NIETZSCHE E AS OPOSIÇÕES EM TORNO DO
TRÁGICO: DIONÍSIO, SÓCRATES E O CRUCIFICADO
Leonardo Araújo Oliveira
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Resumo: O presente texto aborda a questão das oposições em torno da
concepção nietzschiana do Trágico. Aqui, destacam-se três momentos
fundamentais: a) Apolo e Dionísio como princípios estéticos em resposta ao
pessimismo de Sileno; b) o racionalismo socrático (através das tragédias de
Eurípedes) aniquilando o instinto trágico ligado aos princípios mencionados
anteriormente; c) por fim, o problema que se revela como oposição mais
profunda: o trágico contra o cristianismo, ou – nas palavras de Nietzsche –
Dionísio contra o Crucificado.
Palavras-chave: Trágico. Cristianismo. Nietzsche.
Abstract: The present article has as it finality to approach the issue of the
oppositions around the nietzschean conception of the Tragic. Here, three
fundamental moments are highlighted: a) Apollo and Dionysus as aesthetic
principles in response to the pessimism of Silenus; b) The Socratic
rationalism (through the Euripides tragedies) annihilating with the tragic
instinct connected to the principles previously mentioned; c) finally, the
problem that is revealed as being the deeper opposition: the tragic against
the christianity, or – in Nietzsche’s words - Dionysus against the Crucified.
Keywords: Tragic. Christianity. Nietzsche.
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Introdução
D
iante da sabedoria de Sileno, o solo grego,
repleto de sofrimento e dor, serviu de preparação
– como uma rocha dura de onde brota uma rosa – ao
surgimento da arte apolínea e da religião olímpica, invertendo,
desse modo, essa sabedoria pessimista. A religião grega, ao
contrário do cristianismo, diviniza a vida, e a arte apolínea, ao
contrário da tradição filosófico-científica ocidental, elogia a
aparência. Mas a apologia da aparência ainda é parcial se
outro princípio artístico é desconsiderado: o dionisíaco. O
primeiro Dionísio levado em conta por Nietzsche – deus
estrangeiro, oriental, bárbaro –, traz de volta a sabedoria de
Sileno, pois logo após a perda de identidade na embriaguês
orgiástica, revela-se ao homem o aspecto absurdo e
terrificante do ser. O antídoto à sabedoria de Sileno enquanto
expressão artística se efetua apenas através de uma nova
relação entre o princípio apolíneo e o instinto dionisíaco, pois
através do princípio estético apolíneo, a potência dionisíaca
pode ser experimentada; não mais naturalmente, pois, por
essa via chega-se a destruição do indivíduo, mas sim, pela via
artificial, ou seja, transfigurando a selvageria natural em arte
trágica.
A oposição entre Apolo e Dionísio se revela, assim,
falsa. Surge uma oposição mais visceral, entre a poesia
trágica e as peças de Eurípedes. Mas segundo Nietzsche,
quem fala pela boca do dramaturgo é o filósofo Sócrates.
Porém, o racionalismo socrático é realmente capaz de
aniquilar a tragédia? Não haveria um inimigo mais poderoso?
Para o Nietzsche de O nascimento da tragédia, não. Mas os
escritos posteriores a essa obra de juventude, principalmente
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Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado
os mais tardios, que compõe sua autobiografia intelectual
Ecce Homo e a compilação de escritos reunidos na obra
póstuma intitulada Vontade de poder, oferecem indícios para
se considerar outro opositor, ainda mais poderoso, ao
fenômeno trágico: o cristianismo.
O que Nietzsche quer dizer quando opõe “Dionísio
contra o crucificado”? De onde o autor de Assim falava
Zaratustra quando anuncia ser o primeiro filósofo trágico e o
único a ter compreendido tal fenômeno? Não haveria nessa
afirmação uma ligação com sua crítica a filosofia alemã, que,
embora tenha refletido profundamente sobre a tragédia,
permanecera essencialmente cristã? Tais questões servem de
ponto de partida, bem como as considerações expostas nos
parágrafos acima, para o desenvolvimento do presente texto.
Apolo e Dionísio
A Grécia antiga, segundo Nietzsche, se encontrava
mergulhada em um mundo repleto de sensibilidade.
