NIETZSCHE E AS OPOSIÇÕES EM TORNO DO TRÁGICO: DIONÍSIO, SÓCRATES E O CRUCIFICADO Leonardo Araújo Oliveira Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Resumo: O presente texto aborda a questão das oposições em torno da concepção nietzschiana do Trágico. Aqui, destacam-se três momentos fundamentais: a) Apolo e Dionísio como princípios estéticos em resposta ao pessimismo de Sileno; b) o racionalismo socrático (através das tragédias de Eurípedes) aniquilando o instinto trágico ligado aos princípios mencionados anteriormente; c) por fim, o problema que se revela como oposição mais profunda: o trágico contra o cristianismo, ou – nas palavras de Nietzsche – Dionísio contra o Crucificado. Palavras-chave: Trágico. Cristianismo. Nietzsche. Abstract: The present article has as it finality to approach the issue of the oppositions around the nietzschean conception of the Tragic. Here, three fundamental moments are highlighted: a) Apollo and Dionysus as aesthetic principles in response to the pessimism of Silenus; b) The Socratic rationalism (through the Euripides tragedies) annihilating with the tragic instinct connected to the principles previously mentioned; c) finally, the problem that is revealed as being the deeper opposition: the tragic against the christianity, or – in Nietzsche’s words - Dionysus against the Crucified. Keywords: Tragic. Christianity. Nietzsche. Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 44 | P á g i n a Leonardo Araújo Oliveira Introdução D iante da sabedoria de Sileno, o solo grego, repleto de sofrimento e dor, serviu de preparação – como uma rocha dura de onde brota uma rosa – ao surgimento da arte apolínea e da religião olímpica, invertendo, desse modo, essa sabedoria pessimista. A religião grega, ao contrário do cristianismo, diviniza a vida, e a arte apolínea, ao contrário da tradição filosófico-científica ocidental, elogia a aparência. Mas a apologia da aparência ainda é parcial se outro princípio artístico é desconsiderado: o dionisíaco. O primeiro Dionísio levado em conta por Nietzsche – deus estrangeiro, oriental, bárbaro –, traz de volta a sabedoria de Sileno, pois logo após a perda de identidade na embriaguês orgiástica, revela-se ao homem o aspecto absurdo e terrificante do ser. O antídoto à sabedoria de Sileno enquanto expressão artística se efetua apenas através de uma nova relação entre o princípio apolíneo e o instinto dionisíaco, pois através do princípio estético apolíneo, a potência dionisíaca pode ser experimentada; não mais naturalmente, pois, por essa via chega-se a destruição do indivíduo, mas sim, pela via artificial, ou seja, transfigurando a selvageria natural em arte trágica. A oposição entre Apolo e Dionísio se revela, assim, falsa. Surge uma oposição mais visceral, entre a poesia trágica e as peças de Eurípedes. Mas segundo Nietzsche, quem fala pela boca do dramaturgo é o filósofo Sócrates. Porém, o racionalismo socrático é realmente capaz de aniquilar a tragédia? Não haveria um inimigo mais poderoso? Para o Nietzsche de O nascimento da tragédia, não. Mas os escritos posteriores a essa obra de juventude, principalmente Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 P á g i n a | 45 Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado os mais tardios, que compõe sua autobiografia intelectual Ecce Homo e a compilação de escritos reunidos na obra póstuma intitulada Vontade de poder, oferecem indícios para se considerar outro opositor, ainda mais poderoso, ao fenômeno trágico: o cristianismo. O que Nietzsche quer dizer quando opõe “Dionísio contra o crucificado”? De onde o autor de Assim falava Zaratustra quando anuncia ser o primeiro filósofo trágico e o único a ter compreendido tal fenômeno? Não haveria nessa afirmação uma ligação com sua crítica a filosofia alemã, que, embora tenha refletido profundamente sobre a tragédia, permanecera essencialmente cristã? Tais questões servem de ponto de partida, bem como as considerações expostas nos parágrafos acima, para o desenvolvimento do presente texto. Apolo e Dionísio A Grécia antiga, segundo