dourada na espessa fumaça dos cachimbos; e o único inconveniente era o de se incomodar, uma moça levantava-se de vez em quando, ia até o fundo, perto da bomba, arregaçava-se, depois voltava. Sob as guirlandas de papel pintado os dançarinos não mais se viam, de tanto que suavam; o que encorajava os rapazes serventes nas minas a derrubar as rastilheiras ao acaso das nadegadas. Mas quando uma rapariga caía com um rapaz em cima dela, o pistão cobria a sua queda com o ressoar irado, o movimento dos pés os rolava, como se a dança tivesse desabado por cima deles. 59 com indiferença ou até com deleite. O que os enchia de excitação era o fato de que Zola não apresentava a sua arte como sendo de estilo “baixo” ou “cômico”. Ao contrário, suas linhas delatavam que aquilo era considerado da forma mais séria e moralista possível e que o conjunto não seria um divertimento ou um jogo artístico, mas um retrato verdadeiro da sociedade contemporânea tal como ele, Zola, a via e tal como o público também era intimado a vê-la nas suas obras. A temática dos romances de Zola, normalmente, abre espaço para a abordagem de alegrias pobres e grosseiras; da corrupção prematura, do rápido desgaste do material humano; do embrutecimento da vida sexual em contraste com um índice de natalidade demasiado elevado, pois a cópula é o único deleite gratuito; e, sob todas essas misérias humanas, o ódio revolucionário prestes a eclodir. Auerbach lembra que esses temas são postos em evidência sem disfarce, sem medo diante das palavras mais claras ou dos acontecimentos mais feios. Com Zola, a arte do estilo renuncia totalmente a procurar efeitos agradáveis, no sentido tradicional e serve, sem pudor, à verdade desagradável, opressiva, desconsolada. Uma verdade que, simultaneamente, estimula para uma ação no sentido da reforma social. Não mais se trata, como no caso dos irmãos Goncourt, do atrativo sensorial do feio. Tratase, sem sombra de dúvida, do cerne do problema social do século XIX, da luta entre o capital industrial e a classe operária. O princípio da arte pela arte está liquidado. O teórico alemão argumenta que, embora seja possível constatar que Zola sentiu e aproveitou a sugestão sensorial do feio e do repugnante; e censurá-lo por ter dado vazão a uma fantasia, um tanto grosseira e violenta, que levou-o a cometer exageros, brutais simplificações e a empregar uma psicologia demasiado materialista, tudo isso não é decisivo. Zola levou a sério a mistura de estilos, foi além do realismo meramente estético da geração que o precedeu e é um dos pouquíssimos escritores do século que construíram sua obra a partir dos grandes problemas sociais do seu tempo. Nesse sentido, apenas Balzac é comparável a ele, entretanto, o autor da Comédia Humana escreveu num tempo em que muito daquilo que Zola identificou, ou ainda não tinha se desenvolvido, ou não podia ser reconhecido. Assim, se Zola exagerou, ele o fez na direção que interessava e, se tinha predileção pelo feio, fe z dele o uso mais frutífero possível. 60 Auerbach conclui afirmando que, nos Rougon-Macquart, há uma soma inimaginável de inteligência e de trabalho. Hoje, estamos saturados de tais impressões. Zola teve muitos seguidores e cenas semelhantes às dos seus livros poderiam ser encontradas em qualquer reportagem moderna. No entanto, ele foi o primeiro, e a sua obra está repleta de quadros de espécie e de hierarquia semelhantes. Para Auerbach, ainda que os erros da concepção antropológica de Zola e os limites do seu gênio sejam evidentes, eles não ferem a sua importância artística, moral e , sobretudo, histórica. O teórico alemão também acredita que a figura de Zola crescerá, à medida que ganharmos distância do século XIX e dos seus problemas, principalmente, porque ele foi o último dos grandes realistas franceses. Durante os últimos anos de sua vida, a reação “antinaturalista” tornou-se muito forte, até porque, não havia mais ninguém que pudesse se equiparar a Zola, quanto à força de trabalho, ao domínio da vida e do seu tempo, ao fôlego e à coragem. Percorrendo a trilha literária deixada por Balzac e por Zola, na tentativa de alcançar um controle utópico do imaginário e de produzir obras que traduzissem literalmente a realidade, podemos questionar se a literatura se transformou em História, se se converteu em ciência, ou se, ao contrário, mesmo mantendo intactos os seus conteúdos subjetivo e imaginário, foi capaz de refletir a história e a essência de um tempo e de uma geração. No entanto, desde já podemos afirmar que, ainda que os dois escritores não tenham logrado conferir ao romance o status de ciência, tiveram a primazia de atribuir- lhe o nobre título de moderno. 61 CAPÍTULO II 4. A OBSESSÃO MIMÉTICA E O CONTROLE DO IMAGINÁRIO EM BALZAC E ZOLA Edificar um projeto do porte da Comédia humana, num primeiro momento, pareceu ser, aos olhos do próprio Balzac, um destes sonhos que, apesar de utópicos, acalentamos ao longo de toda a vida, mas que termina por se desvanecer entre nossos dedos; uma sedutora quimera que, após sorrir e mostrar seu rosto, parte em revoada para o céu da imaginação. Decidido a transformar a quimera em realidade, Balzac elaboraria um plano, um sistema o qual ele deveria seguir obstinadamente, a fim de provar que, se Buffon foi capaz de representar, em um livro, o conjunto da zoologia, a Literatura seria capaz de fazer o mesmo pela sociedade. O título do projeto balzaquiano, A Comédia Humana, apareceu pela primeira vez em 1839, em uma carta ao editor Hetzel e é uma franca alusão à obra de Dante, o que, na época, provocou uma enxurrada de críticas, quase todas associando a analogia feita à Divina Comédia à enorme falta de modéstia do escritor. Entretanto, em 1841, esse majestoso título já aparece em um contrato entre Balzac e um grupo de editores e foi com ele que o escritor reuniu os dezesseis volumes de sua obra, que foram publicados entre junho de 1842 e agosto de 1846, além de um volume complementar, o décimo sétimo, incorporado ao conjunto, em 1848. Essa edição, conhecida como edição Furne, confirmava um antigo desejo de Balzac de realizar um trabalho que pudesse ser visto na sua totalidade, além de ter sido a única organizada e controlada pelo autor e lida pelos seus contemporâneos. As duas introduções, escritas por Felix Davin, mas ditadas por Balzac, em janeiro e em julho de 1835, para os Estudos Filosóficos e os Estudos dos Costumes e alguns prefácios 62 como os dos livros: Lys dans la valée, Le Père Goriot e Cabinet des Antiques, quase todos polêmicos e escritos pelo autor, são exemplos das diversas tentativas empreendidas pelo escritor, na ânsia de explicar o seu sistema e de justificar suas intenções literárias. Assim sendo, em 1842, tanto Balzac quanto seus editores hesitaram sobre a natureza do texto que deveria prefaciar a obra monumental que estava prestes a ser publicada. O primeiro nome sugerido pelos editores para redigir o prefácio foi o do escritor Charles Nodier, que declinou o convite. Balzac, por sua vez, pensou em George Sand que, após ter aceito a missão, viu-se obrigada a abrir mão do projeto, por motivo de saúde. Finalmente, convencido pelos editores, Balzac se dispõe a escrever, ele mesmo, um texto introdutório para sua obra e, assim, em julho de 1842, nascia o prólogo que modificaria para sempre a história da literatura, O Prefácio da Comédia Humana. O texto, ambíguo e controverso, assume, por vezes, ares de manifesto, por outras, de discurso de defesa; e, repleto de momentos de puro lirismo, chega até mesmo a tatear, ainda que subliminarmente, o universo da ficção. No entanto, ele não pode ser definido nem como um manifesto, nem como um discurso de defesa, nem tão pouco como uma ficção. As vinte páginas que antecedem a leitura dos romances balzaquianos são, na realidade, uma tentativa de traduzir a ambição do escritor de conferir status de ciência à literatura, através de um sistema que engloba diversos níveis : científico, político, moral e estético. Para assegurar a cientificidade de seu projeto, Balzac lança mão do nome de várias autoridades em História Natural, Matemática e Biologia, como Leibnitz, Buffon e Charles Bonnet, dentre outros, cujas teorias ele pretendia incorporar à literatura, a fim de legitimarse como zoógrafo das diferentes espécies sociais. E até mesmo a querela que mobilizara Curvier e Saint-Hilaire, em 1830, é colocada em pauta, com o objetivo de anunciar uma literatura que deverá preconizar a unidade de composição orgânica defendida por SaintHilaire e saudada por Goethe : En relisant les oeuvres si extraordinaires des écrivains mystiques qui se sont occupés des sciences dans leurs relations avec l'infini, tels que Swedenborg, Saint-Martin, etc., et les écrits des plus beaux génies en histoire naturelle, tels que Leibnitz, Buffon, Charles Bonnet, etc., on trouve dans les monades de Leibnitz, dans les molécules organiques de Buffon, dans la force végétatrice de Needham, dans l'emboîtement des parties similaires de Charles Bonnet, assez hardi pour écrire en 1760 : 63 L'animal végète comme la plante ; on trouve, dis -je, les rudiments de la belle loi du soi pour soi sur laquelle repose l'unité de composition.[...] La proclamation et le soutien de ce système, en harmonie d'ailleurs avec les idées que nous nous faisons de la puissance divine, sera l'éternel honneur de Geoffroi Saint-Hilaire, le vainqueur de Cuvier sur ce point de la haute science, et dont le triomphe a été salué par le dernier article qu'écrivit le grand Goethe. 1 (BALZAC,1964, pag 190) Como o seu sistema deveria também abranger o âmbito moral e político e ter como alicerces o catolicismo e a monarquia, Balzac buscará suporte para justificar seus pressupostos legitimistas nas obras do filósofo e publicista Luis-Gabriel de Bonald e do bispo e teólogo francês, criador da teoria do direito divino, Jacques-Bénigne Bousset. Por fim, para um escritor que tencionava ser um arqueólogo do mobiliário social, seria natural que a obra projetasse, na forma, a mesma ambição científica desejada para o conteúdo. Daí a necessidade da criação de um sistema estruturado que propunha: a reunião dos inúmeros traços da personalidade humana, por meio de tipos caricaturais; a congregação dos seis conjuntos romanescos, segundo uma lógica antropomórfica, levando a obra a evoluir da infância à idade madura; o retorno dos personagens; e, finalmente, a interrelação entre os romances, de maneira a orquestrar as diversas histórias, para que compusessem um único romance. Assim, o sistema Balzaquiano se dispunha, também, a inaugurar uma nova estética literária. Quase meio século separa a publicação do Prefácio da Comédia Humana do lançamento do Romance Experimental. No entanto, se a literatura concedeu a Balzac o título de arqueólogo da vida íntima da Restauração à Monarquia de Julho, coube a Zola o de historiador dos dramas sociais do Segundo Império. Como observa George Lukacs, em Balzac et le Réalisme Français, o próprio Zola se considerava o legítimo herdeiro e 1 Relendo obras tão extraordinárias de escritores místicos que se ocuparam das ciências nas suas relações com o infinito, como Swedenborg, Saint Martin, etc, e os escritos dos maiores gênios em história natural, como Leibnitz, Buffon, Charles Bonnet, encontramos nas mônadas de Leibnitz, nas moléculas orgânicas de Buffon, na força vegetante de Needham, no encaixe das partes semelhantes de Charles Bonnet, audacioso o suficiente para escrever em 1760: O animal vegeta como a planta ; encontramos, digo, os rudimentos da bela lei do soi pour soi sobre a qual repousa a Unidade de composição [...] A proclamação e a sustentação deste sistema, em harmonia, aliás, com as idéias que fazemos da força divina, será a eterna honra de Geoffroi Saint-Hilaire, o vencedor de Cuvier neste ponto da alta ciência, e cujo triunfo foi saudado no último artigo escrito pelo grande Goethe.(tradução nossa) 64 sucessor dos grandes realistas do século XIX, ainda que se propusesse a aperfeiçoar a estética dos seus antecessores. Lukcas afirma que, para um escritor original como Zola, uma herança não poderia jamais representar um modelo mecânico. Portanto, a despeito da enorme admiração que ele dedicava ao autor da Comédia Humana, Zola não abre mão de fazer uma crítica mordaz aos realistas e de afirmar que o principal mérito de Balzac foi o de ter introduzido, na literatura, o “sentido do real” e que, no mais, apesar da sua enorme capacidade de análise e de observação da sociedade, o romance balzaquiano se deixara contaminar pela imaginação: En un mot, l'imagination de Balzac, cette imagination déréglée qui se jetait dans toutes les exagérations et qui voulait créer le monde à nouveau, sur des plans extraordinaires, cette imagination m'irrite plus qu'elle ne m'attire. Si le romancier n'avait eu qu'elle, il ne serait aujourd'hui qu'un cas pathologique et qu'une curiosité dans notre littérature. Mais, heureusement, Balzac avait en outre le sens du réel, et le sens du réel le plus développé que l'on ait encore vu. 2 (Zola, 1989, pag 41) Lukacs prossegue dizendo que a transição entre as duas estéticas se faz de forma muito menos retilínea do que Zola havia imaginado. Entre os dois escritores, existiu o ano de 1848, ou seja, um ano que foi decisivo para a evolução da ideologia burguesa na França e que marca a primeira grande manifestação autônoma do proletariado na História. No entanto, junto com essa manifestação, terminaria o papel progressista da ideologia burguesa e, pouco a pouco, a adaptação e a tendência à apologética ganhariam cada vez mais terreno. Apesar disso, seguindo as reflexões do filósofo húngaro, observamos que, na verdade, Zola nunca esteve entre os apologistas da ordem social capitalista. Ao contrário, ele empreenderia um corajoso combate, no início, limitado ao campo da literatura e, em seguida, abertamente político, contra a evolução reacionária do capitalismo francês. As experiências vividas pelo escritor, ao longo da vida, aproximaram- no aos poucos dos problemas do socialismo; e a evolução ideológica da sua classe acabaria por interferir, 2 Em resumo, a imaginação de Balzac, essa imaginação desregrada que se lança em todos os exageros e que queria criar o mundo de novo, sobre planos extraordinários, essa imaginação me irrita mais do que me atrai. Se o romancista tivesse tido somente essa imaginação, seria apenas, hoje, um caso patológico e uma curiosidade em nossa literatura. Felizmente, entretanto, Balzac possuía, além disso, o senso do real e o senso do real mais desenvolvido até aquele momento. 65 profundamente, na maneira de pensar, nos princípios e nos métodos de criação do escritor. Dessa forma, podemos concluir que a crítica social consciente e perspicaz seria muito mais enérgica e progressista na obra de Zola, do que na do monarquista católico, Balzac. Por outro lado, ainda de acordo com Lukacs, Balzac e Stendhal – que descreveram a passagem da França burguesa do heróico período da Revolução e de Napoleão à hipócrita e romântica época da Restauração e à infame, e abertamente pequeno-burguesa, Monarquia de Julho – viveram em um momento histórico no qual a oposição entre a burguesia e o proletariado não apareciam ainda de maneira manifesta como centro do movimento geral da sociedade. Eles puderam, portanto, desvelar e representar, sem cuidados prévios e de maneira conseqüente, as mais profundas contradições da sociedade burguesa; no entanto, o mesmo não ocorre entre os seus sucessores, visto que tamanha profundidade e ausência de precaução, aliadas a uma crítica social tão ampla, teriam conduzido a uma ruptura total com sua própria classe. Assim, mesmo sendo sinceramente progressista, Zola não conseguiu realizar tamanha ruptura. Para George Lukacs, esse posicionamento se reflete nas bases da concepção metodológica do escritor, na medida em que ele rejeita a dialética totalmente natural de Balzac e o seu desnudamento visionário e veemente das contradições do capitalismo, como sendo anticientíficos e românticos e coloca, no lugar, um método “científico” que concebe a sociedade como um combate contra os aspectos doentios de seu próprio organismo homogêneo, um combate contra o “lado mau” do capitalismo : Le circulus social est identique au circulus vital : dans la société comme dans le corps humain, il existe une solidarité qui lie les différents membres, les différents organes entre eux, de telle sorte que, si un organe se pourrit, beaucoup d'autres sont atteints, et qu'une maladie très complexe se déclare. 3 (ZOLA, 1964, pag 280). O filósofo afirma, ainda, que o “espírito científico” do autor do Romance Experimental conduz, por conseguinte, a uma assimilação mecânica da sociedade e do organismo, e que é 3 O circulus social é idêntico ao circulus vital : na sociedade, tanto quanto no corpo humano, existe uma solidariedade que liga os diferentes órgãos, entre si, de tal modo que, se um órgão apodrece, muitos outros são atingidos e uma doença muito complexa se declara. 66 seguindo esse raciocínio, de maneira coerente, que Zola elabora sua crítica ao Prefácio da Comédia Humana. Balzac desejava aplicar à sociedade a dialét ica da evolução das espécies, defendida por Geoffroy Saint-Hilaire. Para tanto, ele utiliza, com toda a sua energia, as novas categorias da dialética da sociedade. É aí que, segundo Lukacs, aos olhos de Zola, a “clareza do plano científico” teria se perdido, pois existe uma “confusão” romântica de Balzac. O que Zola admite como resultado “científico” é a concepção não dialética de uma unidade orgânica na natureza e na sociedade, ou seja, a eliminação das contradições como fundamento do movimento da sociedade. Com base nesse pressuposto, ele atribui a Flaubert o mérito de ter realizado o sonho realista proposto por Balzac : Quand Madame Bovary parut, il y eut toute une évolution littéraire. ll sembla que la formule du roman moderne, éparse dans l'oeuvre colossale de Balzac, venait d'être réduite et clairement énoncée dans les quatre cents pages d'un livre. 4 (ZOLA, 1989, pag : 131) Zola acredita que a grandiosidade de Flaubert se deve, primeiramente, à eliminação de todos os elementos romanescos : Le premier caractère du roman naturaliste, dont Madame Bovary est le type, est la reproduction exacte de la vie, l'absence de tout élément romanesque. La composition de l'oeuvre ne consiste plus que dans le choix des scènes et dans un certain ordre harmonique des développements. Les scènes sont elles-mêmes les premières venues : seulement, l'auteur les a soigneusement triées et équilibrées, de façon à faire de son ouvrage un monument d'art et de science. 5( ZOLA, 1989, pag 132) Entretanto, mesmo sem retirar de Balzac o mérito de também ter sido um mestre na representação realista do cotidiano, ele persiste na idéia de que, ao contrário de Flaubert, a ânsia realista do autor da Comédia Humana acabava sempre sendo corrompida pela eclosão 4 Quando Madame Bovary apareceu, houve toda uma revolução literária. Parecia que a fórmula do romance moderno, dispersa na obra colossal de Balzac, acabava de ser simplificada e claramente enunciada nas quatrocentas páginas de um livro. 5 A primeira característica do romance naturalista, do qual Madame Bovary é o protótipo, é a reprodução exata da vida, a ausência de todo elemento romanesco. A composição da obra consiste apenas na escolha das cenas e numa ordem harmônica dos desenvolvimentos. As cenas são elas próprias as primeiras que chegam : contudo, o autor as selecionou e equilibrou cuidadosamente , de modo a fazer de sua obra um monumento de arte e de ciência. 67 do imaginário, o que condenaria a obra balzaquiana a mergulhar em um universo de sonho e fantasia : Balzac, dans ses chefs- d'oeuvre : Eugénie Grandet, Les Parents pauvres, Le père Goriot, a donné ainsi des images d'une nudité magistrale, où son imagination s'est contentée de créer du vrai. Mais, avant d'en arriver à cet unique souci des peintures exactes, il s'était longtemps perdu dans les inventions les plus singulières, dans la recherche d'une terreur et d'une grandeur fausses ; et l'on peut même dire que jamais il ne se débarrassa tout à fait de son amour des aventures extraordinaires, ce qui donne à une bonne moitié de ses oeuvres l'air d'un rêve énorme fait tout haut par un 6 homme éveillé . ( ZOLA, 1989, pag 133) Em segundo lugar, de acordo com o autor do Romance Experimental, Balzac nunca se absteve de criar personagens grandiosos, exuberantes, enquanto que, na vida real, são raras as ocasiões em que nos deparamos com homens fora do comum. Para Zola, o romancista fatalmente mata os heróis, se ele só aceita o percurso ordinário de uma existência comum : Fatalement, le romancier tue les héros, s'il n'accepte que le train ordinaire de l'existence commune. Par héros, j'entends les personnages grandis outre mesure, les pantins changés en colosses. Quand on se soucie peu de la logique, du rapport des choses entre elles, des proportions précises de toutes les parties d'une oeuvre, on se trouve bientôt emporté a vouloir faire preuve de force, à donner tout son sang et tous ses muscles au personnage pour lequel on éprouve des tendresses particulières. De là, ces grandes créations, ces types hors nature, debout, et dont les noms restent. Au contraire, les bonshommes se rapetissent et se mettent à leur rang, lorsqu'on éprouve la seule préoccupation d'écrire une oeuvre vraie, pondérée, qui soit le procès-verbal fidèle d'une aventure quelconque. [...] La beauté de l'oeuvre n'est plus dans le grandissement d'un personnage, […] elle est dans la vérité indiscutable du document humain, dans la réalité absolue des peintures où tous les détails occupent leur place, et rien que cette place. Ce qui tiraille presque toujours les romans de Balzac, c'est le grossissement de ses héros; il ne croit jamais les faire assez gigantesques; ses poings puissants de créateur ne savent forger que des géants. Dans la formule naturaliste, cette exubérance de l'artiste, ce caprice de composition promenant un personnage d'une grandeur hors nature au milieu de personnages nains, se trouve forcément condamné. Un 6 Balzac, em suas obras -primas, Eugênia Grandet, Os Pais pobres, O Pai Goriot,criou, assim, imagens de uma nudez magistral, onde sua imaginação contentou-se em criar o real. Entretanto, antes de chegar a essa preocupação única com as pinturas exatas, perdeu-se durante muito tempo nas invenções mais singulares, na busca de um terror e de uma grandeza falsos; e pode-se até mesmo dizer que ele nunca se libertou completamente de seu amor pelas aventuras extraordinárias, o que dá a uma boa metade de sua obra a atmosfera de um sonho enorme feito francamente por um homem desperto. 68 égal niveau abaisse toutes les têtes, car les occasions sont rares où l'on ait vraiment à mettre en scène un homme supérieur. 7 (Zola, 1989, Pag133) Por último, é interessante observar que a ciência a qual Balzac toma como modelo não se insere dentro do positivismo que Augusto Comte acabara de desenvolver. Ele advoga em favor de uma literatura erigida sobre dois pilares : o catolicismo e a monarquia; e para sustentar sua tese, apóia-se na filosofia mística de Swedenborg e Saint-Martin e nos preceitos políticos e morais de Bonald e Busset. Assim sendo, a literatura científica proposta por ele estaria muito mais próxima dos estados denominados por Comte de teológico e metafísico, do que do estado positivo, no qual o homem procurava conhecer e explicar a natureza através da observação e da experimentação. E é partindo dessas premissas, de suas críticas à herança realista, que Zola efetua a passagem do realismo, ao que ele considerava uma definição mais propícia à estética do romance moderno, o naturalismo. Segundo Henri Mitterant, em Zola et Le naturalismo, a palavra naturalismo aparece pela primeira vez em Zola, em 25 de julho de 1866, em um artigo para o jornal L´Evénement, numa alusão ao filósofo e historiador Hippolyte Taine, a quem o romancista concede o título de “naturalista do mundo moral”. No entanto, o escritor sempre fez questão de afirmar, com veemência, não ser ele o inventor do termo : “Meu Grande crime seria o de ter inventado um termo novo para designar uma escola velha como o mundo. De início, não creio ter inventado a 7 Fatalmente, o romancista mata os heróis, se só aceita a maneira ordinária de existência comum. Por heróis, entendo as personagens exageradamente ampliadas, os títeres transformados em colossos. Quando nos preocupamos pouco com a lógica, com a relação das coisas entre si, com as proporções precisas de todas as partes de uma obra, somos em pouco tempo levados a mostrar força, a dar todo o sangue e músculos à personagem pela qual sentimos ternuras particulares. Daí, essas grandes criações, esses tipos fora do normal, aprumados, e cujos nomes permanecem. Ao contrário, homens simples se reduzem e se colocam a seu nível, quando experimentamos a preocupação única de escrever uma obra verdadeira, ponderada, que seja o termo fiel de uma aventura qualquer. [...] A beleza de uma obra não se encontra mais na ampliação de uma personagem, [...] ela está na verdade indiscutível do testemunho humano, na realidade absoluta das pinturas, em que todos os detalhes ocupam seu lugar. O que incomoda quase sempre nos romances de Balzac é o exagero de seus heróis; nunca crê fazê-los gigantescos o bastante; seus poderosos punhos de criador só sabem forjar gigantes. Na fórmula naturalista, essa exuberância do artista, esse capricho de composição movendo uma personagem de grandeza fora do normal no meio de personagens anãs, são forçosamente condenados. Semelhante nível abaixa todas as cabeças, pois são raras as ocasiões em que se pode realmente colocar em cena um homem superior. 69 palavra, que estava em uso em várias literaturas estrangeiras; eu a apliquei, no máximo, à evolução natural de nossa literatura nacional.” (ZOLA, 1979, p.87) Mas, se não podemos atribuir ao escritor o mérito da criação de um neologismo, podemos, no entanto, aferir a ele o de ser o responsável pela recuperação e pela fusão de todas as significações e valores do termo naturalismo : científico, filosófico, artístico e literário. Ainda segundo Henri Mitterant, em Zola théoricien et critique du roman, quando, em 1880, O Romance Experimental chegou às bancas, Zola não esperava atingir, através dessa publicação, um grande sucesso de vendas. Para ele, O Romance Experimental era uma maneira de coroar uma carreira, já antiga, de cronista e crítico literário; de afirmar uma maturidade de chefe de escola e, sobretudo, de mostrar que suas obras, que tinham provocado escândalo – e que lhe trouxeram fortuna – respondiam a uma estética deliberada, forte e profunda. Era, também, uma maneira de afirmar, aos quarenta anos de idade, uma maestria comparável à de Balzac, Stendhal, Flaubert e dos Goncourt. Em 1866, com apenas vinte e seis anos, Zola publica Mes Haines e, logo em seguida, Mon Salon, seu primeiro estudo sobre a arte dos pintores. Um ano e meio mais tarde, o prefácio para a segunda edição de Thérese Raquin. Essas publicações confirmavam a intenção do autor de seguir a mesma escola de Balzac, Taine e dos Goncourt, recomendando que fosse transferido, para a arte, o mesmo espírito de observação, de análise, método e de pesquisa responsáve l pelo progresso das ciências, a despeito de todo dogma ou de toda reverência religiosa ou retórica. De 1868 a 1872, Zola se dedicou principalmente à crônica política e à preparação dos Rougon-Macquart. Durante esse período, foram raras as ocasiões em que pôde expressar sua admiração pela estética realista e desenvolver seus pressupostos teóricos. Entretanto, num período em que a “ordem moral” vigorava , a ousadia política de Zola faria com que as portas da imprensa francesa se fechassem para ele. Assim, em 1875, ele se torna colaborador na revista Messager de l´Europa na longínqua Rússia . Lá, o escritor retomaria sua vocação teórica, responsável pela inserção definitiva do conceito de Naturalismo na história da Literatura. 