Sensibilidade essa, tanto em relação ao sofrimento, quanto
em relação à arte. Uma vida enriquecida pelo sofrimento
resultava na possibilidade de um forte estado de negação da
vida, fundado em um pesado pessimismo, visto o grego estar
a todo tempo pressionado por um sentimento de que sua
existência se encontra à beira de um abismo de sofrimento e
dor. A expressão concreta de tal condição estaria manifesta
na sabedoria popular grega: na lenda sobre o encontro do rei
Mídas com o sábio Sileno. Conta-nos Nietzsche que Sileno se
encontrava na floresta, perseguido pelo rei Mídas e, quando
capturado, foi pressionado a responder a seguinte questão:
qual dentre as coisas era a melhor e mais preferível para o
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homem? Sileno manteve-se calado, mas, interpelado pelo rei,
soltou as seguintes palavras:
Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do
tormento! Porque me obrigas a dizer-te o que seria
para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para
ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser,
nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo
morrer (NIETZSCHE, 1992, p. 36, grifos do autor).
Como o homem grego sobreviveria diante de tal saber,
diante de tal visão e sentimento em relação ao mundo e sua
própria existência? Cairia aniquilado ou prepararia algum
remédio? É por essa problemática que se permite aparecer,
em solo grego, certo tipo de arte e certo tipo de religião: a arte
apolínea (com destaque para a epopéia homérica) e a religião
dos deuses do Olímpo. Ambos derivando da mesma
necessidade, a de tornar a vida desejável; ambos fazendo uso
de um meio em comum, o mascaramento dos horrores da
existência: “O mesmo impulso que chama a arte à vida, como
a complementação e o perfeito remate da existência que
seduz a continuar vivendo, permite também que se constitua o
mundo olímpico” (NIETZSCHE, 1992, p. 37).
A vontade helênica pôs diante de si um espelho
transfigurador. Os deuses gregos, enquanto vivem a vida
humana, legitimam-na, transformando a vida em algo
desejável e encontrando a dor somente no apartar da
existência. Há então, uma inversão da sabedoria de Sileno,
como diz Nietzsche: “invertendo-se a sabedoria de Sileno,
poder-se-ia dizer: A pior coisa de todas é para eles morrer
logo; a segunda pior é simplesmente morrer um dia”
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Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado
(NIETZSCHE, 1992, p. 37). Aqui já se pode notar o forte anticristianismo que marca o pensamento de Nietzsche - mesmo
que não seja diretamente mencionado nesse contexto - pois
os deuses olímpicos são apresentados sem uma relação
dicotômica com a existência terrena, expressando, pelo
contrário, um processo de divinização da vida:
Quem, abrigando outra religião no peito, se acercar
desses olímpicos e procurar neles elevação moral,
sim,
santidade,
incorpórea
espiritualização,
misericordiosos olhares de amor, quem assim o fizer,
terá logo de lhe dar as costas, desalentado e
decepcionado (NIETZSCHE, 1992, p. 36).
Não subsiste nenhum além-mundo à que este mundo
esteja submetido, um além-mundo que atue como válvula de
escape, como espaço de transcendência. Nietzsche valoriza,
sobretudo, o fato de que a religião grega – diferentemente da
religião cristã – não esteja ligada à culpa, à ascese, ao dever,
de modo que tudo o que se faz presente seja “divinizado, não
importando que seja bom ou mau” (NIETZSCHE, 1992, p. 36).
A tese da superação grega do sofrimento inerente à
existência e do pessimismo de Sileno, resulta em uma
conseqüência que acompanha toda a filosofia de Nietzsche: o
elogio da aparência. Mas tal conseqüência é ainda parcial,
pois não põe em evidência toda a importância da ideia de
aparência pensada por Nietzsche além de seu vínculo com o
instinto apolíneo, pois esse atua ainda como um véu (o véu de
Maia, como posto por Schopenhauer) que, como indica
Roberto Machado, “dissimula ao grego um mundo que, pelo
que encerra de verdade, não pode ser ignorado” (MACHADO,
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1999, p. 20). Ao tentar substituir este “mundo de verdade”, a
arte apolínea ignoraria outro princípio estético fundamental: o
dionisíaco.