Nietzsche, se encontrava mergulhada em um mundo repleto de sensibilidade. Sensibilidade essa, tanto em relação ao sofrimento, quanto em relação à arte. Uma vida enriquecida pelo sofrimento resultava na possibilidade de um forte estado de negação da vida, fundado em um pesado pessimismo, visto o grego estar a todo tempo pressionado por um sentimento de que sua existência se encontra à beira de um abismo de sofrimento e dor. A expressão concreta de tal condição estaria manifesta na sabedoria popular grega: na lenda sobre o encontro do rei Mídas com o sábio Sileno. Conta-nos Nietzsche que Sileno se encontrava na floresta, perseguido pelo rei Mídas e, quando capturado, foi pressionado a responder a seguinte questão: qual dentre as coisas era a melhor e mais preferível para o Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 46 | P á g i n a Leonardo Araújo Oliveira homem? Sileno manteve-se calado, mas, interpelado pelo rei, soltou as seguintes palavras: Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Porque me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer (NIETZSCHE, 1992, p. 36, grifos do autor). Como o homem grego sobreviveria diante de tal saber, diante de tal visão e sentimento em relação ao mundo e sua própria existência? Cairia aniquilado ou prepararia algum remédio? É por essa problemática que se permite aparecer, em solo grego, certo tipo de arte e certo tipo de religião: a arte apolínea (com destaque para a epopéia homérica) e a religião dos deuses do Olímpo. Ambos derivando da mesma necessidade, a de tornar a vida desejável; ambos fazendo uso de um meio em comum, o mascaramento dos horrores da existência: “O mesmo impulso que chama a arte à vida, como a complementação e o perfeito remate da existência que seduz a continuar vivendo, permite também que se constitua o mundo olímpico” (NIETZSCHE, 1992, p. 37). A vontade helênica pôs diante de si um espelho transfigurador. Os deuses gregos, enquanto vivem a vida humana, legitimam-na, transformando a vida em algo desejável e encontrando a dor somente no apartar da existência. Há então, uma inversão da sabedoria de Sileno, como diz Nietzsche: “invertendo-se a sabedoria de Sileno, poder-se-ia dizer: A pior coisa de todas é para eles morrer logo; a segunda pior é simplesmente morrer um dia” Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 P á g i n a | 47 Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado (NIETZSCHE, 1992, p. 37). Aqui já se pode notar o forte anticristianismo que marca o pensamento de Nietzsche - mesmo que não seja diretamente mencionado nesse contexto - pois os deuses olímpicos são apresentados sem uma relação dicotômica com a existência terrena, expressando, pelo contrário, um processo de divinização da vida: Quem, abrigando outra religião no peito, se acercar desses olímpicos e procurar neles elevação moral, sim, santidade, incorpórea espiritualização, misericordiosos olhares de amor, quem assim o fizer, terá logo de lhe dar as costas, desalentado e decepcionado (NIETZSCHE, 1992, p. 36). Não subsiste nenhum além-mundo à que este mundo esteja submetido, um além-mundo que atue como válvula de escape, como espaço de transcendência. Nietzsche valoriza, sobretudo, o fato de que a religião grega – diferentemente da religião cristã – não esteja ligada à culpa, à ascese, ao dever, de modo que tudo o que se faz presente seja “divinizado, não importando que seja bom ou mau” (NIETZSCHE, 1992, p. 36). A tese da superação grega do sofrimento inerente à existência e do pessimismo de Sileno, resulta em uma conseqüência que acompanha toda a filosofia de Nietzsche: o elogio da aparência. Mas tal conseqüência é ainda parcial, pois não põe em evidência toda a importância da ideia de aparência pensada por Nietzsche além de seu vínculo com o instinto apolíneo, pois esse atua ainda como um véu (o véu de Maia, como posto por Schopenhauer) que, como indica Roberto Machado, “dissimula ao grego um mundo que, pelo que encerra de verdade, não pode ser ignorado” (MACHADO, Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 48 | P á g i n a