70 Em 1878, o escritor Henry Céard, amigo íntimo de Zola, emprestou ao romancista um exemplar de Introduction à l’étude de la médicine expérimentale do fisiologista francês, Claude Bernard. Aparentemente, ele nunca devolveu o livro ao amigo. Nos seus arquivos familiares foi encontrado um exemplar da Introduction com inúmeras anotações feitas à mão pelo escritor. Fascinado pela teoria do médico francês, ele acrescentaria um componente novo, extremamente polêmico e definitivo às suas teses : “o método experimental”. Assim, os princípios incorporados às teorias de Zola pela obra de Bernard dariam origem ao longo artigo publicado no le Messeger de l’ Europe, em 1879, e que abre o Romance Experimental. Em 1880, o livro que carregava o título de Le roman expérimental reunia, em um único volume, sete trabalhos publicados por Zola no ano anterior em periódicos russos e franceses: Le roman expérimental, Lettre à la jeunesse, Le Naturalisme au théâtre, L´argent dans la littérature, Du Roman, De la critique e la république et la littérature. Dessa forma, podemos constatar que o título Le roman expérimental acabou generalizando-se para o volume inteiro. No entanto, é no primeiro estudo que ocupava as páginas 55 a 97, da edição Garnier-Flammarion, que Zola expõe os fundamentos da sua teoria científico- literária. E é esse primeiro estudo que hoje conhecemos com o nome de Romance Experimental. O médico e fisiologista Claude Bernard começou sua vida acadêmica em 1847, como suplente de François Magendie no Collège de France. Em 1855, com a morte de Magendie, torna-se o titular da cadeira de fisiologia experimental e passa a se dedicar a pesquisas múltiplas sobre a digestão, o sistema nervoso, a ação dos venenos e os líquidos do organismo. Célebre, suas conferências atraíam um público heterogêneo, do qual faziam parte escritores famosos, como : os irmãos Goncourt, Théophile Gautier e Flaubert. Entre 1855 e 1859, Bernard publicou diversos trabalhos que alimentaram seu curso no Collège de France e se tornou um opositor incansável das escolas de medicina que seguiam um programa e que se propunham a transmitir as aquisições do passado. Para ele, a fisiologia deveria ser experimentada em um laboratório : “Jusqu´ici je me suis tourjours abstenu dans mes cours de géneralisations et de systématisations, parce que je pensais que l´état de la science physiologique ne le permettait pas. Je me suis borné à étudier des sujets 71 variés de physiologie expérimentale...Je transportais , pour ainsi dire, mon laboratoire sous vos yeux et je vous faisais toujours assister à mes recherches en quelque sorte improvisées sans jamais vous dissimuler en rien les imperfections, les erreurs et les difficultés qui les accompaggnaient inévitablement.” 8 ( BERNARD, 1966, p.9) Em 1865, devido a problemas de saúde, Claude Bernard é obrigado a deixar, não só o laboratório que lhe era tão caro, mas também, Paris, e a se recolher na sua cidade natal, Saint-Julien. O repouso e a solidão estimulam o fisiologista a meditar e é dessa reflexão que nasce L´introdution à l´étude de la médicine expérimentale, livro que traduzia a ânsia nutrida por Bernard durante anos de ascender a medicina, que até então tinha suas bases no empirismo, à categoria de ciência experimental. A obra deveria servir de introdução a um conjunto vasto de princípios que permaneceria inacabado: Principes de médicine expérimentale. Assim, é com a proposta de conservar a saúde e curar as doenças, através de uma medicina científica, que Bernard inicia sua tese : Conserver la santé et guérir les maladies : tel est le problème que la médecine a posé dès son origine et dont elle poursuit encore la solution scientifique. L'état actuel de la pratique médicale donne à présumer que cette solution se fera encore longtemps chercher. Cependant, dans sa marche à travers les siècles, la médecine, constamment forcée d'agir, a tenté d'innombrables essais dans le domaine de l'empirisme et en a tiré d'utiles enseignements. Si elle a été sillonnée et bouleversée par des systèmes de toute espèce que leur fragilité a fait successivement disparaître, elle n'en a pas moins exécuté des recherches, acquis des notions et entassé des matériaux précieux, qui auront plus tard leur place et leur signification dans la médecine scientifique. De notre temps, grâce aux développements considérables et aux secours puissants des sciences physico-chimiques, l'étude des phénomènes de la vie, soit à l'état normal, soit à l'état pathologique, a accompli des progrès surprenants qui chaque jour se multiplient davantage. Il est ainsi évident pour tout esprit non prévenu que la médecine se dirige vers sa voie scientifique définitive. Par la seule marche naturelle de son évolution, elle abandonne peu à peu la région des systèmes pour revêtir de plus en plus la forme analytique, et rentrer ainsi graduellement dans la méthode d'investigation commune aux sciences expérimentales. 9 (BERNARD, 1966,p.25) 8 Até aqui sempre me abstive, nos meus cursos, de generalizações e de sistematizações, porque eu pensava que o estado da ciência fisiológica não o permitia. Eu me limitei a estudar sujeitos variados de fisiologia experimental... Transportava, por assim dizer, meu laboratório sob vossos olhos e sempre fazia com que assistísseis às minhas pesquisas, de certa maneira, improvisadas sem jamais dissimular em nada as imperfeições, os erros e as dificuldades que as acompanhava inevitavelmente. (tradução nossa) 9 Conservar a saúde e curar as doenças : tal é o problema que a medicina apresentou desde a sua origem e para o qual ela ainda persegue a solução científica. O estado atual da prática mé dica leva a presumir que essa 72 Por conseguinte, o Romance Experimental, que se fundamenta no tratado de Claude Bernard, traçaria suas bases partindo do seguinte argumento : Je n'aurai à faire ici qu'un travail d'adaptation, car la méthode expérimentale a été établie avec une force et une clarté merveilleuses par Claude Bernard, dans son Introduction à l'étude de la médecine expérimentale . Ce livre, d'un savant dont l'autorité est décisive, va me servir de ba se solide. Je trouverai là toute la question traitée, et je me bornerai, comme arguments irréfutables, à donner les citations qui me seront nécessaires. Ce ne sera donc qu'une compilation de textes; car je compte, sur tous les points, me retrancher derrière Claude Bernard. Le plus souvent, il me suffira de remplacer le mot "médecin" par le mot "romancier", pour rendre ma pensée claire et lui apporter la rigueur d'une vérité scientifique. Ce qui a déterminé mon choix et l'a arrêté sur l'Introduction, c'est que précisément la médecine, aux yeux d'un grand nombre, est encore un art, comme le roman. Claude Bernard a, toute sa vie, cherché et combattu pour faire entrer la médecine dans une voie scientifique. Nous assistons là aux balbutiements d'une science se dégageant peu à peu de l'empirisme pour se fixer dans la vérité, grâce à la méthode expérimentale. 10 (ZOLA, 1964, p. 257) No entanto, a proposta de Zola é tão ousada e ilusória, quanto paradoxal. Sedutora, é bem verdade, já que foi minuciosamente lapidada por um mestre da retórica e, talvez, venha daí solução ainda será procurada durante muito tempo. Entretanto, na sua marcha através dos séculos, a medicina, constantemente forçada a agir, tentou inúmeros ensaios no domínio do empirismo e deles tirou ensinamentos úteis. Se ela foi aberta e revolvida por sistemas de todas as espécies cuja fragilidade fez desaparecer sucessivamente, ela executou pesquisas, adquiriu noções e acumulou materiais preciosos, os quais, mais tarde, terão seu lugar e sua significação na medicina científica. No nosso tempo, graças ao desenvolvimento considerável e a ajuda poderosa das ciências fisico-químicas, o estudo dos fenômenos da vida, seja no estado normal, seja no estado patológico, acumulou progressos surpreendentes que cada dia se multiplicam mais. Assim, é evidente, para todo espírito desprevenido, que a medicina se dirige na direção da sua via científica definitiva. Simplesmente pelo caminhar natural da sua evolução, ela abandona pouco a pouco a região dos sistemas, para assumir cada vez mais a forma analítica e entrar, assim, gradualmente, no método de investigação comum às ciências experimentais. (tradução nossa) 10 Farei aqui tão somente um trabalho de adaptação, pois o método experimental foi estabelecido com uma força e uma clareza maravilhosas por Claude Bernard, em sua Introdução ao Estudo da Medicina Experimental. Este livro, de um cientista cuja autoridade é decisiva, vai servir-me de base sólida. Nele, encontrarei toda a questão tratada e limitar-me -ei, como argumentos irrefutáveis, a dar as citações que me serão necessárias. Será apenas uma compilação de textos, uma vez que pretendo, em todos os pontos, entrincheirar-me atrás de Claude Bernard. No mais das vezes, bastará substituir a palavra “médico” pela palavra “romancista”, para tornar claro o meu pensamento e conferir-lhe o rigor de uma verdade científica. O que determinou minha escolha, fixando-a na Introdução, foi justamente o fato da Medicina ser ainda para muitos uma arte, como o romance. Claude Bernard procurou e combateu durante toda a sua vida para fazer a Medicina entrar em um caminho científico. Com ele, assistimos ao balbuciar de uma ciência que se desprende pouco a pouco do empirismo para fixar-se na verdade, graças ao método experimental. 73 o maior mérito do escritor, o de ser um alquimista das letras e, com elas, recobrir as vestes etéreas da imaginação com fios de ouro, disfarçando-a de realidade. A proposta é ilusória, porque afinal, como o romancista poderia provocar, literariamente, uma experiência no sentido mais rigoroso do termo ? E paradoxal porque Zola afirma entrincheirar-se atrás do fisiologista francês, quando o próprio Claude Bernard dá a seguinte definição das artes e das letras, na Introduction à l'étude de la médecine expérimentale: Pour les arts et les lettres, la personnalité domine tout. Il s'agit là d'une création spontanée de l'esprit, et cela n'a plus rien de commun avec la constatation des phénomènes naturels, dans lesquels notre esprit ne doit rien créer. Le passé conserve toute sa valeur dans ces créations des arts et des lettres ; chaque individualité reste immuable dans le temps et ne peut se confondre avec les autres. Un poète contemporain a caractérisé ce sentiment de la personnalité de l'art et de l'impersonnalité de la science par ces mots : l'art, c'est moi ; la science, c'est nous.11 (BERNARD, 1966, p. 76) Zola demonstra estar extremamente decepcionado com a afirmação de Bernard, pois surpreende-se ao se deparar com um cientista, considerado por ele dos mais ilustres, na contingência de negar às letras a entrada do domínio científico. Com o objetivo de justificar o médico fisilogista, ele tenta acreditar que essa definição se refere apenas à poesia lírica, convencendo-se de que seria impossível que, ao elaborá- la, ele tenha pensado no romance experimental ou nas obras de Balzac e Stendhal. Entretanto, outra definição de Bernard deixaria o autor do Romance Experimental ainda mais indignado : D'abord qu'est-ce qu'u n artiste ? C'est un homme qui réalise dans une œuvre d'art une idée ou un sentiment qui lui est personnel. Il y a donc deux choses : l'artiste et son œuvre ; l'œuvre juge nécessairement l'artiste. Mais que sera le médecin artiste ? Si c'est un médecin qui traite une maladie d'après une idée ou un sentiment qui lui sont personnels, où sera alors l'œuvre d'art, qui jugera cet artiste médecin ? Sera-ce la guérison de la maladie ? Outre que ce serait là une œuvre d'art d'un genre singulier, cette œuvre lui sera toujours fortement disputée par la nature. Quand un grand peintre ou un grand sculpteur font un beau tableau ou une magnifique statue, personne n'imagine que la statue ait pu pousser de la 11 Quanto às artes e às letras, a personalidade domina tudo. Trata-se de uma criação espontânea do espírito, e esse não tem mais nada em comum com a constatação dos fenômenos naturais, nos quais nosso espírito nada deve criar. O passado conserva todo o seu valor nessas criações das artes e das letras; cada individualidade permanece imutável no tempo e não pode se confundir com as outras. Um poeta contemporâneo caracterizou esse sentimento da personalidade da arte e da impessoalidade da ciência com estas palavras: A arte, sou eu; a ciência, somos nós.(tradução nossa) 74 terre ou que le tableau ait pu se faire tout seul, tandis qu'on peut parfaitement soutenir que la maladie a guéri toute seule et prouver souvent qu'elle aurait mieux guéri sans l'intervention de l'artiste.12 (grifo nosso) (BERNARD, 1966, p. 286) Zola repudia a definição grifada e que viria seguida de uma explicação de Bernard, alegando que o sentimento pessoal do artista sempre fica submetido ao controle da verdade, e é assim que ele chega à hipótese. Para o escritor, o artista parte do mesmo ponto que o cientista, ou seja, ele se coloca diante da natureza, tem uma id éia e trabalha de acordo com essa idéia. Somente quando leva sua idéia até o final, sem verificar a sua exatidão pela observação e pela experiência, é que ele se separa do cientista. Ele continua sua argumentação, afirmando que os escritores devem abrir o caminho aos cientistas e que, quando o homem começou a tentar explicar os fenômenos, os poetas disseram sua maneira de sentir e os cientistas vieram logo após para controlar as hipóteses e fixar a verdade. Para o romancista, este papel de pioneiros que Claude Bernard atribui aos filósofos, hoje cabe, também, aos escritores. No entanto, ele insiste que todas as vezes que uma verdade é fixada pelos cientistas, os escritores devem abandonar imediatamente sua hipótese para adotar essa verdade. Finalmente, diante desses dois autores que se dispõem a fazer da literatura uma ciência e do romance a reprodução da realidade, resta-nos alguns questionamentos sobre essas duas teorias utópicas e sobre os elementos que fazem do jogo literário proposto por elas, uma bem orquestrada sinfonia de ilusões. Afinal, que experiência é essa que Zola nos propõe, na qual a doença são os males que corrompem a alma humana, em que o laboratório é a sociedade e o resultado a própria vida? O jogo de metáforas apresentado por esses dois ficcionistas nada mais é do que um 12 O que é um artista? É um homem que realiza numa obra de arte uma idéia ou um sentimento que lhe é pessoal. Existem, portanto, duas coisas : o artista e sua obra; a obra julga, necessariamente, o artista. Mas, o que será o médico artista ? Se for um médico que trata de uma doença de acordo com uma idéia ou um sentimento que lhe são pessoais , onde estará então a obra de arte, que julgará esse artista? Será essa a cura da doença? Por outro lado, essa seria uma obra de arte de um gênero singular, ele sempre disputaria esta obra com a natureza. Quando um grande pintor ou um grande escultor faz um belo quadro ou uma magnífica estátua, ninguém imagina que a estátua possa ter nascido da terra ou que o quadro possa ter sido feito sozinho, enquanto podemos, perfeitamente, sustentar que a doença se curou sozinha e provar, freqüentemente, que ela teria sarado melhor sem a intervenção do artista. (tradução nossa) 75 terreno fértil para que a imaginação floresça e atinja sua plenitude. Somente um mestre da ficção como Balzac seria capaz de nos transportar para um universo em que a sociedade francesa, personificada na figura de um historiador, dita para o jovem autor da Comédia Humana o inventário dos nossos vícios e virtudes, os principais eventos da sociedade e os mais importantes episódios das paixões, enfim, a história dos costumes. Mergulhados nesse universo ficcional, indagamo-nos sobre que face teria esse historiador. Certamente, a de uma divindade, pois, somente a um deus ou a uma deusa caberia o papel de ditar a um redator os conceitos do bem e do mal. Mas qual? Atena, deusa da sabedoria e da justiça; Dionísio, deus da luxúria e do vinho; ou Eros deus do amor e da paixão ? Tendo em vista os personagens que povoam a Comédia Humana, trata-se de um Deus sem face que pode ser todos ou nenhum. Assim como Sherazade não foi descrita nas Mil e uma noites, também o historiador que personifica a sociedade francesa não se revela; ele é qualquer uma das figuras míticas que povoam a nossa imaginação, já que o rosto da sociedade depende de quem vê. Dessa forma, fica claro que o escritor realista não detém a patente da verdade histórica e que o naturalista não faz experiência alguma, ambos apenas reúnem o maior número possível de documentos a respeito de um tema e, assim, elegem uma trama. Em seguida, após estudá- la até a exaustão, imiscuem-se, no contexto, para sentir a natureza daque le universo e juram exprimí- la tal qual, como se ela fosse inteiramente perceptível, como se o autor pudesse desaparecer por trás da obra. Na realidade, esses romancistas são, antes de mais nada, contadores de histórias, donos de uma imaginação e de uma capacidade ímpar de criar personagens, engendrar enredos e de jogar com a realidade do universo ficcional. As contradições presentes nos textos teóricos de Balzac e Zola nos permitem verificar com que elementos os dois escritores jogam, a fim de velar o imaginário e vestir a Literatura com uma roupagem de ciência. Elas, também, nos possibilitam deflagrar os momentos em que o imaginário, intensamente subliminado, escapa, retira o véu e se mostra lírico, tenaz e pungente. Balzac, no início do seu prefácio, afirma: 76 Si Buffon a fait um magnifique ouvrage en essayant de réprésenter dans un livre l´ensemble de la zoologie, n´y avait-il pas une oeuvre de ce genre à faire pour la société? 13 (BALZAC,1964,p.191) Mais adiante, ele prossegue: Ainsi l´oeuvre à faire devait avoir une triple forme: Les hommes, les femmes et les choses, c´est-à-dire les personnes et la représentation matérielle qu´ils donnent de leur pensée; enfin l´homme et la vie, car la vie est notre vêtement. 14 ( BALZAC, 1964, p.192) E finalmente, anuncia a sua proposta: Ce travail n'était rien encore. S'en tenant à cette reproduction rigoureuse, un écrivain pouvait devenir un peintre plus ou moins fidèle, plus ou moins heureux, patient ou courageux des types humains, le conteur des drames de la vie intime, l'archéologue du mobilier social, le nomenclateur des professions, l'enregistreur du bien et du mal; mais, pour mériter les éloges que doit ambitionner tout artiste, ne devais-je pas étudier les raisons ou la raison de ces effets sociaux, surprendre le sens caché dans cet immense assemblage de figures, de passions et d'événements. Enfin, après avoir cherché, je ne dis pas trouvé, cette raison, ce moteur social, ne fallait -il pas méditer sur les principes naturels et voir en quoi les Sociétés s'écartent ou se rapprochent de la règle éternelle, du vrai, du beau? 15 (BALZAC, 1964, p.195) Zola, por sua vez, inicia o Romance experimental com o seguinte questionamento : Avant tout, la premiére question qui se pose est celle -ci: en littérature, où jusquìci l´observation paraît avoir été seule employée, l´expérience estelle possible? 16 ( ZOLA, 1964, p.260) 13 Se Buffon fez uma obra magnífica ao tentar representar, em um livro, o conjunto da zoologia, não haveria uma obra desse mesmo gênero a ser feita para a sociedade? (tradução nossa) 14 Assim, a obra a ser feita deveria ter uma forma tripla: Os homens, as mulheres e as coisas, ou seja, as pessoas e a representação material que elas dão do seu pensamento; enfim, o homem e a vida, porque a vida é a nossa vestimenta. 15 Este trabalho não é nada ainda. Atendo-se a essa reprodução rigorosa, um escritor poderia tornar-se um pintor mais ou menos fiel, mais ou menos feliz, paciente ou corajoso dos tipos humanos. O narrador dos dramas da vida íntima, o arqueólogo do mobiliário social, o nomenclador das profissões, o registrador do bem e do mal; mas, para merecer os elogios que deve ambicionar todo artista, eu não deveria estudar a razão ou as razões desses efeitos sociais? Surpreender o sentido escondido neste imenso conjunto de figuras, de paixões e de acontecimentos. Enfim, depois de ter procurado, eu não digo encontrado, essa razão, esse motor social, não seria preciso meditar sobre os princípios naturais e ver no que as sociedades se afastam ou se aproximam da regra eterna, do verdadeiro, do belo? (tradução nossa) 16 Antes de mais nada, a primeira questão que se coloca é esta: será que em literatura – onde até aqui apenas a observação parece ter sido empregada – a experiência é possível? 77 Alguns parágrafos após, ele mesmo elabora a resposta: Eh bien ! en revenant au roman, nous voyons également que le romancier est fait d'un observateur et d'un expérimentateur. L'observateur chez lui donne les faits tels qu'ils les a observés, pose le point de départ, établit le terrain solide sur lequel vont marcher les personnages et se développer les phénomènes. Puis l'expérimentateur paraît et institue l'expérience, je veux dire fait mouvoir les personnages dans une histoire particulière, pour y montrer que la succession des faits y sera telle que l'exige le déterminisme des phénomènes mis à l'étude. C'est presque toujours ici une expérience « pour voir », comme l'appelle Claude Bernard. Le romancier part à la recherche d'une vérité. 17 ( ZOLA, 1964, p. 263) A tentativa de desmistificar a pretensão cientificista de Balzac e Zola abre, assim, espaço para que consideremos algumas reflexões de Wolfgang Iser, para quem a Literatura, enquanto estudo ou reflexão do que é humano, não pode buscar os padrões de sua descrição noutra disciplina, pois nesse caso, ela, a literatura, estaria fadada ao mesmo destino que já sofreu com a psicanálise : servir de ilustração às suas premissas. Iser considera ainda que como o fictício e o imaginário fazem parte do que é específico do ser humano, existem também na vida real, não se limitando à literatura, o que nos leva a pensar sobre de que forma as escolas realista e naturalista poderiam reproduzir literariamente a realidade, impondo um veto à ficção. Para o teórico, o que caracteriza a literatura é a articulação organizada do fictício e do imaginário e, dessa articulação, a Literatura emerge e, assim, diferenc ia-se de outros meios, levando em conta que os fenômenos da arte por si só não existem, como também, não existem as constantes supostamente antropológicas. Apesar de considerar que hoje a distinção entre realidade e ficção já faça parte do nosso “saber tácito”, ou seja, do nosso repertório de certezas, Iser afirma que ainda existe espaço para se discutir até que ponto os textos “ficcionados” são de fato ficcionais, e os que assim não se dizem são de fato isentos de ficção. O que ele propõe é que a relação dupla da ficção com a realidade seja substituída por uma relação tríplice: o real, o fictício e o imaginário. Isso porque, como ele afirma, o texto ficcional contém elementos do real sem que se esgote na 17 Pois bem, voltando ao romance, vemos também que o romancista é feito de um observador e de um experimentador. Nele, o observador apresenta os fatos tal qual os observou, define o ponto de partida, estabelece o terreno sólido no qual as personagens vão se desenvolver. Depois, o experimentador surge e institui a experiência, quer dizer, faz as personagens evoluírem numa história particular, para mostrar que a sucessão dos fatos será tal qual a exige o determinismo dos fenômenos estudados. Trata-se quase sempre de uma experiência “para ver”, como designa Claude Bernard. O romancista sai em busca da verdade. 78 descrição desse real. Portanto, o seu componente fictício não tem caráter de uma finalidade em si mesma, mas é, fingindo, a preparação de um imaginário. Podemos concluir, a partir daí, que o fictício é uma decisão, enquanto que o imaginário é uma conseqüência. Mas, até que ponto pode o autor controlar os efeitos de suas decisões? Antes de prosseguir, porém, gostaríamos de esclarecer que não é nossa intenção, aqui, entrar profundamente na discussão ficção/realidade, até porque, esta nos parece uma questão inesgotável e que, por isso mesmo, sozinha, já renderia várias teses. Por outro lado, também acreditamos ser muito difícil falar do cientificismo literário proposto por Balzac e Zola sem tocar nesse tema. Os dois autores, em seus textos teóricos, não só disparam abertamente sua artilharia contra o lirismo romântico, como afirmam que uma literatura que pretenda ser científica deve se submeter à “realidade” observada e reproduzi-la. Portanto, durante a nossa análise dos textos teóricos de Balzac e Zola, pretendemos partir das definições de realidade e ficção propostas por Iser, aceitando a substituição da relação opositiva usual entre esses dois termos pela tríade do real, fictício e imaginário. Iser justifica o fato de ter proposto a substituição, argumentando que há no texto ficcional muita realidade que, não só deve ser identificável como realidade social, mas que, também, pode ser de ordem sentimental e emocional. Ele afirma ainda que essas realidades, por certo diversas, não são ficções e que, ao surgirem no texto ficcional, não se repetem nele por efeito de si mesmas. Dessa forma, se o texto ficcional se refere à realidade, sem se esgotar nessa referência, então, a repetição é um ato de fingir e, se o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida, nele emerge um imaginário. Assim, é no fingir que emerge um imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. O ato de fingir, então, ganha marca própria, que é provocar a repetição no texto da realidade, atribuindo, por meio dessa repetição, uma configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida (fictício) se transforma em signo e o imaginário em efeito do que assim é referido. Por fim, quando a realidade repetida no fingir se transforma em signo, ocorre forçosamente uma transgressão de sua determinação. O ato de fingir é, portanto, uma transgressão de limites. Nisso se expressa sua aliança com o imaginário. Iser prossegue, dizendo que, primeiramente, o imaginário é experimentado por nós de modo difuso, fluido, sem um objeto de referência. Assim, verificamos que o fingir também não é idêntico ao imaginário. Entretanto, como o 79 fingir se relaciona com o estabelecimento de um objetivo, devem ser mantidas representações de fins que são uma premissa para que o imaginário se diferencie dos fantasmas, projeções e sonhos diurnos, pelos quais ele penetra diretamente na nossa experiência e, através de uma transgressão de limites, passe do difuso ao determinado. Outro elemento ao qual os dois escritores se atêm, para assegurar a possibilidade de controle do imaginário e justificar o veto ao ficcional, é o pacto com a história, que pressupõe a eliminação de qualquer elemento do fictício e a certeza de que os fatos descritos são verdadeiros : Le hasard est le plus grand romancier du monde: pour être fécond, il n'y a qu'à l'étudier. La Société française allait être l'historien, je ne devais être que le secrétaire. En dressant l'inventaire des vices et des vertus, en rassemblant les principaux faits des passions, en peignant les caractères, en choisissant les événements principaux de la Société, en composant des types par la réunion des traits de plusieurs caractères homogènes, peutêtre pouvais-je arriver à écrire l'histoire oubliée par tant d'historiens, celle des moeurs. 