O Dionísio que é contraposto a Apolo não seria
propriamente grego. Seria um Deus vindo de uma religião
estrangeira que, no entanto, se perpetuou na Grécia. A
concretização do instinto dionisíaco teria implicado, no campo
social, em um profundo questionamento dos valores
estabelecidos na Grécia; enquanto que no campo individual,
implicaria na desintegração do Eu e da identidade, na queda
no auto-esquecimento, na perda de si e de seus próprios
limites. Enquanto dura, o êxtase dionisíaco leva o individuo ao
aniquilamento dos usuais limites da existência, guarda em si
“um elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal
do passado” (NIETZSCHE, 1992, p. 55). O mundo da
realidade dionisíaca se separa do mundo da realidade
cotidiana.
Porém, o retorno da consciência traz de volta a
sensação de absurdo e o sentimento de desgosto da
existência: “Mas tão logo a realidade cotidiana torna a
ingressar na consciência, ela é sentida como tal com náusea;
uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto de
tais estados” (NIETZSCHE, 1992, p. 55-56). A desmesura da
natureza seria revelada ao homem, através da experiência
dionisíaca. Novamente se escuta a voz terrificante de Sileno:
“Na consciência da verdade uma vez contemplada, o homem
vê agora, por toda parte, apenas o aspecto horroroso e
absurdo do ser” (NIETZSCHE, 1992, p. 56).
Por trazer de volta o terror da existência, o Dionísio
oriental não ganha de Nietzsche sua apreciação mais positiva.
Como argumenta Roberto Machado: “Não é esse, porém o
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Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado
dionisíaco de que Nietzsche fará o elogio. Expondo suas
características, ressaltando seus perigos, seu terrível instinto
destruidor, o filósofo visa a realçar ainda mais a importância
do novo antídoto que contra ele foi criado” (MACHADO, 1999,
p. 23). Um antídoto pode aparecer, então, não propriamente
com o aparecimento de outro Dionísio (não oriental e não
bárbaro), mas sim em uma nova relação entre Dionísio e
Apolo. A poesia épica era definitivamente apolínea, e por essa
razão, atuava em repressão à expansão dionisíaca. Mas com
a nova relação, em que o fenômeno natural se transforma em
fenômeno estético (pois seria impossível viver do que é
puramente dionisíaco), surge a arte que exprime o espírito
grego em toda sua complexidade: a tragédia. Cabe ressaltar
ainda outra vez que a potência do falso salva o grego, o que
confere uma forte marca da apologia da aparência e da
relação entre arte e vida no pensamento de Nietzsche: “Ele é
salvo pela arte, e através da arte salva-se nele – a vida”
(NIETZSCHE, 1992, p. 55).
Se na tragédia reúne-se a potência apolínea com a
potência dionisíaca, através da potência do falso, a oposição
entre esses dois elementos, no fenômeno trágico, é uma falsa
oposição. Nietzsche trará à luz então a oposição real que
envolve esse fenômeno na Grécia – a oposição entre o
próprio fenômeno trágico e outro fenômeno que marcará todo
o pensamento ocidental, ao qual Nietzsche dedica algumas
das suas mais contundentes críticas: o racionalismo
Socrático.
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A tragédia, Eurípedes e Sócrates
O que tenta mostrar Nietzsche, é que o solo grego,
extremamente fértil para a arte, teria sido envenenado por um
pretenso artista, o dramaturgo Eurípedes, e tal veneno foi
preparado por Sócrates, ou mais precisamente, o veneno teria
sido o racionalismo socrático. Seria Sócrates quem falava
pela imagem de Eurípedes: “Também Eurípedes foi, em certo
sentido, apenas máscara: a divindade, que falava por uma
boca, não era Dionísio, tampouco Apolo, porém um demônio
de
recentíssimo
nascimento,
chamado
Sócrates.”
