UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS I PEDAGOGIA – ANOS INICIAIS MARIA RAIMUNDA CALDAS SOUZA O PODER DE DETERMINAÇÃO DA DIMENSÃO POLÍTICO-PEDAGÓGICA DA PRÁXIS DOCENTE NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DISCENTE NOS ANOS INICIAIS SALVADOR – BA 2010 1 MARIA RAIMUNDA CALDAS SOUZA O PODER DE DETERMINAÇÃO DA DIMENSÃO POLÍTICO-PEDAGÓGICA DA PRÁXIS DOCENTE NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DISCENTE NOS ANOS INICIAIS . Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do Grau de Licenciatura Plena em Pedagogia com Habilitação em Anos Iniciais, pelo Curso de graduação em Pedagogia, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Orientador: Prof. Dr. Luciano Sérgio Ventin Bomfim. . SALVADOR – BA 2010 2 MARIA RAIMUNDA CALDAS SOUZA O PODER DE DETERMINAÇÃO DA DIMENSÃO POLÍTICO-PEDAGÓGICA DA PRÁXIS DOCENTE NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DISCENTE NOS ANOS INICIAIS . Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do Grau de Licenciatura Plena em Pedagogia com Habilitação em Anos Iniciais, pelo Curso de graduação em Pedagogia, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Orientador: Prof. Dr. Luciano Sérgio Ventin Bomfim. . Aprovado em___/___/___ BANCA EXAMINADORA _______________________________________________________________ Professor Dr. Luciano Sérgio Ventin Bomfim – UNEB _____________________________________________________________________ Professor Dr. Valdélio Santos Silva – UNEB _____________________________________________________________________ Professora Msc. Ieda Balogh – UNEB 3 Dedico este trabalho à minha filha Sofia que mesmo ainda no meu ventre me faz ansiar com muito mais intensidade por um mundo melhor, mais justo. Junto a ela, dedico também a todas as crianças que são hoje a única esperança de uma sociedade mais humana. 4 AGRADECIMENTOS Se a atividade humana se constitui através das relações sociais, a elas devemos a realidade que vivemos. Se a realidade pode ser transformada, que busquemos isso através de nossas práxis. Pois, o conhecimento significativo só será construído se entre ele e o interessado medeia pessoas significativas. Assim, gostaria de agradecer profundamente às pessoas que contribuíram direta ou indiretamente para que esse trabalho se realizasse. Aos poucos verdadeiros mestres que passaram na minha vida e se tornaram fonte de inspiração neste trabalho, o meu muito obrigada! A Deus que sempre me ampara nos momentos de angústia (em especial na realização desse trabalho); A toda minha família, que sempre acreditou em mim, em especial à minha mãe que mesmo semi-analfabeta acreditou que a educação formal era um bem valioso na minha vida; À Edmary (minha primeira professora), que apesar da sua práxis estar limitada à lógica do capital, me ensinou carinhosamente a ler e a escrever; Ao meu marido Antonio Cesar, pelo amor, paciência, incentivo e confiança no meu potencial; À professora Lucinete Chaves, por sua vontade e garra em formar professores críticos; Ao professor Roberto Carlos, por defender a Pedagogia como uma das mais belas profissões; Ao professor e orientador Luciano Bomfim, que abraçou a minha pesquisa e me fez entrar em atividade intelectual tão intensamente que não mais dela desejo sair. 5 “É necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente”. István Mészáros 6 RESUMO O presente trabalho tem por objetivo descobrir o poder de determinação da dimensão político-pedagógica da práxis docente na construção da cidadania discente nos anos iniciais. Para isso, se fez necessário entender como se processou as relações sociais construídas ao longo da história – em especial no sistema capitalista –, entre os seres humanos, e destes com a natureza; entender o conceito de práxis social e práxis docente; e, qual a necessidade da práxis docente na construção da cidadania discente. Assim, foi necessário fazer uma revisão da literatura, no qual o referencial teórico adotado baseou-se nos autores Karl Marx, Antonio Gramsci, Paulo Freire, István Mészáros, Dermeval Saviani, dentre outros que tratam desse tema. Além disso, foi preciso analisar alguns documentos oficiais que regem a educação escolar brasileira e trazer para a discussão a realidade política social e econômica sob a qual se encontra os menos favorecidos. Por fim, ao concluir este trabalho, descobriu-se que o poder de determinação da práxis docente nos anos iniciais está limitado à lógica do capital o qual manipula e aliena tanto o professor quanto o aluno. E essa condição de seres alienados só será superada quando o docente romper com essa lógica. Palavras-chave: Alienação. Práxis. Cidadania. 7 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 8 2 A RELAÇÃO ESTADO – ESCOLA – SOCIEDADE 13 2.1 A ONTOLOGIA DO SER HUMANO 13 2.2 A ESCOLA ANTE AS DETERMINAÇÕES SOCIAIS 18 2.3 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A AUTONOMIA DA ESCOLA 26 3 A DIALÉTICA PRÁXIS SOCIAL – PRÁXIS DOCENTE 35 3.1 O CONCEITO DE PRÁXIS SOCIAL 35 3.2 HÁ UMA AUTONOMIA DA PRÁXIS DOCENTE ANTE A PRÁXIS SOCIAL? 41 3.3 A DIMENSÃO POLÍTICO-SOCIAL DA PRÁXIS DOCENTE 44 4 A PRÁXIS DOCENTE E A NECESSIDADE DE CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DO ALUNO NOS ANOS INICIAIS 49 4.1 A NECESSIDADE DA FORMAÇÃO CIDADÃ PARA A CRIANÇA 49 4.2 A EDUCAÇÃO ENQUANTO ATO POLÍTICO 51 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 54 REFERÊNCIAS 57 ANEXOS 60 8 1 INTRODUÇÃO Considerando ser a formação política do indivíduo o principal instrumento de desalienação e luta pacífica contra as injustiças do mundo, se faz necessário dar maior atenção a esse objeto do conhecimento se quisermos cumprir com um dos objetivos constitucionais da educação e da Lei de Diretrizes e Bases - LDB: preparação para cidadania. Refletindo sobre minha experiência educacional dos 7 anos de idade (período que ingressei no mundo escolar) até a atual graduação, bem como as experiências que tive em sala de aula, desde os estágios na época do curso de magistério até os dias de hoje, e as experiências de observação em sala de aula, pude perceber que a educação que tive – a qual influenciou minha visão de mundo até pouco tempo, e que comumente se desenvolve nas escolas brasileiras –, está enraizada em uma prática pedagógica alienante, que conserva, reproduz e mantém a sociedade em prol do capital, e que não desenvolve uma verdadeira práxis, que seja revolucionária e que emancipe o sujeito e toda sociedade. A educação formal precisa assumir verdadeiramente seu papel perante a sociedade, isto é, contribuir significativamente para o desenvolvimento humano. Os educadores precisam perceber que sua contribuição é extremamente relevante no processo de formação do sujeito crítico, criativo, autônomo e participativo. Para isso precisam se libertar das garras da lógica do capital. Enquanto eles não quebrarem as correntes que lhes prendem a esse sistema desumano, que explora e exclui grande parte da população, não conseguirá mediar o desenvolvimento da consciência crítica dos seus alunos e consequentemente a construção da cidadania; afinal, nós construímos uma visão de mundo e atuamos sobre ele a partir da nossa formação enquanto sujeitos, assim, enquanto formos sujeitos alienados, reproduziremos sujeitos também alienados. Não serei ingênua em afirmar que a escola sozinha resolverá os problemas da sociedade, porém, essa deve ser a mola propulsora na construção de uma sociedade mais justa, solidária, em busca de iguais oportunidades. Diante disso, o objetivo deste trabalho é descobrir o poder de determinação da dimensão político-pedagógica da práxis do professor na construção da cidadania discente nos anos iniciais. 9 A temática em questão surgiu a partir de inquietações e angústias que insistem em me acompanhar desde quando entrei para o mundo acadêmico. Não é de hoje que vivo questionando meu processo de formação e minha prática. E, como num insight, me vi mergulhada num mar de incertezas, medos, dúvidas. Foi o que me fez refletir sobre minha condição de futura educadora, e assim me reportei aos meus primeiros anos de escola; época que considero hoje, a mais importante no processo de formação e desenvolvimento do sujeito, mas que em mim deixou “lacunas” jamais preenchidas. Não compreendia o que significava estar numa sala cheia de pessoas estranhas, e porque tinha que ir a escola; porque a escola nunca me foi apresentada como um espaço democrático e preocupada com a minha formação de cidadã, mas apenas como um local necessário para me educar ao ponto de “garantir” um emprego no futuro. Por que não conseguia compreender as coisas que aconteciam ao meu redor: minha situação econômica, o bairro pobre onde morava, a falta de saneamento básico? Por que me sentia inferior aos brancos de cabelos lisos e porque os negros eram considerados classes inferiores? Por que poucos eram ricos e muitos eram pobres? Por que...? Por que...? Por que...? Será que é porque deveria continuar acreditando que era Deus que queria assim, que era o meu destino? Será que é porque deveria crescer alienada, aceitando tudo que a mim era imposto? Será que meus professores eram alienados tanto quanto eu? Ou será que eram vítimas do sistema o dos governantes do nosso país? Será...? Será...? Será...? São questionamentos que não me deram oportunidade de fazer, mas que só agora faço e encontro respostas. E me vi fazendo magistério. Por vocação? Por falta de opção? Sei lá, só sei que estava lá, tentando me preparar para ser mais uma professora do interior, reproduzindo uma educação tão tradicional, retrógrada e alienante quanto meus pensamentos e minha formação. De repente chego ao 3º ano e descubro que não quero ser uma professora, não mais acredito nos educadores e na educação. Mas já era tarde demais! Veio a tão sonhada formatura. Recebo uma proposta: continuar morando no interior e começar a lecionar, ou vim para capital “tentar a vida”. Apesar da dúvida, decidi vim para Salvador em busca de novas oportunidades, afinal, isso não seria coisa difícil, tinha 18 anos, segundo grau completo. Que ingenuidade! Aliás, essa vivia (e ainda vive) me perseguindo. Depois de quase um ano de procuras e decepções, finalmente consigo um emprego, função? Operadora de caixa. Como estava feliz, valeu à pena estudar. 10 Faculdade? Não fazia parte dos meus planos, pois isso era coisa de rico. Mas fui descobrindo o mundo acadêmico por osmose. Assim, depois de dois/três anos na capital, decidi fazer um cursinho pré-vestibular, um pouco incerta do que me moveu para o sonho de entrar numa universidade, lá estava me preparando para competir por uma vaga no mundo acadêmico, mundo que me garantiria uma profissão decente, que me tirasse de trás de um balcão. Contudo, ainda achando algo muito distante do meu mundo, do mundo da minha família - como ainda é hoje -, pois dentre oito irmãos, só eu ingressei numa universidade. Daí veio os questionamentos internos: que curso fazer? Um que me desse dinheiro ou que eu tivesse afinidade? A única coisa que sabia era que gostava de crianças e queria trabalhar com questões sociais. Entre muitas sugestões decido tentar ingressar num curso de Pedagogia, afinal, não existiria curso melhor para, além de trabalhar com crianças, desenvolver um trabalho que envolvesse as questões sociais. Foi então quando comecei a me decepcionar verdadeiramente com a educação, ou melhor, com os educadores e o sistema de ensino. Ainda nas aulas de cursinho percebi que nada sabia, que minha formação não servia pra nada, ou melhor, só servia pra me fazer reproduzir o que a lógica do capital queria, um ser humano conformado e alienado. E quando estava para desistir de tentar, diante do conformismo que a vida me impôs, e da “incapacidade” de competir por uma vaga, entro em uma universidade pública – sonho de todo estudante – no curso de Pedagogia. E assim, dentre muitas faltas, decepções e incertezas – só consciente hoje –, foi sendo construída minha formação escolar, minha consciência, minha cidadania, meu futuro, minha visão de mundo. Cheia de medo e insegurança, apresento-me e sou apresentada a um mundo muito distante do que até então conhecia. Trêmula, insegura e sentindo-me incapaz, tinha agora um desafio: correr atrás do prejuízo deixado por uma formação “capenga” e desconstruir uma visão de mundo tão ingênua e passiva quanto a que tinha, bem como contribuir para não perpetuar a história que vivi. A partir de então, pela necessidade de me reconhecer enquanto ser histórico e humano, decidi pesquisar o tema – O poder de determinação da dimensão político-pedagógica da práxis docente na construção da cidadania discente nos anos iniciais. Pois acredito que o papel e a atuação político-pedagógica docente devem estar indiscutivelmente ligados à sua práxis cotidiana, e que a consciência política deve ser trabalhada na escola desde o primeiro contato da criança com a vida 11 escolar. Só assim, o ensino brasileiro tradicionalista e excludente, comandado pelo sistema capitalista, será superado. Sabe-se que a escola é formadora de opiniões, porém, estar longe de mim defender uma ação político-partidária do professorado ou atos proselitistas, isto é, defender o uso da sala de aula como espaço de doutrinação, impondo ideologias e crenças; pois isso, por si só vai de encontro com a própria ideia que defendo – a formação da consciência crítica e política do educando –, afinal, como afirma Paulo Freire (1983, p. 12), “conscientizar não significa, de nenhum modo, ideologizar ou propor palavras de ordem”; se assim acontece, limita os alunos a uma visão de mundo restrita e particularizada, tornando-os seres alienados. Sei que o discurso político partidário é inaceitável na sala de aula, porém, conscientizar politicamente é papel sim da escola, Portanto, o tema em questão pretende levar o leitor a compreender quais resultados e conseqüências o trabalho docente (ensinar) causará na formação dos seus alunos; ele poderá ser um sujeito alienado, acrítico e passivo, ou será questionador, consciente dos seus direitos e deveres; que não aceitam as ideias, e as situações impostas pelos outros, como únicas e verdadeiras antes de analisá-las, questioná-las e compreendê-las dentro do contexto vivido; afinal, quem não dialoga, não é capaz de conhecer e tampouco refutar e assim criar, recriar e transformar, pois apenas decora, internaliza e repete modelos minuciosamente construídos para manter as coisas como estão. Neste sentido, encaro o papel da educação formal e do educador como fundamental para a formação humana; uma formação que não permita que histórias como a que vivi – marcada por faltas, aceitações, acriticidade, questões não instigadas, nem tampouco respondidas pelos meus professores –, se reproduzam. Para que esta pesquisa fosse realizada foi necessário desenvolver o seguinte roteiro: selecionar e fichar referências que já pesquisaram o tema; conhecer as teorias das seleções feitas; aprofundar-me dessas teorias para refinar a seleção; selecionar os autores primários, secundários e terciários; e localizar tais referências. Além disso, se fez necessário analisar alguns documentos oficiais que asseguram a educação escolar; e, partindo da realidade contemporânea, compreender como a educação formal se comporta diante dela; por fim, fazer as devidas leituras dialogando com os autores, com os documentos, e a realidade, e assim produzir os textos que resultaram nesse trabalho. 12 Diante disto, trago no primeiro capítulo (item 2 do sumário), a relação escola estado e sociedade com intuito de investigar e compreender os processos históricos e sociais que desencadearam essa relação. Para isso, foi necessário primeiro conhecer o ser humano enquanto essência, ou seja, sua ontologia. A partir daí buscamos compreender suas relações construídas historicamente, e qual o papel da escola nesse emaranhado de relações. Como aporte teórico, me apoiei nas ideias do evolucionismo de Charles Darwin, e nas teorias cristãs do criacionismo. Outros autores que muito contribuíram para esse tema foi Karl Marx e sua crítica ao sistema capitalista, bem como Althusser e Enguita e suas críticas à escola como aparelho reprodutor de Estado. As teorias de Antonio Gramsci, Dermerval Saviani e Paulo Freire que, além de criticar a educação reprodutivista, nos fornece subsídios para que uma mudança significativa aconteça, também foram muito relevantes. Buscamos em Celina Souza, em Moacir Gadotti, na Constituição Federativa de 1988 e na lei de Diretrizes e Bases da Educação, em especial a 9394/96, a discussão sobre as políticas públicas e a autonomia da escola. No segundo capítulo (item 3 do sumário) trazemos para discussão a dialética práxis social – práxis docente. Neste momento buscamos compreender o conceito de práxis social e práxis docente, trazendo um diálogo entre as duas, procurando compreender e respeitar suas particularidades. Para entender o conceito de práxis social me apoiei em Vázquez e Marx, os quais defendem a práxis social enquanto atividade humana transformadora. Assim, fez-se necessário discutir também a autonomia do professor e sua formação político-social. Utilizamos das ideias dos teóricos István Mészáros e Paulo Freire por esses acreditarem que a educação só será transformadora quando o educador romper com a lógica do capital. No terceiro e último capítulo (item 4 do sumário), discutimos a práxis docente e a necessidade da construção da cidadania discente nos anos iniciais. Neste capítulo se discutiu a necessidade da formação cidadã da criança e a educação enquanto ato político. Os teóricos que nos apoiaram aqui foram: Freire, Mészáros e Saviani. E assim chegamos em nossas considerações finais percebendo que a práxis docente é controlada por um sistema que não permite uma educação de qualidade para os menos favorecidos; que aliena tanto o professor que ver seu trabalho como uma mercadoria de troca, quanto o aluno que sofre a ação de ser educado dentro dessa lógica. 