18 . (BALZAC, 1964, p. 194) Eh bien! avec l'application de la méthode expérimentale au roman, toute querelle cesse. L'idée d'expérience entraîne avec elle l'idée de modification. Nous partons bien des faits vrais, qui sont notre base indestructible; mais, pour montrer le mécanisme des faits, il faut que nous produisions et que nous dirigions les phénomènes; c'est là notre part d'invention, de génie dans l'œuvre. 19 ( ZOLA, 1964, p. 265) Neste momento visualizo um espaço propício à reflexão sobre as formas através das quais a Literatura e a História poderiam se cruzar, partindo do prisma de historiadores que, como Hayden White, contestam as pretensões da História de ocupar uma cátedra entre as ciências ditas positivas e ressaltam o caráter ficcional e a subjetividade presente nas reconstruções históricas. 18 O acaso é o maior historiador do mundo: para ser fecundo basta estudá-lo. A sociedade francesa seria o historiador, eu deveria ser somente o secretário. Redigindo o inventário dos vícios e das virtudes, reunindo os principais feitos das paixões, pintado os caracteres, escolhendo os acontecimentos principais, compondo tipos a partir da reunião dos traços de diversos caracteres homogêneos, talvez eu pudesse chegar a escrever a história esquecida por tantos historiadores, a história dos costumes.( tradução nossa) 19 Pois bem, com a aplicação do método experimental ao romance, cessam todas as querelas. A idéia de experiência traz em si a idéia de modificação. Partimos realmente dos fatos verdadeiros, que constituem nossa base indestrutível; mas, para mostrar o mecanismo dos fatos, temos que produzir e dirigir fenômenos. Esta é a nossa parte de invenção e de gênio na obra. 80 Antes, porém, é preciso recordar algumas considerações feitas por José Luiz Jobim, em Formas da Teoria. Jobim afirma, retomando os pressupostos teóricos de Wolfgang Iser, que toda narrativa se dirige a um outro, ou seja, a um leitor implícito, o que nos permite concluir que o narrador escreve para ser compreendido e que a narrativa traz inserida em si o desejo de ser legitimada. Ele considera ainda que, como toda narrativa pertence a uma determinada cultura, ela acaba por inscrever-se em uma história social e em um sistema de convenções que definem a sua forma, o seu gênero e a sua estrutura, uma vez que o narrador é obrigado a utilizar os recursos e as normas disponíveis naquele momento para atingir o seu objetivo. Assim, para contar uma história ou compreendê- la, tanto o escritor quanto o leitor precisam ir além da sua subjetividade e fazer uso da herança cultural inerente à narrativa, herança essa que possibilita que a história tenha um sentido real. No entanto, embora na área de Letras já exista um número enorme de estudos relativos à questão da narrativa, só recentemente essa questão começou a ser vista como algo que vai além das fronteiras literárias. Afinal, contar histórias não é um privilégio somente dos romancistas; também o historiador se dedica a esse ofício, ainda que, sem maiores questionamentos, ele quase sempre tenha associado a sua narrativa a um pretenso pacto com a realidade. Em O valor da narratividade na representação da realidade, Hyden White lembra que a idéia de que a narrativa deveria ser considerada mais como uma maneira de falar do que como uma forma de representação de eventos, sejam eles reais ou imaginários, foi elaborada dentro de uma discussão da relação entre discurso e narrativa, nos primórdios do Estruturalismo e está associada à obra de Jakobson, Benveniste, Genette, Todorov e Barthes. White recorda também que a distinção entre discurso e narrativa é baseada somente na análise dos traços gramaticais de dois modos de discurso em que a “objetividade” de um e a “subjetividade” do outro são definíveis, primariamente, por uma “ordem lingüística de critérios”. Assim sendo, a “subjetividade” do discurso é dada pela presença implícita ou explícita de um ego, ou seja, da pessoa que mantém o discurso, enquanto a “objetividade” da narrativa é definida pela ausência de qualquer referência do narrador. Partindo desses preceitos, White menciona o ponto de vista de Benveniste, para quem, no discurso narrativizante “verdadeiramente não existe mais um narrador. Os 81 eventos são cronologicamente registrados da forma como aparecem no horizonte da História. Ninguém fala. Os eventos parecem contar-se a si próprios.”( WHITE, 1991, p.7). No entanto, o que White questiona é justamente o fato de que eventos reais não deveriam falar, não deveriam contar-se a si próprios, eles deveriam simplesmente ser. Para o historiador, é possível falar sobre os eventos reais e, também, utilizá-los como referentes de um discurso, porém, eles não deveriam fazer-se passar por sujeitos de uma narrativa. White acredita que a invenção tardia do discurso histórico na história humana e a dificuldade de sustentá-lo em tempos de colapso cultural, como no início da idade média, por exemplo, inspiraram a artificialidade da noção de que eventos reais poderiam ser representados como “contando sua própria estória”. Entretanto, é somente a partir do momento em que a distinção entre eventos reais e imaginários é imposta ao contador de histórias, que tal ficção se torna um problema. Enfim, se a narrativa histórica, como a literária, é construída, a partir de um ponto de vista particular, não caberia ao narrador, em ambos os discursos, o atributo de selecionar os elementos da narrativa e de estabelecer um padrão e uma ordem entre eles, de acordo com o que considera imprescindível ou mais importante? Porém, não são raros os historiadores que se acreditam capazes de, através de um relato histórico, dispor os fatos para o público exatamente como ocorreram. É justamente a partir daí que Hayden White se torna uma exceção entre seus colegas, pois ele argumenta que, para construir uma história, é preciso muito mais do que um conjunto de dados históricos registrados. Para White, tal construção é um processo que implica no manuseio desses dados. Assim, enquanto uns são eliminados, outros ganham destaque, alguns ganham cores, tons e ângulos distintos; além disso, existem também inúmeras estratégias descritivas que podem ser usadas nessa construção. Enfim, encontramos, nas narrativas históricas, os mesmos recursos utilizados no enredo de um romance ou de uma peça de teatro. Isso evidencia que, como a história , também a ficção literária é uma forma de representação da realidade e, sobretudo, ambas constroem e “inventam” histórias, ainda que de formas distintas. Portanto, podemos considerar a história um artefato literário, pois, de alguma forma, Literatura e História se completam, já que as duas importam as “técnicas” utilizadas para contar suas histórias do acervo discursivo do ocidente e, finalmente, ambas são meios utilizados para refletir sobre o homem. 82 Voltando ao romance do século XIX e à sua pretensão de pacto com a realidade através de um vínculo com a históriografia, percebemos que não é a presença da História que contribuirá para que o romance perca seu status de obra de ficção. Ao contrário, o que verificamos é que o imaginário se alimenta da realidade para dar novos significados aos acontecimentos e, principalmente, que, em momento algum, a narrativa histórica consegue anular a presença da imaginação no seu discurso. Na verdade, ao compararmos a Literatura com a História observamos que, embora a primeira trabalhe com um discurso relativo ao imaginário, enquanto a segunda constrói um discurso baseado no real, ambas só conseguem atribuir um significado ao discurso que elaboraram através da escrita e, portanto, tanto uma quanto outra, não começam pelos fatos, mas pela palavra escrita. Assim, podemos concluir que os acontecimentos narrados não são considerados reais porque aconteceram, mas porque são lembrados e representados através da narrativa. White alega, contudo, que ainda existe uma certa relutância, por parte dos historiadores, em aceitar que as narrativas históricas são ficções verbais que trazem, inseridas em si, alguns conteúdos “achados” e outros “inventados”. Eles também são refratários quanto a admitir que a História possa ter mais em comum com as contrapartidas da Literatura do que com as das ciências. No ensaio O valor da narratividade na representação da realidade, publicado em 1980, White afirma : Os próprios historiadores é que transformaram a narratividade, de uma maneira de falar em um paradigma da forma com que a própria realidade se apresenta a uma consciência “realista”. Eles é que transformaram a realidade em um valor, cuja presença em um discurso que lida com eventos “reais” assinala imediatamente sua objetividade, sua seriedade e seu realismo. O que procurei sugerir é que este valor atribuído à narratividade na representação de eventos reais nasce de um desejo de que os eventos reais apresentem a coerência, integridade, plenitude e conclusão de uma imagem da vida que é e só pode ser imaginária. A noção de que seqüências de eventos reais possuem os atributos formais das estórias que contamos sobre eventos imaginários só poderia ter sua origem em desejos, fantasias e devaneios .(WHITE, 1991,p.29) No ensaio Topics of discourse – Essays in cultural Criticism, White irá assegurar que um mesmo conjunto de eventos poderia ser utilizado para construir uma história trágica, cômica, romântica, etc, dependendo da maneira como o escritor organiza esses eventos, do 83 tom que ele dá à narrativa, do público em questão. Entretanto, embora sua argumentação, a princípio, possa nos levar a concluir que existem elementos em si dissociáveis de, ou associáveis a qualquer enredo, o exemplo utilizado pelo próprio historiador nos aponta outra direção. White diz não acreditar que alguém aceite a criação de um enredo cômico sobre a vida do presidente Kennedy, ainda que a história do presidente americano possibilite a criação de um enredo romântico ou trágico, só para citar alguns exemplos. Dessa forma, ele nos mostra que, mesmo acreditando ser a partir da sutileza do historiador ao combinar eventos históricos que uma determinada situação histórica vai adquirir um significado e não outro, e que essa operação é também uma operação literária, não podemos esquecer que a narrativa é, igualmente, um evento e que, como todo evento, está inserida em uma determinada cultura. Portanto, o narrador estará sempre submetido a um número de possibilidades de uma comunidade produtora de sentido e, também, a uma prática geral da objetividade historicamente delimitada. A partir desses pressupostos, observamos que os romances históricos nos apontam os diversos ângulos de uma mesma “ verdade” e que a narrativa de um fato nada mais é do que uma leitura aceita em um determinado universo. Também podemos colocar em questão a “verdade” do discurso histórico, partindo do fato de que é impossível recuperar uma realidade anterior. Assim, o historiador irá sempre representar o passado, com toda a bagagem cultural implícita em seu presente e, por conseguinte, a representação da realidade que estará no papel será a do tempo do narrador, que olha “ hoje” para o passado, fazendo com que a história que narra esteja sempre limitada pela escrita. O que podemos concluir, enfim, é que tanto o historiador quanto o romancista constroem mundos para representar suas ações. Porém, enquanto o historiador está preocupado em construir um mundo baseado em documentos, registros e evidências concretas que atribuam veracid ade à sua narrativa, o romancista se entrega livremente à sua imaginação, à subjetividade. Mas, no caso específico dos romances realistas e naturalistas, em que os escritores se propõem a fazer um tipo de romance vinculado com a “ verdade” e com a História, o que ocorre é que eles recriam um mundo já criado pelos historiadores. Não é que o escritor perca a liberdade de inventar e selecionar personagens e eventos, mas esse tipo de 84 relato exige dele talvez a mesma pesquisa que é exigida do historiador, para que o fato histórico a ser reinventado no romance seja aceito como real. Se a história faz parte de um romance histórico, é natural que seus elementos dependam do “mundo real”. Por fim, ao questionar a objetividade dos relatos históricos, deparamo - nos com duas evidências: a primeira é que tanto a historiografia como a Literatura são capazes de forjar um passado e a segunda é que nem uma nem outra são capazes de reprimir seus elementos ficcionais. No entanto, aliada à História e investida de uma pseudo-cientificidade, a Literatura do século XIX insistiria na concepção de uma arte racional, que imita minuciosamente o real e, dessa forma, opõe-se, radicalmente, ao lúdico, ao onírico e ao ornamental. Tal discurso nos leva a questionar até que ponto o autor detém o controle sobre sua obra: Notre querelle est là, avec les écrivains idéalistes. Ils partent toujours d'une source irrationnelle quelconque, telle qu'une révélation, une tradition ou une autorité conventionnelle. Comme Claude Bernard le déclare: «Il ne faut admettre rien d'occulte; il n'y a que des phénomènes et des conditions de phénomènes.» Nous, écrivains naturalistes, nous soumettons chaque fait à l'observation et à l'expérience; tandis que les écrivains idéalistes admettent des influences mystérieuses échappant à l'analyse, et restent dès lors dans l'inconnu, en dehors des lois de la nature. Cette question de l'idéal, scientifiquement, se réduit à la question de l'indéterminé et du déterminé. Tout ce que nous ne savons pas, tout ce qui nous échappe encore, c'est l'idéal, et le but de notre effort humain est chaque jour de réduire l'idéal, de conquérir la vérité sur l'inconnu. 20 ( ZOLA, 1964, p. 287) Hans Robert Jauss pondera que a concepção positivista da História como descrição “objetiva” de uma seqüência de acontecimentos num passado já morto falha, tanto no que se refere ao caráter artístico da Literatura, quanto no que diz respeito à sua historicidade específica. Para Jauss, a obra literária não é um objeto que exista por si só, propondo a cada 20 Esta é nossa controvérsia com os escritores idealistas. Eles partem sempre de uma fonte irracional qualquer, tal como uma revelação, uma tradição ou uma autoridade convencional. Como Claude Bernard o declara: “Não se deve admitir nada de oculto; só existem fenômenos e condições de fenômenos”. Nós, escritores naturalistas, submetemos cada fato à observação e à experiência; enquanto que os escritores idealistas admitem influências misteriosas que escapam à análise, e permanecem por isso no desconhecido, fora das leis da natureza. Esta questão do ideal, cientificamente, reduz-se à questão do indeterminado e do determinado. Tudo o que não sabemos, tudo o que escapa ainda, é o ideal; e o alvo de nosso esforço humano é reduzir dia a dia o ideal, conquistar a verdade ao desconhecido. 85 observador, em cada época, um aspecto único, idêntico. Ele acredita que a obra literária não é um monumento a revelar monologicamente seu Ser atemporal: Ela é, antes, como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, libertando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual: “Parole qui doit, en même temps qu’elle lui parle, créer un interlocuteur capable de l’entendre”21 . É esse caráter dialógico da obra literária que explica por que razão o saber filológico pode apenas consistir na continuada confrontação com o texto, não devendo congelar-se num saber acerca dos fatos.” (JAUSS, 1994, p.25) Luiz Costa Lima vai ainda mais longe quando faz um paralelo entre os sonhos e a experiência poética. Em O Controle do Imaginário, ele afirma que a experiência poética opera por uma via muito semelhante à dos sonhos, ou seja, da mesma forma que a nossa imagem pode estar presente nos sonhos alheios, sem que sejamos responsáveis pelo que então fazemos ou dizemos, também na experiência literária o autor não comanda a sua recepção e ela pode ser sintonizada como produto ficcional, ainda que haja um veto, imposto pelo autor, ao uso da ficção. Outro aspecto levantado por Costa Lima se refere à mimesis literária. Para ele, a primeira sensação que a mimesis provoca é uma sensação de semelhança, já que ela supõe a concordância do que ali se enuncia com o quadro de referências de quem a recebe. Essa concordância se traduz na sensação de semelhança do enunciado com o que o receptor é capaz de considerar como realizável. No entanto, nem a categoria “correspondência” nem a sensação de “semelhança” esgotam a experiência da mimesis literária. Ela se cumpre dentro do circuito da experiência estética que supõe que o agente nela envolvido saiba que o tempo da sala de teatro não é idêntico ao tempo da cena teatral; que o tempo onde habita o poema não se confunde com o tempo em que se move o eu empírico, cotidiano do poeta; enfim, que as experiências e valores do narrador e das personagens não são indistintos quanto às experiências e valores de seu autor. Em resumo, a obra encena experiências imagináveis, de acordo com um quadro de referências e admissíveis conforme os valores do autor e a sensação inicial de semelhança, provocada pela mimesis literária, é precedida por uma sensação de diferença. Finalmente, Costa Lima pondera que a narrativa literária exige 21 O texto grifado é de G. PICON e foi extraído da Introduction à une esthétique de la littérature. Paris, 1953, p.34 86 de seu receptor muito mais do que a capacidade de decodificar o que lê ou escuta, visto que os seus segmentos, diferentemente da narrativa cotidiana, científica ou filosófica, com freqüência, contradizem-se, criando vazios que impõem a interpretação do leitor. E como essa interpretação não se limita a explicitar o que o texto já traz implícito – pois não existe uma única interpretação possível – essa intervenção do receptor está submetida à atividade do imaginário: “A mimesis é assim um processo que se concretiza na forma de ficção” (COSTA LIMA, 1984, p. 69) 87 CAPÍTULO III 5.A VINGANÇA DO IMAGINÁRIO: LE PÈRE GORIOT ET AU BONHEUR DES DAMES : A TEORIA NA PRÁTICA SERIA OUTRA? Diante da censura que lhe é imposta por uma literatura que segue obstinadamente os ideais realistas, ostentados no Prefácio da Comédia Humana e no Romance Experimental, teria o imaginário realmente suc umbido e se deixado banir do universo literário para dar lugar a uma ficção em que All is true, ou teria ele, dissimuladamente, se inserido nas entrelinhas do texto e, disfarçado de realismo, ocupado os espaços vazios, iniciando, dessa forma, uma ardilosa vingança? Uma vez incógnito nos vazios do texto, o imaginário poderia retalhar o veto e engendrar uma vingança arguta e cruel: emergir inesperadamente no jogo performático a que se propõe o romance, deixando cair sua máscara e obrigando o real a abrir espaço para o poético, para o lírico, para o subjetivo, enfim, para o romanesco. Dessa forma, ele deixaria claro que a literatura é muito mais do que simplesmente o real, já que ela é o real, o fictício e o imaginário, e que ela não pode ser apenas a imitação da vida, porque como diria Fernando Pessoa : “A literatura, como toda arte, é a confissão de que a vida não basta.” (PESSOA,1982,p.504) Os romances Le Père Goriot e Au Bonheur des Dames são representativos do Realismo e do Naturalismo, por encarnarem co m maestria os ideais de imitação do real propostos por seus autores. Portanto, é através deles que pretendemos verificar se o imaginário sucumbe ou se vinga, analisando como Balzac e Zola vivenciam, na ficção, os princípios teóricos que serviram de alicerces para a criação da Comédia Humana e da saga dos RougonMacquart. A experiência literária dos elementos de reflexão teórica permite também medir 88 até que ponto a subjetividade e o ficcional se mostram submissos ao veto, ou se afinal a teoria na prática seria outra. O romance Le Père Goriot começa, no ano de 1819, em uma pequena pensão da rua Neuve-Sainte-Geneviève, conhecida como Maison Vauquer em alusão ao nome de sua proprietária. Infecta e nauseabunda, a pensão abriga tanto figuras pérfidas, grotescas e banais, a grande maioria; quanto almas mais ingênuas e idealistas, que são, no entanto, bem mais raras. Logo no início da narrativa, Balzac nos apresenta seus personagens, inventariando, minuciosamente, os traços físicos e psicológicos de cada um, de forma que, após as primeiras páginas do romance, o leitor atento pressinta o drama que eles anunciam. Talvez, por isso, os pensionistas de Madame Vauquer pareçam reunir todas as misérias do mundo. As primeiras páginas do romance também dão lugar a uma descrição que, posteriormente, seria considerada uma das mais clássicas da Comédia Humana, o momento em que Madame Vauquer aparece na cena. Em quatro páginas, Balzac consegue não só prenunciar a trama que pretende narrar, mas também, sintetizar alguns dos principais pressupostos que compõem o plano estrutural da sua obra. O retrato da proprietária é feito a partir de um elemento principal, a harmonia entre Madame Vauquer e sua pensão, ou seja, a narrativa parte da tese do homem como produto do seu meio social. No entanto, também estão presentes, na descrição que abre o romance, a comparação entre a humanidade e a zoologia, os preceitos da unidade de composição orgânica, além de alguns elementos historiográficos. Eugène de Rastignac é um jovem estudante de direito que acaba de chegar a Paris para tentar a sorte e fazer fortuna. Pobre, porém de origem nobre, Rastignac teria diante de si o desafio de aprender as regras que, então, regiam o universo aristocrático, pois só assim poderia satisfazer a sua ambição de enriquecer, ascender socialmente e, enfim, ser aceito nas altas rodas da sedutora sociedade parisiense. 89 O quarto vizinho ao de Rastignac era ocupado por um velho macarroneiro, taciturno e de aspecto imbecil, conhecido entre os pensionistas como pai Goriot. O Sr Goriot havia chegado à pensão, em 1813, com sessenta e nove anos de idade, logo após deixar seus negócios. Tendo arregimentado, ao longo da vida, economias suficientes para uma boa aposentadoria, ocupava, na época, o melhor quarto da Maison Vauquer. A proprietária da pensão se encarregava de cobri-lo de mimos, visto que nutria internamente um desejo inconfesso de que um dia ele viesse a desposá- la, quando, finalmente, poderia abandonar a pensão e o fétido subúrbio parisiense, para viver num dos quarteirões nobres da cidade. No entanto, com o passar dos anos, a fortuna do Sr Goriot diminuiu de forma progressiva e misteriosa. O ancião foi subindo de andar em andar e ocupando quartos cada vez mais simples, até que em 1819, quando o romance começa, o pobre homem, transformado em bode expiatório de todas as mazelas dos demais pensionistas, encontra-se instalado em um humilde sótão ao lado de Rastignac. Nada mais era capaz de provocar um gesto de entusiasmo ou evocar alguma emoção no velho macarroneiro, a não ser a visita de duas belas jovens, com ares nobres e ricamente vestidas, que, de tempos em tempos, apareciam na pensão. Entretanto, até mesmo essas visitas tinham diminuído com o passar dos anos, o que não impedia que os outros pensionistas levantassem, ainda que de forma leviana, suposições extremamente maliciosas, associando a ruína financeira do pobre macarroneiro a um possível affaire entre ele e as duas jovens. Encarregado pelos seus colegas de pensão de descobrir o segredo em torno do infeliz ancião, Eugène de Rastignac, movido inicialmente pela curiosidade e, posteriormente, por simpatia e afeto, não tardaria a desvendar o mistério. Quando recebe o diploma de bacharel em Letras e Direito, ele já havia se deixado contaminar por Paris e pelas ambições que pairavam no ar da capital francesa. Compreendendo, ainda que vagamente, o papel que cabia às mulheres no jogo teatral que a sociedade insistia em representar, Rastignac, desejoso de se lançar naquele mundo, consegue, por intermédio de uma tia, Madame de Marcillac, uma carta de apresentação destinada à viscondessa de Beauséant, uma prima distante que, tanto pela fortuna quanto pela genealogia, era reconhecida como uma das figuras mais proeminentes da aristocracia parisiense. Como resposta, ele recebe um convite para um dos inúmeros bailes que a nobre dama promovia regularmente. Preceptora do 90 jovem aprendiz, caberia, portanto, à viscondessa, não só a tarefa de abrir para Eugène as portas da alta sociedade, mas também, a de desvelar diante de seus olhos, ainda ingênuos, o segredo dos infortúnios que pairavam sobre o pobre pai Goriot. Nos seus salões, Rastignac conheceria as duas jovens que, freqüentemente, visitavam o velho macarroneiro. O infeliz era pai das duas belas damas que brilhavam nos salões de Paris. Por ter enviuvado muito cedo, Goriot havia dedicado às filhas um amor exclusivo, cego, uma paixão paternal que, de tão exagerada, acabou por transformá-lo em um “cristo da paternidade”. Tendo sido presidente de uma das quarenta e oito seções em que a França fora dividida durante a Revolução, Goriot aproveitou-se das relações que mantinha com o Comité de Salut Publique e, quando Robespierre, dentre outras medidas, estabeleceu um rigoroso controle dos preços, provocando o desaparecimento de muitas mercadorias, conseguiu reunir uma pequena fortuna, fornecendo tais mercadorias à aristocracia a preços muito acima do permitido. No entanto, apesar de ter conseguido enriquecer, ainda sonhava em assistir às filhas desfilarem nas altas rodas da sociedade e, para realizar esse sonho, tão logo elas atingiram a idade adulta, casou uma com o “nome” e a outra, com o “dinheiro”. Anastasie, a primogênita, desposou um membro da alta aristocracia, o conde de Restaud e Delphine, a mais nova, um banqueiro israelita, o Barão de Nucingen. Para assegurar casamentos tão suntuosos, o pai acabou por se desfazer de boa parte de seus bens em favor das filhas e, como recompensa, obteve dos genros o desprezo e das filhas, a rejeição. Eles se envergonhavam do velho macarroneiro que, através dos gestos e das atitudes, revelava desconhecer os rígidos códigos de conduta que reinavam nos salões de Paris. No entanto, como as duas belas damas estavam sempre metidas em intrigas de toda sorte – Anastasie era amante de Maxime de Trailles e Delphine, no início do romance, mantinha um affaire com De Marsay – elas não se intimidavam de recorrer ao pai, quando necessitavam de dinheiro para sustentar seus amores clandestinos. Assim, com o passar dos anos, o pobre homem assistiu à fortuna se esvair por entre seus dedos, no mesmo ritmo em que sua alma ia deixando seu corpo e a vontade de viver, o seu coração. Nesse, como na maioria de seus romances, a fim de ressaltar o caráter realista da trama, Balzac faz com que seus personagens participem dos principais eventos históricos que 91 marcaram o século XIX, tornando-os, assim, produtos não só do meio social, mas também do contexto histórico em que vivem. O período que segue a Revolução Francesa se caracteriza, principalmente, pela ruptura da estratificação social que vigorou durante o Antigo Regime e pela ascensão da classe burguesa ao poder. Nesse sentido, tanto Goriot quanto seus genros são figuras representativas da nova ordem social que começava a se estabelecer. A Constituição Francesa de 24 de junho de 1793, foi, na realidade, uma constituição extremamente liberal e baseada nos princípios da Revolução de 1789. No entanto, diante das diversas ameaças, tanto internas quanto externas, de desmantelamento do novo governo, os deputados franceses optaram por substituir, provisoriamente, a aplicação das leis constitucionais por um regime ditatorial, o qual eles chamaram de Governo Revolucionário. A partir de julho de 1793 , a Convenção que governava a França desde agosto de 1792, elege um Comité de Salut Public, composto por doze deputados encarregados de elaborar as medidas emergenciais do governo provisório. Pressionada de todos os lados, a Convenção acabaria aceitando as medidas repressoras propostas pelo Comité e instaurando um regime que ficou conhecido como La Terreur. Dentre as novas medidas, quase todas extremamente reacionárias, estava uma lei que ordenava a prisão imediata, sem julgamento, de todos os indivíduos considerados suspeitos e também a taxação dos gêneros de primeira necessidade. Diante da taxação, muitos gêneros alimentícios desapareceram completamente, passando a serem vendidos apenas no mercado negro, quase sempre, pelo dobro, ou pelo triplo, do preço estipulado. Como Goriot era presidente de uma das quarenta e oito seções em que Paris fora dividida durante a Revolução, ele não só tinha a oportunidade de contrabandear as mercadorias taxadas, como também, tinha acesso direto aos membros do Comité, com quem ele dividia o lucro. É, portanto, usando o contexto histórico que Balzac explica a origem da fortuna do velho macarroneiro. Quanto aos genros de Goriot, eles também são um reflexo da nova ordem social que o século XIX anuncia. O advento da industrialização, ao mesmo tempo em que confere à burguesia o status de classe dominante, decreta a decadência dos aristocratas. No romance, o Conde de Restaud e o Barão de Nucingen representam, respectivamente, a alta aristocracia – então, em pleno declínio, mas, ainda assim, detendora das regras de conduta social e do poder conferido pelo nome – e a nova classe emergente, cujo dinheiro comprava, não só a entrada nos salões aristocráticos, como também, os títulos de nobreza. 