(NIETZSCHE, 1992, p. 79, grifos do autor). Ainda que tanto
Dionísio quanto Apolo tivessem perdido espaço na arte
trágica, quando essa esteve sob a pena de Eurípedes,
Nietzsche acentua o caráter anti-dionisíaco de Sócrates,
pontuando seu pensamento como um fundamental aniquilador
do instinto dionisíaco, e com isso, da arte trágica: “Eis a nova
contradição: o dionisíaco e o socrático, e por causa dela a
obra de arte da tragédia grega foi abaixo” (NIETZSCHE, 1992,
p. 79). Além disso, Segundo Roberto Machado, Nietzsche, em
textos posteriores ao Nascimento da tragédia, dá indícios de
que possa haver uma identificação entre Apolo e o
pensamento socrático-platônico, bem como a apropriação da
figura de Apolo pelo saber racional-científico, inferindo daí a
“impossibilidade de o apolíneo se apresentar como uma
alternativa à racionalidade” (MACHADO, 2011, 96).
Segundo Sócrates, é belo aquilo que é racional. Para
Nietzsche, o erro de Eurípedes foi condicionar seu texto, suas
peças, sua poesia, sob o modelo do racionalismo; foi o de
permitir que o poeta que existia em si, percorresse o caminho
trilhado pela filosofia de cunho racionalista. O par Apolo-
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Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado
Dionísio (onde a experiência dionisíaca é possibilitada pelo
artifício apolíneo) contra o par Eurípedes-Sócrates (onde o
racionalismo socrático fala por intermédio do texto euripidiano)
ilustra o embate entre saber artístico e saber racional, de onde
Nietzsche valoriza a arte como o ápice da prática humana que
pode possibilitar o acesso às questões existenciais.
Quando o instinto dionisíaco deixa de ser reprimido
pelo apolíneo e passa a integrar com ele a própria arte
trágica, Apolo e Dionísio já não são opostos. Nesse momento,
fica claro o que para Nietzsche funciona como real oposição:
arte trágica contra o racionalismo socrático.
Mas Sócrates teria tanto poder contra o impulso vital
grego? Seria ainda tão anti-grego? Ou melhor, seria o maior
adversário dessa arte intensificadora da vida? Se retomada a
principal razão para a apreciação negativa que tinha
Nietzsche da filosofia alemã, não surgiria em vistas um
inimigo ainda mais poderoso?
Atentemos para interpretação de Gilles Deleuze: “A
origem da tragédia, observa Nietzsche, silenciava sobre o
cristianismo, não identificara cristianismo. E é o cristianismo
que não é nem apolíneo nem dionisíaco” (DELEUZE, 1975,
p.11-12). Ou seja, se Apolo ainda pode ser aproveitado pelo
racionalismo e possuir alguma possibilidade de identificação
com Sócrates; no cristianismo, não resta espaço, não apenas
para Dionísio, mas nem mesmo para Apolo.
Nietzsche se diz o primeiro filósofo trágico, não seria
porque toda a tradição que fez “filosofia do trágico” foi
marcadamente cristã ou ainda moralmente em consonância
com o cristianismo? Como poderia se compreender o trágico
em um espaço cristão, onde prevalece a culpa, a expiação, o
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ressentimento, onde a vida é condenada e é posta ao máximo
sob o julgo de valores transcendentes?
Nessa perspectiva, a filosofia de Nietzsche teria em
vista uma oposição ainda mais fundamental, não mais entre
Dionísio e Apolo, entre Dionísio e Sócrates ou entre tragédia e
racionalidade. O embate mais caro a Nietzsche, embora
pouco formulado, não seria entre o fenômeno trágico e a
moral cristã? Precisamos ouvir mais uma vez o filósofo do
martelo: “– Fui compreendido? – Dionísio contra o
Crucificado...” (NIETZSCHE, 1995, p. 117, grifos do autor).
Dionísio contra o crucificado
Cristo, filho de Deus todo poderoso, crucificado pelos
homens, ressuscita três dias após sua morte. Dionísio, filho de
Zeus e Perséfone, desmembrado por Titãs, renasce em
Sêmele, após Zeus salvar seu coração do banquete que os
Titãs fizeram de seu corpo. Duas criaturas divinas,
assassinadas e que retornam à existência. Dois martírios,
mas com sentidos opostos. Se de um lado, o sofrimento atua
como um acusador da vida, como um imperativo que põe a
vida sob julgamento, sob a necessidade de uma instância
justificadora; do outro, a vida não precisa de justificação, pois
é a própria existência quem afirma o sofrimento:
Não é uma diferença no que toca ao martírio – o
martírio tem um outro sentido. A vida mesma, a sua
eterna fertilidade e o seu eterno retorno, condiciona o
tormento, a destruição, a vontade de aniquilamento...