13 2 A RELAÇÃO ESTADO – ESCOLA – SOCIEDADE Para que possamos compreender as relações sociais existentes hoje no Brasil e no mundo se faz necessário antes de tudo entender o homem dentro do processo histórico em que viveu. Como se constitui e se constituíram suas relações com o outro, com a natureza, com as instituições civis, com a escola, com o poder, com Estado. Entender o papel do Estado ante estas relações é de extrema importância se quisermos compreender o ser humano em sua essência. 2.1 A ONTOLOGIA DO SER HUMANO Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Esses questionamentos caminham com a humanidade desde que os homens tentam entender e buscam provar a origem das espécies no planeta Terra. Num surto de crise existencial, alguém um dia se viu intrigado com os mistérios de sua existência e eternizou essas indagações que podem ser a mola propulsora na mudança da história do surgimento da humanidade. Não se sabe ao certo quem primeiro levantou esses questionamentos, no entanto, é impossível negar sua importância na “descoberta” da origem da espécie humana. Imortalizadas na obra do pintor francês Paul Guaguim1 – obra essa que tem como título essas três perguntas –, estas questões despertam grandes interesses de filósofos e cientistas consagrados. O aparecimento do homem na Terra é recheado de teorias, hipóteses e crenças defendidas pelas mais diversas linhas de pensamento. A ciência e a religião vivem em constantes conflitos em prol de suas teorias, de suas verdades a respeito da origem da vida e sua evolução. A teoria Criacionista acredita que há um Deus (para fé cristã) ou vários deuses ( para outras crenças religiosas), Criador da natureza e de toda criatura que habita sobre a Terra. Como se pode ler na Bíblia Cristã: No princípio, Deus criou o céu e a terra [...]. Deus disse: ‘ A terra faça brotar vegetação: plantas que dêem sementes, e árvores frutíferas, que dêem frutos sobre a terra, tendo em si a semente de sua espécie [...] Deus disse: ’Fervilhem as águas de seres vivos e voem pássaros sobre a terra, debaixo do firmamento do céu’ [...] 1 Pintor francês do século XIX. 14 Deus disse: ‘Produza a terra seres vivos segundo suas espécies, animais domésticos, animais pequenos e animais selvagens, segundo suas espécies’ [...] Deus disse: ‘Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo a nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais selvagens e todos os animais que se movem pelo chão’. [...] E Deus os abençoou e lhes disse: ‘ Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a’! (Gn 1,1.28). E assim estava criado todo ser vivo que habita sobre a Terra. Essa é a crença da teoria criacionista conservadora, seguida por várias religiões cristãs, em especial as protestantes, que vêem os princípios bíblicos da criação como a única verdade aceita e incontestável. No entanto, é preciso ressaltar que apesar dessa teoria estar baseada na fé cristã e judaica, muitos dos seus seguidores (como a Igreja Católica, Anglicana, alguns protestantes, dentre outros) já aceitam o evolucionismo numa tentativa de unir ciência e fé. Não se quer dizer com isso que tais seguidores renunciam a lei da criação como os evolucionistas, mas, que acreditam - ou assumiram essa crença -, que essas duas teorias se integram e não se anulam. Porém, continuam negando o “acaso” como justificativa para o surgimento da vida na Terra, o que acreditam é que há um Deus criador do céu e da Terra e de toda criatura, que nos criou por um propósito e por isso orienta todas nossas ações, mas, que foi evoluindo desde sua criação e garantindo assim sua existência no planeta. Essa última teoria é o que Ferreira (2008) chama de “criacionismo moderno”. Por outro lado, a teoria Evolucionista busca negar o Criacionismo e provar a partir de evidências observadas e testadas, isto é, a partir do conhecimento científico que o ser humano é a evolução de outra espécie animal, assim como todos os outros seres vivos. Para Charles Darwin, as espécies surgiram e evoluíram através de processos naturais, das mutações aleatórias, levando em consideração a adaptação ao meio ambiente. Não se quer aqui defender nem tampouco negar nenhuma das duas vertentes teóricas. No entanto, o que fica claro nas duas correntes bem como em todas as suas seguidoras é que o ser humano é a espécie mais “perfeita” entre eles, pois, além de interagir de maneira consciente com as outras espécies, entre eles e com a natureza, é capaz de pensar e transformar o meio para suprir suas necessidades, para sobreviver. E essa transformação se dá desde então pelo trabalho, por sua relação com a natureza. Assim, tanto o Criacionismo quanto o Evolucionismo tentam 15 em comum, entender e explicar o ser humano ontologicamente, isto é, sua essência, seu conteúdo de espécie. É claro que dentro da própria ciência assim como nas crenças religiosas, existem várias teorias em defesa da origem da vida, porém, o que todas comungam é a ideia que o mundo está em constante evolução e como nele o homem está inserido, precisa ser entendido como tal. Sendo o ser humano o mais “perfeito”/evoluído dos animais, torna-se diferente e superior a esses, pois, só ele é capaz de agir conscientemente e dominálos – apesar de sabermos que existe a dominação entre os seres humanos e que essa se dá através do poder, não entraremos agora nessa discussão –, transformar-se, e modificar a natureza em benefício próprio através do trabalho, [...] ”ou seja, agindo para o atendimento de suas necessidades, que o ser humano transforma a natureza e, ao mesmo tempo, transforma a si mesmo, se produz, tornase consciente”, como destaca Bomfim (1996, p.7) se apropriando da ideia de Marx. E esse “tornar-se consciente” de sua práxis e de suas necessidades foi sendo constituído através do trabalho. Ou seja, o trabalho torna o ser humano consciente, e a consciência possibilita o ser humano transformar a natureza, a sociedade. Para melhor compreender a formação da consciência tomaremos como base as reflexões de Marx e Engels em sua obra “A Ideologia Alemã” (1932). Aqui, os autores buscam explicar como se deu a vida em sociedade, tendo as correntes filosóficas e a realidade alemã como referência; além disso, vêm demonstrar também que há duas maneiras de explicar a formação da consciência humana: a partir da concepção idealista, ao qual eles criticam por vê-la como uma concepção especulativa e abstrata da realidade; e da concepção materialista e dialética, defendida por eles, e que se explica a partir daquilo que é empírico, concreto, real. Para estes autores, “não é a consciência que determina a vida, mas a vida é que determina a consciência”, ou seja, a consciência é produto da prática e do desenvolvimento humano; da relação existente entre o homem e seu objeto concreto; logo, são as condições materiais disponíveis e os meios de produção que determinam as relações entre os seres humanos através da consciência. Seguindo a linha de algumas correntes naturalistas e idealistas, pode-se dizer que toda espécie animal possui características biológicas específicas. Os animais irracionais são naturalmente pré-determinados a se comportar de maneira tal na natureza, possuem ação instintiva, e essa é a essência do seu existir no mundo. 16 Para Marx, ao contrário, a vida do ser humano não está pré-determinada, pois sendo ele um ser consciente (não entraremos agora no mérito dos tipos de consciência – ingênua ou crítica), ou seja, de conhecimento, razão, reflexão, memória, e por isso, livre do determinismo da natureza, o faz pensar o seu estar no mundo. Ele existe, sabe que existe, e pensa sobre isso, e pensando, reage, modifica, transforma, e assim se torna livre para escolher seu “destino”, suas ações. Sendo livre, o homem constrói sua essência historicamente. Essa construção se dá a partir das relações sociais e da interação com a natureza. E toda essa interação que está em constante movimento – construção-destruição-reconstrução –, por ser consciente, tem uma intencionalidade; não é instintiva como ocorre com os outros animais. Logo, o que diferencia o ser humano dos animais irracionais, é a existência da consciência, da razão. E foi justamente o uso destas que fez a humanidade evoluir (entender por evolução também os problemas que a sociedade enfrenta hoje). Sabe-se que os primeiros seres humanos a habitar o planeta Terra viviam em estado primitivo e assim foram classificados como inferiores e selvagens por pertencer a sociedades anteriores a civilização. No entanto, a história da vida em sociedade, [...] pode ser explicada, em termos de uma sucessão de revoluções tecnológicas e de processos civilizatórios através dos quais a maioria dos homens passa de uma condição generalizada de caçadores e coletores para diversos modos, mais uniformes do que diferenciados, de prover a subsistência, de organizar a vida social e de explicar suas próprias experiências ( RIBEIRO, 1998, p.39-40). Fica claro então que o processo de formação das sociedades, resultante do desenvolvimento humano, se deu a partir de revoluções, as quais diferenciaram o modo de ser, de pensar e de agir do ser humano, ao longo do seu processo histórico. E é a partir desta nova maneira de se comportar no mundo que passaram a trabalhar coletivamente para subsistência do grupo; a terra era de todos, logo, o produto desse trabalho pertencia a todos; ainda não existia entre eles o pensamento da divisão de classes, da exploração do homem pelo homem, nem tampouco da propriedade privada. À medida que o homem foi evoluindo, “civilizando-se”, a produção deixou de ser apenas para a subsistência, o homem começa a produzir excedentes com o objetivo da troca, nasce então a mercadoria (estamos no sistema feudal). Grandes famílias então eram formadas e em conjunto trabalham em 17 benefício próprio, agora, cada pedaço de terra tinha um dono (senhor feudal), surge assim a propriedade privada, a divisão do trabalho e consequentemente a divisão das classes sociais (dominantes e dominados); e assim a civilização propriamente dita vai incorporando as técnicas, o poder da religião, o uso da razão, a ciência, os valores, as leis, a arte, a força do capital; enfim a sociedade civil organizada e o Estado, e com ele o poder de dominação se fortalecendo. À medida que o tempo foi passando e o mundo experimentando as mais diversas formas de convívio em sociedade, novas formas de poder foram surgindo, e com ele a necessidade de uma sociedade organizada foi ficando cada vez mais forte. O homem por natureza sente-se pertencente a um grupo, na verdade, ele já nasce inserido num determinado grupo que é a família e vai sendo inserido em outros: o trabalho, os amigos, a escola, a igreja etc. O trabalho que desde então impulsionava a sociedade primitiva, vem agora tomar um lugar de maior destaque, servir como base entre as sociedades capitalistas2, em especial nas reflexões de Karl Marx: O trabalho, como criador de valores-de-uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem – quaisquer que sejam as formas de sociedade –, é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida humana. ( MARX, 1890, p.50). Marx aqui quer demonstrar que o trabalho antes de tudo é a essência da vida, é a ponte que liga o indivíduo e a natureza. Ele afirma que o produto desse trabalho deve ser útil - o que ele chama de valor de uso -, isto é, deve ser produzido para atender a uma necessidade do ser humano. Quando o produto do trabalho é uma mercadoria (o que acontece na sociedade capitalista), não necessariamente são criadas como valores de uso já que a finalidade desse produto é a troca ou a venda. Assim, o valor de uso cede lugar ao valor de troca. As teorias levantadas por Marx em O Capital partiram da tentativa de entender a lógica do capital a partir do comportamento da sociedade capitalista vivida em sua época, onde a força de trabalho era o alicerce de sua sustentação. Além disso, queria entender a sociedade dividida em classes tão bem definidas. E 2 Apropriando-nos do termo em Marx, podemos dizer que esse tipo de sociedade se define como produtora de mercadoria e de mão-de-obra assalariada. 18 qual era o papel de cada classe; por que a burguesia ascendia com tanto fervor e o proletariado estava cada vez mais em estado de miséria. A partir das ideias de Marx e de outros teóricos preocupados com a disparidade existente na sociedade capitalista, e com a emancipação humana; é possível entender o comportamento do homem atual, [...] “ dos modos de ser e interagir das sociedades contemporâneas, enquanto resultantes de longos e complexos processos históricos” (RIBEIRO, 1998, p.34), seus anseios, suas necessidades, suas faltas e a possível mudança; é possível entender como a riqueza em detrimento da miserabilidade é tão gritante em alguns países como o Brasil; enfim é possível compreender o homem em sua essência, isto é, a sua ontologia. 2.2 A ESCOLA ANTE AS DETERMINAÇÕES SOCIAIS O cotidiano de um indivíduo, de um grupo, de uma família ou até mesmo de uma sociedade é marcado por fatores diversos. Sejam eles sociais, econômicos, políticos, ambientais etc., cada época vai marcar historicamente esta sociedade. Várias foram as formas de se pensar e organizar cada sociedade desde sua existência. A princípio ( pelo menos nas sociedades primitivas), toda pessoa exercia um importante papel nela, ou seja, todos eram considerados necessários e fundamentais para a manutenção da vida; do equilíbrio entre a natureza e o ser humano. Com o passar do tempo, a função de cada sujeito foi se modificando, vezes sendo substituída, outras sendo manipulada, algumas outras descartada. O vilão dessa história? É o que iremos descobrir. Desde que o ser humano se percebeu um ser em constante evolução, suas necessidades, seu comportamento e sua vida mudaram. A maneira de ver e explorar a natureza ganhou um novo olhar. Cada ação, antes voltada apenas para sobrevivência do coletivo, ganha uma novo significado. A partir de então, não bastava mais trabalhar para sua subsistência, era preciso conquistar e acumular cada vez mais para garantir o “futuro”, seu e da sua família. Numa espécie de gincana, uns tornam-se “vencedores” e dominadores e outros “perdedores” e dominados, assim como acontecia e ainda acontece na educação escolar, pois, o processo de ensino-aprendizagem foi e continua sendo (mesmo com todo otimismo que depositamos nele) uma espécie de competição desigual e excludente. Onde os 19 vencedores (a classe dominante) e os perdedores ( os dominados) todos já conhecem antes mesmo do seu fim. A educação e o desenvolvimento da humanidade sempre caminharam juntas, isso porque, como nos lembra Freire (1983, p. 35), “não há educação fora das sociedades humanas e não há homem no vazio” Logo, a educação e o desenvolvimento humano sempre coexistiram. Toda ação humana é determinada – e determina – por um ato educativo mesmo que esta não seja percebida ou definida com tal. No entanto, essa prática só se tornou objeto de estudo milênios depois do aparecimento do ser humano. Para entendermos melhor a prática educativa e posteriormente a escola ante as determinações sociais, precisamos fazer uma viagem histórica dentro das ideias de educação que cada sociedade criou ao longo dos tempos; e como essa é vista no mundo contemporâneo. Nas sociedades primitivas a educação acontecia através da prática. A ação educativa era vista no cotidiano de cada comunidade. A criança aprendia a caçar e pescar olhando e imitando seus pais ou outros adultos da tribo ao qual pertencia. À medida que a divisão social do trabalho e com ela as desigualdades econômicas e sociais surgem – pois essa divisão resultou em benefícios para poucos e malefícios para muitos –, aparecem também as classes e as relações sociais de produção. Agora, cada grupo ou pessoa exercia função específica dentro dessa sociedade. Enquanto uns passaram a elaborar, controlar e ditar as regras do sistema, seja econômico, político ou social, (tendo a educação com aliada), outros apenas as seguiam, isto é, uns mandavam, e outros obedeciam. A educação que antes era igual para todos passa a ser diferenciada: uma educação