92 Balzac mostra também que, a partir da queda do Antigo Regime, as diversas castas sociais começam a se misturar. Rastignac volta daquele primeiro baile fascinado pelo bairro de Saint-Germain e hipnotizado pelo palácio e pelos salões da viscondessa, repletos de homens e mulheres ricamente vestidos e majestosamente ornados. Ali tudo era luz, brilho e beleza. Nos dias que se seguiram ao baile, ele faria mais duas vistas, uma à condessa de Restaud e outra à viscondessa de Beauséant, recebendo, assim, suas primeiras lições. Apesar de estar vestido com o seu melhor traje, a aparência simples do jovem provinciano foi motivo de chacota e espanto para os serviçais da mansão e do palácio. Além disso, como Rastignac ignorava as regras de etiquetas reinantes no círculo social parisiense, não foram poucas as indiscrições cometidas por ele. As portas da mansão da condessa de Restaud, por quem ele tinha começado a nutrir uma certa paixão, lhe foram fechadas logo após a visita. O contraste entre aquele mundo e o seu torna-se, então, desesperadoramente evidente e, a cada vez que ele retornava à rua Neuve-Saint-Geneviève e à Maison Vauquer, sua realidade lhe parece ainda mais lúgubre, miserável e triste do que antes. Ao perceber o desprezo que a alta sociedade destina aos que não conheciam os seus códigos e valores, seu coração se enche de mágoa e de rancor. A chama da cobiça e da inveja começa, então, a flamejar em seus olhos e sua alma, ainda em estado bruto, mais do que nunca, anseia por ser lapidada para, enfim, incorporar-se à nobre casta que constitui a aristocracia. No entanto, sua ânsia advinha do fato de que Eugène ignorava quem, na verdade, compunha o ritmo e a cadência da valsa bailada naquele universo. Orquestrada pela hipocrisia, ali soava apenas uma melodia trágica, fadada a ferir, a angustiar e a corromper as almas que por ela eram conduzidas. Romance de iniciação, Le Père Goriot faz parte dos Estudos dos Costumes e das Cenas da Vida Privada, livros em que Balzac se propõe a reunir os fatos e os gestos que formam a história geral da sociedade e representar épocas específicas da vida humana : Ce n'était pas une petite tâche que de peindre les deux ou trois mille figures saillantes d'une époque, car telle est, en définitif, la somme des types que présente chaque génération et que La Comédie humaine 93 comportera.[...] De là, les divisions si naturelles, déjà connues, de mon ouvrage en Scène s de la vie privée, de province, parisienne, politique, militaire et de campagne. Dans ces six livres sont classées toutes les Etudes de moeurs qui forment l'histoire générale de la Société, la collection de tous ses faits et gestes, eussent dit nos ancêtres. Ces six livres répondent d'ailleurs à des idées générales. Chacun d'eux a son sens, sa signification, et formule une époque de la vie humaine.[...] Les Scènes de la vie privée représentent l'enfance, l'adolescence et leurs fautes.[...]. Chacune de ces trois parties a sa couleur locale: Paris et la province, cette antithèse sociale a fourni ses immenses ressources. Non-seulement les hommes, mais encore les événements principaux de la vie, se formulent par des types. Il y a des situations qui se représentent dans toutes les existences, des phases typiques, et c'est là l'une des exactitudes que j'ai le plus cherchées.1 (BALZAC, 1964, p.203) O romance mostra, portanto, quais eram os padrões de comportamento e os gestos característicos de indivíduos que pertenciam a classes e origens socio-culturais distintas, no período da Restauração à Monarquia de Julho. Ao contrastar os hábitos e costumes do jovem provinciano com os da elite parisiense, o escritor tipifica cada classe e ressalta suas diferenças comportamentais. A passagem da infância para a idade madura, outro elemento predominante na estética balzaquiana, também é abordada aqui. Rastignac inicia a trama com a pureza característica da adolescência, porém, ao longo da narrativa, os obstáculos que se interpõem em seu caminho e as angústias e decepções que experimenta, não só fazem com que ele perca a inocência e atinja a idade madura, mas também, que adquira a personalidade extremamente determinada e o caráter malicioso, que espelham a sua trajetória. O aprendizado e o amadurecimento de Rastignac aparecem, portanto, como uma dessas diversas situações, ou “fases típicas”, que Balzac acreditava que estavam presentes em todas as existências. 1 Não é uma tarefa pequena a de pintar as duas ou três mil figuras representativas de uma época, porque essa é, definitivamente, a soma dos tipos que cada geração apresenta e que a Comédia Humana comportará.[...] Daí , as divisões tão naturais, já conhecidas, da minha obra em Cenas da vida privada, de província, parisiense, política, militar e do campo. Nesses seis livros estão classificados todos os Estudos dos costumes que formam a história geral da sociedade, a coleção de todos os seus fatos e seus gestos, teriam dito nossos ancestrais. Cada um deles tem o seu sentido, sua significação, e formula uma época da vida humana.[...] As Cenas da vida privada representam a infância, a adolescência e suas faltas, [...]Cada uma dessas três partes tem a sua cor local : Paris e a província, esta antítese social forneceu seus imensos recursos. Nã o somente os homens, mas também, os eventos principais da vida, formulam-se por tipos. Existem situações que se apresentam em todas as existências, fases típicas, e ai está uma das exatidões que eu mais procurei. (tradução nossa) 94 Dominado pela revolta e pela ambição, Eugène torna-se uma presa fác il nas mãos do misterioso Vautrin. Homem colossal, aparentando cerca de quarenta anos, ele se destacava dos demais pensionistas com suas costeletas tingidas e uma peruca negra. Detentor de um caráter cínico e malicioso, Vautrin seria um dos preceptores de Rastignac e se encarregaria de apresentar-lhe o lado cruel e maquiavélico do ser humano. Apesar de se dizer um excomerciante, o enigmático personagem deixava transparecer, através de seus diálogos, que era, na verdade, um homem do mundo e uma espécie de encarnação do diabo, cujo papel consistia em conquistar e corromper aqueles a quem seduzia. Ao observar secretamente o jovem provinciano, Vautrin logo pressente a ambição e os sentimentos confusos que se apoderaram do seu coração. Um dia, chamando-o à parte e dizendo não desejar nada além do seu bem, ele lhe expôs, abruptamente, suas perversas teorias sociais. Num jogo ardiloso de sedução, Vautrin, ao mesmo tempo em que excitava a ambição de Rastignac, também fazia questão de mostrar- lhe os infortúnios da sua condição social e os inúmeros obstáculos que se interpõem no caminho de jovens que, como ele, sonham ascender socialmente, abraçando a magistratura. Discursando magnificamente, Vautrin alegou saber que ele desejava vencer na vida, mas que esse era, também, o problema para o qual cinqüenta mil jovens na sua posição buscavam uma resposta e, proferindo argumentos cada vez mais contundentes, explicou que, para alcançar o sucesso, seria preciso abrir mão de todo e qualquer escrúpulo. Sem deixar que Rastignac retomasse o fôlego, ele apresentou, finalmente, sua insólita proposta : atingir a prosperidade através de um crime. Na Maison Vauquer, vivia uma jovem chamada Victorine Taillefer. Frágil e doce, ela era órfã de mãe e renegada pelo pai, um milionário que acreditava possuir razões para não reconhecê- la, para dedicar somente ao filho o seu afeto e a sua atenção e, finalmente, para deserdá- la em favor do irmão. Imaginando que, com o desaparecimento do filho predileto, o pai ver-se- ia obrigado a restituir os direitos da única filha, Vautrin se oferece para tirar o jovem herdeiro do caminho, desde que Rastignac se encarregue de conquistar o amor de Victorine e, conseqüentemente, sua fortuna. Embora seduzido pela soma vultuosa que Vautrin desfila diante de seus olhos, o jovem advogado se revolta contra essa proposta indecente, ao mesmo tempo em que vislumbra a 95 possibilidade de vencer na vida, através das filhas do pai Goriot, de quem se tornara amigo. Após fracassar junto à condessa de Restaud, Rastignac acabou se envolvendo, verdadeiramente, com Delphine de Nucingen. O romance é encorajado pelo pai da baronesa, que vê na união dos dois amantes a possibilidade de se reaproximar da filha. Paralelamente, Vautrin, seguro de que havia atraído Rastignac através de seu magnetismo e de seus argumentos, prossegue com seu plano e paga um espadachim para matar o irmão de Victorine. No entanto, no mesmo dia em que o jovem Taillefer é morto, o mandante do crime é traído por uma colega da pensão – a senhorita Michenneau, uma solteirona descarnada e de olhar insípido que aceita espioná- lo em troca de dois mil francos – e entregue à polícia. A prisão é feita diante dos demais pensionistas que, só então, descobrem a verdadeira identidade do misterioso Vautrin. Tratava-se de um fugitivo do presídio de Toulon, cujo nome real era Jacques Collin. Conhecido no submundo pela alcunha de “engana-morte”, Collin era uma espécie de banqueiro dos presidiários, sendo responsável pela gerência do capital dos seus colegas do presídio e pela administração dos interesses financeiros de uma associação de contraventores, conhecida como Sociedade dos Dez Mil. Ao deixar a pensão, Vautrin se despede de todos e, em particular, de Rastignac, deixando, enfim, transparecer a natureza dos sentimentos que nutria pelo jovem provinciano. Na realidade, a verdadeira identidade de Vautrin vai sendo revelada, gradativamente, ao longo da narrativa. Em clima de suspense, o escritor oferece inúmeros indícios sobre o caráter do personagem, a fim de provar, mais uma vez que, como todo homem é produto e reflexo do meio em que vive, também Vautrin espelha o submundo em que viveu e os presídios por onde passou. Assim, nas primeiras páginas do romance, Balzac se encarrega, ele mesmo, de denunciar o famoso trompe-la-mort : Si quelque serrure allait mal, il l'avait bientôt démontée, rafistolée, huilée, limée, remontée, en disant: Ça me connaît. " Il connaissait tout d'ailleurs, les vaisseaux, la mer, la France, l'étranger, les affaires, les hommes, les événements, les lois, les hôtels et les prisons. Si quelqu'un se plaignait par trop, il lui offrait aussitôt ses services. Il avait prêté plusieurs fois de l'argent à madame Vauquer et à quelques pensionnaires; mais ses obligés seraient morts plutôt que de ne pas le lui rendre, tant, malgré son air bonhomme, il imprimait de crainte par un certain regard profond et plein 96 de résolution. A la manière dont il lançait un jet de salive, il annonçait un sang-froid imperturbable qui ne devait pas le faire reculer devant un crime pour sortir d'une position équivoque. Comme un juge sévère, son oeil semblait aller au fond de toutes les questions, de toutes les consciences, de tous les sentiments.[...] Quoiqu'il eût jeté son apparente bonhomie, sa constante complaisance et sa gaieté comme une barrière entre les autres et lui, souvent il laissait percer l'épouvantable profondeur de son caractère. Souvent une boutade digne de Juvénal, et par laquelle il semblait se complaire à bafouer les lois, à fouetter la haute société, à la convaincre d'inconséquence avec elle-même, devait faire supposer qu'il gardait rancune à l'état social, et qu'il y avait au fond de sa vie un mystère soigneusement enfoui.2 (BALZAC, 1971,p.37) Determinado a ser um dos preceptores de Rastignac, Vautrin utiliza maliciosamente a visão dura e crua que tinha da sociedade em que vivia, para apagar todo e qualquer vestígio de ingenuidade romântica que o jovem provinciano ainda pudesse nutrir em relação à vida. Ao expor diante dos olhos atônitos de Rastignac as reais possibilidades que a sociedade burguesa do século XIX oferecia a jovens como ele, o ex-presidiário consegue, ao mesmo tempo, ceifar os sonhos românticos do jovem e justificar sua natureza pérfida e seu caráter diabólico como sendo produtos dessa mesma sociedade. Em Mímesis e Modernidade, Costa Lima menciona que a concentração industrial em cidades como Paris, não só gerou enormes contradições sociais, mas também, fez diminuir, significativamente, as oportunidades que a capital oferecia a jovens ambiciosos, mas sem dinheiro – como os personagens balzaquianos, Eugène de Rastignac ou Lucien de Rubempré. O discurso de Vautrin aborda, justamente, esse aspecto da realidade social do período, ressaltando, portanto, o caráter moderno da obra e o seu vínculo com as questões sociais daquele momento histórico. A obsessão realista de Balzac faria com que alguns de seus personagens 2 Se alguma fechadura não funcionava, logo a desmontava, consertava, azeitava, limava, tornava a montar, dizendo: “disso eu entendo”. Aliás, entendia de tudo, de barcos, de mar, da França, do exterior, dos negócios, dos homens, dos acontecimentos, das leis, dos hotéis e das prisões. Se alguém se queixava um pouco, imediatamente oferecia-lhe seus serviços. Por várias vezes emprestara dinheiro à senhora Vauquer e a alguns pensionistas; mas seus devedores preferiam morrer a não lhe devolver o empréstimo, de tanto que, apesar de seu ar bonachão, imprimia terror por um certo olhar profundo e cheio de determinação. Pela maneira como lançava um jato de saliva, anunciava um sangue frio imperturbável que não devia fazê-lo recuar diante de um crime para sair de uma situação equívoca. Como juiz severo, seu olhar parecia alcançar o fundo de todas as questões, de todas as consciências, de todos os sentimentos. [...] Embora erigisse sua aparente bonomia, sua constante complacência e sua alegria como uma barreira entre os outros e ele, muitas vezes deixava que se entrevisse a terrível profundidade de seu caráter. Muitas vezes uma tirada digna de Juvenal, pela qual parecia se comprazer em ridicularizar as leis, açoitar a alta sociedade, convencê-la de inconseqüência consigo mesma, dava a entender que tinha rancor das condições sociais e que havia no fundo de sua vida um mistério cuidadosamente dissimulado. 97 fossem criados a partir de modelos reais, numa tentativa de confirmar sua tese que a sociedade, assim como o conjunto da zoologia, é composta por tipos específicos, passíveis de serem catalogados. Para criar Vautrin, Balzac se inspirou em um famoso policial chamado Vidocq, um ex-presidiário que o escritor teve a oportunidade de conhecer na casa de Benjamin Appert, um filantropo que dirigiu vários presíd ios. Em uma carta escrita a Hippolyte Castille, em 1846, Balzac reafirma sua fonte de inspiração : Je puis vous affirmer que le modèle existe, qu’il est d’une épouvontable grandeur et qu´il a trouvé sa place dans le monde de notre temps. Cet homme était tout ce qu’était Vautrin, moins la passion que je lui prêtée. Il était le génie du mal, utilisé ailleurs.3 (THERENTY,1995,p 45) Em contrapartida, contrastando com a cena dramática da prisão de Vautrin, logo em seguida, Goriot chega à Maison Vauquer transbordando de alegria e convida Rastignac para jantar com ele e Delphine. O motivo do convite era mostrar o belo apartamento que ele havia comprado, na rua d’Artois, para os dois amantes. No jantar, o ancião conta a Delphine que Eugène havia renunciado aos milhões de Victorine para viver ao lado dela e revela o montante que havia despendido para oferecer aos dois jovens aquele aconchegante ninho de amor, onde ele também pretendia desfrutar, junto com a filha e Rastignac, o resto de felicidade que a vida ainda podia lhe proporcionar. A afeição que Goriot demonstrava pela filha era tão desmedida que começa a provocar em Rastignac um ciúme desconcertante. Na verdade, o velho macarroneiro desejava viver junto com eles, no pequeno apartamento, como um espírito que vaga pela casa sem jamais ser visto, saciando, assim, o amor incestuoso que nutria pela filha, como um voyeur que satisfaz o seu desejo, espionando um casal de amantes. Entretanto, a felicidade iminente do casal e do ancião seria ameaçada pelos genros de Goriot que, pressentindo as intrigas amorosas de suas esposas, ameaçavam arruiná- las. Enquanto se preparava para deixar a Maison Vauquer e mudar-se para o novo apartamento, Rastignac ouve uma conversa entre Delphine e Goriot, na qual a jovem confessa ao pai que o barão só a deixaria livre para se unir a ele caso ela abrisse mão de seu dote, por pelo 3 Eu posso afirmar que o modelo existe, que ele é de uma grandiosidade espantosa e que encontrou o seu lugar na sociedade do nosso tempo. Esse homem era tudo o que era Vautrin, com exceção da paixão que eu lhe emprestei. Ele era o gênio do mal, utilizado em outros lugares.(tradução nossa) 98 menos dois anos, deixando que ele continuasse a gerir a sua fortuna. Logo em seguida, é a vez de Anastasie implorar a ajuda do pai. A condessa havia penhorado as jóias da família do marido para pagar as dívidas de seu amante, e, agora, era pressionada por todos os lados, pelo marido que ameaçava tomar- lhe o dote e por Maxime que ainda necessitava de doze mil francos para terminar de saldar suas dívidas. Ao descobrir que o pai havia empenhado seus últimos francos em um apartamento para Delphine, Anastasie se volta violentamente contra a irmã e a hostilidade que se estabelece entre as duas tem o efeito de um golpe mortal sobre pai. Eugène passa a noite com Delphine no apartamento da rua d’Artois e, na manhã seguinte, ao retornar à pensão, percebe que o estado de saúde do pai Goriot é crítico. Ele previne Delphine de que seu pai está morrendo, mas a baronesa ignora suas advertências, preocupada que estava em assistir ao baile que deveria marcar a despedida da viscondessa de Beauséant da sociedade parisiense. A nobre dama havia decidido se retirar para a Normandia, ao saber do casamento de seu amante, o senhor d´Ajuda Pinto, com a senhorita Rochefide. Assim, enquanto as filhas desfilavam pelos ricos salões do quarteirão de SaintGermain, o velho macarroneiro, tomado por uma crise de apoplexia, definhava no leito fétido da Maison Vauquer. No auge de sua agonia, ele implora para ver as filhas uma última vez, mas nenhuma das duas ouve o seu chamado. Somente Rastignac e Bianchon – jovem pensionista, estudante de medicina – assistem o pobre velho. Antes de morrer, Goriot tem uma crise de lucidez e maldiz as filhas mas, logo em seguida, perdoa- lhes a ausência. Esse triste desenlace conclui, enfim, o aprendizado de Rastignac. Após o solitário enterro do pai Goriot, pago pelo jovem com as poucas economias que ainda tinha, Rastignac sobe ao ponto mais alto do cemitério Père-Lachaise e, com um olhar ávido, porém maduro, lança o se u desafio diante de Paris: “Agora, é entre nós dois!” O romance Le Père Goriot consegue incorporar, através do jogo performático que usa para contar essa história, todos os elementos que seu autor julga essenciais para a construção de um drama realista. Balzac situa, precisamente, a história no tempo e no espaço, mostrando, com fidelidade aos documentos de que dispunha e aos fatos históricos que presenciou, a situação política que vigorava na França durante o período da Restauração. Narrador 99 onisciente e, ao mesmo tempo, extremamente discreto, usa todos os artifícios que possui para tentar desaparecer da narrativa e, ludibriando o leitor, colocá- lo como se fosse testemunha direta do seu universo ficcional. Assim, a descrição minuciosa das pessoas e dos lugares, a composição dos personagens em forma de tipos facilmente identificáveis e até mesmo os nomes próprios utilizados por ele, muitos inspirados em pessoas reais, servem para aumentar a credibilidade da história, dissimular o poder de criação do autor e sustentar a ilusão de realidade. Assim como Le père Goriot é um modelo do romance realista idealizado por Balzac, também Au Bonheur des Dames é emblemático do que Zola propõe no Romance Experimental. Para contar a história do nascimento de uma grande loja de departamentos, na segunda metade do século XIX, o escritor estabelece um ponto de partida, a força das ambições e dos apetites humanos, um terreno sólido, a Paris que acabara de ser modernizada pelas obras do barão de Haussmann; cria, em seguida, os fenômenos que vão se desenvolver nesse cenário, única parte em que o escritor permite que a invenção e o gênio do autor tenham lugar em um romance naturalista. Por fim, através dos dramas protagonizados por Denise Baudu e Octave Mouret, ele tenta mostrar que a sucessão dos fatos será tal qual a exige o determinismo dos fenômenos estudados. O romance começa quando Denise Baudu, jovem normanda de 20 anos, chega à capital francesa em companhia dos dois irmãos Jean, de dezesseis anos e Pépé, de cinco. Após a morte do pai, sem ter como sobreviver na sua cidade natal, Valognes, ela procura por seu tio Baudu, dono de uma pequena e tradicional loja parisiense, na esperança de poder trabalhar e viver com ele. No entanto, ao chegar a Paris, Denise descobre que, graças a uma enorme loja de departamentos – “Au Bonheur des Dames” – localizada, exatamente, em frente à lojinha de seu tio – os pequenos comerciantes, vizinhos daquele templo de consumo, agonizavam lentamente, vítimas da concorrência desproporcional e perversa impetrada por aquele ícone do capitalismo selvagem. Fundada pelos irmãos Deluze, em 1822, “Au Bonheur des Dames” começou como uma loja modesta. Octave Mouret, filho de François Mouret e Marthe Rougon, tornou-se o seu 100 proprietário ao casar-se com a única herdeira dos dois irmãos, Caroline Hédoin, (nascida Deluze), viúva de Charles Hédoin. Como era um comerciante de idéias arrojadas, pouco a pouco, Mouret foi adquirindo as casas vizinhas à sua loja e, antes que os demais comerciantes percebessem, se u pequeno negócio se transformou em uma enorme loja de departamentos. Em um determinado momento, de tão próspera, ela começa a engolir seus vizinhos, principalmente, todos os que, como Baudu, se mantinham presos às práticas comerciais tradicionais, desejosos de que suas lojinhas permanecessem como sempre foram, apesar de todas as modificações trazidas pela modernidade. Com o falecimento prematuro de sua esposa, Mouret torna-se o único proprietário do “Bonheur”. Dentre as principais características do Segundo Império estão o rápido desenvolvimento urbanístico e econômico, além da adoção de uma nova política comercial que forçaria a modernização imediata da indústria francesa. Durante a sua juventude, Napoleão foi fortemente influenciado pelos saint-simonist es, o que o levou a defender a teoria de que o progresso industrial era uma condição fundamental para o progresso social. Ao substituir o tradicional sistema protecionista pela eliminação, ou por uma significativa redução das tarifas aduaneiras, Napoleão forçou a indústria francesa a modernizar seu maquinário e a reduzir os preços. Quem também se beneficiou com essa nova política econômica foram as grandes lojas de departamento que já comercializavam toda sorte de artigos e que agora poderiam oferecer uma diversidade ainda maior. As grandes lojas de departamento apareceram precocemente na capital francesa. O Pygmalion, a primeira delas, foi inaugurado em 1793. No entanto, durante a primeira metade do século, as grandes lojas não eram numerosas o suficiente para incomodar as pequenas lojinhas que muitas vezes vendiam os mesmos artigos que aquelas, porém, a preços muito mais elevados. Mas a partir de 1850, a nova política comercial favorece o rápido crescimento desse tipo de comércio e Paris assiste à abertura de seus principais templos de consumo. Datam desse período o Bon Marché (1852), o Louvre (1855) e a Samaritaine (1869). Luxuosas e modernas, elas também foram responsáveis pela introdução das novas concepções mercadológicas que revolucionaram o comércio : se contentavam com um pequeno benefício sobre cada mercadoria, concentrando-se na obtenção de lucro, a partir da venda de grandes quantidades do produto; comercializavam artigos de várias partes do mundo (graças à nova 101 política aduaneira de Napoleão) e, além disso, traziam inovações surpreendentes para a época, como a venda a preço fixo, que evitava que vendedor e cliente perdessem tempo ou se aborrecessem negociando o preço; o acesso às lojas passou a ser liberado a todos e os vendedores se dispunham a mostrar os objetos para os clientes, sem que esses tivessem, obrigatoriamente, que comprá- los. Essa nova dinâmica comercial iria destruir o equilíbrio existente entre as grandes lojas de departamento e as pequenas lojinhas e desencadear uma verdadeira guerra entre os pequenos e os grandes comerciantes. Zola se aproveita desse contexto histórico e mergulha seus personagens nesse universo, criando um romance que, ao mesmo tempo em que espelha todas as nuances da batalha que era travada, também faz uma crítica veemente aos princípios do capitalismo e do liberalismo econômico. A crise das pequenas butiques leva Denise a procurar trabalho no “Bonheur des Dames” e, graças à perspicácia de Mouret – o único a perceber a beleza e o charme que a jovem trazia ocultos –, seu olhar triste e os trajes simples de camponesa não a impedem de ser contratada. Porém, tão logo ela chega à secção para a qual fora admitida, seus sapatos surrados e seus cabelos difíceis de pentear tornam-se motivos de deboche. Começa, assim, a série de humilhações impostas por suas colegas de trabalho, das quais ela seria vítima e que visavam, sobretudo, impedi- la de participar de qualquer venda mais importante. Logo, Denise iria descobrir que