No outro caso, o sofrimento, o “Crucificado como o
inocente”, vale como objeção contra esta vida, como
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Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado
fórmula de sua condenação. (NIETZSCHE, 2008a,
p.505).
No interior do cristianismo, o sofrimento da vida
expressa sua natureza injusta, pois serve como reparação de
uma injustiça essencial, como nos diz Deleuze, a fórmula do
cristianismo em relação à vida seria “ela é culpada visto que
sofre” (DELEUZE, 1976, 2012). O que é curioso e perverso ao
mesmo tempo, é que a vida sofrida precisa ser salva, mas é
salva pelo próprio sofrimento que lhe era infligido enquanto
acusava-a. Aqui atua a interiorização da dor pelo homem, “a
consciência da culpa, a ‘má consciência’” (NIETZSCHE, 2009,
p.48), onde a dor é produzida e multiplicada, pois além de
testemunhar o caráter errático da existência, aparece como
seu castigo. Pela moral cristã, o sofrimento atua como
promotor, juiz e carrasco ao mesmo tempo.
É assim que a religião cristã exprime o mais profundo
estado do niilismo. O niilismo para Nietzsche tem um sentido
geral: depreciação e negação da vida. Mas a vida pode ser
depreciada de diferentes maneiras, de diferentes modos que
testemunham a favor de uma variedade de tipos de niilismo.
No entanto, o niilismo cristão é o que Nietzsche denomina
niilismo negativo, é a via por onde a vida é negada com maior
força. Tal niilismo negativo tem seu correspondente filosófico
no platonismo, visto ser a doutrina responsável pela divisão
do mundo em dois, de modo que a terra tivesse seu sentido
extraviado, somente encontrado em um mundo além. Porém,
se a depreciação da vida terrena é iniciada em Platão, é no
cristianismo, enquanto fenômeno cultural que marca nossa
sociedade até os dias atuais, que ela se manifesta de modo
mais concreto. É o cristianismo, “platonismo para o povo”,
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como nomeia Nietzsche, que traz a negação da vida para o
campo social com eficiência inigualável, e logo se instalando
na subjetividade dos crentes, efetuando no plano da cultura o
preconceito filosófico de que existe uma ordem moral para o
mundo:
Que significa “ordem moral do mundo”? Que existe, de
uma vez por todas, uma vontade de Deus quanto ao
que o homem tem e não tem de fazer; que o valor de
um povo, de um indivíduo, mede-se pelo tanto que a
vontade de Deus é obedecida; que nas vicissitudes de
um povo, de um indivíduo, a vontade de Deus mostra
ser dominante, isto é, punitiva e recompensadora,
segundo o grau de obediência. (NIETZSCHE, 2007, p.
32, grifos do autor).
É todo um pensamento negador da vida, onde a crítica
de Nietzsche incide como contraponto, ao propor um
pensamento afirmador da vida, onde a vida mesma não é
questionada - sob a forma de um valor transcendente - pois a
própria vida deve ser o critério de toda avaliação – a vida
como valor maior. Assim, noções como ordem moral do
mundo e vontade de Deus só dão conta da vida em nível de
repressão, de dominação, de negação e quebra de tudo que é
ativo e afirmativo. Tais princípios, enquanto componentes de
uma ordem moral (proveniente de Deus, do Bem ou de
qualquer ideia que forje um modelo de perfeição), se aplicam
a vida, não a afirmando, mas regulando-a. Um dos pontos
centrais do ataque de Nietzsche à transcendência é pelo seu
caráter regulador, como algo que caminha verticalmente, de
cima para baixo (ainda sob o modelo da perfeição da idéia
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Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado
indo de encontro à imperfeição do corpo), que forma um
pensamento em consonância com tudo que nega e deprecia a
vida.