X para os ricos e exploradores e uma educação Y para os pobres e explorados. E assim a história da educação e da humanidade ia sendo construída. O interesse no coletivo perde espaço e vai sendo substituído por interesses cada vez mais individualizados. De um lado estão os submetidos, os oprimidos e excluídos, vítimas da expropriação e da exploração; do outro, os exploradores, prontos para fazer o que preciso fosse para defender e manter sua posição privilegiada diante da sociedade. E assim, a educação primitiva e familiar foi sendo substituída por uma educação dogmática, autoritária e conservadora. Não se pode negar que apesar dessa mudança ocorrida no processo educativo, o qual resultou em classes tão antagônicas e desiguais, muitos avanços 20 se devem a ela. O nascimento do pensamento filosófico e sociológico acerca do ser humano enquanto ser consciente e em busca de mudança, vem despertar relevantes reflexões dentro da sociedade de cada época. O comportamento do ser humano, seus interesses, suas ações, passam a ser objeto de estudos de diversos autores dentro da Filosofia, da Sociologia, da Antropologia, da Educação, dentre outros. Várias novas teorias surgem então questionando hipóteses antes inquestionáveis, vistas como verdades absolutas por milhões e milhões de anos (como o surgimento do homem na Terra, por exemplo). E assim, o pensamento e as ações de cada época histórica iam se modificando. Ora evoluindo, ora retrocedendo – do ponto de vista da emancipação humana. As teorias e as práticas pedagógicas, por ter importante função na sociedade ganha destaque. Cada período histórico vai desenvolvendo seu modo de pensar e fazer a educação, sua pedagogia. Dentre os vários pensamentos pedagógicos, encontramos o que Dermeval Saviani chamou de teorias não-críticas, teorias crítico-reprodutivistas, e as teorias críticas, as quais vêem demonstrar como ocorreram (e ocorrem) as relações entre a educação e a sociedade, pois, como já foi comentada anteriormente a relação entre educação e sociedade é uma relação de dependência. Diante disto, várias teorias foram elaboradas ao longo da história com o objetivo de entender e explicar a prática educativa como sendo a mola propulsora do “desenvolvimento” da humanidade. Assim, foram criadas teorias que ora vê a escola como instrumento de superação da marginalidade, ora a define como reprodutora e mantenedora desta. Analisaremos brevemente essas teorias baseados nas ideias desenvolvidas por Dermeval Saviani em seu livro Escola e Democracia, onde o autor traz para discussão os problemas da educação atual focando a marginalização e a acriticidade (ou falsa crítica) de algumas teorias que foram aclamadas por longos períodos no Brasil e no mundo. Criadas para atender aos interesses da burguesia (classe em ascensão) que clamava por uma educação democrática e para todos, as teorias não-críticas (Pedagogia Tradicional, Pedagogia Nova e Pedagogia Tecnicista) viam a questão da marginalização como um acidente, ou seja, um fato social, não premeditado, que poderia ser superado pela educação através da escola. Por acreditarem que a educação não influenciava o modelo de sociedade, essas teorias eram classificadas como não-críticas. Já as teorias crítico-reprodutivistas, criticavam a escola na sociedade capitalista por vê-la como instrumento de reprodução e inculcação da 21 ideologia dominante e das relações sociais de produção. E isso se dava pelo ensino dual que oferecia tais escolas: um voltado para a elite (intelectual), e outro para o povo (técnico e manual), como aponta Gramsci (1991, p. 118), a escola estava dividida em clássica e profissional, a qual, “a escola profissional destinava-se às classes instrumentais, ao passo que a clássica destinava-se às classes dominantes e aos intelectuais.” O que gerava os diferentes níveis intelectuais de conhecimento e cultura, e consequentemente a segregação e as diferentes classes sociais. No pensamento pedagógico crítico-reprodutivista, temos como principais pensadores, Bourdieu e Passeron, Baudelot e Establet, Althusser, e Enguita. Como o próprio nome indica, os críticos-reprodutivistas criticavam a educação e as relações sociais de reprodução do capitalismo, mas viam a escola como reprodutora dessas relações. Para eles, a educação está diretamente ligada aos fatores sociais. No entanto, tal pensamento, apesar de criticar a educação, nega a autonomia da escola e assim anula qualquer práxis social que possibilite a emancipação humana e que lute por uma sociedade mais igualitária e livre da alienação. Louis Althusser (1918-1990) foi um filósofo francês que se aliou ao Partido Comunista Francês em 1948. Em seu livro Os aparelhos ideológicos de Estado, Althusser analisa a “reprodução das condições de produção” através do Estado, o qual ele define como Aparelho Repressivo de Estado (o governo, a administração, a política etc.), ou seja, como uma ‘máquina’ que “[...] permite as classes dominantes [...] assegurar a sua dominação sobre a classe operária [...]” (p.62); bem como as várias instituições que o constitui como sendo aparelhos ideológicos deste. Como aparelhos ideológicos de Estado o autor enumera várias instituições: AIE religiosos; AIE escolar; AIE familiar; AIE Jurídico; AIE político; AIE Sindical; AIE de informação; AIE cultural. Como o próprio nome indica, para Althusser, os AIE funcionam através da ideologia e esta é materializada através da prática. Ele ainda acrescenta que todos os AIE funcionam como reprodutores. Iremos agora entender melhor como funciona o AIE escolar segundo Althusser. A necessidade de submeter a classe popular à dominação da classe dominante e posteriormente à lógica do capital, bem como de “qualificar” a força de trabalho, transferiu a função de educar da família e da igreja para a escola. A partir de então cabe à escola, além de ensinar a ler, escrever, contar e algumas técnicas necessárias para o trabalho nas fábricas, ensinar também as regras do bom comportamento e da obediência (inquestionável) para alguns, e de chefia para 22 outros. Nesta perspectiva dualista que se encontrava a escola, Althusser define esta como reprodutora da força de trabalho, que gera e legitima as relações sociais de produção da elite ( em sua época, a burguesia). Ou seja, a escola ensina para manter o status quo da classe dominante. Como fica claro na citação a seguir: Acreditamos portanto ter boas razões para afirmar que, por trás dos jogos de seu Aparelho Ideológico de Estado político, que ocupava o primeiro plano do palco, a burguesia estabeleceu como seu aparelho de Estado n° 1, e portanto dominante, o aparelho escolar, que, na realidade, substitui o antigo aparelho ideológico de Estado dominante, a Igreja, em suas funções. Podemos acrescentar: o par Escola–Família substitui o par Igreja–Família.” (ALTHUSSER, 2003, p. 78). Assim, fica claro que para Althusser a escola como aparelho ideológico de Estado reproduz as relações sociais de produção apoiada pela família, inculcando nas crianças os saberes “pertencentes” à ideologia da classe dominante. Apesar de não negar diretamente a luta de classes, o que fica evidente para nós analisando a teoria de Althusser, é que ele não acredita numa vitória da classe popular. Para ele, uma luta seria em vão à medida que os mais fortes (a elite) sempre serão vencedores; que a luta de classe era algo utópico (do ponto de vista irrealizável). Que de nada adiantaria lutar contra esse sistema. A esses poucos que se revoltavam contra ele (o sistema) Althusser chama de “heróis”. Seriam um espécie de heróis solitários. Por isso sua teoria é crítico reprodutivista. Vejamos o trecho a seguir que melhor analisa essa ideia: Peço desculpas aos professores que, em condições assustadoras, tentam voltar contra a ideologia, contra o sistema e contra as práticas que os aprisionam, as poucas armas que podem encontrar na história e no saber que ‘ensinam’. São uma espécie de heróis. Mas eles são raros, e muitos (a maioria) não têm nem um princípio de suspeita do ‘trabalho’ que o sistema (que os ultrapassa e esmaga) os obriga a fazer, ou, o que é pior, põem todo seu empenho e engenhosidade em fazê-lo de acordo com a última orientação (os famosos métodos novos!). Eles questionam tão pouco que contribuem, pelo seu devotamento mesmo, para manter e alimentar esta representação ideológica da escola, que faz da Escola hoje tão ‘natural’ e indispensável, e benfazeja a nossos contemporâneos para a Igreja era ‘natural’, indispensável e generosa para nossos ancestrais de alguns séculos atrás ( ALTHUSSER, 2003, P. 80-81) 23 Ele acreditava com isso que a escola como aparelho ideológico dominante e pertencente ao aparelho repressivo de Estado, contaminava e assim alienava todos que se mostravam contrários ao modelo de educação existente, vendo a escola como meio de mudança e transformação social. Outro autor crítico-reprodutivista que merece destaque é Mariano Enguita. Esse autor que tem seu trabalho desenvolvido na área da Sociologia da educação, discute em seus estudos as relações sociais de educação, trabalho e ideologia. Assim como Althusser, Enguita traz à tona sua teoria e visão da escola ante da sociedade capitalista. Para ele, a autoridade e a hierarquia não é um privilégio da economia capitalista, pois são encontradas também no seio familiar, nas escolas e em outros AIE. Essa autoridade se diferencia é certo, mas existe. Assim, a escola ganha um papel fundamental na sociedade, isto é, atender as necessidades da sociedade capitalista, sejam essas em nível de formação técnica e intelectual, ou de aceitação, sujeição, e acima de tudo de reprodução e manutenção da ordem vigente. As escolas comungam entre si a ideia de manutenção da ordem e da autoridade. Como disse Silberman em citação de Enguita, a escola não estava preocupada em tornar os alunos críticos, “auto-suficientes”, independentes, autônomos; ao contrário, a educação escolar tornava o aluno cada vez mais dependente dela e do outro; cada vez mais passivo às regras impostas por ela. Assim, pode-se dizer que a “autoridade da escola é parte da relação social da educação” (Enguita, 1989). Isto é, como autoridade inquestionável da educação, a escola determinava o que era certo ou errado, o que deveria ou não ensinar. E este era o princípio que sustentava sua existência na sociedade. Não se pode negar que as teorias crítico-reprodutivistas fizeram sérias críticas ao modelo de educação da sociedade capitalista e que isso foi de extrema importância para análises e estudos posteriores em relação a educação e seus fins, principalmente na América Latina. No entanto, não podemos deixar de mencionar que estas teorias não trazem propostas pedagógicas intervencionistas, que solucionem a lamentável situação das classes marginalizadas. Seus seguidores se posicionam apenas como agentes críticos, sem trazer soluções possíveis, isso por acreditarem que a sociedade é assim e não poderia ser diferente. Por isso, se faz necessário refutar algumas abordagens dessas teorias diante do papel da escola. Sabe-se que a escola tem que obedecer a uma hierarquia e que esta é dominada 24 por várias ideologias. Porém, a luta pela autonomia tanto da escola quanto do professor ante as instituições que controlam os fins da educação, é a arma mais eficiente para combater todo tipo de dominação e alienação, tanto política, quanto ideológica e religiosa que ainda impera na sociedade brasileira e paralisa os educandos. Ainda há professores que estão em sala de aula, mas são incapazes de exercer sua profissão, por incompetência, má formação acadêmica, ou falta dela; por desacreditar na educação; por ter medo de lutar ou por ser mais cômodo não lutar; por estar na profissão errada; e, a pior delas, por estar tão alienado(a) em relação ao seu trabalho, não se dá conta da violência intelectual que está causando aos seus alunos, reproduzindo ideologias perversas e opressoras. Além disso, ainda há pessoas que direta – teóricos, professores, diretores, secretários de educação, o próprio governo com suas alianças políticas – ou indiretamente, ligadas à educação – jornalistas, pais, religiosos etc. –, vêem a escola como aliada na manutenção da classe dominante e assim quer manter o ensino. Dessa forma, lutam contra toda postura que seja contrária a essa estrutura e, usufruindo do poder que possui (seja político ou econômico) defendem e divulgam informações deturpadas para convencer e manipular a população. E para isso, não há veículo melhor do que a mídia. Um exemplo claro da luta da elite contra qualquer práxis revolucionária foi divulgada pela Revista VEJA há dois anos com o título: Você sabe o que estão ensinando a ele? (ver anexo A) Pesquisa publicada em agosto de 2008. Num discurso puramente elitista (feito exclusivamente para elite, já que mostra dados de escolas particulares conceituadas) escrito pelas jornalistas Mônica Weinberg e Camila Pereira (prováveis elites brasileira) as autoras chamam a atenção dos pais para o tipo de educação que seus filhos estão recebendo nas escolas. Para elas, a práxis educativa de alguns professores preocupados em conscientizar seus alunos sobre a conseqüência do sistema capitalista, é uma mera prática doutrinária esquerdista e ideológica. Vários teóricos consagrados que são citados como figuras históricas pelos professores, e que se posicionaram contra a ideologia dominante e contra a alienação do povo, foram atacados nesta matéria. Dentre eles, Marx e Lênin. Até nosso ilustre Paulo Freire foi taxado de “personagem arcano sem contribuição efetiva à civilização ocidental”. Quanto desrespeito! Percebe-se com isso que a luta contra a alienação imposta é dura, porém necessária. 25 Contudo, apesar de toda artimanha articulada pela classe dominante, há também muitos professores, pesquisadores, acadêmicos e estudiosos, que se mostram preocupados e engajados em resolver os problemas que impedem a conquista de uma educação de qualidade; que lutam contra posturas que exclui e aliena cada vez mais o povo. São nesses incansáveis guerreiros que devemos alimentar nossas esperanças, não de forma passiva, esperando que o outro faça por nós, mas participando ativamente, conhecendo e exercendo nossos direitos de cidadãos; combatendo todo tipo de preconceito e discriminação, seja de sexo, raça, religião ou posição social. Essa é a prática que esperamos dos educadores, uma prática que envolva ações concretas, emancipadoras. Uma nova visão crítica da educação movida pela transformação da sociedade se deve a Antonio Gramsci e seus seguidores, e o trabalho intelectual que esses desenvolveram (e vem desenvolvendo) na história da educação. Ao contrário dos teóricos críticos-reprodutivistas, Gramsci via a educação escolar como instrumento de transformação social e revolução cultural da grande massa. Para ele, a educação escolar básica deveria ser única e universal, ou seja, uma educação onde todos teriam acesso à cultura e ao conhecimento de maneira equitativa. Assim, ele propôs a criação da escola unitária, isto é, escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre equanimente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. (GRAMSCI, 1991, p.118). Foi com esta visão, que Gramsci, repudiando a educação dual já mencionada anteriormente, propôs uma escola igual para todos, e de responsabilidade do Estado; que valorizasse o conhecimento intelectual/clássico (que desenvolvesse o “trabalho produtivo” e a consciência política) e o técnico/profissional ao mesmo tempo. O que promoveria a maturidade intelectual dos sujeitos, virtude indispensável para ingressar nas universidades ou “escolas especializadas”. Sendo esses espaços, local propício para formar profissionais aptos e conscientes da importância do seu trabalho para a sociedade. Veja o que diz Gramsci (1991, p.121): A escola unitária ou de formação humanista[...] ou de cultura geral deveria se propor a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los levado a um certo grau de maturidade e 26 capacidade, à criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa. O que o autor defende é uma formação inicial que desenvolva no sujeito atitudes autônomas, críticas e maduras perante a sociedade, antes da vida acadêmica ou a inserção no mercado de trabalho. Além de Gramsci, outro autor que merece ser destacado por sua luta contra a alienação da classe explorada e a lógica do capital é Dermeval Saviani, pois, a ideia deste autor comunga com a de Gramsci. Para ele, o problema das teorias críticos-reprodutivistas está em não ver a escola como agente de mudança e transformação social, mas sim como mantenedora da exclusão, da segregação e marginalização. Já que a classe dominante não tem interesse em modificar a estrutura social em que vive – pois isso afetaria sua posição e sua estabilidade econômica –, resta à classe dominada lutar por seu espaço de direito na sociedade, o que é garantido pela Constituição. E isto só será possível quando esta alcançar a plena consciência de seus direitos enquanto cidadãos. O que esse autor defende, é que é possível a partir da educação formal, obter a emancipação humana, tão necessária para se reparar a injustiça e a desigualdade historicamente construída pelas sociedades. Ainda que diante de limitações impostas e fatores socialmente construídos para que essa transformação não aconteça. Já Paulo Freire, outra figura importantíssima para a educação popular brasileira, sempre esteve engajado com os princípios da conscientização para mudança. Este autor idealizou uma pedagogia que fosse capaz de libertar a sociedade da opressão, desenvolvendo no aluno (assim como Marx idealizou para o proletariado) a consciência revolucionária, onde o mesmo possa questionar criticamente as relações de poder que o envolve. 