Leonardo Araújo Oliveira 1999, p. 20). Ao tentar substituir este “mundo de verdade”, a arte apolínea ignoraria outro princípio estético fundamental: o dionisíaco. O Dionísio que é contraposto a Apolo não seria propriamente grego. Seria um Deus vindo de uma religião estrangeira que, no entanto, se perpetuou na Grécia. A concretização do instinto dionisíaco teria implicado, no campo social, em um profundo questionamento dos valores estabelecidos na Grécia; enquanto que no campo individual, implicaria na desintegração do Eu e da identidade, na queda no auto-esquecimento, na perda de si e de seus próprios limites. Enquanto dura, o êxtase dionisíaco leva o individuo ao aniquilamento dos usuais limites da existência, guarda em si “um elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal do passado” (NIETZSCHE, 1992, p. 55). O mundo da realidade dionisíaca se separa do mundo da realidade cotidiana. Porém, o retorno da consciência traz de volta a sensação de absurdo e o sentimento de desgosto da existência: “Mas tão logo a realidade cotidiana torna a ingressar na consciência, ela é sentida como tal com náusea; uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto de tais estados” (NIETZSCHE, 1992, p. 55-56). A desmesura da natureza seria revelada ao homem, através da experiência dionisíaca. Novamente se escuta a voz terrificante de Sileno: “Na consciência da verdade uma vez contemplada, o homem vê agora, por toda parte, apenas o aspecto horroroso e absurdo do ser” (NIETZSCHE, 1992, p. 56). Por trazer de volta o terror da existência, o Dionísio oriental não ganha de Nietzsche sua apreciação mais positiva. Como argumenta Roberto Machado: “Não é esse, porém o Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 P á g i n a | 49 Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado dionisíaco de que Nietzsche fará o elogio. Expondo suas características, ressaltando seus perigos, seu terrível instinto destruidor, o filósofo visa a realçar ainda mais a importância do novo antídoto que contra ele foi criado” (MACHADO, 1999, p. 23). Um antídoto pode aparecer, então, não propriamente com o aparecimento de outro Dionísio (não oriental e não bárbaro), mas sim em uma nova relação entre Dionísio e Apolo. A poesia épica era definitivamente apolínea, e por essa razão, atuava em repressão à expansão dionisíaca. Mas com a nova relação, em que o fenômeno natural se transforma em fenômeno estético (pois seria impossível viver do que é puramente dionisíaco), surge a arte que exprime o espírito grego em toda sua complexidade: a tragédia. Cabe ressaltar ainda outra vez que a potência do falso salva o grego, o que confere uma forte marca da apologia da aparência e da relação entre arte e vida no pensamento de Nietzsche: “Ele é salvo pela arte, e através da arte salva-se nele – a vida” (NIETZSCHE, 1992, p. 55). Se na tragédia reúne-se a potência apolínea com a potência dionisíaca, através da potência do falso, a oposição entre esses dois elementos, no fenômeno trágico, é uma falsa oposição. Nietzsche trará à luz então a oposição real que envolve esse fenômeno na Grécia – a oposição entre o próprio fenômeno trágico e outro fenômeno que marcará todo o pensamento ocidental, ao qual Nietzsche dedica algumas das suas mais contundentes críticas: o racionalismo Socrático. Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 50 | P á g i n a Leonardo Araújo Oliveira A tragédia, Eurípedes e Sócrates O que tenta mostrar Nietzsche, é que o solo grego, extremamente fértil para a arte, teria sido envenenado por um pretenso artista, o dramaturgo Eurípedes, e tal veneno foi preparado por Sócrates, ou mais precisamente, o veneno teria sido o racionalismo socrático. Seria Sócrates quem falava pela imagem de Eurípedes: “Também Eurípedes foi, em certo sentido, apenas máscara: a divindade, que falava por uma boca, não era Dionísio, tampouco Apolo, porém um demônio de recentíssimo nascimento, chamado Sócrates.” (NIETZSCHE, 1992, p. 79, grifos do autor). Ainda que tanto Dionísio quanto Apolo tivessem perdido espaço na arte trágica, quando essa esteve