a estrutura que sustentava aquele templo tão fascinante era extremamente cruel e desumana. Por trás de tanta beleza, era travada uma verdadeira batalha pela vida, uma luta capaz de aflorar os piores sentimentos humanos como a ambição, a inveja, o rancor e a ganância. Pelo poder valia tudo: vender o corpo, a alma, a dignidade. Numa batalha tão sórdida, permanecia uma certeza, a de que só os fortes sobreviveriam. Defensor convicto tanto dos preceitos evolucionistas de Darwin quanto da ideologia socialista, Zola aplica à sua grande loja de departamento os princípio s do capitalismo e do liberalismo econômico, com o objetivo de demonstrar, através da teoria da seleção natural, que tais princípios engendrariam uma batalha pela vida, na qual só os mais fortes sobreviveriam. Zola tenta evidenciar também o quão desumano e destrutivo era um sistema que se baseava na livre concorrência, uma estrutura cujo bom funcionamento dependia do 102 apetite desenfreado que levava um homem a devorar seu próprio semelhante. Entretanto, o romance Au Bonheur de Dames, ao mesmo tempo em que se revela como uma poderosa crítica à estrutura social vigente no Segundo Império, é também, uma verdadeira ode aos tempos modernos. Por mais paradoxal que possa parecer, Zola, como os grandes modernistas de sua geração, vê com bons olhos o nascimento da publicidade, a urbanização da capital francesa, a beleza das novas obras arquitetônicas e do novo comércio, além de mergulhar cegamente na euforia cientificista que marcou essa geração. Seu otimismo só se arrefece realmente diante das desigualdades sociais que essa nova estrutura engendra. Uma questão cuja solução ele vislumbrava através da substituição daquele sistema capitalista desumano e selvagem por um socialismo que, hoje, consideramos utópico e extremamente romântico. Além da rotina penosa, Denise ainda tinha que conviver com a angústia e com o temor de não conseguir dinheiro suficiente para pagar à senhora que cuidava de Pépé e cobrir as despesas de Jean que, a cada dia, revelava-se mais manipulador e inconseqüente e, ludibriando a irmã, solicitava somas cada vez maiores para despender nas suas aventuras amorosas. Apesar do martírio físico e psicológico que experimentava, com os cabelos domados e um vestido de seda, Denise adquire uma aparência delicada e suave. Ela também se torna amiga de Pauline Cugnot, da seção de lingerie, que a aconselha a seguir o exemplo das demais vendedoras e encontrar um amante para suprir suas necessidades financeiras. Entretanto, a jovem não suporta nem mesmo imaginar tal idéia, preferindo a fatigante tarefa de passar as noites fazendo nós em gravatas. Seis meses se passam até que ela e Mouret se encontrem novamente. Ele fica admirado com a transformação e com a beleza, agora evidente, da jovem vendedora, e surpreende-se ao perceber a ambigüidade dos sentimentos que ela é capaz de lhe despertar, uma mistura de medo, encanto e ternura. Em julho, com a chegada do verão, as vendas começam a cair e inicia-se o período das demissões em massa. Ao recusar os avanços do inspetor Jouve, Denise se torna vítima da sua vingança. Havia um rumor entre os vendedores de que Jean era amante de Denise e 103 Pépé, filho dos dois. Uma tarde, Jouve surpreende Denise conversando com Jean, que mais uma vez tinha procurado a irmã para pedir dinheiro e delata a jovem para Boudoncle, braço direito de Mouret. Denise é demitida imediatamente e Mouret só toma conhecimento quando já é muito tarde. Como ela e o tio estavam estremecidos desde que Denise começou a trabalhar no “Bonheur”, a jovem é obrigada a alugar um quarto na casa de Bourras, um artesão que fabricava guarda-chuvas e que a emprega por caridade. Pouco depois, ela é contratada por Robineau, que adquire uma das lojas próximas ao “Bonheur” e lança uma nova seda no mercado para tentar concorrer com a “Paris-bonheur” de Mouret. Esse, por sua vez, liquida os estoques da “Paris-Bonheur” a preços extremamente baixos com o único objetivo de levar o concorrente à falência. Robineau ainda resiste por algum tempo, mas acaba perdendo a batalha. Mouret e Denise só se encontrariam novamente um ano após a demissão da vendedora, durante o passeio habitual que ela e Pépé faziam ao “Jardin des Tulieries”. Após travarem um longo diálogo, Mouret fica muito surpreso por se dar conta de que os dois tinham as mesmas concepções sobre o comércio e que ela também possuía uma mente aberta e repleta de idéias arrojadas sobre a lógica do mercado consumidor. Cada vez mais fascinado, ele mostra estar ciente do mal entendido que causou sua demissão e a convida a retornar ao “Bonheur”. Inicialmente, Denise recusa, mas com a ruína de Roubineau, ela não encontra outra alternativa. Dois outros temas que permeiam toda a obra de Zola também aparecem em Au Bonheur Des Dames: a condição feminina e a questão da hereditariedade. O perfil psicológico que o romancista cria para Denise Baudu torna a personagem uma antítese da mulher da sua geração e ressalta, através desse contraste, as dificuldades da condição feminina na sociedade burguesa do século XIX. Denise segue na contramão da mulher do seu tempo que, sem nenhuma outra opção, era obrigada a se submeter aos códigos de conduta de uma estrutura extremamente machista, opressora e, por vezes, até brutal. Ao criar uma protagonista com idéias arrojadas, defensora da evolução da indústria, das novas técnicas 104 comerciais e que não se submete à figura masculina, Zola consegue denunciar o quanto a condição feminina – principalmente nas classes mais baixas – ainda era desumana e cruel, ainda que para isso – talvez inconscientemente – tenha dado vida a uma personagem essencialmente româ ntica. Quanto ao protagonista, esse encarna plenamente os princípios da hereditariedade que norteiam a construção de toda a saga dos Rougon-Macquart e que ligam todos os membros dessa família entre si. Filho de François Mouret e Marthe Rougon, ele herdou, de seu pai, o dom para o comércio e, de sua mãe, uma certa febre nervosa que fazem dele um espírito entusiasta, obsessivo e passional. Juntos, os seus traços hereditários o transformaram em um gênio do comércio e em um homem extremamente sedutor. O retorno de Denise é triunfal. Ela se torna o objeto de desejo de Mouret que, não medindo esforços para seduzi- la, promove sua ascensão na escala hierárquica da loja, designando-a para cargos cada vez mais importantes. Embora aceite as novas condições de trabalho, ela recusa, veementemente, todos os avanços e presentes do patrão, mostrando-se, por vezes, indignada. No entanto, essas recusas só contribuem para aumentar ainda mais a obsessão de Mouret que, nunca tendo conhecido uma mulher que resistisse às suas táticas de sedução, torna-se cada vez mais fascinado por Denise. Paralelamente, a jovem, que agora ocupa um cargo proeminente, faz o possível para humanizar o relacionamento entre os vendedores e sugere a Mouret uma série de medidas para melhorar os salários e as condições de vida dos seus colegas. Cada vez mais apaixonado, Mouret começa a sentir um ciúme doentio de Denise. Sentimento permanentemente fomentado por Bourdoncle, que invejava o fascínio que o patrão nutria pela jovem. Sentindo-se injustiçada quando Mouret a acusa de ter vários amantes, Denise decide deixar Paris. Desesperado, Mouret consegue, finalmente, convencêla de seu amor e fazê-la aceitar sua proposta de casamento. Ao analisarmos essas duas histórias, verificamos que o desejo das estéticas realista e naturalista – fazer uma literatura que fosse quer uma réplica perfeita de uma sociedade em seu tempo, quer um laboratório científico em que as experiências realizadas reproduzissem os fenômenos da natureza, revelando ao observador a verdade e o determinismo dos fatos – 105 fez com que os precursores dessas estéticas elegessem temas específicos que norteariam toda a sua obra. Alguns desses temas são comuns ao Realismo e ao Naturalismo como : os hábitos e costumes das diferentes classes sociais; o papel do dinheiro, da mulher, da família e do casamento como engrenagens da sociedade e como alicerces para o sucesso; a história e a ciência como agentes determinantes do comportamento humano; o contrataste entre a vida urbana e a rural; o homem como produto do seu meio, dentre outras. No entanto, apesar de possuírem uma identidade inicial, essas duas escolas diferem em muitos aspectos. Assim, enquanto Balzac privilegia o papel da história e da sociologia na construção dos diversos tipos humanos e, inspirando-se em Buffon, tenta estabelecer um paralelo entre a espécie humana e o conjunto da zoologia, Zola, por sua vez, encarna o ideal positivista de Augusto Conte e volta sua atenção, sobretudo, para os efeitos da aplicação dos princípios da hereditariedade, da seleção natural e da influência do meio sobre as espécies em uma sociedade fragmentada pelos efeitos da modernização e na qual impera um capitalismo selvagem. Em função da abordagem temática a que Balzac e Zola se propuseram, a descrição adquire um papel determinante na obra dos dois escritores, sobretudo, porque eles acreditavam que quanto mais minuciosa e exaustiva ela fosse, mais a narrativa se aproximaria da objetividade (utópica) ambicionada pelo realismo e pelo naturalismo e maior seria o vínculo com a realidade (ilusório) estabelecido por ela. Balzac abre o romance Le père Goriot com uma descrição tão metódica e bem estruturada do cenário e dos personagens da trama, quanto às tabelas científicas de zoologia elaboradas por Geoffroy Saint-Hilaire, a quem ele dedica o romance. Esse início é também o reflexo de uma das ambições que o escritor confessa no Prefácio da Comédia Humana : através de uma literatura essencialmente mimética, tornar-se o copista da sociedade de seu tempo : S'en tenant à cette reproduction rigoureuse, un écrivain pouvait devenir un peintre plus ou moins fidèle, plus ou moins heureux, patient ou courageux des types humains, le conteur des drames de la vie intime, l'archéologue du mobilier social, le nomenclateur des professions, l'enregistreur du bien et du mal. 4 ( BALZAC, 1964, p.195) 4 Ao se ater a esta reprodução rigorosa, um escritor poderia tornar-se um pintor mais ou menos fiel, mais ou menos feliz, paciente ou corajoso dos tipos humanos. O narrador dos dramas da vida íntima, o arqueólogo do mobiliário social, o nomenclador das profissões, o registrador do bem e do mal. (tradução nossa) 106 Através das citações abaixo, é possível verificar como Balzac se utiliza, insistentemente, do jogo do texto para tentar construir uma narrativa que se limite à reprodução dos seus mundos de referência : Cette première pièce exhale une odeur sans nom dans la langue, et qu'il faudrait appeler l'odeur de pension. Elle sent le renfermé, le moisi, le rance ; elle donne froid, elle est humide au nez, elle pénètre les vêtements ; elle a le goût d'une salle où l'on a dîné ; elle pue le service, l'office, l'hospice. Peut-être pourrait -elle se décrire si l'on inventait un procédé pour évaluer les quantités élémentaires et nauséabondes qu'y jettent les atmosphères catarrhales et sui generis de chaque pensionnaire, jeune ou vieux. [...]Pour expliquer combien ce mobilier est vieux, crevassé, pourri, tremblant, rongé, manchot, borgne, expirant, il faudrait en faire une description qui retarderait trop l'intérêt de cette histoire, et que les gens pressés ne pardonneraient pas. Le carreau rouge est plein de vallées produites par le frottement ou par les mises en couleur. Enfin, là règne la misère sans poésie ; une misère économe, concentrée, râpée. Si elle n'a pas de fange encore, elle a des taches ; si elle n'a ni trous ni haillons, elle va tomber en pourriture.5 ( BALZAC, 1971, p.26-28) Cette pièce est dans tout son lustre au moment où, vers sept heures du matin, le chat de Madame Vauquer précède sa maîtresse, saute sur les buffets, y flaire le lait que contiennent plusieurs jattes couvertes d'assiettes, et fait entendre son rourou matinal. Bientôt la veuve se montre, attifée de son bonnet de tulle sous lequel pend un tour de faux cheveux mal mis ; elle marche en traînassant ses pantoufles grimacées. Sa face vieillotte, grassouillette, du milieu de laquelle sort un nez à bec de perroquet ; ses petites mains potelées, sa personne dodue comme un rat d'église, son corsage trop plein et qui flotte, sont en harmonie avec cette salle où suinte le malheur, où s'est blottie la spéculation et dont Madame Vauquer respire l'air chaudement fétide sans en être écoeurée. Sa figure fraîche comme une première gelée d'automne, ses yeux ridés, dont l'expression passe du sourire prescrit aux danseuses à l'amer renfrognement de l'escompteur, enfin toute sa personne explique la 5 Esse primeiro cômodo exala um odor inexprimível, que se deveria chamar odor de pensão. Cheira a fechado, a mofo, a ranço; dá frio, o nariz sente sua umidade, penetra nas roupas; seu gosto é de uma sala onde se jantou; fede a serviço, a escritório, a hospital. Talvez fosse possível descrevê-lo caso se inventasse um procedimento para avaliar as quantidades elementares e nauseabundas ali despejadas pelos bafos catarrais e suis generis de cada pensionista, jovem ou velho.[...] Para explicar o quanto o mobiliário é velho, esburacado, podre, capenga, corroído, manco, coalho, inválido, agonizante, seria necessário fazer uma descrição que retardaria demais o interesse desta história, e as pessoas apressadas não perdoariam. As lajotas vermelhas estão cheias de vales produzidos pelas mãos de tinta. Finalmente, ali reina a miséria sem poesia; uma miséria econômica, concentrada, surrada. Se ainda não tem lodo, tem manchas; se ainda não tem buracos ou farrapos, vai cair de podre. 107 pension, comme la pension implique sa personne. Le bagne ne va pas sans l'argousin, vous n'imagineriez pas l'un sans l'autre. L'embonpoint blafard de cette petite femme est le produit de cette vie, comme le typhus est la conséquence des exhalaisons d'un hôpital. Son jupon de laine tricotée, qui dépasse sa première jupe faite avec une vieille robe, et dont la ouate s'échappe par les fentes de l'étoffe lézardée, résume le salon, la salle à manger, le jardinet, annonce la cuisine et fait pressentir les pensionnaires. Quand elle est là, ce spectacle est complet. âgée d'environ cinquante ans, Madame Vauquer ressemble à toutes les femmes qui ont eu des malheur. Elle a l'oeil vitreux, l'air innocent d'une entremetteuse qui va se gendarmer pour se faire payer plus cher, mais d'ailleurs prête à tout pour adoucir son sort, à livrer Georges ou Pichegru, si Georges ou Pichegru étaient encore à livrer.6 (BALZAC, 1971, p. 28-29) Ao questionarmos a teoria com a prática literária dos dois autores, a partir desses dois extratos do livro Le père Goriot, verificamos que, embora o apelo descritivo seja eficiente no que concerne à abordagem temática proposta pelo autor – e portanto, no romance, a comparação entre a humanidade e a animalidade, a análise do homem como produto do meio, e a tentativa de mostrar toda uma categoria social ou psicológica através de um indivíduo, propostas no prefácio da Comédia Humana, fiquem evidentes – em contrapartida, ele é totalmente estéril no que se refere ao veto ao imaginário, à subjetividade e ao lirismo que, mais do que nunca, mostram-se inerentes ao jogo proposto pelo texto ficcional. 6 O cômodo está brilhando no momento em que, por volta das sete horas da manhã, o gato da senhora Vauquer precede sua dona, salta sobre os aparadores, onde fareja o leite em várias gamelas cobertas de pratos e faz ouvir seu ronron matinal. Logo aparece a viúva, ataviada com sua touca de tule da qual escapam os cabelos de uma peruca mal colocada; ela caminha arrastando os seus chinelos enrugados. Seu rosto velhote, gorducho, do meio do qual sai um nariz de papagaio, suas mãozinhas rechonchudas, sua pessoa roliça como um rato de igreja, seu corpete cheio demais e flutuando, combinam com a sala que recende a desventura, onde a especulação se insinuou e cujo ar quente e fétido a senhora Vauquer respira sem ficar enojada. Seu rosto fresco como a primeira geada de outono, as rugas em seus olhos, cuja expressão passa do sorriso prescrito às dançarinas à amarga contração do cambista, enfim, toda a sua figura explica a pensão, como a pensão implica a sua figura. Os condenados a trabalhos forçados não se mexem sem o beleguim, não dá para imaginar os primeiros sem os segundos. A corpulência macilenta da mu lherzinha é o produto dessa vida, como o tifo é conseqüência das exalações de um hospital. Seu saiote de lã tricotada, que ultrapassa sua primeira saia feita com um vestido velho, e cujo forro escapa pelas fendas do tecido esburacado, resume a sala de estar, a sala de jantar, o jardinzinho, anuncia a cozinha e prenuncia os pensionistas. Quando está ali, o espetáculo fica completo. Com cerca de cinqüenta anos, a senhora Vauquer assemelha-se a todas as mulheres que tiveram os seus desgostos. Seus olhos não brilham, ele tem a aparência inocente de uma alcoviteira que se irrita para que lhe paguem mais, mas pronta a tudo para suavizar o seu destino, a entregar Georges ou Pichegru, se Georges ou Pichegrou ainda estivessem sendo procurados. 108 No prefácio da Comédia Humana encontramos as seguintes afirmações : L'idée première de la Comédie humaine fut d'abord chez moi comme un rêve, comme un de ces projets impossibles que l'on caresse et qu'on laisse s'envoler[...]. Mais la chimère, comme beaucoup de chimères, se change en réalité[...] Cette idée vint d'une comparaison entre l'Humanité et l'Animalité. 15 (BALZAC,1964, p.190) [...]je vis que, sous ce rapport, la Société ressemblait à la Nature. La Société ne fait-elle pas de l'homme, suivant les milieux où son action se déploie, autant d'hommes différents qu'il y a de variétés en zoologie ? 16 (BALZAC, 1964, p.191) Ce n'était pas une petite tâche que de peindre les deux ou trois mille figures saillantes d'une époque, car telle est, en définitif, la somme des types que présente chaque génération et que La Comédie humaine comportera. Ce nombre de figures, de caractères, cette multitude d'existences exigeaient des cadres, et, qu'on me pardonne cette expression, des galeries. 17 (BALZAC, 1964, p.203) As citações extraídas do romance, salientam, portanto, que Balzac tencionava respaldar, na literatura, a teoria naturalista do homem como um produto de seu meio, descrevendo Madame Vauquer como um produto do seu universo particular e concebendo, da mesma forma, esse universo como um espelho dos atos e das feições da dona da pensão. Também fica evidente, através do paralelo que o escritor institui entre o nariz da personagem e o bico de um papagaio, ou mesmo entre a sua figura e a de um rato de igreja, sua tentativa de buscar no reino animal elementos que possibilitem a criação de uma relação de equivalência entre o aspecto e o comportamento dos animais e os traços físicos e psicológicos dos seus personagens. Por fim, essa descrição nos permite ainda perceber a defesa que Balzac faz da sua tese – de que um único indivíduo (personagem) pode 15 A idéia primeira da Comédia Humana foi para mim, a princípio, como um sonho, como um destes projetos impossíveis que acalentamos e deixamos alçar vôo [...] Mas a quimera, como muitas quimeras, se transforma em realidade[...]. Essa idéia veio da comparação entre a humanidade e a animalidade. 16 [...] eu vi que, a esse respeito, a sociedade se assemelhava à natureza. A sociedade não faz do homem, de acordo com os meios em que suas ações se desdobram, tantos homens diferentes quanto existem variedades zoológicas? ( tradução nossa) 17 Não é uma tarefa pequena a de pintar as duas ou três mil figuras representativas de uma época, porque essa é, definitivamente, a soma dos tipos que cada geração apresenta e que a Comédia Humana comportará. Esse grande número de figuras, de caracteres, essa multidão de existências, exigiriam quadros, e, que me perdoem a expressão, galerias. (tradução nossa) 109 representar toda uma categoria social – em razão da analogia que ele estabelece entre Madame Vauquer e todas as mulheres que tiveram os seus desgostos. Entretanto, embora a narrativa tenha sido concebida como uma espécie de inventário, seguindo uma ordem rígida e lógica, a própria adjetivação que circunda cada elemento inventariado já é indício da presença da pluralidade de interpretações que o texto evoca. Numa tentativa de controle dessas interpretações, o autor inicia um processo de interação com o leitor que permeará todo o romance. No entanto, longe de conferir uma objetividade realista ao texto, as constantes interrupções do autor, aliada a essa abundância de qualificativos, abrem inúmeros espaços vazios passíveis de serem preenchidos pelo imaginário do leitor. Além disso, esses elementos permitem que a subjetividade e o lirismo encontrem frestas para escapar, justamente, nas brechas abertas pelos artifícios que deveriam suprimi- los. A subjetividade revela-se, por exemplo, quando Balzac, não podendo furtar-se às nuances da narrativa, sob pena de comprometer o verdadeiro significado das circunstâncias que narra, faz uso da ironia.; ou quando, na ânsia de transportar literalmente o leitor para aquele universo, transforma percepções particulares em sensações universais. Assim, ao afirmar que o cômodo tem um inexprimível odor de pensão, que ali reina a miséria sem poesia, ou que a sala recende à desventura, ele não só abre o texto para as inúmeras possibilidades de intelecção que diferentes horizontes de expectativa podem depreender desse contexto, como também dá à narrativa um tom eminentemente poético. O lirismo também transparece, de forma inesperada, quando Balzac, com o intuito de tornar a descrição rítmica e harmoniosa, permite que ela assuma características simbolistas. Ao abusar de sinestesias, aliterações e assonâncias, ele consente que o texto seja invadido por inúmeros recursos poéticos e acaba transformando prosa e poesia em gêneros quase indistintos : “Elle sent le renfermé, le moisi, le rance ; elle donne froid, elle est humide au nez, elle pénètre les vêtements ; elle a le goût d'une salle où l'on a dîné ; elle pue le service, l'office, l'hospice.” Por fim, ao fazer alusão a personagens históricos, como Georges e Pichegru, ele conduz o leitor para um outro contexto, e esse apelo para um quadro de referências externas engendra uma intertextualidade que, mais uma vez, quebra a seqüência da narrativa, abrindo vazios passíveis de serem preenchidos pela imaginação. 110 O que podemos observar, através da análise do romance, é que todos esses elementos rompem completamente com a objetividade proposta pelo Realismo e funcionam como instâncias ativadoras do imaginário. Ao falar sobre a interação entre o fictício e o imaginário, Iser pondera que o imaginário não é um potencial que ativa a si mesmo, mas uma instância que precisa ser mobilizada por algo externo, seja pelo sujeito (Coleridge), pela consciência (Sartre) ou pela psique e pelo sócio - histórico (Castoriadis), o que não esgota as possibilidades de ativação. Portanto, fica claro que o imaginário não possui intencionalidade, mas é, entretanto, atraído por ela, de acordo com o uso que dele é feito em cada caso. Justamente por ser destituído de intencionalidade, o imaginário mostra-se receptivo a qualquer intenção. Com isso, as intenções vinculam-se ao que mobilizaram, fazendo com que sempre ocorra algo às instâncias ativadoras. Assim sendo, o imaginário nunca coincide inteiramente com sua mobilização intencionalmente realizada, desenvolvendo-se antes como jogo com suas ins tâncias ativadoras. O teórico alemão defende que como a oscilação, o deslizamento, a interferência e a figuração dão origem a movimentos que se realizam assimetricamente e que, normalmente, fazem referência a vários campos, é possível concluir que o transitório é a marca do jogo, até porque o seu movimento diferenciado de vaivém não é finalidade em si mesma, mas cumpre determinadas finalidades. Iser observa ainda que, uma vez que a forma como o jogo se realiza depende da instância ativadora, as possibilidades do caráter transitório podem ser desenvolvidas mais livremente quando as finalidades pragmáticas são menos importantes. Nesse sentido, o fictício, enquanto mobilização do imaginário no texto literário, induz uma espera por outra constelação de jogo, pois o texto literário não se orienta em função do cumprimento de finalidades, como ocorre no que diz respeito ao sujeito, à consciência e ao sócio -histórico que, sem exceção, inserem o imaginário em determinados usos. Isso faz com que o imaginário, ativado como jogo, adquira mais variações quando a instância mobilizadora, com o objetivo de cumprir metas dadas, não utiliza desde o início o movimento transitório do jogo. Assim, o fictício, que desenvolve o imaginário em suas possibilidades de jogo, se distingue de qualquer filosofia do jogo que objetive o movimento transitório através de símbolos. O fictício não pode, portanto, ser entendido como definição de jogo, mas como 111 instância específica, fazendo com que o imaginário seja acessível para além de seu uso pragmático. O teórico prossegue afirmando que o que distingue o fictício das instâncias ativadoras é a sua estrutura de duplicação. Ele cita a bucólica (poesia) como um exemplo clássico nesse sentido, visto que ela conecta um mundo artificial, inventado, a um mundo sócio histórico e apresenta-se nessa duplicação como auto-reflexão da ficcionalidade literária. Ele também considera que a bucólica (poesia)10 pode ser entendida como um metatexto da ficcionalidade literária, e que o paradigma bucólico ilustra a fórmula estrutural da ficcionalidade literária, tanto pela transgressão de limites quanto pelo engaste iterativo dos dois mundos. No entanto, a estrutura de duplicação não se limita a esse sistema, que se espalha por outros gêneros. O que na bucólica (poesia) se transforma em imagem, está presente nos atos de fingir como função. Os próprios atos provocam os ‘dois mundos’ e, através dessa duplicação, abrem em cada texto um espaço de jogo. Para o teórico alemão existe, no espaço do jogo, três atos os quais ele denomina de atos de fingir : o de seleção, o de combinação e o de auto- indicação. O primeiro deles, o ato de seleção, provoca uma fragmentação do campo de referência correspondente, à medida que os elementos escolhidos para figurar no texto só adquiram sua valorização com a rejeição de outros elementos. Sem essa relação, a desordem passível de evento no âmbito do texto não teria vez, manifestando-se como tensão e indicando, com isso, que o ‘mundo’ transgredido está presente nele. Além disso, o ato de seleção também invade outros textos, produzindo, com isso, a intertextualidade. Esse emaranhado de textos aumenta muito a complexidade do espaço de jogo, já que as alusões e as citações revestem novas dimensões tanto na sua relação com seus contextos antigos quanto com os novos. Como os contextos se atualizam, surge uma co-existência de discursos diferentes, que desenvolvem seus contextos como um jogo mútuo de aparecimento e desaparecimento. Dessa forma, quanto mais um texto acumula outros textos, mais intensamente se manifesta a duplicação produzida pelo ato de seleção. Essa se mostra como espaço de jogo que reúne todos os 10 Poesia Bucólica: que trata de temas campestres e pastoris. (Houaiss) 112 discursos, transformando-se, dessa forma, na matriz para uma multiplicidade, em princípio imprevisível, de relações do texto com seus contextos. O ato de combinação, por sua vez, produz