2.3 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A AUTONOMIA DA ESCOLA Iniciaremos este tópico com uma questão problematizadora que levantará muitos outros importantes questionamentos para entendermos a escola e a educação no Brasil contemporâneo: qual o verdadeiro papel da escola na 27 contemporaneidade brasileira? Para encontrar a resposta, precisamos entender desde seu funcionamento até a participação de todos os sujeitos envolvidos. Antes de adentrarmos na questão do funcionamento da escola e suas nuances, precisamos nos localizar no tempo e no espaço. Vivemos num país historicamente marcado pela exploração européia, pelo regime escravocrata, e de caráter centralizador. Apesar da sua “Independência” política e administrativa em 1822, o Brasil continuou (e continua) sendo um país dependente do capital estrangeiro, isto é, dependente política e economicamente dos países desenvolvidos. Com a extinção do tráfico negreiro em 1850, o dinheiro antes investido na compra de escravos, passa a ser aplicado no setor industrial. O Brasil começa dar os primeiros passos para uma política de “desenvolvimento”, tendo a indústria – e consequentemente o fortalecimento do capital, a divisão do trabalho, o surgimento do operariado e das classes cada vez mais antagônicas – como principal instrumento. A entrada do século XX foi marcada pela ascensão do capitalismo e suas transformações na sociedade. Estamos em pleno século XXI, período marcado por grandes mudanças e grande evolução mundial, o qual a globalização3, marcada pela lógica do mercado, dita as principais regras da nova sociedade. Vivemos num país democrático e capitalista. Como já foi discutido anteriormente, o sistema capitalista segue a lógica do capital econômico. E o que vem a ser uma sociedade democrática? É possível um sistema de governo que se renda a lógica do capital exercer a Democracia? Viver num Estado democrático é ser tratado de maneira igual perante todos, independente de cor, sexo, crença e situação social; é ser respeitado em suas diferenças; é ter as mesmas oportunidades de acesso a educação de qualidade, saúde, emprego, moradia, e todas as necessidades que o ser humano precisa para ter uma vida digna; é ter liberdade de ir e vir, e de escolha; é ter seus direitos civis, sociais e políticos garantidos, e ser incentivado a participar e acompanhar o desenvolvimento do seu país; é ser tratado como cidadão de direitos. De acordo com Marilena Chauí (2008, p.67) democracia é: 3 “Processo segundo o qual as atividades decisivas num âmbito de ação determinado (a economia, os meios de comunicação, a tecnologia, a gestão do ambiente e o crime organizado) funcionam como unidade em tempo real no conjunto do planeta” ( Manuel Castells em Sociedade e Estado em transformação, p.149, 1999) 28 Forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria ( direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, Isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa). Vivemos isso aqui no Brasil? Como tratar iguais os desiguais já que a Democracia subtende igualdade de direito para todos? O que realmente se vive no Brasil é um sistema de governo que não conseguiu se libertar totalmente do regime autoritário, antidemocrático e oligárquico, que marca nossa história desde o período colonial; que atende as perspectivas da classe dominante em detrimento das necessidades da classe popular; mas que se apropria e prega um discurso essencialmente democrático. Não seremos tão radicais ao ponto de afirmar que aqui não exista democracia, pois, muitos atos democráticos foram e são percebidos e vividos no Brasil contemporâneo (eleição, garantia e ampliação da educação, liberdade de expressão, participação população (mesmo que restrita), dentre outras). Contudo, vivemos uma democracia fundamentada em princípios liberais, que se define, segundo Chauí, como sendo “regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais”; mas esta liberdade é para poucos, haja vista que ela é sinônimo de competição econômica e política, excluindo boa parte da população. Logo, a democracia existe para uma pequena parcela da população, ou como destaca Demo (1987, p. 56): “Até hoje fomos capazes apenas de uma democracia eufórica, uma democracia espasmódica, absolutamente peregrina, que passa por aqui de vez em quando, mas não mora aqui”. Ou como analisa Chauí (2008, p. 70), “podemos avaliar quão longe dela nos encontramos, pois vivemos numa sociedade oligárquica, hierárquica, violenta e autoritária”. O pensamento destes autores a respeito da democracia social nos leva a fazer as seguintes reflexões: não se pode dizer que um país vive uma democracia por cumprir algumas ações democráticas, mas desrespeitar muitas outras; não podemos definir um país como democrático por dar direito ao voto para seus cidadãos – ou melhor, obriga-os a votar –, entre outros direitos políticos, mas não se preocupa com a formação da consciência crítica e política, fato que leva ao que Paulo freire chama de “ignorância política” ou como diz Pedro Demo “pobreza política”. 29 Vive na democracia um país que tem alto índice de mortalidade infantil e analfabetismo (ver anexos B e C) etc.? Que tem uma das piores distribuição de renda do mundo, conforme o coeficiente de GINI4 (ver anexo D), o que gera a violência, o desemprego ou subemprego? É democrático investir mais no setor privado enriquecendo cada vez mais os empresários em detrimento do setor público, em especial a saúde, a educação e a segurança; necessidades básicas para a população? É democrático oferecer educação pública para todos, mas sem qualidade? Ou não construir escolas suficientes e/ou próximas às suas residências, o que lhe garanta melhor acessibilidade? Se isso é democracia, precisamos criar um novo conceito para ela. Se o sistema capitalista defende a propriedade privada, a acumulação de riqueza, a venda da força de trabalho, o consumismo exagerado e consequentemente a divisão das classes sociais; então, como a classe popular, que vive tão alienada, tentando sobreviver, pode “competir” igualmente e exercer seus direitos num sistema tão desigual e excludente como este? Então, como o Estado “democrático” em que vivemos se comporta diante disto? A educação é a principal fonte para encontrarmos essas respostas. Ela é a base necessária para manter nossa confiança na transformação e revolução pacífica da sociedade, através da revolução intelectual da grande massa. Afinal, como já dissemos, o Estado Brasileiro não goza plenamente da democracia que diz ter, e com isso não assegura os direitos constitucionais. Logo, se a formação para cidadania é um dos principais objetivos da educação formal, e princípio norteador de uma sociedade democrática, é neste objetivo que a escola deve fundamentar-se, ou seja, formar cidadãos ativos, participantes, capazes de julgar, criticar e escolher; valores indispensáveis para uma efetiva prática democrática e libertadora. Já foi centro da nossa discussão o papel da escola e da educação na lógica do capitalismo burguês. Como já afirmara Althusser, ela funcionava como Aparelho Ideológico de Estado, a qual as relações econômicas, políticas e ideológicas do Estado capitalista, eram a base desta nova sociedade. Assim, a educação era diferenciada e vista como formadora de mão-de-obra (formação dada à classe 4 Mede o grau de desigualdade existente na distribuição de renda dos indivíduos. Quanto mais próximo de zero maior a igualdade social. Quanto mais próximo da unidade, maior a desigualdade, varia, portanto em uma escala de zero a um. 30 popular) especializada para atender as necessidades da indústria e da classe dominante, reproduzindo as relações sociais de produção, como destaca Frigotto: Nas perspectivas das classes dominantes, historicamente, a educação dos diferentes grupos sociais de trabalhadores deve darse a fim de habilitá-los técnica, social e ideologicamente para o trabalho. Trata-se de subordinar a função social da educação de forma controlada para responder às demandas do capital (FRIGOTTO, 2003, p. 26). É nesta lógica que as escolas funcionavam. Negando os reais princípios da democracia – sociedade “livre e igualitária” – clamada pela burguesia, e ratificando a desigualdade de classes, a exclusão, o servilismo, a opressão e a alienação vividos no feudalismo, mas também percebidos no sistema capitalista que vivemos. Assim, mais uma vez, pode-se perceber que a democracia existia apenas para os privilegiados, pois os excluídos não tinham nem mesmo consciência dos seus direitos. Pode-se afirmar que o Estado brasileiro na atualidade é marcado por duas correntes de pensamento: de um lado, o sistema neoliberal e sua política excludente “que abandona a garantia dos direitos, transformando-os em serviços vendidos e comprados no mercado e, portanto, em privilégios de classe” (CHAUÍ, 2008, p.66); isso acontece à medida que esse sistema defende a liberação generalizada (globalizada) e a promoção desenfreada das atividades econômicas, como a produção, a distribuição e o consumo; tornando o mercado cada vez mais competitivo e consequentemente a desigualdade econômica entre as classes, cada vez mais perceptível. Do outro lado, tem-se a busca pela concretização efetiva da democracia social, que luta pela legitimação e garantia dos direitos universais. A função do Estado democrático é promover o bem-estar social. Para isso ele precisa interferir nas diversas esferas da sociedade: política, social e econômica. Dentre estas esferas, pode-se destacar a habitação, a saúde, a educação, a segurança pública e o meio ambiente. E para atingir resultados satisfatórios em tais áreas, o governo deve utilizar meios que serão indispensáveis para alcançá-los, como por exemplo, as políticas públicas, isto é, um conjunto de projetos ou ações estratégicas promovidas para atender aos interesses e necessidades da sociedade. Ou como afirma Peters (1986), citado por Souza (2006), “política pública é a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e que 31 influenciam a vida dos cidadãos”. Logo, pode-se afirmar que as políticas públicas foram e são criadas para manter certo equilíbrio social, ou seja, para desenvolver o país e diminuir as desigualdades existentes nele. Para contemplar nosso objeto de estudo, iremos analisar as políticas públicas no campo educacional. Sabe-se que a educação pública é uma esfera da política social e obrigação do Estado. Sendo assim, deveria ser tema central de discussão das políticas públicas do governo. No entanto, o que podemos perceber é que ela apesar de estar sempre no rol dos discursos dos governantes, vem legitimando cada vez mais a segregação das classes sociais e consequentemente as desigualdades entre elas; seja no acesso ao trabalho produtivo, na cultura, na criticidade, no voto consciente, nas decisões políticas e demais ações decisórias para o país. Ainda hoje, mesmo com toda luta e conquistas que a educação já teve, o que ainda impera é a discriminação educacional e a ausência de uma educação pública de qualidade para a população, qualidade essa que diminua a distância entre as oportunidades das classes sociais. Isso nos leva a concluir que o governo investe muito pouco na educação pública. Sabemos que as escolas brasileiras são controladas e monitoradas por vários órgãos e instituições nacionais e internacionais. No entanto, ela pode e deve funcionar exercendo sua autonomia, afinal, vivemos num país “democrático” que lhe assegura isso, como garante a Constituição do Brasil de 1988: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, e igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional [...]. (BRASIL, 1988) Como se pode observar na citação acima, a Constituição Brasileira traz como centro da sua preocupação assegurar os direitos de seus cidadãos. Logo, todo instituição dirigida pelo Estado deve seguir e respeitar essa Constituição. A escola pública brasileira, como instituição administrada pelo Estado, não deve fugir à regra, ela deve caminhar, respeitando e obedecendo a essa Constituição. Ao funcionamento da escola e do ensino brasileiro foram reservados os artigos 205 ao 214 da Constituição. No Art.205 está expresso que a educação é um 32 direito de todos sendo dever do Estado e da família. Então, cabe ao “Estado Democrático Brasileiro” oferecer uma educação que respeite e faça cumprir essa Constituição. Analisando a história do MEC (Ministério da Educação e Cultura) pode-se observar que a responsabilidade da União pelo planejamento nacional da educação no Brasil, e a garantia da educação como direito de todos, já estava assegurado desde a Constituição de 1934. Em 1930 foi criado o Ministério da Educação e Saúde que só foi separado em 1953 quando passou a ser chamado de Ministério da Educação e Cultura (MEC); em 1932, Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira entre outros intelectuais, preocupados em lançar um programa de política educacional, elabora o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, documento escrito por vários educadores, com o título A reconstrução educacional no Brasil: ao povo e ao governo, que tinha por finalidade oferecer diretrizes para uma nova política de educação. Até 1960 o sistema de ensino brasileiro era padronizado e centralizado no MEC, e todos (estados e municípios) deveriam segui-lo. Porém, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961 os municípios e estados ganharam mais autonomia para desenvolver seus projetos e ações educacionais. De 1961 até a LDB de 1996 (Lei nº 9.394) ao qual nos apoiamos atualmente, muitas leis, reformas e projetos foram criados. O mais recente compromisso do MEC com o ensino público é a criação do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) em substituição ao Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), que vigorou de 1996 até 2006. É de responsabilidade do Fundeb toda a educação básica, desde as creches e pré-escolas até o Ensino Médio, e esse estará em vigência até 2020. O que podemos perceber do sistema de ensino brasileiro até então, é que a pressão da sociedade por acesso e ampliação da educação gratuita e de qualidade fez o Brasil ter alguns avanços e conquistas. Além dos já mencionados acima, temos também o “regime de colaboração” entre a União, o Distrito federal, Estados e Municípios (Art. 211); autonomia; projeto político pedagógico, dentre outros. No entanto, esses avanços vêm contribuindo muito pouco para melhorar a qualidade da educação, e consequentemente assegurarem os direitos educacionais do povo brasileiro. Isso nos leva a concluir que os governos, ao longo dos anos, fizeram muitos projetos e leis para a educação pública, mas não investiram adequadamente 33 com recursos financeiros que o fizessem fortes e seguros. Para se ter uma ideia, em 2004, conforme a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) o percentual do PIB investido na educação brasileira foi de apenas 3,9%, enquanto que no Chile o investimento foi de 6,4%. E porque isso acontece? Por falta de real investimento econômico na educação; falta de compromisso dos governos que não fazem políticas públicas que dêem efetiva autonomia as escolas e aos profissionais da educação; falta de uma gestão democrática que seja responsável e compromissada com a educação; falta de fiscalização e cobrança da população etc. Um dos principais instrumentos para mudar o quadro da educação no Brasil é a implantação e execução de reformas educacionais que priorize a educação a partir da gestão democrática. E para ela funcionar se faz necessário descentralizar o sistema educacional dando maior autonomia para as escolas e para a comunidade: na formulação de políticas educacionais; no planejamento de ações e projetos; na tomada de decisões; na definição do uso de recursos e necessidades de investimento; nos momentos de avaliação da escola; isto é, na efetiva participação de todos os envolvidos com e educação (principalmente através do Conselho de Escola5), sejam o governo, os gestores, professores, funcionários, alunos, pais e toda comunidade escolar. Em uma gestão democrática todos precisam ser ouvidos e participar dos momentos de elaboração dos projetos da escola ( em especial o projeto político pedagógico), pois o que deve estar em jogo é sua instância maior, isto é, o processo de ensino-aprendizagem, algo de interesse de todos. Assim, a autonomia adquirida deve funcionar dentro de uma prática político-pedagógica responsável, “compreendida como a liberdade de cada escola construir o seu projeto pedagógico” (OLIVEIRA, 2008)6, e não como uma conquista à liberdade de ação, incoerente com os princípios democráticos de educação. A autonomia da escola no Brasil está apoiada na Constituição de 1988. Já que esta institui um Estado Democrático que garante a participação de toda população, concede direitos importantíssimos à escola e aos sujeitos que sofrem sua ação. No entanto, apesar dessa autonomia ser um direito constitucional, o que se observa é uma autonomia limitada pela hierarquização de poder e burocratização 5 “Órgão mais importante de uma escola autônoma, base da democratização da gestão escolar”. ( Escola Cidadã: a hora da sociedade- Moacir Gadotti e José Eustáquio Romão. 