sob a pena de Eurípedes, Nietzsche acentua o caráter anti-dionisíaco de Sócrates, pontuando seu pensamento como um fundamental aniquilador do instinto dionisíaco, e com isso, da arte trágica: “Eis a nova contradição: o dionisíaco e o socrático, e por causa dela a obra de arte da tragédia grega foi abaixo” (NIETZSCHE, 1992, p. 79). Além disso, Segundo Roberto Machado, Nietzsche, em textos posteriores ao Nascimento da tragédia, dá indícios de que possa haver uma identificação entre Apolo e o pensamento socrático-platônico, bem como a apropriação da figura de Apolo pelo saber racional-científico, inferindo daí a “impossibilidade de o apolíneo se apresentar como uma alternativa à racionalidade” (MACHADO, 2011, 96). Segundo Sócrates, é belo aquilo que é racional. Para Nietzsche, o erro de Eurípedes foi condicionar seu texto, suas peças, sua poesia, sob o modelo do racionalismo; foi o de permitir que o poeta que existia em si, percorresse o caminho trilhado pela filosofia de cunho racionalista. O par Apolo- Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 P á g i n a | 51 Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado Dionísio (onde a experiência dionisíaca é possibilitada pelo artifício apolíneo) contra o par Eurípedes-Sócrates (onde o racionalismo socrático fala por intermédio do texto euripidiano) ilustra o embate entre saber artístico e saber racional, de onde Nietzsche valoriza a arte como o ápice da prática humana que pode possibilitar o acesso às questões existenciais. Quando o instinto dionisíaco deixa de ser reprimido pelo apolíneo e passa a integrar com ele a própria arte trágica, Apolo e Dionísio já não são opostos. Nesse momento, fica claro o que para Nietzsche funciona como real oposição: arte trágica contra o racionalismo socrático. Mas Sócrates teria tanto poder contra o impulso vital grego? Seria ainda tão anti-grego? Ou melhor, seria o maior adversário dessa arte intensificadora da vida? Se retomada a principal razão para a apreciação negativa que tinha Nietzsche da filosofia alemã, não surgiria em vistas um inimigo ainda mais poderoso? Atentemos para interpretação de Gilles Deleuze: “A origem da tragédia, observa Nietzsche, silenciava sobre o cristianismo, não identificara cristianismo. E é o cristianismo que não é nem apolíneo nem dionisíaco” (DELEUZE, 1975, p.11-12). Ou seja, se Apolo ainda pode ser aproveitado pelo racionalismo e possuir alguma possibilidade de identificação com Sócrates; no cristianismo, não resta espaço, não apenas para Dionísio, mas nem mesmo para Apolo. Nietzsche se diz o primeiro filósofo trágico, não seria porque toda a tradição que fez “filosofia do trágico” foi marcadamente cristã ou ainda moralmente em consonância com o cristianismo? Como poderia se compreender o trágico em um espaço cristão, onde prevalece a culpa, a expiação, o Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 52 | P á g i n a Leonardo Araújo Oliveira ressentimento, onde a vida é condenada e é posta ao máximo sob o julgo de valores transcendentes? Nessa perspectiva, a filosofia de Nietzsche teria em vista uma oposição ainda mais fundamental, não mais entre Dionísio e Apolo, entre Dionísio e Sócrates ou entre tragédia e racionalidade. O embate mais caro a Nietzsche, embora pouco formulado, não seria entre o fenômeno trágico e a moral cristã? Precisamos ouvir mais uma vez o filósofo do martelo: “– Fui compreendido? – Dionísio contra o Crucificado...” (NIETZSCHE, 1995, p. 117, grifos do autor). Dionísio contra o crucificado Cristo, filho de Deus todo poderoso, crucificado pelos homens, ressuscita três dias após sua morte. Dionísio, filho de Zeus e Perséfone, desmembrado por Titãs, renasce em Sêmele, após Zeus salvar seu coração do banquete que os Titãs fizeram de seu corpo. Duas criaturas divinas, assassinadas e que retornam à existência. Dois martírios, mas com sentidos opostos. Se de um lado, o sofrimento atua como um acusador da vida, como um imperativo que põe a vida sob julgamento, sob a necessidade de uma instância justificadora; do outro, a vida não precisa de justificação, pois