transgressões intratextuais de limites, que vão do léxico às constelações de personagens. Através dele, cada palavra se torna dialógica, e cada campo semântico é duplicado por outro. Esse discurso de ‘duas vozes’ aponta em tudo o que é dito sempre algo outro, fazendo com que o ato de combinação desdobre um espaço de jogo em que o presente é sempre duplicado pelo ausente e, à medida que o presente se põe a serviço do ausente, o dito deixa de significar a si mesmo, presentificando o não dito. Assim, a relação dos segmentos do texto surge pela impressão mútua de sua diferenciabilidade e , em conseqüência, em todo segmento de texto está presente o traço de um outro. Quanto mais significante é o segmento correspondente, mais variados serão os traços que nele se cruzam. Se o traço assinala igualmente a diferença dos segmentos e sua interação, o ato de combinação abre o potencial de jogo de cada segmento. Por fim, a auto- indicação da ficcionalidade literária produz um ato de duplicação bem distinto. À medida que o texto literário, em função dos sinais estabelecidos pelo contrato entre autor e leitor, se evidencia como discurso encenado, o mundo do texto é colocado sob o signo do como se, e o receptor tem consciência de que se trata de “ fazer de conta” a atitude natural em relação ao que lhe é oferecido. Os sinais de ficcionalidade também “fazem de conta” o mundo apresentado pelo texto, indicando, ao mesmo tempo, que esse mundo não só deve ser visto dessa forma, mas também, entendido como um mundo que não existe empiricamente. Em conseqüência, há uma diferença entre esse e aquele mundo, separados pelo “faz de conta”. O mundo do texto exibe seu contorno em decorrência do fato de a seleção e a combinação deformarem, a princípio, os sistemas contextuais do texto e, depois, devolverem os elementos aí enclausurados em uma multiplicidade de aspectos relacionados. A diferença sinaliza, portanto, a existência de dois mundos que se apresentam à medida que o mundo do texto não significa o que designa e metaforiza o mundo empírico, presente para ele. Resumindo, o ato de seleção engendra a intertextualidade ao invadir outros textos e gera uma co-existência de discursos diferentes e uma multiplicidade, inicialmente imprevisível, 113 de relações do texto com seus contextos. Já o ato de combinação produz transgressões intratextuais (do léxico aos personagens), estabelecendo um espaço de jogo em que o presente é sempre duplicado pelo ausente. E, finalmente, a auto -indicação origina um ato próprio de duplicação literária. Graças aos sinais estabilizados pelo contrato entre o autor e o leitor, o texto literário se evidencia como discurso encenado e o seu mundo é colocado sob o signo do como se. Para Iser, os atos de fingir se diferenciam, ent re si, pela natureza da sua duplicação, a partir da qual emergem espaços de jogo diferentes em cada caso: o ato de seleção abre um espaço de jogo entre os campos referenciais e sua deformação no texto; o ato de combinação abre outro espaço de jogo entre a interação recíproca dos segmentos textuais; e o ato do como se abre um espaço de jogo entre um mundo empírico e sua metaforização. O teórico alemão pondera, finalmente, que se a estrutura de duplicação do fictício se realiza ao abrir um espaço de jogo, ela ainda não é um jogo, apesar de ser causa do movimento iterativo do que foi duplicado. Se o fingir como transgressão de limites excede o que é dado, a intenção que se manifesta é certamente um sentido de orientação que visa a algo que não se pode controlar totalmente. Assim, o fictício, como ativação de jogo, devido à sua estrutura de duplicação, libera o imaginário, de forma diferente das orientações pragmáticas permitidas pelos paradigmas. Se o fictício precisa do imaginário para se realizar, o inverso também é verdadeiro. Sem o imaginário, o fictício permaneceria uma forma vazia da consciência; sem o fictício, o imaginário não alcançaria a sua contraposição. Com a passagem para o Naturalismo, a descrição manteve o papel relevante que adquiriu na configuração do romance realista. Entretanto, ela evolui e adquire novos significados. Balzac via na reprodução rigorosa do cenário e das características dos personagens uma forma do escritor se tornar um pintor dos diversos tipos humanos, um arqueólogo do mobiliário social. Já para Zola, a descrição só tinha sentido como forma de completar e determinar o homem e, por isso, ele condenava, veementemente, o ato de descrever como um capricho e um prazer retóricos 114 Par exemple, le zoologiste qui, en parlant d'un insecte particulier, se trouverait forcé d'étudier longuement la plante sur laquelle vit cet insecte, dont il tire son être, jusqu'à sa forme et sa couleur, ferait bien une description, mais cette description entrerait dans l'analyse même de l'insecte, il y aurait là une nécessité de savant, et non un exercice de peintre. Cela revient à dire que nous ne décrivons plus pour décrire, par un caprice et un plaisir de rhétoricien. Nous estimons que l'homme ne peut être séparé de son milieu, qu'il est complété par son vêtement, par sa maison, par sa ville, par sa province; et, dès lors, nous ne noterons pas un seul phénomène de son cerveau ou de son cour, sans cri chercher les causes ou le contre-coup dans le milieu. De là ce qu'on appelle nos éternelles descriptions. 11 (ZOLA, 1989, p. 60) Após analisar como a descrição foi empregada pelas diversas correntes literárias que o precederam, Zola afirma, no livro Du Roman, que o romance do século XVII se dedicou a criações puramente intelectuais que se moviam sobre um fundo neutro, indeterminado, convencional; e que, como os personagens eram simples mecânicas de sentimentos e paixões, funcionando fora do tempo e do espaço, o meio não importava, e a natureza não tinha nenhum papel a representar na obra. Com a chegada do século XVIII, a natureza começa a despontar no Romance, embora o escritor alegue que ela aparecia apenas em dissertações filosóficas ou em parti pris de emoções idílicas. Finalmente, no século XIX, Zola vê o emprego científico da descrição começar a se estabelecer – após o que ele chama de “orgias descritivas do Romantismo” – graças a Balzac, Flaubert e os Goncourt, dentre outros. No entanto, para o romancista, a nova fórmula ainda necessitaria de algum tempo para se balancear e atingir a sua expressão exata. Segundo o autor do Romance Experimental, os irmãos Goncourt, por exemplo, nem sempre permaneciam no rigor científico do estudo dos meios, unicamente subordinado ao completo conhecimento dos personagens e, por vezes, deixavam-se levar pelo prazer de descrever, como artistas que brincando com a língua põem-se a dobrá-la às mil dificuldades do representado. Apesar disso, ele acreditava que o trabalho dos Goncourt seria muito precioso numa história da 11 Por exemplo, o zoólogo que, ao falar de determinado inseto, se achasse forçado a estudar longamente a planta sobre a qual vive esse inseto, do qual extrai sua existência, até sua forma e sua cor, faria uma descrição; mas essa descrição entraria na própria análise do inseto, haveria aí uma necessidade de cientista, e não um e xercício de pintura. Isso significa dizer que já não descrevemos por descrever, por um capricho e prazer retóricos. Achamos que o homem não pode ser separado de seu meio, que ele é completado por sua roupa, por sua casa por sua cidade, por sua província; e, dessa forma, não notaremos um único fenômeno de seu cérebro ou de seu coração sem procurar as causas ou a conseqüência no meio. Daí o que se chama nossas eternas descrições. 115 evolução naturalista, porque além da capacidade genial que possuíam de traduzir a natureza de forma extremamente viva, eles sempre punham sua retórica a serviço da humanidade, ou seja, neles, a descrição era, invariavelmente, observada nas suas relações com o homem. Em contrapartida, Zola confessou não nutrir nenhuma admiração pelo talento descritivo de Théophile Gautier, justamente, por encontrar nele somente a descrição pela descrição, sem nenhuma preocupação com a humanidade. Por fim, o escritor defende que Flaubert seria o romancista que até então teria emprega do a descrição com a maior medida , superando, inclusive, Balzac, porque enquanto o autor da Comédia Humana obstruía o começo dos seus romances com longas enumerações de leiloeiro oficial, Flaubert reduzia essas exposições à estrita necessidade. É partindo dessas reflexões que Zola sustenta a sua definição de qual deveria ser o papel da descrição na construção do romance moderno: Et je finirai par une déclaration: dans un roman, dans une étude humaine, je blâme absolument toute description qui n'est pas, selon la définition donnée plus haut, un état du milieu qui détermine et complète l'homme. J'ai assez péché pour avoir le droit de reconnaître la vérité.12 ( ZOLA, 1989, Pag 66) Aliando essa técnica descritiva a uma pesquisa meticulosa e profunda sobre o tema que pretendia abordar, Zola acreditava estar eliminando a subjetividade, a imaginação e o lirismo dos seus romances e obrigando o romancista a buscar, observar, experimentar e depois transcrever a verdade. No Livro Au Bonheur des Dames analyse critique, Colette Becker relata que, para escrever Au Bonheur des Dames, durante um mês, o autor passou todas as tardes visitando grandes lojas de departamentos de Paris, como o Le Bon Marché e o Louvre, além de percorrer inúmeras lojas de luxo. Ele costumava permanecer de cinco a seis horas por dia nessas lojas, não só observando o ambiente, a decoração, vendedores e vendedoras, as condições de trabalho, as gírias e as relações entre chefes e subordinados, como também, coletando informações diretas de consumidores e funcionários. O seu objetivo era o de transportar para a literatura, da forma mais verossímil possível, a realidade que ele havia experienciado e transformar essa realidade – a de uma grande loja de departamentos parisiense – no laboratório em que desenvolveria sua experiência científica. 12 E terminarei por uma declaração: num romance, num estudo humano, censuro abs olutamente toda descrição que não é, segundo a definição dada mais acima, um estado do meio que determina e completa o homem. Pequei o suficiente para ter o direito de reconhecer a verdade. 116 Eh bien! en revenant au roman, nous voyons également que le romancier est fait d'un observateur et d'un expérimentateur. L'observateur chez lui donne les faits tels qu'il les a observés, pose le point de départ, établit le terrain solide sur lequel vont marcher les personnages et se développer les phénomènes. Puis, l'expérimentateur paraît et institue l'expérience, je veux dire fait mouvoir les personnages dans une histoire particulière, pour y montrer que la succession des faits y sera telle que l'exige le déterminisme des phénomènes mis à l'étude. C'est presque toujours ici une expérience "pour voir" comme l'appelle Claude Bernard. Le romancier part à la recherche d'une vérité. 13( ZOLA, 1964, p263) O que Zola propõe é que o romancista proceda diante do personagem, exatamente, como o crítico em relação ao autor , transformando o romance em uma análise do comportamento e das paixões humanas dentro de um contexto pré-estabelecido. Por isso, ele condena todos os exercícios da arte pela arte e os encantos do belo estilo, que devem ser substituídos por um detalhamento minucioso da ecologia humana que será examinada à luz da razão. A proposta é ambiciosa e a tentativa de realizá- la genuína. Em Au Bonheur des Dames, a escolha das experiências a que os personagens deveriam ser expostos teve sua origem, sobretudo, nas transformações que a Revolução comercial, o nascimento da publicidade e as modificações estruturais decorrentes da modernização de Paris engendraram na sociedade. Diferentemente de Balzac, que tendia a concentrar a descrição nas primeiras páginas dos seus livros, Zola tenta dividir a documentação que acumulou nos quatorze capítulos do romance e, assim, ao longo de toda a narrativa, podemos observar a descrição do func ionamento social a partir de uma concepção darwiniana, dos efeitos sociais da economia capitalista e do poder de sedução da publicidade. Entretanto, apesar da escolha de uma temática realista fundamentada em preceitos científicos, algumas das “experiências” que Zola reproduz literariamente dificilmente poderiam ser descritas de forma mais poética : Derrière le rideau de pluie qui tombait, cette apparition reculée, brouillée, prenait l'apparence d'une chambre de chauffe géante, où l'on voyait passer les ombres noires des chauffeurs, sur le feu rouge des chaudières. Les 13 Pois bem, voltando ao romance, vemos também que o romancista é feito de um observador e de um experimentador. Nele, o observador apresenta os fatos tal qual os observou, define o ponto de partida, estabelece o terreno sólido no qual as personagens vão se desenvolver. Depois, o experimentador surge e institui a experiência, quer dizer, faz as personagens evoluírem numa história particular, para mostrar que a sucessão dos fatos será tal qual a exige o determinismo dos fenômenos estudados. Trata-se quase sempre de uma experiência “para ver”, como designa Claude Bernard. O romancista sai em busca da verdade. 117 vitrines se noyaient, on ne distinguait plus, en face, que la neige des dentelles, dont les verres dépolis d'une rampe de gaz avivaient le blanc; et, sur ce fond de chapelle, les confections s'enlevaient en vigueur, le grand manteau de velours, garni de renard argenté, mettait le profil d'une femme sans tête, qui courait par l'averse à quelque fête, dans l'inconnu des ténèbres de Paris. Denise, cédant à la séduction, était venue jusqu'à la porte, sans se soucier du rejaillissement des gouttes, qui la trempait. À cette heure de nuit, avec son éclat de fournaise, le Bonheur des Dames achevait de la prendre tout entière. Dans la grande ville, noire et muette sous la pluie, dans ce Paris qu'elle ignorait, il flambait comme un phare, il semblait à lui seul la lumière et la vie de la cité. Elle y rêvait son avenir, beaucoup de travail pour élever les enfants, avec d'autres choses encore, elle ne savait quoi, des choses lointaines dont le désir et la crainte la faisaient trembler. L'idée de cette femme morte dans les fondations lui revint; elle eut peur, elle crut voir saigner les clartés; puis, la blancheur des dentelles l'apaisa, une espérance lui montait au coeur, toute une certitude de joie ; tandis que la poussière d'eau volante lui refroidissait les mains et calmait en elle la fièvre du voyage. 14 ( ZOLA, 1998, p. 33) Nessa citação, o romancista retrata o momento exato em que Denise se rende ao fascínio provocado pelas vitrines do “Bonheur des Dames” e procura desvelar as artimanhas da recém-nascida publicidade no exercício da sua ciência, seduzir. Diante do laboratório, o “Bonheur”, a personagem Denise é exposta ao fenômeno, às técnicas de sedução de um templo de consumo. No entanto, ao invés de mostrar o determinismo dos fatos e a “verdade”, o escritor acaba deixando brechas nas entrelinhas do texto para que emerja um universo lúdico na medida em que transcreve, através do olhar da personagem, a sua visão subjetiva do mundo. Ao narrar as emoções vividas pela jovem, o romancista abusa de figuras pictóricas, da descrição de “estados d’alma” e das sinestesias. Assim, diversos traços impressionistas se revelam e sobressaem na narrativa, sobretudo, nos momentos em 14 Por trás da cortina de chuva que caía, esta aparição recuada, confusa, adquiria a aparência de uma fornalha gigante, na qual se via passar as sombras escuras dos fornalheiros, sobre o fogo vermelho das caldeiras. As vitrines submergiam, na frente, só era possível distinguir a neve das rendas, cujo branco era reavivado pelos vidros mal polidos de uma rampa de gás; e, sobre esse fundo de capela, as confecções fascinavam pelo vigor, o grande casaco de veludo, adornado com pele de raposa, colocava o perfil de uma mulher sem cabeça, que corria pelo aguaceiro para qualquer festa, no desconhecido das trevas de Paris. Denise, cedendo à sedução, veio até a porta, sem se preocupar com o repicar das gotas que a encharcavam. Àquela hora da noite, com sua resplandecência de fornalha, o Bonheur des Dames acabava de arrebatá-la inteiramente. Na grande cidade, escura e muda sob a chuva, nessa Paris que ela ignorava, ele flamejava como um farol, parecia ser a única luz e vida da cidade. Ela sonhava com um futuro ali, muito trabalho para criar as crianças, com outras coisas além disso, não sabia quais, coisas longínquas cujo desejo e o medo a faziam tremer. A idéia daquela mulher morta na fundação retornou-lhe; ela teve medo, acreditou ver a claridade sangrar; logo após, a brancura das rendas a apaziguou, uma esperança subia ao seu coração, toda uma certeza de felicidade; enquanto as partículas de água que voavam lhe refrescavam as mãos e acalmavam nela a febre da viagem. (tradução nossa) 118 que Zola – amigo e crítico de Manet e Césanne e um ardoroso defensor da pintura impressionista – ao tentar traduzir as sensações experimentadas pela personagem diante da vitrine, mostrando ao leitor o resultado da “experiência”, deixa-se contaminar pela arte de Monet, Césanne e Renoir e representa, no texto, de forma genial, o jogo de luzes e sombras, de planos, tons, cores e volumes que caracterizam o impressionismo, transformando, ao mesmo tempo, a sua descrição na “impressão” subjetiva do mundo que ele tenta captar. Zola considerava que a hereditariedade, a influência do meio e as teorias de Darwin sobre a origem das espécies por via da seleção natural tinham uma grande influência nas manifestações intelectuais e passionais do homem, como ele afirma no Romance Experimental : Sans me risquer à formuler des lois, j'estime que la question d'hérédité a une grande influence dans les manifestations intellectuelles et passionnelles de l'homme. Je donne aussi une importance considérable au milieu. Il faudrait sur la méthode aborder les théories de Darwin; mais ceci n'est qu'une étude générale expérimentale appliquée au roman, et je me perdrais, si je voulais entrer dans les détails. 15( ZOLA, 1964, p.272) E reforça no prefácio do Rougon-Macquart, de 1870 : Je désire montrer comment une famille, un petit groupe d'êtres se comporte en s'épanouissant pour donner naissance à dix, à vingt individus, qui paraissent, au premier coup d'oeil, profondément dissemblables, mais que l'analyse révèle comme intimement liés les uns aux autres. L'hérédité a ses lois, ainsi que la pesanteur. Je tâcherai de trouver et de suivre, en résolvant la question double des tempéraments et des milieux, le fil qui conduit mathématiquement d'un homme à un autre homme. Et, quand je tiendrai tous les fils, quand j'aurai entre les mains tout un groupe social, je ferai voir ce groupe à l'oeuvre, je le créerai agissant dans la complexité de ses efforts, j'analyserai à la fois la somme de volonté de chacun de ses membres et la poussée générale de l'ensemble. 16 ( ZOLA, 1998, p. 454) 15 Sem me arriscar a formular leis, julgo que a questão da hereditariedade tem uma grande influência nas manifestações intelectuais e passionais do homem. Também dou uma importância considerável ao meio. Seria preciso abordar as teorias de Darwin; mas isto é apenas um estudo geral sobre o método experimental aplicado ao romance, e eu me perderia se quisesse entrar em pormenores. 16 Eu desejo mostrar como uma família, um pequeno grupo de seres se comporta expandindo-se para dar vida a dez, a vinte indivíduos, que parecem, ao primeiro olhar, profundamente diferentes, mas que a análise revela serem intimamente ligados uns aos outros. A hereditariedade tem suas leis, da mesma forma que o 119 A complexidade que envolve as relações humanas e a influência das características hereditárias e do meio social no comportamento dos homens, quando esses se vêem diante da evolução social e da luta pela sobrevivência, figurariam, portanto, dentre os temas preponderantes de toda a saga Des Rougon-Macquart. No livro Au Bonheur des Dames, a loja de Mouret se transforma em um campo de batalha onde a concorrência – não só entre os diferentes tipos de comércio (a grande loja de departamento e as pequenas lojas do bairro), mas também, entre vendedores e vendedoras – leva os mais fortes a devorarem os mais frágeis. Na sociedade que Zola retrata não há espaço para a solidariedade, porque é justamente o apetite desenfreado, que a luta pela vida engendra e que leva uns a engolir os outros, que serve de combustível para o seu funcionamento. É exatamente essa guerra que faz com que a “máquina” – forma metafórica como o escritor se refere ao “Bonheur”, da qual se pode depreender uma alusão ao sistema capitalista – se torne cada vez mais próspera e resplandecente. A loja se revela , então, o ícone de uma sociedade em mutação, na qual só os indivíduos capazes de se adaptarem poderiam sobreviver ao advento da modernidade : Et, ayant fini de signer les traites, il se leva, il vint donner des tapes amicales sur les épaules de l'intéressé, qui se remettait difficilement. Cet effroi des gens prudents, autour de lui, l'amusait. Dans un des accès de brusque franchise, dont il accablait parfois ses familiers, il déclara qu'il était au fond plus juif que tous les juifs du monde : il tenait de son père, auquel il ressemblait physiquement et moralement, un gaillard qui connaissait le prix des sous ; et, s'il avait de sa mère ce brin de fantaisie nerveuse, c'était là peut-être le plus clair de sa chance, car il sentait la force invincible de sa grâce à tout oser.18 (ZOLA, 1998, p. 40) peso. Eu me encarregarei de encontrar e de seguir, resolvendo a dupla questão dos temperamentos e dos meios, o fio que conduz matematicamente de um homem a um outro homem. E quando tiver todos os fios, quando tiver entre as mãos todo um grupo social, eu mostrarei esse grupo trabalhando, o criarei agindo dentro da complexidade dos seus esforços, analisarei ao mesmo tempo a quantidade de vontade de cada um desses membros e o impulso geral do conjunto. (tradução nossa) 18 E tendo terminado de assinar os contratos, ele se levantou, veio dar tapas amistosos nas costas do interessado que voltava a si com dificuldade. Esse temor das pessoas prudentes, ao seu redor, o divertia. Em um acesso brusco de franqueza, que por vezes desconcertava seus familiares, ele declarou que era, no fundo, mais judeu do que todos os judeus do mundo: tinha de seu pai, com o qual parecia fisicamente e moralmente, uma malícia que conhecia o preço dos vinténs; e se possuía de sua mãe esse fio de fantasia nervosa, lá estava talvez a maior parcela da sua sorte, porque ele sentia a força invisível da capacidade de tudo ousar. (tradução nossa) 120 Alors, avant de descendre dans le magasin jeter leur coup d'oeil habituel, tous deux réglèrent encore certains détails. Ils examinèrent le spécimen d'un petit cahier à souches que Mouret venait d'inventer pour les notes de débit. Ce dernier, ayant remarqué que les marchandises démodées, les rossignols, s'enlevaient d'autant plus rapidement que la guelte donnée aux commis était plus forte, avait basé sur cette observation un nouveau commerce. Il intéressait désormais ses vendeurs à la vente de toutes les marchandises, il leur accordait un tant pour cent sur le moindre bout d'étoffe, le moindre objet vendu par eux : mécanisme qui avait bouleversé les nouveautés, qui créait entre les commis une lutte pour l'existence, dont les patrons bénéficiaient. Cette lutte devenait du reste entre ses mains la formule favorite, le principe d'organisation qu'il appliquait constamment. Il lâchait les passions, mettait les forces en présence, laissait les gros manger les petits, et s'engraissait de cette bataille des intérêts.19( ZOLA, 1998, p. 41) Mouret regardait, sans prononcer une parole. Mais, dans ses yeux clairs, cette débâcle de marchandises qui tombait chez lui, ce flot qui lâchait des milliers de francs à la minute, mettait une courte flamme. Jamais encore il n'avait eu une conscience si nette de la bataille engagée. C'était cette débâcle de marchandises qu'il s'agissait de lancer aux quatre coins de Paris.20 (Zola, 1998,p. 42) Através dessas três citações, percebemos que, embora Zola se mantenha, insistentemente, fiel à temática e às premissas teóricas que instituiu, ele é, mais uma vez, maliciosamente, traído pelo imaginário, que surge pungente nos espaços abertos pelas metáforas e símbolos que invadem o texto. A pluralidade de interpretações que o escritor inspira ao tentar configurar a lógica da intuição : “il tenait de son père, auquel il ressemblait physiquement et moralement, un gaillard qui connaissait le prix des sous ; et, s'il avait de sa mère ce brin de fantaisie nerveuse”; ao estabelecer uma analogia entre um estado capitalista e um campo 19 Então, antes de descer para a loja, dar sua espiadela habitual, os dois acertaram ainda alguns detalhes. Examinaram uma espécie de caderninho de talões que Mouret acabara de inventar para as notas dos débitos. Esse último, tendo percebido que as peças fora de moda, os rouxinóis, saíam muito mais rápido quando as comissões dadas aos balconistas eram mais significativas, baseou nessa observação um novo comércio. Ele interessava os seus vendedores pela venda de todas as mercadorias e lhes concedia um tanto por cento sobre a menor ponta de tecido, o menor objeto vendido por eles : mecanismo que tinha subvertido as novidades, que criava entre os balconistas uma luta pela sobrevivência, da qual os patrões se beneficiavam. De resto, essa luta se tornava entre suas mãos a fórmula favorita, o princípio de organização que ele aplicava constantemente. Libertava as paixões, colocava as forças presentes, deixava os grandes comerem os pequenos e engordava, através dessa batalha de interesses. (tradução nossa) 20 Mouret olhava sem pronunciar uma palavra. Mas, nos seus olhos claros, essa saída de mercadorias da sua loja, esse fluxo que liberava milhares de francos por minuto, acendia uma breve chama. Nunca antes ele tinha tido uma consciência tão clara da batalha engajada. Era essa saída de mercadoria que teria que ser disseminada pelos quatros cantos de Paris. (tradução nossa) 121 de batalha, entre devorar o pão e o inimigo, entre a sociedade e a selva, entre as fomes de alimento, de vida e de fortuna; e, enfim, toda a intertextualidade que a narrativa evoca, retomando Iser, “funcionam como instâncias ativadoras do imaginário” e, portanto, levam o leitor para um universo à parte, onde a imaginação completa o que as palavras calam. Ao trazer para a literatura o discurso científico, selecionando dentro da realidade cotidiana os elementos que se aplicam a esse discurso e ao tentar usar o universo ficcional como laboratório para suas experiências, Zola faz claramente uso de todos os atos de fingir a que Iser se refere. Aqui o romancista invade outros textos, provoca a duplicação de sentido dos diferentes campos semânticos que constituem a narrativa e, através de sinais óbvios de ficcionalidade, ele evidencia um discurso encenado que coloca o mundo do texto sob o signo do como se, abrindo, assim, um espaço de jogo entre o mundo empírico e a sua metaforização. O fingir como transgressão de limites excede o que é dado, impossibilitando toda e qualquer tentativa de controle e faz com que o fictício, por meio da sua estrutura de duplicação, libere o imaginário de uma forma muito diferente daquela permitida por suas orientações pragmáticas. Juntamente com a descrição, a pesquisa histórica seria um dos principais recursos empregados tanto pelo Realismo quanto pelo Naturalismo, com o objetivo de consolidar o caráter mimético que essas estéticas atribuíam à literatura . A fim de estruturar a narrativa, de acordo com os princípios da historiografia positiva, além de se documentarem sistematicamente, os romancistas inseriam a trama dentro de um contexto “real”, o que lhes permitia aludir a eventos e a personagens históricos, a sistemas políticos e econômicos que estiveram ou que estavam em vigor e a analisar as transformações sócio -culturais que tais contextos motivaram. No Prefácio da Comédia Humana, Balzac reafirma a sua intenção de estabelecer uma aliança entre a literatura e a história: En dressant l'inventaire des vices et des vertus, en rassemblant les principaux faits des passions, en peignant les caractères, en choisissant les événements principaux de la Société, en composant des types par la réunion des traits de plusieurs caractères homogènes, peut-être pouvais-je arriver à écrire l'histoire oubliée par tant d'historiens, celle des moeurs. 