6 Dalila Andrade Oliveira: Professora do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação/UFMG. Em Gestão democrática da educação no contexto da reforma do Estado. 34 dos órgãos que financiam a educação brasileira. Há regras e leis feitas e executadas de cima para baixo, que na maioria das vezes desconhecem, e por isso não levam em consideração a realidade de cada região, cidade, bairro, escola, cada aluno. Pois como afirma Gadotti (2001), “o caminho que pode ser válido numa determinada conjuntura, num determinado local ou contexto, pode não ser em outra conjuntura ou contexto”. Não que a escola deva funcionar solta, sem fiscalização; mas autônoma e participativa, partindo do seu contexto, da sua realidade, da sua necessidade. É desse modelo de gestão que a escola precisa. Assim, “percebe-se que o novo paradigma de gestão precisa resgatar o papel e o lugar da escola como centro e eixo do processo educativo autônomo” (Bordignon e Gracindo, 2008)7, construído coletivamente. Outra questão que deve ser discutida dentro da ideia de democratização do ensino público e de qualidade da educação é a importância da autonomia, tanto do professor(a), quanto do aluno(a), principais sujeitos do processo ensinoaprendizagem. Mas uma vez a educação escolar exerce relevante papel na formação da autonomia do sujeito. Como já foi dito, a escola, apesar da garantia formal de sua autonomia, ainda é controlada por um poder hierárquico e burocrático que dita as regras e as normas do sistema público de ensino. No entanto, é preciso ressaltar que o processo educativo normalmente se realiza dentro da sala de aula, e os principais protagonistas são os professores e os alunos. Com isso, podemos afirmar que o professor(a) pode exercer uma autonomia significativa na escolha dos materiais que irá utilizar na sua aula, nas suas estratégias de ensino e avaliação, o que lhe permite formar um sujeito tão autônomo quanto ele. A escola precisa preparar seus alunos para adquirir autonomia pessoal, respeitando e incentivando sua curiosidade e criatividade, suas preferências, sua linguagem, seus medos e seus anseios; enfim, suas singularidades; além disso, precisa inseri-los na sociedade e conscientizá-los para uma emancipação social. 7 Genuíno Bordignon – profº. adjunto e diretor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília; Regina Vinhas Gracindo – profª. adjunta da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. 35 3 A DIALÉTICA PRÁXIS SOCIAL – PRÁXIS DOCENTE Como um ser social, o ser humano age e sofre a ação de todas as relações que constitui a humanidade. Se sua ação transforma para o bem comum, exerce uma práxis social; se modifica em seu favor ou em prol de um determinado grupo, executa uma prática utilitarista e assim legitima as posições sociais. 3.1 O CONCEITO DE PRÁXIS SOCIAL Para análise deste trabalho adotamos o conceito de práxis apresentado por Vázquéz (1977), em seu livro Filosofia da Práxis, no qual pretendemos, junto com o autor, “ elevar nossa consciência da práxis como atividade material do homem que transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano” (p.3). Ou seja, a verdadeira filosofia da práxis é aquela que não apenas interpreta o mundo – restrita aos idealistas –, mas que a partir dessa interpretação transforma-o, isto é, age sobre ele, em prol da sociedade. Esta e outras reflexões levantadas por Vázquez a respeito da práxis, estão embasadas na concepção marxista de práxis. Assim, ao nos apropriar da ideia do autor, estaremos paralelamente nos apoiando na filosofia de Marx. Para melhor compreendermos o conceito de práxis, Vázquez nos traz a diferença entre esta e o conceito de “prática”/”prático” (enquanto atividade prática 8), tratadas na maioria das vezes, no cotidiano, pelo senso comum e até mesmo no mundo acadêmico, como palavras sinônimas. Não que sejam coisas antagônicas, na verdade elas estão muito próximas. No entanto, elas apresentam-se como coisas distintas, do ponto de vista da filosofia marxista. À medida que “prática” é sinônimo de praticidade, utilidade, resolução rápida de problema, ou como afirma Vázquéz, “é o ato ou objeto que produz utilidade material, uma vantagem, um benefício”; a “práxis” revela-se como símbolo de reflexão e ação; ela nasce primeiro no campo da teoria, do pensamento, a partir de uma realidade, e só depois é transformada em ação, em prática, diante dessa realidade. Logo, podemos afirmar que o que diferencia os dois conceitos é a maneira de compreendê-los e utilizá-los. Isto é, enquanto ‘prática’ denomina-se pela ação, pelo ato ou atividade prática, a ‘práxis’, 8 “Por atividade em geral, entendemos o ato ou conjunto de atos em virtude do qual um sujeito ativo (agente) modifica uma determinada matéria-prima.” (VÁZQUEZ, 1977, P. 186). 36 segundo Vázquez, é a união consciente do pensamento com a ação; além de ser atividade transformadora, revolucionária e intencionalmente realizada. O sujeito ‘prático’ transforma sua vida em algo prático, útil, ou seja, age para suprir suas necessidades básicas e urgentes, e assim desprezam os teóricos e suas filosofias de vida. O que fazem almejarem coisas e seguirem caminhos distintos. O que fica claro para nós, é que existem duas maneiras de compreender a prática humana enquanto práxis. Do ponto de vista ingênuo e abstrato, encontrado no senso comum. Outra, partindo de uma visão crítica, analítica, objetiva, científica e revolucionária (como defende Marx). A visão ingênua age normalmente por instinto, sem refletir sobre a realidade. E os sujeitos que sofrem esta ação, continuam a encarar a realidade como algo natural e imutável, que não precisa ser explicado, só vivido; logo, “não se aprofunda da casualidade do próprio fato”, como destaca Paulo Freire (1979, p.40); nem sente a necessidade de transformar sua realidade para nela intervir, recriar, transformar. Não se vê e nem se sente um ser histórico, encara os fatos históricos como algo distante de si. Porém, apesar de não se reconhecer como tal, é um ser social e histórico, isto é, “encontra-se imbricado numa rede de relações sociais e enraizado num determinado terreno histórico” (VAZQUÉZ, 1977, p. 9), por isso não pode ser definido como ser a-histórico. Já a teoria da práxis revolucionária, requer a superação desta ingenuidade, desta “consciência comum”. Requer uma conscientização da classe explorada, do proletário. E isto só se dará através da revolução. No entanto, é preciso ficar claro que todo ato ‘prático’ carece de consciência, mesmo que esta seja ingênua, fragmentada, afinal, estamos falando de seres humanos e não de animais irracionais, pois como se sabe, é a consciência ‘prática’ que diferencia um dos outros. Porém, este grau de consciência é insuficiente para torná-los revolucionários, é uma consciência ingênua. Mas, que não pode ser desprezada, afinal, é a partir dessa ingenuidade que se constitui a consciência crítica. Esta, não existe por si só, ela é fruto da superação da primeira. E é essa superação que desenvolve no sujeito o desejo da revolução, da transformação da realidade. Trazendo o conceito de práxis para o pensamento dos séculos XVIII e XIX, períodos marcados pela ascensão do sistema capitalista e da burguesia – classe que regia a estrutura social, política e econômica –, pode-se atribuir a essa época, as primeiras concepções que deram ao trabalho humano o significado de prática material produtiva. Com isto, a necessidade de transformar a natureza em favor da 37 burguesia torna-se inevitável e cada vez mais urgente. Para produzir bens materiais e desenvolver a economia da classe em ascensão, era preciso matéria-prima e seres humanos. À primeira, nada melhor do que a natureza para fornecê-la; para o segundo, era preciso dominar uma parte da população e colocá-la a seu serviço. No entanto, para que isto acontecesse, era preciso primeiro dominar a natureza, desde suas forças naturais até as técnicas necessárias para transformá-la em bens e serviços para a sociedade. Pode-se dizer que foram as técnicas utilizadas em prol desse domínio que elevaram a consciência de práxis do sujeito, pois, não bastava apenas fazer, praticar uma ação sobre a natureza, era preciso conhecê-la, experimentá-la, criar e recriar, ou seja, refletir sobre sua ação, transformar de maneira consciente. Logo, “o domínio da natureza, por meio da produção, da ciência e da técnica, converte-se numa questão central que corresponde a necessidades e determinações sociais” (VÁZQUEZ, p. 31). E assim, o sujeito passa a se apropriar da natureza e do mundo e a colocá-lo a “serviço da humanidade”. (mesmo que esse serviço seja em benefício da classe detentora do capital). Assim, o trabalho humano, cada vez mais valorizado – não em sentido de reconhecimento do trabalhador como ser humano ou da dignidade do seu trabalho, mas do valor capital deste, como instrumento de produção –, vira alvo de acumulação de bens e riqueza para o grupo detentor dos meios de produção, bem como, vira possibilidade de meio de subsistência para o outro grupo (proletariados), que expulsos de suas terras precisa sobreviver. A elevação do grau de consciência da práxis no capitalismo, não significou uma compreensão do conceito pleno da práxis, isto é, enquanto atividade humana transformadora da natureza e do ser humano, da sua realidade. O que se percebe na visão de Vazquéz, é que o conceito de práxis aqui ficou limitado a um conceito econômico, prático, que apesar de ter sido superado pelos filósofos idealistas, ainda ficou limitado apenas à teoria. Logo, enquanto no capitalismo, o mundo modificado, negava a filosofia, a teoria enquanto práxis; os idealistas acreditavam na modificação do mundo a partir da sua interpretação, sem uma intervenção real. Segundo Vázquez, na concepção marxista, a práxis filosófica, real, superara as concepções idealistas desenvolvidas na Alemanha clássica, em especial, a concepção hegeliana e feuerbachiana. Embora a primeira aceitasse a atividade prática humana, esta era apresentada como algo abstrato, realizado apenas na consciência, na teoria, mas que não atingia nem modificava a realidade. Já para a 38 segunda, a teoria e a prática estavam em lados opostos, e, assim como na primeira, a atividade humana estava sempre no campo das reflexões, das teorias. Portanto, parafraseando Vazquéz, a concepção de práxis não pode ser reduzida a uma “mera atividade da consciência”, mas sim como “atividade material do homem social”. Em Marx, a concepção de práxis enquanto ação humana transformadora tanto da natureza, quanto da sociedade, passa a ser o centro da sua filosofia, de suas reflexões. A relação entre teoria e prática é indispensável e inseparável. A práxis só existe se antes existir a união da teoria e da prática. Isto é, só há práxis, em seu sentido verdadeiro, quando a prática for guiada pela teoria; elas não funcionam soltas, independentes. Logo, podemos dizer que práxis é a concretização da teoria, ou seja, a transição da teoria para a prática. Como se sabe, Marx foi um revolucionário preocupado com as condições de trabalho e de vida, ao qual o sistema capitalista e a burguesia submetiam os operários. É baseado nesta classe que ele desenvolve toda sua filosofia, principalmente a da práxis. Para ele, a única forma de libertar a classe explorada do trabalho alienado e do domínio da burguesia, é através da práxis, isto é, da revolução. E isto só é possível, quando os explorados tomam consciência da sua situação. Pois, enquanto estes continuarem alienados, não lutarão, e desconhecerão sua existência, sua própria essência enquanto seres humanos, seres históricos que transformam e são transformados pela natureza. Para melhor entender os seres humanos enquanto seres imbricados numa rede de relações sociais e arraigados num determinado contexto histórico, precisamos compreender que a realidade em que vivem é fruto da transformação da natureza, da ação dos seres humanos sobre ela e das relações interpessoais. Seu modo de ser, pensar, estar e agir no mundo, além de marcar histórica e socialmente sua vida, determina os diversos fatores sociais, políticos e econômicos da sociedade em que vive. Sua consciência (mesmo que ingênua) é formada e alimentada por suas concepções de valores, juízos, preconceitos e ideias; por visões de mundo construídas historicamente, em seu meio social, através do trabalho, da práxis social. Se a atividade produtiva tem como objeto os recursos naturais, a práxis social é determinada pelas relações sociais, e aqui, o “objeto”, que sofre e pratica a ação, é o próprio sujeito. Mas não o sujeito isolado, abstrato, mas aquele que está inserido no mundo, que se relaciona com as outras pessoas, com a natureza e com os outros animais; o sujeito que trabalha, estuda, diverte-se, vive em contato constante com o 39 mundo, trocando ideias e experiências com as outras pessoas. São nestas relações que os indivíduos se transformam em seres sociais, capazes de modificar a sociedade, interferindo nos diversos setores. Como nos é apresentado o conceito (mínimo) de práxis social em Vázquez (p.200), “a práxis social é atividade de grupos ou classes sociais que leva a transformar a organização e direção da sociedade, de acordo com os interesses e finalidades correspondentes”. Ou seja, a práxis social corresponde a atividade política das classes sociais 9. Se a práxis social é sinônimo de atividade política, é esta que vai dar possibilidade às pessoas construírem diferentes formas de organizar a sociedade através da conscientização 10 e da participação popular nas decisões políticas. Este estado de consciência tão necessário para emancipar a humanidade, deve desenvolver no sujeito uma ação reflexiva sobre a realidade, e isto só funcionará numa ação concreta, coletiva e consciente. Ou seja, por meios e métodos reais. Neste sentido, se faz necessário a criação de organismos concretos e pessoas conscientes para representar os interesses do povo (os movimentos sociais, os sindicatos, as associações os partidos); bem como ações coletivas e efetivas: reuniões, manifestações, greves, passeatas). Tudo isto de forma pacífica, organizada, para chamar a atenção de toda a população, do Estado e seus representantes, dos detentores do poder. A práxis política, enquanto atividade prática transformadora, torna o povo consciente dos seus interesses; dos interesses e privilégios da elite; e da articulação necessária para que estes interesses se tornem único e viável à população marginalizada. É a partir desta conscientização, que as pessoas vão compreendendo quem, ou o que determina as relações sociais em que estão inseridos, e como podem transformá-la. A práxis social é, portanto, a própria consciência crítica da realidade. Para Ladeia (1995, p.33) 11 , práxis social é a “articulação concreta dos interesses de classe e, ao desenvolver-se em diversos espaços e organismos da sociedade civil, tendendo-se a generalizar-se, torna-se um 9 “Nas condições da sociedade divididas em classe antagônicas, a política corresponde a luta de classes pelo poder e a direção e estruturação da sociedade”. (Vázquez, 1977, p. 200). 10 Sobre este conceito Paulo Freire vem nos lembrar que só os seres humanos são capazes de agir conscientemente sobre a realidade objetiva. É isto, que a “práxis humana” é, unidade inseparável entre ação e reflexão sobre o mundo. ( Conscientização:teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 1980). 