é a própria existência quem afirma o sofrimento: Não é uma diferença no que toca ao martírio – o martírio tem um outro sentido. A vida mesma, a sua eterna fertilidade e o seu eterno retorno, condiciona o tormento, a destruição, a vontade de aniquilamento... No outro caso, o sofrimento, o “Crucificado como o inocente”, vale como objeção contra esta vida, como Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 P á g i n a | 53 Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado fórmula de sua condenação. (NIETZSCHE, 2008a, p.505). No interior do cristianismo, o sofrimento da vida expressa sua natureza injusta, pois serve como reparação de uma injustiça essencial, como nos diz Deleuze, a fórmula do cristianismo em relação à vida seria “ela é culpada visto que sofre” (DELEUZE, 1976, 2012). O que é curioso e perverso ao mesmo tempo, é que a vida sofrida precisa ser salva, mas é salva pelo próprio sofrimento que lhe era infligido enquanto acusava-a. Aqui atua a interiorização da dor pelo homem, “a consciência da culpa, a ‘má consciência’” (NIETZSCHE, 2009, p.48), onde a dor é produzida e multiplicada, pois além de testemunhar o caráter errático da existência, aparece como seu castigo. Pela moral cristã, o sofrimento atua como promotor, juiz e carrasco ao mesmo tempo. É assim que a religião cristã exprime o mais profundo estado do niilismo. O niilismo para Nietzsche tem um sentido geral: depreciação e negação da vida. Mas a vida pode ser depreciada de diferentes maneiras, de diferentes modos que testemunham a favor de uma variedade de tipos de niilismo. No entanto, o niilismo cristão é o que Nietzsche denomina niilismo negativo, é a via por onde a vida é negada com maior força. Tal niilismo negativo tem seu correspondente filosófico no platonismo, visto ser a doutrina responsável pela divisão do mundo em dois, de modo que a terra tivesse seu sentido extraviado, somente encontrado em um mundo além. Porém, se a depreciação da vida terrena é iniciada em Platão, é no cristianismo, enquanto fenômeno cultural que marca nossa sociedade até os dias atuais, que ela se manifesta de modo mais concreto. É o cristianismo, “platonismo para o povo”, Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 54 | P á g i n a Leonardo Araújo Oliveira como nomeia Nietzsche, que traz a negação da vida para o campo social com eficiência inigualável, e logo se instalando na subjetividade dos crentes, efetuando no plano da cultura o preconceito filosófico de que existe uma ordem moral para o mundo: Que significa “ordem moral do mundo”? Que existe, de uma vez por todas, uma vontade de Deus quanto ao que o homem tem e não tem de fazer; que o valor de um povo, de um indivíduo, mede-se pelo tanto que a vontade de Deus é obedecida; que nas vicissitudes de um povo, de um indivíduo, a vontade de Deus mostra ser dominante, isto é, punitiva e recompensadora, segundo o grau de obediência. (NIETZSCHE, 2007, p. 32, grifos do autor). É todo um pensamento negador da vida, onde a crítica de Nietzsche incide como contraponto, ao propor um pensamento afirmador da vida, onde a vida mesma não é questionada - sob a forma de um valor transcendente - pois a própria vida deve ser o critério de toda avaliação – a vida como valor maior. Assim, noções como ordem moral do mundo e vontade de Deus só dão conta da vida em nível de repressão, de dominação, de negação e quebra de tudo que é ativo e afirmativo. Tais princípios, enquanto componentes de uma ordem moral (proveniente de Deus, do Bem ou de qualquer ideia que forje um modelo de perfeição), se aplicam a vida, não a afirmando, mas regulando-a. Um dos pontos centrais do ataque de Nietzsche à transcendência é pelo seu caráter regulador, como algo que caminha verticalmente, de cima para baixo (ainda sob o modelo da perfeição da idéia Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 P á g i n a | 55 Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado indo de encontro à imperfeição do corpo), que forma um pensamento em consonância com tudo que nega e deprecia a vida. É no mundo do cristianismo, onde