122 Avec beaucoup de patience et de courage, je réaliserais, sur la France au dix-neuvième siècle, ce livre que nous regrettons tous, que Rome, Athènes, Tyr, Memphis, la Perse, l'Inde ne nous ont malheureusement pas laissé sur leurs civilisations, et qu'à l'instar de l'abbé Barthélemy, le courageux et patient Monteil avait essayé pour le Moyen-Age, mais sous une forme peu attrayante. 21( BALZAC, 1964, p. 194) Intenção essa que ele já havia evidenciado nas páginas do romance “Le Père Goriot”: Oui, ce Moriot a été président de sa section pendant la Révolution; il a été dans le secret de la fameuse disette, et a commencé sa fortune par vendre dans ce temps-là des farines dix fois plus qu’elles ne lui coûtaient. Il en a eu tant qu’il en a voulu. L’intendant de ma grand-mère lui en a vendu pour des sommes immenses. Ce Goriot partageait sans doute, comme tous ces gens-là, avec le Comité de Salut Public. Je me souviens que l’intendant disait à ma grand-mère qu’elle pouvait rester en toute sûreté à Grandvilliers, parce que ses blés étaient une excellente carte civique. Eh bien! ce Loriot, qui vendait du blé aux coupeurs de têtes, n’a eu qu’une passion. Il adore, dit-on, ses filles. Il a juché l’aînée dans la maison de Restaud, et greffé l’autre sur le baron de Nucingen, un riche banquier qui fait le royaliste. Vous comprenez bien que, sous l’Empire, les deux gendres ne se sont pas trop formalisés d’avoir ce vieux Quatre-vingt-treize chez eux; ça pouvait encore aller avec Buonaparte. Mais quand les Bourbons sont revenus, le bonhomme a gêné monsieur de Restaud, et plus encore le banquier. 22 ( BALZAC, 1971 p. 112) Herdeiro e continuador da estética realista, Zola acreditava que os romancistas deveriam ser os juízes de instrução dos homens e de suas paixões e que, para compreender o mecanismo dessas, era preciso saber o que uma dada paixão, agindo num certo meio e em certas 21 Redigindo o inventário dos vícios e das virtudes, reunindo os principais feitos das paixões, pintando os caracteres, escolhendo os acontecimentos principais, compondo tipos a partir da reunião dos traços de diversos caracteres homogêneos, talvez eu pudesse chegar a escrever a história esquecida por tantos historiadores, a história dos costumes. Com muita paciência e coragem, realizarei, na França, no século XIX, este livro que todos nós lamentamos, que Roma, Atenas, Tiro, Mênfis, a Pérsia, a Índia, infelizmente, não nos deixaram em suas civilizações e que, a exemplo do abade Barthélemy, corajoso e paciente Monteil havia tentado na Idade Média, mas de uma forma pouco atraente. (Tradução nossa) 22 - Realmente, que esse Moriot foi presidente de sua seção durante a Revolução; estava a par do segredo da famosa penúria e começou a fazer fortuna vendendo naquela época a farinha por dez vezes mais do que lhe custava. Ganhava o que queria. O procurador de minha avó vendeu-lhe enormes quantidades de trigo por somas imensas. Decerto esse Goriot dividia o lucro com o Comitê de Salvação Pública, como toda aquela gente. Lembro-me que o procurador dizia à minha avó que ela poderia permanecer com toda a segurança em Granvilliers porque seu trigo era um excelente cartão de visita cívico. Bem, esse Loriot, que vendia trigo aos cortadores de cabeça, teve uma única paixão. Dizem que adora suas filhas. Empoleirou a mais velha na casa de Restaud e enxertou a outra junto ao barão de Nucingen, um banqueiro rico que finge ser monarquista. É compreensível que durante o Império os dois genros não se incomodassem muito por ter aquele velho noventa-e-três em casa; isso ainda era possível com o Buonaparte. Mas, quando os Bourbons voltaram, o pobre homem passou a estorvar o senhor Restaud e, mais ainda, o banqueiro. 123 circunstâncias - ou seja, sob as condições políticas e econômicas específicas de um momento histórico – produziria no indivíduo e na sociedade : Le problème est de savoir ce que telle passion, agissant dans tel milieu et dans telles circonstances, produira au point de vue de l'individu et de la société; et un roman expérimental, la Cousine Bette par exemple, est simplement le procès-verbal de l'expérience, que le romancier répète sous les yeux du public. En somme, toute l'opération consiste à prendre les faits dans la nature, puis à étudier le mécanisme des faits, en agissant sur eux par les modifications des circonstances et des milieux, sans jamais s'écarter des lois de la nature.23 (ZOLA, 1964, p263) Isso levaria o escritor a atribuir ao determinismo histórico um papel fundamental na sua obra, como ele explica no prefácio dos Rougon-Macquart : Les Rougon-Macquart, le groupe, la famille que je me propose d'étudier a pour caractéristique le débordement des appétits, le large soulèvement de notre âge, qui se rue aux jouissances. Physiologiquement, ils sont la lente succession des accidents nerveux et sanguins qui se déclarent dans une race, à la suite d'une première lésion organique, et qui déterminent, selon les milieux, chez chacun des individus de cette race, les sentiments, les désirs, les passions, toutes les manifestations humaines, naturelles et instinctives, dont les produits prennent les noms convenus de vertus et de vices. Historiquement, ils partent du peuple, ils s'irradient dans toute la société contemporaine, ils montent à toutes les situations, par cette impulsion essentiellement moderne que reçoivent les basses classes en marche à travers le corps social, et ils racontent ainsi le second empire à l'aide de leurs drames individuels, du guet-apens du coup d'état à la trahison de Sedan.Depuis trois années, je rassemblais les documents de ce grand ouvrage, et le présent volume était même écrit, lorsque la chute des Bonaparte, dont j'avais besoin comme artiste, et que toujours je trouvais fatalement au bout du drame, sans oser l'espérer si prochaine, est venue me donner le dénouement terrible et nécessaire de mon œuvre. Celle-ci est, dès aujourd'hui, complète; elle s'agite dans un cercle fini; elle devient le tableau d'un règne mort, d'une étrange époque de folie et de honte. Cette œuvre, qui formera plusieurs épisodes, est donc, dans ma pensée, l'histoire naturelle et sociale d'une famille sous le second empire. Et le 23 O problema consiste em saber o que determinada paixão, agindo num certo meio e em certas circunstâncias, produzirá sob o ponto de vista do indivíduo e da sociedade; e um romance experimental, A prima Bette por exemplo, é simplesmente o relatório da experiência que o romancista reproduz sob as vistas do público. Em suma, toda a operação consiste em pegar os fatos da natureza e depois estudar o mecanismo dos fatos agindo sobre os mesmos pelas modificações das circunstâncias e dos meios, sem nunca se afastar das leis da natureza. 124 premier épisode : la Fortune des Rougon, doit s'appeler de son titre scientifique : Les Origines.24 (ZOLA, 1998, p.4550) Portanto, assim como para Balzac o pacto da história com a literatura seria um dos fios condutores da obra de Zola. No Romance Au Bonheur des Dames, por exe mplo, o autor centra a trama em Paris, entre os anos de 1864 e 1869, período em que a cidade vive uma verdadeira revolução comercial. O vertiginoso crescimento do comércio era motivado, sobretudo, pela construção das estradas de ferro, que fizeram de Paris o principal centro de convergência comercial da França, pelas obras do Barão de Haussmann, que a transformaram numa capital moderna e fascinante, e pela ascensão das grandes lojas de departamento, um dos ícones dessa revolução. E é justamente a realidade das novas técnicas de comércio que Zola tenta reproduzir no Romance, a fim de estudar os efeitos sociais dessa circunstância histórica agindo sobre as paixões humanas : La grande puissance était surtout la publicité. Mouret en arrivait à dépenser par an trois cent mille francs de catalogues, d’annonces et d’affiches. Pour sa mise en vente des nouveautés d’été, il avait lancé deux cent mille catalogues.[...]Il professait que la femme est sans force devant la réclame, qu’elle finit fatalement par aller au bruit. Du reste, il lui tendait des pièges plus savants, il l’analysait en grand moraliste. Ainsi, il avait découvert qu’elle ne résistait pas au bon marché, qu’elle achetait sans besoin, quand elle croyait conclure une affaire avantageuse; et, sur cette observation, il basait son système des diminutions de prix, il baissait progressivement les articles non vendus, préférant les vendre à perte, fidèle au principe du renouvellement rapide des marchandises. Puis, il avait pénétré plus avant encore dans le cœur de la femme, il venait 24 Os Rougon-Macquart, o grupo, a família que me proponho a estudar tem por característica o transbordamento dos apetites, a imensa agitação do nosso tempo, que se entrega aos prazeres. Fisiologicamente, eles são a lenta sucessão dos acidentes nervosos e sangüíneos que se pronunciam em uma raça, depois de uma primeira lesão orgânica, e que determinam, de acordo com o meio, em cada um dos indivíduos dessa raça, os sentimentos, os desejos, as paixões, todas as manifestações humanas, naturais e instintivas, cujos produtos adquirem os nomes convenientes de virtudes e de vícios. Historicamente, eles partem do povo, irradiam-se por toda a sociedade contemporânea, expõem-se a todas as situações, por esta impulsão essencialmente moderna que recebem as classes baixas em marcha através do corpo social e, assim, eles narram o Segundo Império com a ajuda de seus dramas individuais, da emboscada do golpe de Estado à traição de Sedan. Há três anos, eu juntava os documentos dessa grande obra, o presente volume foi escrito, justamente, quando da queda de Bonaparte, da qual eu precisava como artista, e que eu sempre encontrava fatalmente à beira do drama, sem ousar esperá-la tão próximo, veio dar-me o desenlace terrível e necessário de minha obra. Aquela é, a partir de hoje, completa; Ela se agita dentro de um círculo terminado; torna-se o quadro de um reino morto, de uma estranha época de loucura e vergonha. Essa obra, que formará vários episódios, é portanto, no meu pensamento, a história natural e social de uma família sob o Segundo Império. E o primeiro episódio: A fortuna dos Rougon, deve se chamar no seu título científico: As origens. (Tradução nossa) 125 d’imaginer « les rendus », un chef d’œuvre de séduction jésuitique. « Prenez toujours, madame : vous nous rendrez l’article, s’il cesse de vous plaire.» Et la femme, qui résistait, trouvait là une dernière excuse, la possibilité de revenir sur une folie; elle prenait, la conscience en règle.25 (ZOLA, 1998, p.245) Entretanto, é preciso lembrar que mesmo inserindo os seus personagens em contextos históricos muito bem definidos, para submeter suas obras ficcionais às regras historiográficas, Balzac e Zola precisaram de muito mais do que associá-las a um conjunto de fatos registrados. Eles foram obrigados a manusear dados históricos, eliminando alguns e dando destaque a outros, isso sem falar nas estratégias descritivas que foram utilizadas para configurar a narrativa dentro do contexto desejado e que a tornaram, mais do que tudo, coerente com a ideologia dos seus autores. Finalmente, quando inseridos em um discurso, os fatos históricos sempre adquirem – seja na literatura, seja na historiografia – a forma como são lembrados por escritores e historiadores. Assim, se um grupo de indivíduos se dispuser a narrar um mesmo evento, teremos várias versões de uma mesma história e, ainda que todas sejam verdadeiras, elas terão, sem dúvida, nuances diferentes, porque a maneira como cada um recorda e narra um acontecimento é subjetiva e está intrinsecamente vinculada a uma representação imaginária da realidade. O que verificamos aqui é que o imaginário dos dois escritores se alimentou da realidade, fazendo com que os acontecimentos históricos ganhassem novos significados no romance. Nesse sentido, através das reflexões de Costa Lima, podemos compreender melhor o porquê de os escritores realistas e naturalistas associarem o discurso histórico à reprodução da realidade e as razões pelas quais esse discurso, assim como o ficcional, não se mostra eficaz para esse propósito. No livro Historia. Ficção. Literatura, Costa Lima afirma que a escrita dominante no século XIX cumpria um propósito, já enunciado por Ranke, de 25 A grande força era sobretudo a publicidade. Mouret chegava a gastar por ano trezentos mil francos em catálogos de anúncios e cartazes. Para o lançamento das novidades de verão, ele lançou duzentos mil catálogos [...]. Ele defendia que a mulher fica sem forças diante do reclame, que ela termina fatalmente por seguir o ruído. De resto, só estendia armadilhas inteligentes, ele a analisava como um grande moralista. Assim, ele tinha descoberto que ela não resistia aos preços baixos, que comprava sem necessidade quando acreditava concluir um negócio vantajoso; e, sob essa observação ele baseava seu sistema de diminuição de preços, baixava progressivamente os artigos não vendidos, preferindo liquidá-los, fiel ao princípio de renovação rápida das mercadorias. Em seguida, ele havia penetrado mais longe ainda no coração das mulheres. Acabava de imaginar “as devoluções,” uma obra prima de sedução jesuítica. “Compre sempre, madame : você nos devolverá o artigo caso ele não lhe agradar” (Traduçao nossa) 126 mostrar o passado “como foi” , isto é, uma espécie de mímesis, no sentido tradicional do termo, que privilegiava o passado. O teórico argumenta ainda que, por influência das ciências da natureza, acreditava-se que a memória era capaz de conservar a lembrança na íntegra, como se fosse um dado material e que a linguagem funcionaria como um meio de conservação incapaz de modificar o teor da lembrança. O trabalho do agente individual entregaria ao analista um mundo uniforme, igual ao que houve desde sempre e, para o historiador, o papel da memória seria preponderante e indiscutível. Em Sociedade e Discurso ficcional, citando Nibet, Costa Lima diz que o século XIX era “intoxicado pelo progresso” e que essa enorme crença na evolução do homem, que chegara ao estado positivo, conjugava-se com a primazia da ciência, que passa a ser entendida como o discurso da objetividade, do ultrapasse dos caprichos individuais. Além disso, a importância significativa adquirida pelos estados nacionais contribuiu para tornar a produção historiográfica do século extremamente ligada ao nacional e profundamente consciente da sua objetividade científica. Isso explica o privilégio concedido ao fato e ao documento, considerados capazes de restituir a integralidade da vida como fo i. Nessa sociedade, o documento passa a ser reverenciado pelo historiador, de forma análoga à que, anteriormente, os fiéis referenciavam os santos e a Bíblia. Costa Lima prossegue e relata que esse domínio da história factual interferiu na produção literária do século, tanto de dentro quanto de fora. De dentro, fazendo com que o gênero dominante, o romance, se mostrasse uma sucursal da história e, de fora, tal influência fez com que a maneira mais sistemática de estudar a literatura consistisse em desdobrá-la em uma diacronia nacional. Assim, para que fosse levada a sério, a literatura precisava ser dissecada como um fato. No entanto, como a história é um produto da escolha do material, da maneira como ele é interpretado e da teoria que condiciona o olhar, Costa Lima questiona se ela não seria também uma forma de ficção e, se a ficção, no terreno da codificação verbal, alcança outra área além da literária, como ficaria a alegada especificidade de sua formação discursiva. 127 Ele indaga também se a história não seria, na verdade, uma integrante da literatura ou se é a própria idéia de literatura que se mostra um passadismo. Para responder a essas questões, o teórico recorre a uma citação de Mehlman : . [...] Se a “literatura”, como o “totemismo” de Lévi-Strauss, fosse uma miragem historicamente datada, a tarefa da análise estrutural deveria ser desmantelar aquele constructo ideológico pelo exame das articulações latentes dos próprios textos (incluindo Proust), pelos quais a miragem é celebrada. “Analisar-se-ia” a literatura como Lévi-Strauss “dissolveria o homem”, revelando a estrutura do espaço que fornece a possibilidade de seu funcionamento. (COSTA LIMA, 1986, p.236) Para o teórico, essas considerações conduzem ao reverso do factualismo documentalista, o u seja, a separação rigorosa entre a exatidão científica e o veto ao ficcional inverte-se de maneira drástica. A literatura se vinga, revelando-se como a ponta que denuncia a fluidez oceânica das “ciências” sociais. Assim, embora não haja mais por que negar que o documento não possui a transparência testemunhal que se lhe acreditava; e que hoje já consideramos que nem o cientista social nem o historiador são mestres da neutralidade, a afirmação de que algo só se torna significativo de acordo com um determinado ponto de vista, não converte o documento em uma falácia ou mito. Da mesma forma, já se aceita que há um núcleo autobiográfico em todo discurso que lida com um objeto de que o próprio sujeito faz parte. Portanto, se o objeto de estudo de um geólogo não pode ser diretamente afetado pela subjetividade do analista, o mesmo não ocorre com um especialista em instituições sociais, porque ele sempre trará consigo uma imagem, consciente ou inconsciente, da instituição correspondente em sua cultura e sociedade. Contudo, essa interpenetração do sujeito com o objeto não abolem as diferenças entre os rendimentos discursivos. Assim, “uma mesma mancha biográfica assume direções variadas de acordo com o discurso que se produza.” Partindo desses pressupostos, ele defende que existe um critério de verdade no discurso ficcional. No entanto, essa verdade não é nem de ordem geral (filosófica ou científica), nem de ordem pragmática. Para ele, trata-se da verdade de como um sujeito empírico concebe 128 uma certa situação, considerando que essa situação nem vale para todos e nem tampouco, expressa, necessariamente, os valores do autor. Dessa forma, o ficcional implica a dissipação tanto de uma legislação generalizada, quanto da expressão do eu. No ficcional, o eu se torna móvel, isto é, sem se fixar em um ponto, assume diversas nucleações possibilitadas pelo ponto que o autor empírico ocupa. A essa movência do ficcional, Costa Lima dá o nome de ângulo de refração. Para ele, essa dissipação do eu não o torna inexistente, levando o autor de uma obra ficcional a anular seus próprios valores, normas de conduta e sentimentos, mas, através da imaginação, o eu irrealiza-se enquanto sujeito, para realizar-se em uma proposta de sentido. Portanto, da mesma forma que as palavras de um verso, também as personagens são pontos visualizáveis, a partir da refração do eu, marcas na trajetória de uma linha de fuga. Através da ficção, o poeta inventa possibilidades, consciente de que não será confundido com nenhuma delas. Entretanto, tais possibilidades não se inventariam sem uma motivação biográfica. Portanto, quanto à tentativa de Balzac e de Zola de criar obras de ficção que imitassem a realidade e de impor um veto ao imaginário e à subjetividade, inerentes ao texto ficcional, através de um pacto com a história, podemos concluir com Costa Lima : “Menos do que disfarce, a ficção, poemática ou em prosa é uma produção direcionada pela unidade( instável) do eu. Produção que sempre pode ser percorrida ao revés, por um poeta ao revés, isto é, por um leitor ou por um analista, que, dependendo de seu talento, poderá interpretar aquilo de que a refração é “documento”. Mas temos que escrever as palavras entre aspas, porque a ficção não documenta senão estarmos em uma área discursiva onde se admite a movência do sujeito. Seria pretensioso pretender que antevemos todos as conclusões que daí se escreve. Mas posso saber que daí não se deduz que o discurso ficcional esteja enclausurado em si mesmo, que seja estranho ao mundo de que se teria alheado. E sei também que o discurso ficcional não tematiza uma cena única, a que simplística e dogmaticamente chamamos de ‘realidade’. Toda vez que se lhe exige isso, ele se torna apenas ilustração do que decretemos ser o mundo.” ( COSTA LIMA, 1986, p.239). Existe, ainda, um último aspecto dos romances de Balzac e Zola que gostaríamos de abordar antes de concluir esse capítulo: a forma como cada um constrói os seus personagens e em que momentos esses personagens deixam de espelhar o mundo real que 129 os inspirou e – traindo seus criadores – tornam-se, no texto, sombras da realidade, fantasmas que, transgredindo o modelo, convertem os tipos humanos de seus criadores em heróis românticos, lúdicos ou imaginários. Balzac desejava que a Comédia Humana fosse um reflexo do espetáculo do mundo, ou melhor, do seu mundo: a sociedade francesa que assistiu ao desenrolar de suas paixões, angústias, sonhos e desilusões entre Restauração e a Monarquia de julho. Para tanto, cada um dos seus tipos humanos deveria, através de sua origem sócio-cultural e dos seus traços psicológicos, espelhar toda uma categoria social : [...]en composant des types par la réunion des traits de plusieurs caractères homogènes, peut-être pouvais-je arriver à écrire l’histoire oubliée par tant d’historiens, celle des mœurs.26 (BALZAC, 1964, p194) Ce n’était pas une petite tâche que de peindre les deux ou trois mille figures saillantes d’une époque, car telle est, en définitif, la somme des types que présente chaque génération et que La Comédie Humaine comportera. Ce nombre de figures, de caractères, cette multitude d’existences exigeaient des cadres, et, qu’on me pardonne cette expression, des galeries.27 (BALZAC, 1964, p.203) Os heróis balzaquianos são, portanto, idealizados para se tornarem ícones de um tempo e de uma sociedade, simbolizando seus medos, ambições, anseios, enfim, suas paixões. Assim, ao compor seus heróis ficcionais, o autor seleciona, no mundo real, características que levem o leitor a estabelecer uma identidade com o personagem e é partindo dessa verossimilhança que ele sustenta a ausência da subjetividade e da imaginação na literatura realista: “Ce drame n’est ni une fiction, ni un roman, All is true, il est si veritable, que chacun peut en reconnaître les éléments chez soi, dans son coeur peut-être.” 26 [...] compondo tipos, a partir da reunião dos traços de diversos caracteres homogêneos, talvez eu pudesse chegar a escrever a história esquecida por tantos historiadores, a história dos costumes. ( Tradução nossa) 27 Não foi uma tarefa pequena a de pintar as duas ou três mil figuras proeminentes de uma época, porque esta é, em definitivo, a soma dos tipos que cada geração apresenta e que a Comédia Humana comportará. Esse número de figuras, de caracteres, essa multidão de existências exigiam quadros e que me perdoem a expressão, galerias. (tradução nossa) 130 Tomando como exemplo o romance Le père Goriot, observamos que os três protagonistas : Rastignac, Goriot e Vautrin são, ao mesmo tempo, paradigmas e produtos da sociedade na qual se inserem. Através de Rastignac, Balzac tenta pintar o quadro de uma juventude ávida de sucesso e reconhecimento social, mas sem os recursos necessários para atuar no mundo. Típico herói de iniciação, ele se encontra no cerne da trama, exposto aos desejos e às tentações do mundo. À medida que experimenta a vida, o personagem se transforma num espelho das angústias humanas, uma espécie de “consciência” que incita a refletir sobre as armadilhas engendradas pelas paixões. Através de Vautrin, o romancista retrata o lado diabólico, ambicioso e inescrupuloso do homem. Inspirado em um “personagem” real e lendário , François Vidocq, Vautrin revela quanto o lado obscuro do ser humano pode ser sedutor. Finalmente, através de Goriot, ele ilustra um amor passional que, levado ao extremo, transforma-se em vício, em loucura. No entanto, por mais que Balzac selecione elementos da realidade para compor os seus personagens, haverá sempre o não-dito. Afinal, quem são Rastignac, Vautrin e Goriot ? Seriam eles respectivamente sinônimos de angústia e conflito, perversidade e sedução, vício e loucura? Também. Mas nenhum ser humano pode ser definido somente por sua loucura ou por sua lucidez. Assim, por mais minuciosa que seja a descrição dos personagens balzaquianos, eles permanecem incompletos, pois haverá sempre um espaço vazio a ser preenchido. Ao compor personagens que representam toda uma categoria social, o romancista criou, na verdade, tipos caricaturais que transcendem a realidade. Esses personagens “incompletos” só se tornam “reais” no mundo concorrente para o qual foram projetados, o ficcional, no exato momento em que o texto cala e o não-dito é preenchido pela imaginação do leitor. Também determinado a retirar seus personagens do mundo real, Zola acreditava que, ao submetê-los aos mesmos traumas que desencadeiam a desagr egação social, ele poderia observar como o ser humano se comporta quando vítima das paixões e, assim, estabelecer o determinismo dos fatos para poder controlá- los : Le circulus social est identique au circulus vital: dans la société comme dans le corps humain, il existe une solidarité qui lie les différents 131 membres, les différents organes entre eux, de telle sorte que, si un organe se pourrit, beaucoup d'autres sont atteints, et qu'une maladie très complexe se déclare. Dès lors, dans nos romans, lorsque nous expérimentons sur une plaie grave qui empoisonne la société, nous procédons comme le médecin expérimentateur, nous tâchons de trouver le déterminisme simple initial, pour arriver ensuite au déterminisme complexe dont l'action a suivi. Je reprends l'exemple du baron Hulot, dans la Cousine Bette. Voyez le résultat final, le dénouement du roman; une famille entière détruite, toutes sortes de drames secondaires se produisant, sous l'action du tempérament amoureux de Hulot. C'est là, dans ce tempérament, que se trouve le déterminisme initial. Un membre, Hulot, se gangrène, et aussitôt tout se gâte autour de lui, le circulus social se détraque, la santé de la société se trouve compromise. Aussi, comme Balzac a insisté sur la figure du baron Hulot, comme il l'a analysée avec un soin scrupuleux! L'expérience porte avant tout sur lui, parce qu'il s'agissait de se rendre maître du phénomène de cette passion pour la diriger; admettez qu'on puisse guérir Hulot, ou du moins le contenir et le rendre inoffensif, tout de suite le drame n'a plus de raison d'être, on rétablit l'équilibre, ou pour mieux dire la santé dans le corps social. Donc, les romanciers naturalistes sont bien en effet des moralistes expérimentateurs. 