11 Doutor em educação pela Unicamp (2002) 40 poderoso agente socializador da atividade política’. Logo, um valioso instrumento de intervenção na organização e transformação da sociedade. Em suma, quanto mais ignorante e ‘prático’ for o sujeito, mais fácil será ludibriá-lo, enganá-lo, dominá-lo, aliená-lo; diminuindo cada vez mais sua chance de adquirir uma consciência política e social diante dos fatos que estão pré- determinando sua realidade. Pois, enquanto vê a política como coisa distante de sua vida, de seu cotidiano, continuará sendo seres apolíticos. Ou, quando conseguir se inserir na vida política, o homem ’prático’ não conseguirá ou não verá nela a possibilidade de transformar a sociedade. No máximo, o que verá, é seu crescimento profissional, econômico, pessoal; ou uma possibilidade de transformação tão utópica que passa bem longe de uma concreta realização; é o que o autor chama de “politicismo”. Vejamos o que ele traz sobre esta análise: Tratando de satisfazer as aspirações “práticas” do homem comum e corrente, desenvolve-se, às vezes, a partir do poder, um trabalho destinado a deformar, castrar ou esvaziar sua consciência política. Este trabalho tende, ao que parece, a integrar este homem comum na vida política, mas com a condição de que ele se interessa exclusivamente pelos aspectos “práticos” da vida política, isto é, a política como carreira. [...] A despolitização cria, assim, um imenso vazio nas consciências, vazio que só pode ser útil à classe dominante, que recheia as consciências com atos, preconceitos, hábitos, lugares-comuns e preocupações que, enfim, contribuem fortemente para manter a ordem vigente. (VAZQUÉZ, 1977, p.1213). E é esta, condição de seres “práticos” e alienados da vida social e política, que transforma os sujeitos em seres tão apáticos em relação à sua realidade, à sua condição de seres oprimidos. Isto faz da classe dominada, mera marionete da classe dominante. O que se percebe diante disso, é que a dominação existe porque o dominado conforma-se com sua condição de ser dominado, bem como aceita a existência do dominador. Assim, assume sua inferioridade em relação a este, e sente-se dependente deste, pois não reconhece que o dominador depende dele, mas se vê totalmente dependente do dominador. Por isso, não se sente capaz de lutar por sua liberdade, pois, acredita que, sendo inferior, deve se submeter à condição de dominado, e obedecer às normas prescritas por seus superiores, como relata Paulo Freire: 41 Um dos elementos básicos na mediação opressores-oprimidos é a prescrição. Toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí, o sentido alienador das prescrições que transformam a consciência recebedora da consciência opressora. Por isto, o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas estranhas a eles – as pautas dos opressores. Os oprimidos, que introjetam a ‘sombra’ dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando na expulsão desta sombra, exigiria deles que ‘preenchessem’ o ‘vazio’ deixado pela expulsão com outro ‘conteúdo’ – o de sua autonomia (1975, p. 34-35) E assim, a imposição da consciência do dominador sobre o dominado, faz este viver a realidade do e para o outro, tornando-os passivos, acríticos e vazios, o que legitima a sociedade em classes tão desiguais. Enfim, enquanto o sujeito viver para e na ‘prática’ e ignorar ou desconhecer a ‘práxis’, quanto mais imaturo politicamente for, sendo apolítico ou vivendo o politicismo, continuará sendo alvo fácil de manipulações da classe que o domina e está no poder. 3.2 HÁ AUTONOMIA DA PRÁXIS DOCENTE ANTE A PRÁXIS SOCIAL? Para abrir esse debate, nos apoiamos na seguinte afirmação: “Poucos negariam hoje que os processos educacionais e os processos sociais mais abrangentes de reprodução estão intimamente ligados”. Mészáros (2008, p. 25). Se assim estão, e assim são concebidos – e nós acreditamos nisso –, não pode haver autonomia docente dissociada da práxis social12. Como se pode perceber, a ideia central da nossa pesquisa funda-se na lógica excludente do sistema capitalista, e na possibilidade de uma educação que rompa com este sistema e transforme a sociedade em um mundo mais igualitário, mais justo e mais humano. Se de um lado o sistema capitalista constrói realidades tão perversas, que subordina, oprime e submete seres humanos; do outro, forma grupos tão ricos e poderosos, que manipula e exclui pessoas em nome do poder, do privilégio e da riqueza, a partir da exploração. E o que resta aos desprovidos, é a garantia dos direitos humanos universais, tão necessários para a população, mas que funcionam para poucos ou apenas na teoria. Enquanto isso, a grande massa, ou 12 Autonomia aqui é sinônimo de independência. 42 não sabe da existência, ou não se conscientiza desses direitos, nem tampouco se vê como vítimas de um sistema todo organizado contra ela. Diante dessa alienação, a sociedade está ficando cada vez mais dividida, mais desigual, a “mais desigual de toda história” como afirma Sader (2008, p.16) 13 . Por esse motivo, se faz necessário trazer o tema proposto para discussão nas diversas áreas sociais, de maneira especial, no âmbito educacional. Já que a educação exerce grande influência sobre a formação das pessoas, os defensores do capitalismo querem-na sob seu controle, isto, para manter sua hegemonia. As condições atuais nas quais o ensino, o docente e os demais envolvidos com a educação se encontram, têm explicações históricas. Estas condições são resultado de interesses e estratégias articuladas ao longo do tempo para manter a ordem vigente. Pois, desde que o trabalho humano virou sinônimo de acumulação de bens e riquezas, isto é, passou a ser trabalho alienado, a classe que detém o poder e o capital passou a controlá-la. Assim, sendo atividade significativa da humanidade, a educação formal que está atrelada ao trabalho humano, pode manter ou mudar realidades. Como defende Marx, contraditoriamente, mas não suficientemente verdadeiro, o trabalho nega e afirma o ser humano. Mas, essa contradição é superada à medida que ele coloca cada ideia em momentos diferentes da vida do sujeito, elas não coexistem. Para Marx, o trabalho nega o ser humano, quando aliena o trabalhador, ou seja, quando seu produto se torna independente dele, alheio a ele; afirma-o quando este supera a alienação, fazendo-o reconhecerse em sua produção. Como todo trabalhador do sistema capitalista, o professor foi transformado num ser alienado e com isso foi formando seres também alienados. Se compararmos o professor de hoje ao educador ou operário de três séculos atrás, vemos que pouca coisa mudou. Enquanto trabalhadores que são, estão sujeitos à lógica do capital, ou seja, produzir mercadorias. Se de um lado, os operários produziam bens materiais – que eram estranhos a ele – para serem consumidos pela humanidade; do outro, o professor, “produzia”/formava (e continua a produzir) seres humanos, ou melhor, “meras mercadorias”, que aceitassem passivamente as condições de submissão ao qual estavam inseridos, para assim continuarem o 13 Emir Simão Sader é autor do prefácio da obra de István Mészáros A educação para além do capital. Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1990). Atualmente é professor doutor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenador do Laboratório de Políticas Públicas e Secretário Executivo do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. 43 processo de produção; num ciclo sem fim. Nesta lógica, as escolas segundo Sader, se transformaram em Shopping Centers, local propício para o consumo e para o lucro. Partindo dessa afirmação, iremos ainda mais longe, afirmando que, nestes shoppings, encontram-se à venda, em liquidação, seres humanos dóceis e domáveis, prontos para serem “consumidos”, mercantilizados como coisas. Percebe-se com isso que, enquanto o capital for a força hegemônica do sistema vigente, e as pessoas continuarem submissas a ele, esses serão os educadores, a educação e a sociedade que teremos, que aliena e é alienada pelo capital. Logo, a educação que deveria ser instrumento de emancipação e transformação humana, passa a perpetuar e reproduzir a exclusão, sendo o professor um dos agentes legitimadores14 da ordem social, ordem esta é apresentada como natural e imodificável, sendo assim ’internalizada’ pelos indivíduos. Nesta perspectiva é que encaramos a educação formal como atividade humana, legitimadora ou transformadora de realidades. A partir da tese de Gramsci sobre atividade humana, Mészáros (p.50) ratifica a seguinte reflexão: “todo ser humano contribui, de uma forma ou de outra, para a formação de uma concepção de mundo predominante, [...] tal contribuição pode cair nas categorias contrastantes de ‘manutenção’ ou de ‘mudança’”. E o que vai determinar isso, são os interesses e os meios utilizados para atingir este fim. Diante disso é que defendemos a educação formal como importantíssimo instrumento para a emancipação da humanidade. Paulo Freire e István Mészáros já nos chamam atenção sobre os limites e influências que a educação formal recebe do capitalismo, impedindo uma ação mais significativa da mesma. Já no prefácio do livro Educação e Mudança de Paulo Freire, Gadotti (1979) nos faz refletir sobre a análise que o autor traz da “concepção ingênua da pedagogia que se crê motor ou alavanca da transformação social e política”, e que a educação por si só não “leva uma sociedade a se libertar da opressão”. Já Mészáros, diz que a educação formal sozinha não pode ”fornecer uma alternativa emancipadora radical”. A partir dessas análises, pode-se perceber que enquanto a escola, a educação, o educador, não romper com a lógica do capital e perceber que ela trabalha para manter a estrutura capitalista, usando o sistema 14 Mészáros (2008) nos chama atenção para os vários agentes legitimadores do capital como: a televisão, o rádio, os jornais; e acrescentamos a estes, com forte influência, a família, o trabalho, a religião, a cultura. 44 educacional e o professor como meio de “internalização” e aceitação de uma estrutura dominante, a educação formal nunca será transformadora, emancipadora. Como nos alerta Mészáros, precisamos de uma verdadeira práxis social que vá ‘contra-internalização’, que não apenas negue a lógica do capital, mas que lute, aja concretamente contra esta ordem que aliena, marginaliza, desumaniza a classe oprimida, e que aprisiona toda sociedade. Precisamos de atividades humanas que libertem as pessoas dessa prisão que lhes impedem de criar, modificar, revolucionar, para assim promover o desenvolvimento da humanidade. Precisamos de uma práxis que promova a autonomia em detrimento da heteronomia que nos é imposta. Precisamos de intelectuais da educação, professores, alunos, diretores, e de toda sociedade comprometida com o ensino, que intervenha efetiva e conscientemente no sistema educacional e na ordem vigente. 3.3 A DIMENSÃO POLÍTICO-SOCIAL DA PRÁXIS DOCENTE Como anda a consciência política da sociedade e em especial do docente? Ouve-se muito das pessoas leigas e também de alguns ditos intelectuais, o referente discurso: não gosto de política. Já que vivemos numa sociedade toda organizada politicamente, este pensamento torna-se inaceitável. Na realidade, o que está por trás desse discurso é o julgamento que se faz da política. Essas pessoas encaramna como algo distante de suas vidas, pertencente apenas ao poder do Estado. E como este, contém uma prática contrária à teoria, e é constantemente cenário de atos ilegais – a politicagem –, toda sua ação torna-se desacreditada. Vários são os fatores que tornam as classes populares vítimas da politicagem e do capital, e consequentemente alienadas, à margem da sociedade. São vítimas, porque sem ter o que comer, o que vestir, onde morar e a quem recorrer, submetemse aos mais perversos “destinos” da vida, como o trabalho semi-escravo (ou escravo), o preconceito, a discriminação, a marginalidade; são vítimas, por não ter oportunidade de conhecer, de explorar, de mudar (se assim quiser); são vítimas, porque lhe tiraram o direito de sonhar, de ser o que quiserem ser, de se reconhecer como cidadão; são vítimas, porque estão condenados a continuarem estagnados e a não ter o direito de mudar; são vítimas porque lhe negaram o direito de falar, de ter uma educação de qualidade, e com ela, o seu bem mais precioso, o conhecimento e a criticidade, o que lhes impedem de lutar contra a pobreza material e intelectual a 45 qual está inserido. É a “pobreza política”, discutida por Pedro Demo no seu livro Educação & Conhecimento15, que gera a exclusão e a pobreza, como está expresso no texto a seguir: Definindo desenvolvimento como ‘oportunidade’, educação pode ser reconhecida como o fator principal da invenção de oportunidades, o que tem levado a aceitar que a carência material não seria o centro da pobreza, mas a ignorância (DEMO, 2001, p.14). Para Demo, o cerne da pobreza, que é a ignorância das pessoas, está na ausência do conhecimento, na falta de uma educação politizada. Assim, podemos dizer que esse vazio formado pelo não saber, é determinado pela carência de consciência política (mas também material) que estagna e aliena o ser humano. A ignorância exclui e desvaloriza o sujeito ao ponto deste se sentir incapaz de lutar contra as mazelas que lhe tolhe, que paralisa seu intelecto, seu mundo. Existe o ignorante que mal consegue enxergar que sua situação social, política e econômica é uma articulação (da classe dominante) para mantê-lo submisso ao sistema vigente, é a “ignorância inconsciente” que o leva a aceitar sua posição como algo natural, o seu destino/sorte; há outros, que são impedidos de poder lutar, é a “ignorância imposta”; há também os que perpetuam estas “ignorâncias”, defendendo sua posição como um mérito e não como privilégio. Assim, segundo Demo, a transformação dessa realidade só é possível partindo de uma educação que mantenha laços restritos com o conhecimento científico. É nesta perspectiva que vemos a prática docente e consequentemente a educação formal como fator fundamental para uma educação emancipatória, transformadora. Sendo a educação uma das esferas da práxis social, e o professor, um dos principais responsáveis pelo processo de ensino-aprendizagem, este se vê prédeterminado a fazer opções em sua prática: ou trabalha mantendo o status quo da lógica do capital, ao qual impõe isto a ele; ou enfrenta-o para assim negá-lo e paga por isso. Não que a educação e a atuação do professor por si só forma o sujeito, seus valores, pensamento e atitudes, pois sabemos que a formação plena do ser humano depende e é influenciada pelo meio social ao qual pertence (família, trabalho, cultura, lazer, amigos etc.). No entanto, a educação escolar influencia significativamente tais comportamentos, sendo – como já defendemos –, um instrumento indispensável para que eles aconteçam, principalmente para as 15 Livro que leva o leitor a debater várias questões relacionadas a ausência da consciência política do povo brasileiro. (DEMO, 2000). 46 classes menos favorecidas que são privadas de cultura, de lazer, de conhecimento. Logo, a prática docente influencia diretamente no aprendizado dos alunos, em seu modo de ver, compreender e agir sobre o mundo; o que envolve um movimento dinâmico e dialético entre a teoria e a prática, e que leva o sujeito ao estado de conscientização16. Na formação de professores, o discurso que predomina é que os conteúdos devam estar contextualizados com a vida do aluno, contribuindo para o desenvolvimento da cidadania. No entanto, o que se percebe é uma prática contrária a esse discurso. De um lado, professores, valorizando apenas a vivência do aluno, acreditando ser essa a única forma de ensinar; do outro, os que transmitem os conteúdos, sem dialogar, e nem se importar com os conhecimentos prévios dos alunos. São dois extremos que desvirtuam o papel da educação e do educador. Não se pode ensinar, partindo apenas da experiência do aluno, se isso acontece, vamos perpetuar a exclusão da classe popular e fortalecer a hegemonia da classe dominante, pois como se sabe, à primeira são negadas as mais diversas fontes do saber, o que fragmenta e enfraquece seu senso crítico diante da realidade. O conhecimento científico deve ser um instrumento que ajude a lapidar o senso comum. Não se deve privilegiar um em detrimento do outro. O papel do educador é mediar a passagem da “curiosidade ingênua”, como afirma Paulo Freire (1996) à criticidade do aluno, para que esse construa conhecimentos científicos necessários à sua vida profissional e social. Afinal, esse é o papel da educação, significar a vida do educando em seu meio social. E como anda a formação docente, em especial da Educação Infantil e Anos Iniciais no Brasil? Baseada na Resolução que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais, pode-se melhor compreender essa profissional tão criticado e desvalorizado, mas também tão necessário à educação da criança. O Conselho Nacional de Educação estabeleceu em maio de 2006 as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia - licenciatura, embasada na Lei 9394/96, as quais definem princípios, condições de ensino-aprendizagem, 16 Segundo Paulo Freire, ser consciente não é estar em estado de conscientização, porque este só se alcança quando há o desenvolvimento crítico daquele, ou seja, só há conscientização quando há práxis, quando há ação-reflexão. (Conscientização: teoria e prática da liberdade: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 1980 ). 