É no mundo do cristianismo, onde o homem não
concebe sua vontade sem pautar-se na vontade de Deus, que
não há espaço algum para o fenômeno trágico, como também
para o tipo do homem propriamente trágico. Antes talvez
porque nem mesmo o grego religioso parece poder sobreviver
em terreno cristão:
Não deixamos então de fora um tipo de homem
religioso, o pagão? Não é o culto pagão uma forma de
agradecimento e de afirmação da vida? Não haveria
de ser o seu supremo representante uma apologia e
divinização da vida? O tipo de um espírito bemaquinhoado,
arrebatado
e
transbordante...
(NIETZSCHE, 2008a, p.504, grifos do autor).
A religião grega, assim como a arte trágica,
testemunha a favor da vida, da vida em sua inteireza, “não
negada ou dividida” (NIETZSCHE, 2008a, p.504). A potência
do falso reúne religião e arte gregas, em favor de uma
divinização e afirmação da existência.
Na composição de A origem da tragédia, Nietzsche
não menciona o cristianismo, e ali o inimigo do trágico, o
oposto fundamental de Dionísio, é ainda Sócrates. Mas é
preciso lembrar que essa obra da juventude ainda está
marcada pela forte influência de Schopenhauer, de modo que
os próprios princípios dionisíaco e apolíneo podem ser vistos
como uma atualização dos conceitos schopenhaureanos de
vontade e representação. No entanto, ao longo de sua obra,
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Nietzsche se desvinculou cada vez mais do pensamento de
Schopenhauer, inclusive no que diz respeito ao conceito de
trágico: “A tragédia precisamente é a prova de que os gregos
não foram pessimistas: Schopenhauer enganou-se aqui, como
se enganou em tudo.” (NIETZSCHE, 1995, p.61). Durante
esse processo de transformação do pensamento de
Nietzsche, não teria também sido modificado o conceito
nietzschiano de dionisíaco?
O Dionísio que se liga a Apolo, na origem da tragédia,
atua ainda sobre uma categoria em comum com o
cristianismo: o da resolução da dor – ainda que o cristianismo
tente resolver o problema da dor multiplicando-a. A relação
dionisíaco-apolíneo precisa salvar o grego do sofrimento que
o assola a todo tempo, para arrancar-lhe da visão pessimista
do mundo. Mas o novo Dionísio, encontrado nos escritos
tardios de Nietzsche, por exemplo, aqueles que formariam A
vontade de poder, onde o deus grego é contraposto ao deus
cristão, posto em confronto com o crucificado, não intenta
remediar a dor, solucioná-la; ao contrário, o Dionísio “tardio”
entende que a vida não precisa ser justificada, e sim afirmada,
mesmo que com todo seu sofrimento e dor. Ao contrário do
cristão, o homem trágico já sente em si a própria justificação
interna à existência, é ela própria que trata de justificar a dor:
O problema é o sentido do sofrimento: se é um sentido
cristão ou se é um sentido trágico... No primeiro caso,
ele deve ser o caminho para um ser bem-aventurado;
o ser vale como bem-aventurado o bastante para
justificar ainda uma imensidão de sofrimento. – O
homem trágico afirma o mais acre sofrimento: é forte,
pleno, divinizante o bastante para tanto. – O cristão
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Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado
nega até a sorte mais feliz sobre a Terra: é fraco,
pobre, deserdado o bastante para sofrer de toda forma
na vida... “o Deus na cruz” é uma maldição contra a
vida, um dedo indicador para libertar-se dela; - o
Dionisios posto em pedaços é uma promessa para a
vida: saindo da destruição, ele voltará sempre ao lar,
renascido (NIETZSCHE, 2008a, p.505, grifos do
autor).
Cristo crucifixado e Dionísio despedaçado refletem,
respectivamente, o homem que sofre de empobrecimento da
vida e o homem que sofre de abundância. Nessa medida, a
própria desmedida, a embriaguez, tem sentido diversificado
nos dois pólos. Enquanto a embriaguez dionisíaca, grega, se
faz como uma atividade, uma afirmação, a embriaguez cristã,
alemã, serve somente a um tipo de negação, em função de
um torpor, de um efeito narcótico e paralisante: “em nenhum
outro lugar se abusou tão viciosamente dos dois grandes
narcóticos europeus, o álcool e o cristianismo. [...] Quanta
enfadonha gravidade, paralisia, umidade, robe de dormir”
(NIETZSCHE, 2008b, p.56).