28 (ZOLA, 1964, p 280) Mas não teria ele caído na mesma armadilha que Balzac? Afinal como poderia a realidade cotidiana funcionar como referência para uma experiência literária que pretendia reproduzi- la tal qual? O Casal Octave Mouret e Denise Baudu, do livro Au Bonheur de Dames, é um bom exemplo do que tentamos explicitar. Mouret, de certa forma, encarna os ideais da sociedade que Zola tencionava descrever, uma sociedade moderna, dinâmica, sinônimo de progresso e prosperidade. Ao dar vida a um personagem paradigma desses ideais, o romancista estava criando um herói na acepção literal do termo. Mouret é belo, sedutor, elegante, eloqüente, divertido e confiante no futuro. Dotado de gênio comercial ímpar, sua mente fervilhante de idéias oscila entre a imaginação e a praticidade, a fantasia e 28 O circulus social é idêntico ao circulus vital: na sociedade, tanto quanto no corpo humano, existe uma solidariedade que liga os diferentes órgãos entre si, de tal modo que, se um apodrece, muitos outros são atingidos e uma doença muito complexa se declara. Assim sendo, quando em nossos romances fazemos experiência sobre uma ferida grave que envenena a sociedade, procedemos como um médico experimentador: tentamos encontrar o determinismo simples inicial, para chegar depois ao determinismo complexo cuja ação ocorreu em seguida. Vamos retomar o exemplo do Barão Hulot, em A prima Bette. Vejam o resultado final, o desfecho do romance: uma família inteira destruída e ocorrência de vários dramas secundários, sob a ação do temperamento amoroso de Hulot. É neste temperamento que se encontra o determinismo inicial. Com a gangrena de um simples membro, Hulot, logo tudo se estraga ao seu redor, o circulus social se emperra, a saúde da sociedade fica comprometida. Por isso, como Balzac deu ênfase à figura de Hulot, como a analisou com escrupuloso cuidado! A experiência visa sobretudo a ele, porque era necessário tornar-se mestre do fenômeno desta paixão para dirigi-la. Admitamos que se possa curar Hulot, ou pelo menos contê-lo e torná-lo inofensivo; de imediato, o drama não tem mais razão de ser, fica restabelecido o equilíbrio, ou melhor dizendo, a saúde do corpo social. Logo, os romancistas naturalistas são realmente moralistas experimentadores. 132 a lógica, fa zendo com que ele sempre saiba o momento certo de ousar para seduzir. Talvez, o único ponto fraco do personagem seja sua insensibilidade que se manifesta, sobretudo, através da postura que ele assume diante das mulheres, as quais considera como meros instrumentos de prazer ou mecanismos para edificar sua fortuna. Porém, é justamente essa maneira fria e utilitária de perceber o outro que o torna invencível e estabelece um contraponto entre a sua personalidade e a de Denise. Ao contrário de Mouret, a jovem não seduz ao primeiro olhar, mas é, no entanto, idealizada como um modelo de virtude. Sua escolha como protagonista seria determinante no caráter essencialmente romântico que a trama assume. Através de Denise, Zola inventa um ideal de mulher. Ela é uma jovem muito à frente da sua época, com idéias e ideais próprios, e que, assim como o próprio escritor, se mostra atraída e indignada pela mecânica dos novos tempos. Ao longo do romance, Denise iria se revelar uma espécie de porta voz de Zola. Ela é o centro da trama e todos os elementos da narrativa giram ao seu redor. Sobrinha de Baudu, empregada de Bourra, vendedora do “Bonheur des Dames” e da loja de Roubineu, ela penetra em todas as casas, está envolvida em todas as intrigas e desperta sentimentos antagônicos de amor, ternura, ódio e inveja. A jovem também experimenta as dores e as angústias da vida moderna. Desde que desembarca em Paris, com os dois irmãos mais jovens, ela sofre humilhações e privações de toda sorte, mas em momento algum se deixa corrompe r. Denise é íntegra, doce e sensível, ainda que consciente da inevitabilidade do progresso que tanto a atrai. Portanto, se a trama apresenta Mouret como um ícone do progresso, Denise seria a sua humanização. O “Bonheur de Dames”, como produto do sistema capitalista, é um signo de desenvolvimento e prosperidade, mas o avanço que ele preconiza é extremamente desumano, pois além de riqueza, também gera miséria e desigualdade. A união de Mouret e Denise aparece como a solução para a experiência, ela seria o remédio para a ferida social produzida pela revolução comercial. Assim, o final feliz sugerido pelo escritor adquire um duplo significado : ao unir razão e sensibilidade, Zola humaniza o progresso; e ao juntar dois personagens de classes diferentes, ele propõe a igualdade social. 133 Toda essa estrutura revela que o desejo do escritor de experienciar, nas páginas de um romance, a revolução do grande comércio resultou, na verdade, em uma história de amor que espelha, sobretudo, o seu ideais subjetivos. Os heróis, assim como os balzaquianos, transcenderam o real que os inspirou e tornaram-se ícones de progresso, integridade e sensibilidade. Idealizados, não conseguem traduzir a complexidade humana; incompletos, comprovam a “impossibilidade de se colocar o todo de uma personalidade em um livro”(Bennett). Denise e Mouret são, portanto, românticos na literatura e reais no universo imaginário que os completa. As reflexões de Iser no capítulo A interação do texto com o leitor, do livro A literatura e o leitor, explicitam e dão consistência às considerações que acabamos de expor. Partindo de uma citação de Arnold Bennett : “Não se pode pôr o todo de uma personalidade em um livro,”29 o teórico alemão faz uma reflexão sobre a discrepância que existe entre a vida dos homens e a forma limitada de sua representação possível. Iser pondera, com Ingarden, que existe uma série de aspectos esquematizados, através dos quais o personagem é representado, que preenche a qualidade incompleta de cada aspecto pelo seguinte, de forma que, aos poucos, tem-se a ilusão de uma representação completa. No entanto, quando se volta a atenção para as decisões seletivas, tomadas para que o personagem seja mostrado como ele foi idealizado, sobressaem, neste caso, não a sua realidade simulada, mas os padrões de realidade externa, dos quais foram escolhidos os elementos do personagem. Contudo, para o leitor, essas decisões seletivas não possuem a determinação revelada nos aspectos formulados do personagem, mesmo que estes só recebam a sua significação através de sua não formulada origem. Para Iser, a realidade independentemente da maneira como nós a compreendamos, não oferece essa referência. Portanto, mesmo quando o personagem consegue simular a realidade, esta não é um fim em si mesmo, mas um signo. E o emprego dessa realidade simulada como signo não se esgota na vontade de descrever a realidade conhecida. Iser chega mesmo a fazer uma analogia entre o cinema realista e a literatura, a partir da observação de Stanley Cavell : “[...] se uma pessoa visse um filme de um dia inteiro da sua 29 Citação extraída de : novelists on the novel, Columbia paperback, new York, 1966,p.290. 134 vida, ficaria louca”. 30 O teórico alemão observa que diretores como Antonini e Godard exploraram esse fato porque a equivalência progressiva entre a vida cotidiana e a sua apresentação acentua os limites de tolerância no espectador. Para ele, o fato de o cinema explorar tal semelhança, fazendo com que o efeito dependa do caráter insuportável da repetição, mostra que mesmo no cinema, a realidade cotidiana não funciona como referente da apresentação. Regra essa, que vale também para as decisões que organizam o texto literário, como sinaliza uma observação de Adorno: “A arte de fato é o mundo outra vez, tão igual a ele, quanto dele desigual.”31 Iser prossegue e conclui que o texto ficcional é, portanto, igual ao mundo à medida que projeta um mundo concorrente, porém, difere das idéias existentes no mundo porque não pode ser deduzido dos conceitos vigentes na realidade. Assim, se ficção e realidade fossem medidas apenas pelo seu caráter de objeto, mesmo como mentira, a ficção se mostraria um meio deficiente, uma vez que não possui os critérios de realidade, ainda que pareça simulálos. Nesse caso, seria impossível tornar a realidade comunicável pela ficção. Contudo, o texto ficcional adquire sua função, não pela comparação ruidosa com a realidade, mas pela mediação de uma realidade que se organiza por ela. Dessa forma, podemos dizer que a ficção mente quando julgada do ponto de vista da realidade dada, mas, em contrapartida, ela oferece caminhos de entrada para a realidade que finge, quando a julgamos do ponto de vista de sua função: comunicar. Como estrutura de comunicação, a ficção não é idêntica nem com a realidade a que se refere, nem com o repertório de disposições do seu possível receptor, porque torna virtual, tanto a forma preponderante de interpretação da realidade, que dá origem a seu repertório, quanto o conjunto de normas e valores do receptor. Dessa forma, a não identidade da ficção com o mundo e com o receptor é a condição constitutiva do seu caráter de comunicação. Essa falta de correspondência se manifesta nos graus de indeterminação, que se revelam muito mais na relação estabelecida entre o texto e o leitor, do que no texto como tal. Isso porque a formulação é um componente essencial de um sistema, do qual se tem apenas um 30 Citado por Stanley Cavell em : Must we mean what we say?, Nova York, 1969, p.119. Citação extra ída do livro de ADORNO, W. Theodor : Ästhetische Theorie (Gesammelte Schriften 7), Frankfurt, 1970,p.449. 31 135 conhecimento incompleto. Assim, embora os valores do repertório textual sejam recodificados, a razão da recodificação permanece oculta. Como o não-dito é constitutivo para o que diz o texto, a sua “formulação” pelo leitor resulta em uma reação às posições apresentadas pelo texto, que, por via de regra, apresentam realidades simuladas. Iser termina, afirmando que, o fato de a “formulação” do não-dito se transformar na reação do leitor, significa que a ficção sempre transcende o mundo a que se refere. Tudo isso evidencia que ao tentar conferir à literatura o status de ciência, Balzac e Zola – autores em pleno domínio de suas ferramentas de expressão, mestres do perfeccionismo narrativo, do diálogo vivo e extraordinariamente verdadeiro e donos de uma capacidade ímpar de análise do comportamento humano – lograram impor novos paradigmas à literatura e modificar radicalmente a estrutura do romance. Quanto mais eles tentavam se aproximar de um real objetivo, mais as suas obras extrapolavam a realidade imitada, criando uma nova estética para o romance e uma nova forma de expressar a subjetividade. Assim, o esforço empreendido por eles para alcançar um utópico controle do imaginário, acabou evidenciando que o real para a literatura não é o real da vida, do nosso cotidiano, mas o real que ela, a literatura, traz inserido em si. Balzac e Zola conseguiram, enfim, realizar seu desejo inicial, o de alçar a literatura a um novo patamar, ainda que, paradoxalmente, provando, através de obras geniais, que mais do que ciência, literatura é, acima de tudo, arte. Eles tentaram impor um veto à ficção e criaram uma nova forma de ficção, um novo modelo para a narrativa e um novo herói : humano, falível, complexo, nem bom, nem mau. Enfim, aproximaram, com maestria, o anti-herói inaugurado por Cervantes, do cotidiano e do mundo real. Hoje, podemos constatar que os frutos gerados pelo Realismo e pelo Naturalismo amadureceram e foram colhidos pelo romance contemporâneo, ainda que este se caracterize pela livre expressão da subjetividade, do imaginário e do ficcional. O status que Freud atribuiu ao imaginário, ao assegurar- lhe um caráter científico, funcionou como um passaporte para que ele desabrochasse livremente na literatura, ainda que as modificações estruturais sofridas pelo romance, decorrentes do veto à ficção, já não tivessem mais como ser apagadas. O que se viu, então, foi a eclosão da imaginação e da subjetividade que antes 136 escapavam por entre os dedos do autor ou pelas entrelinhas do texto, fosse nas obras de ficção, fosse nos pressupostos teóricos que insistiam em negá- las. A literatura do século XX, legítima herdeira do Realismo e do Naturalismo, passa, assim, a produzir romances repletos dos mesmos recursos narrativos que eternizaram aquelas escolas, mas que, livres do veto, assumem-se como instâncias ativadoras do imaginário. Entre eles estão o discurso indireto livre, consagrado por Flaubert, as novas formas de compor o perfil psicológico dos personagens, o estilo narrativo detalhista e minucioso e, até mesmo, a tentativa de imitação do real, embora as novas realidades descritas – agora envoltas numa auréola de sonhos, crenças e rituais lendários – produzam um novo Realismo, um “Realismo mágico”. Não se pode negar, portanto, que as obras literárias contemporâneas – que em grande parte primam justamente pela expressão de um mundo fragmentado e pela desconstrução do real – devem um enorme tributo às estéticas Realista e Naturalista, cuja modernidade abriu novos caminhos para essa velha arte de contar histórias à qual chamamos Literatura. E enfim, o imaginário, vetado, reprimido, se libera e vinga-se. Poderia haver desforra maior do que se mostrar infinitamente belo, em obras cuja genialidade consiste no fracasso de tentar suprimi- lo? Depois de bradar, aos quatros cantos dos romances, que na prática a teoria é outra, se ainda lhe restasse voz, talvez respondesse a Balzac quando esse afirma que All is true, com as palavras de Valery : En littérature, le vrai n'est pas concevable. Tantôt par la simplicité, tantôt par la bizarrerie, tantôt par la précision trop poussée, tantôt par la négligence, tantôt par l'aveu de choses plus ou moins honteuses, mais toujours choisies, — aussi bien choisies que possible, — toujours, et par tous moyens, qu'il s'agisse de Pascal, de Diderot, de Rousseau ou de Beyle et que la nudité qu'on nous exhibe soit d'un pécheur, d'un cynique, d'un moraliste ou d'un libertin, elle est inévitablement éclairée, colorée et fardée selon toutes les règles du théâtre mental. Nous savons bien qu' on ne se dévoile que pour quelque effet.32 (VALÉRY,1957,p.570) 32 Em literatura, o verdadeiro não é concebível. Tanto pela simplicidade, tanto pela precisão radicalizada, quanto pela confissão de coisas mais ou menos vergonhosas, mas sempre escolhidas – tão escolhidas quanto possível – sempre e por todos os meios, quer se trate de Pascal, de Diderot, de Rousseau, ou de Beyle, e que a nudez que se nos exibe seja de um pecador, de um cínico, de um moralista ou de um libertino, ela é inevitavelmente aclarada, colorida e pintada conforme todas as regras do teatro mental. Bem sabemos que só se revela para um certo efeito. 137 5 (IN) CONCLUSÃO A trilha literária que acabamos de percorrer, através dos princípios teóricos que deram origem à Comédia Humana e à História natural de uma família sob o Segundo Império, Les Rougon-Macquart, é uma dessas viagens tão extraordinárias quanto insólitas que ganhamos de presente da vida e em que a escassa bagagem do instante da partida vai sendo acrescida, ao longo do caminho, de algumas poucas certezas, de muitas reflexões e de outras tantas dúvidas. Partimos para essa viagem em busca dos momentos mágicos em que o fictício e o imaginário emergiam em dois textos teóricos que insistem em negá - los, o Prefácio da Comédia Humana e o Romance Experimental e acabamos descobrindo que, como pressentiam Balzac e Zola, a arte pode e deve imitar a vida. Ela só não pode e não consegue é deixar de ir além da vida, para que essa também possa imitar a arte. Descobrimos que os universos da Comédia Humana e da Saga dos Rougon-Macquart, juntos, são capazes de proporcionar um mergulho em cem anos de história, de progresso e de profundas transformações em todos os campos do saber. Os romances de Balzac e Zola nos permitem viver e reviver as turbulências do período da Restauração, os desmandos da Monarquia de Julho, a utopia e o romantismo da Republica de 1848, a ascensão e a queda de Napoleão através dos dramas e das alegrias, dos sonhos e das angústias de heróis, tão 138 densos e passionais, tão humanos e, por isso mesmo, tão falíveis que “todos poderão reconhecer- lhes os elementos dentro de si, quem sabe em seus corações.” A obsessão mimética de Balzac e Zola, sem dúvida, contribuiu para que seus heróis nos convencessem da complexidade do seu caráter, da realidade dos seus dramas e de que estavam, verdadeiramente, inseridos na história do seu tempo, colaborando para produzir os vícios e as virtudes, o que havia de bom e de mal, na sociedade francesa do século XIX. No entanto, se o caráter realista desses romances torna verdadeiros os seus heróis, é, justamente, a subjetividade incontida que escapa lúcida e veemente pelas entrelinhas do texto, que dá vida a esses mesmos personagens, conferindo- lhes a alma e a essência que os tornam tão humanos. Somente o olhar sensível e subjetivo de um mestre da descrição, como Balzac, poderia narrar, com tamanha precisão, as nuances do desejo em uma mulher de trinta anos, o momento exato em que se perdem as ilusões, os esplendores e as misérias das cortesãs, enfim, de compor um arsenal tão grande de figuras humanas que, segundo o próprio escritor, para reuni- las, talvez, fossem necessárias galerias. Ao tornar concreto um plano que nasceu como uma quimera – fazer pela Literatura o que Buffon fez pela Zoologia – Balzac trilhou o percurso que liga o sociólogo ao historiador, modificou as estruturas do romance, e nos provou, paradoxalmente, que o imaginário, uma vez reprimido, libera-se e se vinga, mostrando-se ainda mais pungente, principalmente nas obras que insistem em negá- lo. Da mesma forma que Balzac, também Zola tentou dar vazão a seu sonho de transformar a sociedade do Segundo Império em um grande laboratório literário – no qual pudesse submergir seus personagens em uma história particular, provando que a sucessão dos fatos é tal qual a exige o determinismo dos fenômenos estudados – e, assim, descobrir o que determinada paixão, agindo num certo meio e em determinadas circunstâncias, produz no homem e na sociedade. No entanto, o que ele conseguiu evidenciar é que o universo literário é, por excelê ncia, território livre da imaginação, que ali vaga altiva e soberana no trono de um reino em que tudo é permitido, até mesmo, simular, através do mágico 139 sortilégio que emana das metáforas, que uma operação puramente imaginária é um procedimento científico. E assim, ele descreveu os dramas do Segundo Império, contou a história de uma sociedade totalmente fragmentada – na qual a miséria convivia com o luxo, a fome com a abundância e a beleza com o caos; e em que o homem se alimentava do próprio homem para fazer girar as engrenagens que moviam o sistema – enfim, ele inventariou as misérias, os vícios, a brutalidade e a loucura humanas, sem jamais perder a esperança. Uma esperança ardente que, aliada a um certo idealismo, transbordou pelas entrelinhas dos romances e acabou contaminando os seus heróis. Em cada personagem sentimos, portanto, um pouquinho do autor. Zola se mostra presente no idealismo romântico de Étienne Lantier (Germinal), no temperamento progressista de Mouret, na consciência social de Denise (Au Bonheur des Dames), ou mesmo no espírito cientificista de doutor Pascal (Docteur Pascal), dentre outros. Ele sonhou introduzir na literatura a esperança – essencialmente moderna – do milagre científico, que contaminou o seu século e que o fez acreditar que, uma vez disfarçada de ciência, a Literatura seria investida do mesmo poder sobre-humano que tornava o progresso científico capaz de regenerar a espécie humana e de torná- la melhor. Enfim, partindo de um sonho, esses dois escritores souberam, como poucos, traduzir o espírito do seu tempo, quebrar as antigas estruturas do romance e construir novos paradigmas para a Literatura. Eles também mostraram que a arte de contar histórias pode, mesmo sem perder o seu caráter lúdico e subjetivo, engendrar uma reflexão social extremamente profunda e passível de ser estendida para outros campos do saber. A Literatura ainda não logrou regenerar a espécie humana, mas tampouco o fez a Ciência ou a História. Em contrapartida, as reflexões iniciadas por Balzac e Zo la abriram espaços para que florescessem outras maneiras de se pensar o homem, contribuíram para a criação de uma nova ciência, a sociologia e, sobretudo, continuam extremamente atuais, o que permite que elas não pereçam. Baudelaire define a modernidade co mo “o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é o eterno e o imutável.” A obra de Balzac e a de Zola são modernas porque captam essencialmente o transitório, o fugidio e o contingente de seu tempo, mas elas são, acima de tudo, integralmente, arte, pois possuem também essa outra metade que as torna eternas. 140 No entanto, mesmo após esse longo percurso, muitas são as perguntas que ainda permanecem sem resposta. Hoje, temos a certeza de que ao contarmos, no presente, uma história do passado, ainda que verdadeira, ela sempre trará nas entrelinhas algo de lúdico, de imaginário, de subjetivo; um certo lirismo ou uma certa poesia, enfim, que existirá sempre, em cada verdade narrada, um toque de ficção. Entretanto, ainda não sabemos, até que ponto pode essa ficção transcender o universo literário em que foi gerada e, através dos ardilosos artifícios da retórica, transformar o mundo real. Termino esse trabalho com a certeza de que essa é apenas uma das infinitas dúvidas que o questionamento dos limites que cercam o universo imaginário ainda deixam sem resposta, e que, por isso mesmo, servem- nos de estímulo e de passaporte para o início de uma nova viagem. 141 BIBLIOGRAFIA: AUERBACH, Erich : Mimesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental, São Paulo, Perspectiva, 2004. BALZAC, Honoré de : Avant-propos à la Comédie Humaine. In : Anthologie des préfaces de romans français du XIXème siècle, Paris, Julliard, 1964 _________________ : Le père Goriot, Paris, Gallimard, 1971. _________________ : Lettres à Madame Hanska, Tome I, Paris, Éditions Du Delta, 1967. _________________ : O Pai Goriot, São Paulo, Estação Liberdade, 2002 BAUDELAIRE, Charles: Oeuvres complètes, Paris, Éditions du Seuil,1988. BECKER, Collete e GAILLARD, Jeanne : Au Bonheur des Dames, Paris, Hatier, 1982 BENJAMIN, Walter : Oeuvres II, Poésie et Révolution. Paris, Éditons Daniel, 1971. BERMAN, Marshall : Tudo que é sólido desmancha no ar : a aventura da modernidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1986. 142 BERTHIER, Patrick; GENGEMBRE Gérard : L’ABCdaire de Balzac,Paris, Flammarion, 1998. BERNARD, Claude : Introduction à l´étude de la médicine expérimentale, Paris, GarnierFlammarion, 1966. BIBLIOTHÈQUE NATIONALE DE FRANCE. Disponível em: http://gallica.bnf.fr. Acesso em: 10 de Novembro de 2006. CAHIERS NATURALISTES . Revue littéraire consacrée aux études sur ZOLA et le naturalisme. Éditée par la Société littéraire des Amis d'Emile Zola. Disponével em: www.cahiers-naturalistes.com. Acesso em :10 de Novembro de 2006. COMPAGNON, Antoine : Les cinq Paradoxes de la Modernité, Paris, Seuil, 1990. _____________________: Le démon de la théorie. Paris, Seuil, 2001. COMTE, Auguste : Curso de Filosofia Positiva, São Paulo, Abril Cultural, 1973. COSTA LIMA, Luiz: A ficção oblíqua e The Tempest. In: Pensando nos trópicos, Rio de Janeiro, Rocco, 1991. ____________________ : A literatura e o leitor : textos da estética da recepção. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. ____________________ : Dispersa Demanda. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981. ____________________ : História. Ficção. Literatura, São Paulo, Companhia Das Letras, 2006. ___________________: Mímesis e modernidade, Rio de Janeiro, Graal, 1980. ___________________: O controle do imaginário, razão e imaginação no ocidente, São Paulo, Graal, 1984. ___________________: Sociedade e discurso ficcional, Rio de Janeiro, Guanabara, 1986. ___________________: Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983. 143 DARWIN, Charles : On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life, New york, Mentor Book, 1958. ________________ : Origem das Espécies, Belo Horizonte, Villa Rica, 1994. DUCHET, Claude; NEEFS, Jacques: Balzac: L’invention du roman, Paris, Pierre Belfond, 1982. DE CERTEAU, Michel: A Escrita da História, Rio de Janeiro, Éditions Gallimard, 1975. ENCICLOPÉDIA Barsa. Rio de Janeiro. Encyclopaedia Britannica Editores Ltda, 1975. GIRARD, René : Mensonge Romantique et verité Romanesque, Paris, Éditions Grasset. 2001. GROUPE INTERNATIONAL DE RECHERCHES BALZACIENNES, Groupe ARTFL (Université de Chica go), Maison de Balzac (Paris). Balzac. La Comédie humaine. Edition critique en ligne [En ligne]. Disponível em : http://www.paris.fr/musees/balzac/furne/presentation.htm. Acesso em : 10 de novembro de 2006. GUYON, Bernard : La Pensée politique et sociale de Balzac, Paris, Armand Colin, 1947 ISER, Wofgang : O fictício e o imaginário , Rio de Janeiro, Ed. UERJ, 1996. _____________ : The implied Reader, London, The Johns Hopkins University Presse, 1974. JAUSS, Hans Robert : Pour une esthétique de la réception, Paris, Gallimard, 1978. ________________ : A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo, Editora Ática, 1994. JEAN, Georges : Le Roman, Paris, Éditions du Seuil, 1971. 144 JOBIM, José Luís: Formas da teoria, Rio de Janeiro, Ed.Caetés, 2003. LUKÁCS, Georg : Balzac et le réalisme français, Paris, François Maspero, 1967. ______________: Le Roman historique, Paris, Petite Bibliothèque Payot, 1965. MALLARM É, Stéphane: Oeuvres Complètes, Paris, Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, 1945. MARX, Karl Heinrich; ENGELS, Friedrich : Manifesto do Partido Comunista, Petrópolis, Vozes, 1990. MARX, Karl: O Capital: Crítica da economia Política, livro I, São Paulo, Abril Cultural, 1973. MELLO, Maria Elizabeth Chaves de : Veto e transgressão na literatura ocidental, Rio de Janeiro, Achiamé, 1987. MITTERAND, Henri : Zola et Le Naturalisme, Paris, Presses Universitaires de France, 1986. ________________ : Le Roman à l’oeuvre: genèse et valeurs, Paris, Presses Universitaires de France, 1998. NIETZSCHE, Friedrich : Além do bem e do mal, São Paulo, Companhia de Bolso, 2006. PESSOA, Fernando: Obra em Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1982. SAUVIGNY, G. de Bertier de : Histoire de France, Paris, Flammarion, 2004. THERENTY, Marie-Ève : Le Pére Goriot de Balzac, Paris Hachette, 1995. 145 VALÉRY, Paul: Études Littéraires, Stendhal in VARIÉTÉ, Éd. Pléiade, 1957. WATT, Ian : Mitos do individualismo moderno, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997. __________:The Rise of the Novel, Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 2001. WHITE, Hayden: O valor da narratividade na representação da realidade.In: Cadernos da UFF, Instituto de Letras/UFF. Niterói, 3, 1991. ZOLA, Emile: Au Bonheur des Dames, Paris, Pocket, 1990. __________: Do Romance, São Paulo, Imaginário,1995. __________: Du Roman, Paris, Éditions Complexe, 1989 __________: Germinal, Paris, Faquelle, 1966. __________: Germinal, São Paulo, Abril Cultural,1979. __________: Le Roman Expérimental. In : Anthologie des préfaces de romans français du XIXème siècle, Paris, Julliard, 1964. __________:O Romance Experimental e o Naturalismo no Teatro, São Paulo, Ed.Perspectiva,1982. 146 147 148 149