47 procedimentos de planejamento e avaliação. O parágrafo 1º do artigo 2º dessa lei traz em resumo o compromisso que o futuro profissional deve estabelecer com a educação: § 1º Compreende-se a docência como ação educativa e processo pedagógico metódico e intencional, construído em relações sociais, étnico-raciais e produtivas, as quais influenciam conceitos, princípios e objetivos da Pedagogia, desenvolvendo-se na articulação entre conhecimentos científicos e culturais, valores éticos e estéticos inerentes a processos de aprendizagem, de socialização e de construção do conhecimento, no âmbito do diálogo entre diferentes visões de mundo. (Res. CNE/CP 1/2006. Diário Oficial da União, Brasília, 16 de maio de 2006, Seção 1, p.11). Analisando as diretrizes hoje, bem como toda a história do curso de Pedagogia – desde sua criação em 1939 –, percebe-se que o pedagogo sempre foi desprestigiado e desvalorizado na sociedade. Para muitos, ensinar nos Anos Iniciais até pouco tempo era tarefa fácil, que poderia ser exercida por qualquer profissional da educação. Isto ratificava o desprestígio que se dava aos profissionais da área de pedagogia desde a formação até a carreira. Hoje, felizmente, esse pensamento avançou e o professor das séries iniciais precisa no mínimo ser graduado. No entanto, isso não garantiu reconhecimento do seu trabalho nem tampouco qualificação plena da sua formação, pois como se sabe, hoje, em qualquer esquina da cidade, abre-se uma faculdade, e lá o curso de Pedagogia. Um dos grandes problemas que a educação enfrenta hoje está diretamente relacionado à formação docente. Nos cursos de Pedagogia o que se vê é uma formação estritamente vinculada à docência. O pedagogo não pode ser visto nem tampouco receber uma formação de simples docente, é preciso estabelecer metodologias que privilegie uma formação que abranja várias áreas de atuação profissional, um verdadeiro especialista da educação, com formação teórica fundamentada, que vê a práxis educativa não apenas como técnicas de ensino, mas com todos os fatores que envolvem-na. Contudo, o que se vê são muitos profissionais que saem das universidades sem base teórica concreta, reflexiva, sem saber qual seu verdadeiro papel na sociedade e assim desconhecem ou desprezam conceitos importantíssimos para sua práxis, como conscientização, mediação, emancipação, transformação, e acabam assim conservando ou reproduzindo a educação que recebeu: conteudista, decoreba, excludente, manipuladora, alienada. 48 Na academia, muito se fala sobre a necessidade do professor reflexivo, no entanto, o que se percebe nas escolas que recebem esses profissionais, é um discurso que defende a emancipação do aluno, mas práticas literalmente reprodutivistas, comandada pela lógica do sistema capitalista; ainda voltadas para a valorização do ensino tradicional, onde o professor é o detentor do conhecimento e o aluno um mero receptor de informações. Infelizmente, são poucos os profissionais que vêem, acreditam e se doam à educação. O que se vê são profissionais infelizes e decepcionadas com a sua carreira, com suas escolhas, com seus salários. São sentimentos que se justificam, mas que não podem legitimar a péssima educação que os alunos vêm recebendo nas escolas públicas do Brasil. Uma educação que estagna, aliena e atrofia cabeças ávidas e preparadas para pensar, agir e transformar. E o reflexo disso tudo esteve no passado, está no presente, e estará no futuro da história da educação se continuarmos alienados e parados diante dela. 49 4 A PRÁXIS DOCENTE E A NECESSIDADE DE CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DO ALUNO NOS ANOS INICIAIS Diante da carência de cidadãos críticos que se encontra a sociedade brasileira, se faz necessário dar maior atenção a formação dos alunos nos anos iniciais já que estes poderão contribuir para uma análise mais crítica da sociedade. Rever e repensar o tipo de educação que as crianças estão recebendo das escolas, e desenvolver uma práxis educativa dentro de uma perspectiva político-pedagógica voltada para formação cidadã são práticas essenciais para formar cidadãos críticos e conscientes do seu papel. 4.1 A NECESSIDADE DA FORMAÇÃO CIDADÃ PARA A CRIANÇA A função primordial da educação é garantir, através do processo de ensinoaprendizagem, a aquisição dos conhecimentos, habilidades e valores necessários à socialização do indivíduo, isto é, desenvolver a aprendizagem e o crescimento do ser humano. Estas aprendizagens devem antes de tudo, valorizar o ensino dos componentes curriculares (Português, Matemática, Ciências, História e Geografia, Artes), sem os quais se torna inviável o acesso da população à cultura letrada, à formação crítica e humana do aluno. Este tipo de aprendizagem constitui-se também em instrumento fundamental para que o aluno compreenda melhor a realidade que o cerca, favorecendo sua participação em relações sociais cada vez mais amplas; possibilitando a leitura e interpretação de mundo; preparando-o para a inserção no mundo do trabalho e para a intervenção crítica e consciente na vida pública. A partir disto, é necessário que a escola propicie para o aluno o domínio dos conteúdos culturais básicos, da leitura e da escrita, das ciências, das artes, das letras, pois, sem estas aprendizagens, dificilmente ele poderá exercer seus direitos, sua cidadania. O termo cidadania já foi alvo de muitas discussões e modificações ao longo da história, pois esta se reconstrói a todo instante. No entanto, pode-se dizer que cidadão é aquele que participa da vida em sociedade; que exerce e tem consciência dos seus direitos e deveres; possui educação de qualidade; é formado com princípios éticos e morais; é tratado com igualdade perante as oportunidades; é 50 respeitado nas suas diferenças; enfim, que não é excluído da vida política, social e econômica do seu país. Neste sentido, a educação escolar tem papel importante para a construção da cidadania. Vejamos o que diz o livro Ética e Cidadania do Ministério da Educação: ser cidadão é, entre outras coisas, aprender a agir com respeito, solidariedade, responsabilidade, justiça, não-violência, aprender a usar o diálogo nas mais diferentes situações e comprometer-se com o que acontece na vida coletiva da comunidade e do país. Esses valores e essas atitudes precisam ser aprendidos e desenvolvidos pelos estudantes e, portanto, podem e devem ser ensinados na escola (LODI; ARAÚJO. p. 69). Assim, é preciso repensar às ferramentas que se está utilizando para mediar o aluno na construção desses valores, que são essenciais na construção da sua cidadania. É sabido que a sociedade vem carregada de questões econômicas, sociais, políticas, culturais e históricas. Se essa é assim formada, o sujeito precisa conviver com um emaranhado de fatores que desencadeiam destas questões, respeitando o outro nas suas diferenças e nas suas particularidades; vivendo em coletividade e sendo solidário; sendo cidadão crítico e criativo, capaz de intervir conscientemente na realidade. A educação para a cidadania deve trabalhar todos os valores que estão embutidos na vida social do aluno, sejam eles morais, éticos, religiosos, estéticos etc., a fim deste se enxergar como seres iguais e diferentes entre si: iguais por que têm direitos e deveres perante as leis; diferentes por que são únicos, tem identidade, atitudes e comportamentos próprios. A infância é um período de desenvolvimento e apreensão da realidade. A criança é movida por seus interesses e suas curiosidades, é motivada pela ação e pelas respostas dos adultos, ou pelas informações vindas dos livros, notícias, reportagens, televisão, rádio, outdoor etc. E assim se torna “produto” do meio, das relações e das influências construídas com as outras pessoas e com a natureza. E é durante este processo, de socialização, que a criança tem oportunidade de construir sua identidade, sua consciência e sua autonomia, pois, como afirma Gramsci (1991, p. 131), “a consciência da criança não é algo ‘individual’ (e muito menos individualizado), é o reflexo da fração de sociedade civil da qual participa, das relações sociais tais como elas se concentram na familía, na vizinhaça, na aldeia etc.” Logo, a escola e o educador deve dar atenção especial à criança, já que esta 51 se encontra em contínuo processo de descobrimento e desenvolvimento pessoal, construindo a sua cidadania. É neste momento que ela irá se reconhecer e conhecer o outro em suas diferenças e particularidades construíndo assim sua identidade e sua visão de mundo. O espaço escolar, por abranger a diversidade sociocultural, ou seja, diferentes religiões, etnias, costumes, hábitos e valores, se constitui um ambiente propício à construção da cidadania discente, em especial da criança que se encontra em formação. Nele, a criança que ainda é livre do preconceito e da discriminação consciente, conhece, constrói, desconstrói e ressignifica novos sentimentos, valores, ideias, costumes e papéis sociais. A criança que é estimulada por princípios democráticos a exercer sua cidadania, cresce e desenvolve princípios éticos e autônomos ante às outras pessoas e às transformações que a sociedade sofre a cada instante. Estes princípios se tornam indispensáveis para torná-la solidária, criativa, crítica e segura diante de resoluções de problemas, bem como, capazes de transformar realidades. E o papel do professor é mediar esta construção. A escola, portanto, tem o compromisso social que vai muito além da simples transmissão do conhecimento sistematizado. Ela deve se preocupar em educar o aluno para o desenvolvimento humano e social. 4.2 A EDUCAÇÃO ENQUANTO ATO POLÍTICO A educação enquanto ato político recebe críticas e apoio das mais diversas linhas de pensamento. Seja de pessoas que defendem a educação como transformação da sociedade, seja dos radicais que condenam e desvinculam a educação do ato político. Contudo, o que percebemos é que a prática educativa ”sempre traz em si uma filosofia política” (Tavares, 1993, p. 5). É neste contexto que guiaremos este estudo. A alienação política pode ser definida como um determinante que paralisa e incapacita o sujeito de se orientar politicamente para atender suas necessidades e interesses, privando-o assim de participar das decisões políticas da sua comunidade, do seu país. 52 Ao nascer, o ser humano já encontra um mundo social, econômico e politicamente organizado. Cheio de regras e padrões de comportamento, é orientado a cumpri-los sem questioná-los. Se foge a eles, sofre sanções pré-estabelecidas. À medida que o tempo vai passando, novos padrões de comportamento vão surgindo (pela necessidade ou pela vaidade) e, novas regras são determinadas no cotidiano do sujeito que vive em um ambiente dinâmico, mutável e desigual. De um lado temse uma classe bem informada, intelectual, e consequentemente crítica, que compreende e acompanha essa mudança (a classe dominante). Do outro, tem-se a classe que tudo aceita e ignora as determinações impostas; são os ignorantes e alienados que acreditam que as coisas são como são por vontade divina ou porque ao nascer já encontraram assim e não pode mudar, que esse é o seu destino, a sua sorte. Não se enxergam como vítimas em um cenário todo organizado e articulado contra eles. A partir desses constructos sociais, grande parte da população se torna alienada. Existem aqueles que desconhecem que as condições histórico-sociais em que vivem é fruto da ação humana, e assim se tornam passivos perante a realidade e outros poucos que isoladamente sentem-se indignados. E o que a educação e o professor tem a ver com isso? Como já se sabe, a educação mantém uma relação íntima com as questões políticas e sociais. Paulo Freire e Saviani levantam a seguinte bandeira: a educação é um ato político. Eles acreditam que o ato pedagógico e o ato político não se separam, no entanto afirmam também que não podem ser confundidos, tratados como a mesma coisa, são práticas inseparáveis, porém distintas. Segundo Saviani, o cuidado que se deve ter ao tratar a educação enquanto ato político, está na especificidade de cada um. Enquanto a práxis pedagógica trabalha para aproximar as pessoas e combater as desigualdades, a prática política separa e legitima essas desigualdades. Assim, segundo o autor, [...] diferentemente da prática política, a educação configura uma relação que se trata entre não-antagônicos. É pressuposto de toda e qualquer relação educativa que o educador está a serviço dos interesses do educando. [...] Em se tratando da política ocorre o inverso. [...] No jogo político se defrontam interesses e perspectivas mutuamente excludentes. Por isso em política o objetivo é vencer e não convencer. Inversamente, em educação o objetivo é convencer e não vencer. (SAVIANI, 1989, p. 92). 53 Diante disso, vale salientar que antes de considerar a prática educativa enquanto ato político, se faz necessário entender esses conceitos separadamente, isto é, suas particularidades, pois, só assim a práxis educativa se diferencia da ação política partidária. Deixemos de lado a política enquanto ação isolada, afinal, o que se pretende analisar aqui é justamente a íntima relação entre os dois termos, levando em consideração a educação enquanto ato político, emancipatório e desalienador. Apesar dos limites impostos pelo sistema de ensino e dos fatores externos e internos à escola, que contribuem para manter as classes excluídas, e os alunos cada vez mais alienados e distantes da vida política e econômica do país, ainda assim é possível uma educação pública que contribua para a construção da cidadania. Para que isso aconteça, se faz necessário superar o estado de alienação que se encontram os professores, principalmente os de anos iniciais, que se vêem na maioria das vezes como adestradores e transmissores de conteúdos. À medida que o professor percebe que sua função é mediar a busca do conhecimento, este pode desenvolver um trabalho diferenciado (significativo para o educando e para ele). A ação do professor como práxis educativa só terá um caráter políticopedagógico se este possibilite a formação da consciência crítica do aluno, rompendo com a lógica do capital. Para Paulo Freire, uma prática educativa voltada para a liberdade deve estar enraizada numa prática que culmine na conscientização, isto é, na tomada de consciência das coisas que acontecem ao seu redor. À medida que somos tomados pela consciência passamos a enxergar o mundo com outros olhos, a partir de um novo prisma, de uma nova concepção das coisas que são externas e internas a nós. Sentimo-nos como pertença em relação ao universo, e com isso ansiamos em transformá-lo para o bem da humanidade. Para Freire, há dois estados de consciência: a “intransitiva”, que é a consciência ingênua, e a “critica”. No primeiro, estão os homens acríticos, ou seja, aqueles incapazes de conhecer e se reconhecer como pertencentes ao mundo e como produto da história da humanidade. No segundo, encontram-se os seres humanos capazes de interpretar o mundo e seus problemas, capazes de dialogar e argumentar com o mundo. E, é no momento de superação do primeiro e domínio do segundo que há a conscientização. E esta passagem requer um trabalho educativo sério, uma educação político-pedagógica, que seja capaz de orientar, conscientizar e politizar o sujeito. 54 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante da pergunta que impulsionou essa pesquisa – qual o poder de determinação da dimensão político-pedagógica da práxis docente na construção da cidadania discente nos anos iniciais?–, o que nos resta neste momento, é respondêla, não como pretensão de finalizar este trabalho, pois ainda tem muito a ser acrescentado, mas sim, por uma necessidade formal de concluí-lo, ainda que parcialmente. Como vimos, vivemos numa sociedade marcada pela acumulação de bens materiais, pela exploração do trabalhador e pela exclusão dos “incompetentes”, ou seja, uma sociedade marcada pelas desigualdades, que gera a riqueza em detrimento da pobreza; então, o que resta aos desprovidos como possibilidade de mudança, ainda que de forma deficitária, é a educação formal. No entanto, lutar por ela, pela sua qualidade, é o grande desafio dos educadores comprometidos com uma sociedade mais justa e mais humana. Partindo da ideia de Demo, não é a carência material o centro da pobreza, mas a ignorância, no entanto, o que o autor deixou de mencionar é que a pobreza material é um dos principais entraves que impedem o acesso ao conhecimento científico. Desta forma, adquirir o conhecimento se tornou a única arma acessível (mesmo que inconsciente) à classe dominada. Sendo o conhecimento a maior riqueza que o ser humano possa adquirir, a escola é indiscutivelmente o local propício para a construção do saber e para a construção da consciência. O que descobrimos neste trabalho, é que, apesar da relação íntima existente entre a escola, o Estado e a sociedade, estes setores tendem a traçar objetivos e percorrer caminhos diferentes e independentes, o que os tornam enfraquecidos na tarefa de contribuir para a formação educacional do ser humano. Enquanto esses setores não organizarem ações coletivas, e chegarem ao consenso que a educação precisa efetivamente ser qualificada para que se tenha o desenvolvimento humano necessário, que funda-se na superação das desigualdades, continuaremos sendo um dos piores países do mundo no Coeficiente de Gini e no IDH - Índice de Desenvolvimento Humano17. 