Como a Alemanha vista por Nietzsche, bêbada de
álcool e de cristianismo, - ou mesmo alcoolizada em uma
embriaguês propriamente cristã – poderia compreender o
fenômeno trágico? A despeito de vários pensadores que
teorizaram e mesmo buscaram praticar a arte trágica, em solo
alemão, Nietzsche se afirma como o primeiro filósofo trágico,
o primeiro a compreender tal fenômeno em sua essência. Não
teria sido precisamente por conceber a filosofia alemã
demasiado cristã para empreender tal tarefa?
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Entre os alemães compreende-se de imediato, quando
digo que a filosofia está corrompida pelo sangue dos
teólogos. O pastor protestante é o avô da filosofia
alemã, o protestantismo mesmo é o seu peccatum
originale. [...] Basta falar a expressão “Seminário de
Tübingen” para compreender o que é a filosofia alemã
no fundo – uma teologia insidiosa... (NIETZSCHE,
2007, p. 16).
O filósofo dionisíaco não ignora a reflexão alemã sobre
a arte, anterior a sua, mas sempre insistiu no caráter teológico
desse pensamento. Como em um tempo e em um espaço,
onde predominam ideias [detectadas por Nietzsche como]
fundamentalmente cristãs, poderia surgir um pensamento
verdadeiramente trágico, um pensamento que não deprecie a
vida, um pensamento que ligue arte e existência em uma
potência única de afirmação?
Conclusão
Ao se revelar como falsa oposição o conflito entre
Apolo e Dionísio, Sócrates, através da poesia de Eurípedes,
desponta como o real opositor do fenômeno trágico, por
representar, ao olhos de Nietzsche, a negação e a
degenerescência da vida, a decadénce por excelência.
Eurípedes mata a tragédia por trazer o racionalismo socrático
para o interior da poesia trágica. Mas o socratismo
permaneceria durante a história do pensamento e da cultura
como o grande inimigo do Trágico? Sócrates poderia chegar
ao ponto de negar a vida com armas tão sofisticadas como o
ressentimento e a má consciência?
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Nietzsche e as Oposições em torno do Trágico: Dionísio, Sócrates e o Crucificado
Contra a sabedoria pesada de Sileno, não mais se
opõe o par Apolo-Dionísio como um antídoto contra o
sofrimento. Doravante, contra a visão pessimista do mundo,
Nietzsche opõe uma visão dionisíaca do mundo. Não “Apolo
contra Dionísio”, não “Sócrates contra Dionísio”, mas a grande
oposição, como Nietzsche aponta em sua obra tardia, seria
entre Dionísio e Cristo. Talvez não o Cristo a quem Nietzsche
faz o elogio da religião prática, mas seu símbolo como Paulo o
propagou, ou seja, o crucificado, como o símbolo da dor e da
culpa que regem o mundo. O Cristianismo, através do
ressentimento e da má consciência, forma um circulo
aterrador de dor e culpa – absolutamente contrária a pura
afirmação da existência que carrega o espírito trágico.
Se Sócrates assassina a tragédia, o cristianismo não
apenas o faz, mas também a crucifixa, amarra o fenômeno
trágico a uma cruz de dor e culpa. A moral cristã, negadora e
acusadora da vida, impede qualquer compreensão sobre o
fenômeno da tragédia. “Dionisios contra o ‘Crucificado’: aí
tendes vós a oposição” (NIETZSCHE, 2008a, p.505).
Referências
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976.
NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto,
2008a.
______. Crepúsculo dos ídolos: ou como se filosofa com o martelo. São
Paulo: Cia das letras, 2008b.
______. Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
______. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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Leonardo Araújo Oliveira
______. O anticristo: maldição ao cristianismo. Ditirambos de Dionísio.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
______. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. São Paulo:
Cia das letras, 2004.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e terra, 1999.
______. Zaratustra, tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
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3. LEONARDO ARAUJO OLIVEIRA CONFIRIDO