o homem não concebe sua vontade sem pautar-se na vontade de Deus, que não há espaço algum para o fenômeno trágico, como também para o tipo do homem propriamente trágico. Antes talvez porque nem mesmo o grego religioso parece poder sobreviver em terreno cristão: Não deixamos então de fora um tipo de homem religioso, o pagão? Não é o culto pagão uma forma de agradecimento e de afirmação da vida? Não haveria de ser o seu supremo representante uma apologia e divinização da vida? O tipo de um espírito bemaquinhoado, arrebatado e transbordante... (NIETZSCHE, 2008a, p.504, grifos do autor). A religião grega, assim como a arte trágica, testemunha a favor da vida, da vida em sua inteireza, “não negada ou dividida” (NIETZSCHE, 2008a, p.504). A potência do falso reúne religião e arte gregas, em favor de uma divinização e afirmação da existência. Na composição de A origem da tragédia, Nietzsche não menciona o cristianismo, e ali o inimigo do trágico, o oposto fundamental de Dionísio, é ainda Sócrates. Mas é preciso lembrar que essa obra da juventude ainda está marcada pela forte influência de Schopenhauer, de modo que os próprios princípios dionisíaco e apolíneo podem ser vistos como uma atualização dos conceitos schopenhaureanos de vontade e representação. No entanto, ao longo de sua obra, Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 56 | P á g i n a Leonardo Araújo Oliveira Nietzsche se desvinculou cada vez mais do pensamento de Schopenhauer, inclusive no que diz respeito ao conceito de trágico: “A tragédia precisamente é a prova de que os gregos não foram pessimistas: Schopenhauer enganou-se aqui, como se enganou em tudo.” (NIETZSCHE, 1995, p.61). Durante esse processo de transformação do pensamento de Nietzsche, não teria também sido modificado o conceito nietzschiano de dionisíaco? O Dionísio que se liga a Apolo, na origem da tragédia, atua ainda sobre uma categoria em comum com o cristianismo: o da resolução da dor – ainda que o cristianismo tente resolver o problema da dor multiplicando-a. A relação dionisíaco-apolíneo precisa salvar o grego do sofrimento que o assola a todo tempo, para arrancar-lhe da visão pessimista do mundo. Mas o novo Dionísio, encontrado nos escritos tardios de Nietzsche, por exemplo, aqueles que formariam A vontade de poder, onde o deus grego é contraposto ao deus cristão, posto em confronto com o crucificado, não intenta remediar a dor, solucioná-la; ao contrário, o Dionísio “tardio” entende que a vida não precisa ser justificada, e sim afirmada, mesmo que com todo seu sofrimento e dor. Ao contrário do cristão, o homem trágico já sente em si a própria justificação interna à existência, é ela própria que trata de justificar a dor: O problema é o sentido do sofrimento: se é um sentido cristão ou se é um sentido trágico... No primeiro caso, ele deve ser o caminho para um ser bem-aventurado; o ser vale como bem-aventurado o bastante para justificar ainda uma imensidão de sofrimento. – O homem trágico afirma o mais acre sofrimento: é forte, pleno, divinizante o bastante para tanto. – O cristão Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 P á g i n a | 57 Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado nega até a sorte mais feliz sobre a Terra: é fraco, pobre, deserdado o bastante para sofrer de toda forma na vida... “o Deus na cruz” é uma maldição contra a vida, um dedo indicador para libertar-se dela; - o Dionisios posto em pedaços é uma promessa para a vida: saindo da destruição, ele voltará sempre ao lar, renascido (NIETZSCHE, 2008a, p.505, grifos do autor). Cristo crucifixado e Dionísio despedaçado refletem, respectivamente, o homem que sofre de empobrecimento da vida e o homem que sofre de abundância. Nessa medida, a própria desmedida, a embriaguez, tem sentido diversificado nos dois pólos. Enquanto a embriaguez dionisíaca, grega, se faz como uma atividade, uma afirmação, a embriaguez cristã, alemã, serve somente a um tipo de negação, em função de um torpor, de um efeito narcótico e paralisante: “em nenhum outro lugar se abusou tão viciosamente dos dois grandes narcóticos europeus, o álcool e o cristianismo. [...] Quanta enfadonha gravidade, paralisia, umidade, robe de dormir” (NIETZSCHE, 2008b, p.56). Como a Alemanha vista por Nietzsche, bêbada de álcool e de cristianismo, - ou mesmo alcoolizada em uma embriaguês propriamente cristã – poderia compreender o fenômeno trágico? A despeito de vários pensadores que teorizaram e mesmo buscaram praticar a arte trágica, em solo alemão, Nietzsche se afirma como o primeiro filósofo trágico, o primeiro a compreender tal fenômeno em sua essência. Não teria sido precisamente por conceber a filosofia alemã demasiado cristã para empreender tal tarefa? Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 58 | P á g i n a Leonardo Araújo Oliveira Entre os alemães compreende-se de imediato, quando digo que a filosofia está corrompida pelo sangue dos teólogos. O pastor protestante é o avô da filosofia alemã, o protestantismo mesmo é o seu peccatum originale. [...] Basta falar a expressão “Seminário de Tübingen” para compreender o que é a filosofia alemã no fundo – uma teologia insidiosa... (NIETZSCHE, 2007, p. 16). O filósofo dionisíaco não ignora a reflexão alemã sobre a arte, anterior a sua, mas sempre insistiu no caráter teológico desse pensamento. Como em um tempo e em um espaço, onde predominam ideias [detectadas por Nietzsche como] fundamentalmente cristãs, poderia surgir um pensamento verdadeiramente trágico, um pensamento que não deprecie a vida, um pensamento que ligue arte e existência em uma potência única de afirmação? Conclusão Ao se revelar como falsa oposição o conflito entre Apolo e Dionísio, Sócrates, através da poesia de Eurípedes, desponta como o real opositor do fenômeno trágico, por representar, ao olhos de Nietzsche, a negação e a degenerescência da vida, a decadénce por excelência. Eurípedes mata a tragédia por trazer o racionalismo socrático para o interior da poesia trágica. Mas o socratismo permaneceria durante a história do pensamento e da cultura como o grande inimigo do Trágico? Sócrates poderia chegar ao ponto de negar a vida com armas tão sofisticadas como o ressentimento e a má consciência? Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 P á g i n a | 59 Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado Contra a sabedoria pesada de Sileno, não mais se opõe o par Apolo-Dionísio como um antídoto contra o sofrimento. Doravante, contra a visão pessimista do mundo, Nietzsche opõe uma visão dionisíaca do mundo. Não “Apolo contra Dionísio”, não “Sócrates contra Dionísio”, mas a grande oposição, como Nietzsche aponta em sua obra tardia, seria entre Dionísio e Cristo. Talvez não o Cristo a quem Nietzsche faz o elogio da religião prática, mas seu símbolo como Paulo o propagou, ou seja, o crucificado, como o símbolo da dor e da culpa que regem o mundo. O Cristianismo, através do ressentimento e da má consciência, forma um circulo aterrador de dor e culpa – absolutamente contrária a pura afirmação da existência que carrega o espírito trágico. Se Sócrates assassina a tragédia, o cristianismo não apenas o faz, mas também a crucifixa, amarra o fenômeno trágico a uma cruz de dor e culpa. A moral cristã, negadora e acusadora da vida, impede qualquer compreensão sobre o fenômeno da tragédia. “Dionisios contra o ‘Crucificado’: aí tendes vós a oposição” (NIETZSCHE, 2008a, p.505). Referências DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976. NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008a. ______. Crepúsculo dos ídolos: ou como se filosofa com o martelo. São Paulo: Cia das letras, 2008b. ______. Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. ______. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012 60 | P á g i n a Leonardo Araújo Oliveira ______. O anticristo: maldição ao cristianismo. Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. ______. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Cia das letras, 2004. MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e terra, 1999. ______. Zaratustra, tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.14, 2012