17 Criado por Mahbub ul Haq com a colaboração do economista indiano Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1998, o IDH pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento humano. Não abrange todos os aspectos de desenvolvimento e não é uma 55 Enquanto a dialética práxis docente – práxis social não existir, a atuação do professor continuará submetida à lógica do capital. Com isso, o que fica claro para nós, é que apesar da educação formal ser prerrogativa para emancipação humana, ela, de fato não tem poder e autonomia para exercer uma práxis educativa que faça isso acontecer. O que vem acontecendo com a educação brasileira (má qualidade, investimento inadequado, falta de compromisso do profissional e do governo etc.) é reflexo de um sistema todo organizado para manter os interesses de quem domina. Por outro lado, não podemos aceitar que esta condição de seres controlados e alienados, os quais se encontram os educadores, seja determinante e imutável para sociedade. Não podemos concordar com os críticos-reprodutivistas quando dizem que a escola está condicionada a reproduzir literalmente as relações sociais de produção, isso por si só negaria a atividade consciente do ser humano, colocando-o em igualdade com os outros animais que agem apenas por instinto. Sabemos que a alienação condiciona o sujeito, mas não inconscientiza-o, pois, mesmo sendo submetido ao sistema, é dele o poder de decisão; ou rompe com o sistema capitalista e educa para mudar, ou se alia a ele e se mantém alienado, bem como aliena toda sociedade. Formar cidadãos solidários, justos e conscientes do seu papel na sociedade, com valores morais e éticos, deve ser papel também da escola (pois sabemos que esses valores são adquiridos principalmente em seu meio social), principalmente no mundo que vivemos, no qual esses valores estão cada vez mais abandonados ou distorcidos pelas famílias. Diante desse contexto, é possível afirmar que educar crianças, é extremamente delicado e requer atenção especial dos educadores, pois, como ainda estão apreendendo os conceitos, tornam-se passíveis a reproduzi-los. Assim, se constrói conceitos discriminatórios, geralmente terá ações discriminatórias; se adquire uma formação com princípios democráticos, tendem a reproduzir esses princípios, ou seja, em geral, sua ação é motivada positiva ou negativamente, a depender da educação que adquira. Logo, apesar da família constituir-se o primeiro alicerce na formação da criança, é na escola, na relação com os colegas, com os professores e funcionários, que ela vai começar a construir sua identidade, pois, neste momento, perceberá que é igual e diferente do outro; isto é, igual, por que não representação da "felicidade" das pessoas, nem indica "o melhor lugar no mundo para se viver". (http://www.pnud.org.br/idh) 56 é mais o centro das atenções como acontece no seio familiar; diferente, por que é única, com desejos e necessidade singulares. Assim, mesmo com toda artimanha organizada pelo poder dominante, ainda é possível educar para cidadania, basta apenas (não que isso seja fácil) desatar os nós que prendem o educador alienado à visão que têm da escola, como local de garantia de emprego e não de atividade humana; afinal, como nos lembra Marx, o emprego está baseado na troca, o qual o sujeito apenas troca sua força de trabalho pelo capital, executando apenas o que a ele é pedido; já no trabalho que é a atividade humana puramente consciente, o ser humano tem a liberdade de escolher os meios que possibilitem alcançar seus objetivos, e assim se reconhece em sua produção. Desta forma, façamos da escola local de atividade humana transformadora e não local de busca de emprego. Pois, o professor só terá poder de determinação e autonomia, quando, se reconhecendo no seu trabalho, não permitir ser mais alienado pelo capital. Diante de tudo isso, podemos concluir que o poder de determinação da práxis docente na construção da cidadania discente nos anos iniciais está limitada à lógica do capital. E isto só será superado quando houver a ruptura entre a lógica do capital e a atuação do professor. 57 REFERÊNCIAS ALTHUSSER, Loius. Aparelhos ideológicos de Estado: notas sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Tradução de Walter Evangelista e Maria Laura de Castro. 2ª. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. ARAUJO, Ulisses. F.; LODI, Lúcia H. (Coord.). Ética e Cidadania: Valores na escola e na sociedade. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. –Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007. BÍBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB. 5ª Ed. Editora Canção Nova. BOMFIM, Luciano. Trabalho, alienação e estranhamento: uma contribuição à educação em Marx. 1996. 115. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Santa Catarina. Florianópolis. BOOTH, W. C. et al. A arte da pesquisa. 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Com a justificativa de "incentivar a cidadania", incutem ideologias anacrônicas e preconceitos esquerdistas nos alunos. Monica Weinberg e Camila Pereira Tema para reflexão: vale a pena usar chocadeiras artificiais para acelerar a produção de frango? Deu-se com isso o início de uma das aulas de geografia no Colégio Ateneu Salesiano Dom Bosco, de Goiânia, escola particular que aparece entre as melhores do país em rankings oficiais. Da platéia, formada por alunos às vésperas do vestibular, alguém diz: "Com as chocadeiras, o homem altera o ritmo da vida pelo lucro". O professor Márcio Santos vibra. "Você disse tudo! O homem se perdeu na necessidade de fazer negócio, ter lucro, exportar." E põe-se a cantar freneticamente Homem Primata / Capitalismo Selvagem / Ôôô (dos Titãs), no que é acompanhado por um enérgico coro de estudantes. Cena muito parecida teve lugar em uma classe do Colégio Anchieta, de Porto Alegre, outro que figura entre os melhores do país. Lá, a aula de história era animada por um jogral. No comando, o professor Paulo Fiovaranti. Ele pergunta: "Quem provoca o desemprego dos trabalhadores, gurizada?". Respondem os alunos: "A máquina". Indaga, mais uma vez, o professor: "Quem são os donos das máquinas?" E os estudantes: "Os empresários!". É a deixa para Fiovaranti encerrar com a lição de casa: "Então, quem tem pai empresário aqui deve questionar se ele está fazendo isso". Fim de aula. Os dois episódios, ambos presenciados por VEJA, não são raridade nas escolas brasileiras. Ao contrário. Eles exemplificam uma tendência prevalente entre os professores brasileiros de esquerdizar a cabeça das crianças. Parece bobagem, uma curiosidade até pitoresca num mundo em que a empregabilidade e o sucesso 62 na vida profissional dependem cada vez mais do desempenho técnico, do rigor intelectual, da atualização do pensamento e do conhecimento. Não é bobagem. A doutrinação esquerdista é predominante em todo o sistema escolar privado e particular. É algo que os professores levam mais a sério do que o ensino das matérias em classe, conforme revela a pesquisa CNT/Sensus encomendada por VEJA. Pobres alunos. Capitalismo selvagem Colégio Dom Bosco, de Goiânia: Titãs e crítica às chocadeiras artificiais na aula de geografia Eles estão sendo preparados para viver no fim do século XIX, quando o marxismo surgiu como uma ideologia modernizante, capaz não apenas de explicar mas de mudar o mundo para melhor, acelerando a marcha da história rumo a uma sociedade sem classes. Bem, estamos no século XXI, o comunismo destruiu a si próprio em miséria, assassinatos e injustiças durante suas experiências reais no século passado. É embaraçoso que o marxismo-leninismo sobreviva apenas em Cuba, na Coréia do Norte e nas salas de aula de escolas brasileiras. As chocadeiras produzem os frangos vendidos a menos de 5 reais nos supermercados brasileiros, e isso propicia a dose mínima de proteína a famílias que, de outra forma, estariam mal nutridas. A realidade não interessa nas aulas como a do professor Márcio Santos. O que interessa? Passar a idéia de que as máquinas tiram empregos. Elas tiram? Tiraram no começo dos processos de robotização e automação de fábricas nos anos 90. Hoje, sem robôs e máquinas, os empregos nem sequer seriam criados. Mas dizer isso pode desagradar ao espírito do velho barbudo enterrado no novo Cemitério de Highgate, em Londres. Os professores esquerdistas veneram muito aquele senhor que viveu à custa de um amigo industrial, fez um filho na empregada da casa e, atacado pela furunculose, sofreu como um mártir boa parte da existência. Gostam muito dele, fariam tudo por ele, menos, é claro, lê-lo – pois Karl Marx é um autor rigoroso, complexo, profundo que, mesmo tendo apenas uma de suas idéias ainda levada a sério hoje – a Teoria da Alienação –, exige muito esforço para ser compreendido. "A salada ideológica resulta da leitura de resumos dos grandes pensadores", diz o filósofo Roberto Romano. Gente que vê maldade em chocadeiras e mal em empresários que usam máquinas em suas fábricas no século XXI não pode ter lido Karl Marx. É de supor que não tenham lido muito, quase nada. Mas são esses senhores que ensinam nossos filhos nas melhores escolas brasileiras – sem, diga-se, que os pais se incomodem com isso. 63 Lição de casa Colégio Anchieta, em Porto Alegre: o professor pede aos alunos que questionem os "pais empresários" A pesquisa CNT/Sensus ouviu 3 000 pessoas de 24 estados brasileiros, entre pais, alunos e professores de escolas públicas e particulares. Sua conclusão nesse particular é espantosa. Os pais (61%) sabem que os professores fazem discursos politicamente engajados em sala de aula e acham isso normal. Os professores, em maior proporção, reconhecem que doutrinam mesmo as crianças e acham que isso é sua missão principal – algo muito mais vital do que ensinar a interpretar um texto ou ser um bamba em matemática. Para 78% dos professores, o discurso engajado faz sentido, uma vez que atribuem à escola, antes de tudo, a função de "formar cidadãos" – à frente de "ensinar a matéria" ou "preparar as crianças para o futuro". Muito bonito se não estivessem nesse processo preparando os alunos para um mundo que acabou e diminuindo suas chances de enfrentar a realidade da vida depois que saírem do ambiente escolar. Para atacar um problema, o primeiro passo é reconhecer sua existência. Esse é o mérito da pesquisa CNT/Sensus. Ódio às máquina Na sala de aula e nos livros, a tecnologia recebe a culpa pelo aumento do desemprego no mundo Adversária do exercício intelectual, a ideologização do ensino pode ser resultado em parte também do despreparo dos professores para o desempenho da função. No ensino básico, 52% lecionam matérias para as quais não receberam formação específica – 22% deles nunca freqüentaram faculdade. Para esses, os chavões de esquerda servem como uma espécie de muleta, um recurso a que se recorre na falta de informação. "Repetir meia dúzia de slogans é muito mais fácil do que estudar e 64 ler grandes obras. Por isso, a ideologização é mais comum onde impera a ignorância", diz o historiador Marco Antonio Villa. A questão não é exatamente nova na educação. Meio século atrás, a filósofa alemã Hannah Arendt já alertava para o equívoco de fazer das aulas um lugar para a doutrinação ideológica, qualquer que fosse o matiz. Em A Crise na Educação, ela dizia: "Em vez de (o professor) juntar-se a seus iguais, assumindo o esforço da persuasão e correndo o risco do fracasso, há a intervenção ditatorial, baseada na absoluta superioridade do adulto". Ao refletirem sobre o atual cenário, os especialistas concordam com a idéia central da filósofa. Está claro, e a própria experiência mostra isso, que o viés político retira da escola aquilo que deveria, afinal, ser seu atributo número 1: ensinar a pensar – verbo cuja origem, do latim, significa justamente pesar. Diz o sociólogo Simon Schwartzman: "O verdadeiro exercício intelectual se faz ao colocar as idéias e os juízos numa balança, algo que só é possível com uma ampla liberdade de investigação e de crítica". Consumo, esse vilão Na cartilha, as sociedades de consumo se prestam a estimular a futilidade e poluir o ambiente Não é o caso na maioria das salas de aula. Muitos professores brasileiros se encantam com personagens que em classe mereceriam um tratamento mais crítico, como o guerrilheiro argentino Che Guevara, que na pesquisa aparece com 86% de citações positivas, 14% de neutras e zero, nenhum ponto negativo. Ou idolatram personagens arcanos sem contribuição efetiva à civilização ocidental, como o educador Paulo Freire, autor de um método de doutrinação esquerdista disfarçado de alfabetização. Entre os professores brasileiros ouvidos na pesquisa, Freire goleia o físico teórico alemão Albert Einstein, talvez o maior gênio da história da humanidade. Paulo Freire 29 x 6 Einstein. Só isso já seria evidência suficiente de que se está diante de uma distorção gigantesca das prioridades educacionais dos senhores docentes, de uma deformação no espaço-tempo tão poderosa que talvez ajude a explicar o fato de eles viverem no passado. Entre as figuras históricas e da atualidade mais citadas em classe está, como não poderia deixar de ser, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As referências a Lula são contidas. O presidente brasileiro obtém aprovação menor entre os professores, segundo relatam os estudantes, do que aquela com que a sociedade brasileira em geral o brinda. Ele tem 70% de avaliação positiva dos brasileiros, mas na boca dos professores esse índice cai para 30% – com 27% de citações negativas e 43% de neutras. Ressalte-se aqui que é um ponto louvável para os mestres o fato de, como 65 mostram os números relativos a Lula, eles não fazerem proselitismo eleitoral em classe – mesmo que seja preciso relevar o fato de o ditador venezuelano Hugo Chávez ter merecido 51% de citações positivas. A neutralidade e o comedimento em relação a Lula desautorizam a interpretação de que os professores tentam direcionar o voto dos alunos, o que seria desastroso. É sinal de que sua pregação, mesmo equivocada, se mantém no nível das idéias – o que é excelente. Contrários à doutrinação O advogado Miguel Nagib (sentado) fundou a ONG Escola Sem Partido, junto com outros pais: todos acharam na cartilha dos filhos exemplos de ideologia "Eu e todos os meus colegas professores temos, sim, uma visão de esquerda – e seria impossível isso não aparecer em nossos livros. Faço esforço para mostrar o outro lado", diz a geógrafa Sonia Castellar, que há vinte anos dá aulas na faculdade de pedagogia da Universidade de São Paulo (USP) e escreveu Geografia, um dos best-sellers nas escolas particulares (livro que tem dois de seus trechos comentados por VEJA na reportagem seguinte). "Reconheço o viés esquerdista nos livros e apostilas, fruto da formação marxista dos professores. Mas não temos nenhuma intenção de formar uma geração de jovens socialistas", diz Miguel Cerezo, responsável pelo conteúdo publicado nas apostilas do COC (de onde foram extraídos quatro trechos comentados pela revista). À luz de outra pesquisa em profundidade feita pelo Ibope em colaboração com a revista Nova Escola, editada pela Fundação Victor Civita, os professores da rede pública revelam que, para eles, o principal problema da sala de aula é, de longe (77%), a ausência dos pais no processo educativo. Repousam na colaboração entre pais e professores a correção dos rumos do ensino no país e a aceleração da curva de melhora de desempenho que começa a se desenhar. A questão do excesso de ideologização é um desses problemas que podem ser abordados em conjunto por pais e professores. Demanda para o diálogo existe. O advogado Miguel Nagib fundou, há quatro anos, em Brasília, a ONG Escola Sem Partido, com o objetivo de chamar atenção para a ideologização do ensino na sala de aula. Nagib se incomodou com os sinais do problema na escola particular de sua filha, então com 15 anos, onde o professor de história gostava de comparar Che Guevara a São Francisco de Assis. Foi ao colégio reclamar. Diz Nagib: "As escolas precisam ficar sabendo que muitos pais não concordam com essa visão". 66 ANEXO B Posição País Taxa de mortalidade infantil (mortes/1.000 nascimentos normales) 96 Brasil 22.58 97 Tunísia 22.57 98 Líbano 21.82 99 Venezuela 21.54 102 Equador 20.9 103 Filipinas 20.56 104 China 20.25 107 Colômbia 18.9 108 Suriname 18.81 125 Jamaica 15.22 127 Jordânia 14.97 138 Panamá 12.67 148 Argentina 11.44 149 Uruguai 11.32 158 Kuwait 8.96 160 Costa Rica 8.77 161 Porto Rico 8.42 163 Chile 7.71 177 Estados Unidos 6.26 179 Cuba 5.82 192 Portugal 4.78 206 Suíça 4.18 207 Alemanha 3.99 214 França 3.33 220 Bermudas 2.46 221 Singapura 2.31 Fonte: CIA World Factbook, Janeiro 1, 2009 67 ANEXO C Posição País Taxa de alfabetização (%) 26 Suécia 99 27 Suíça 99 35 Estados Unidos 99 40 França 99 43 Guiana 98.8 47 Trindade e Tobago 98.6 48 Itália 98.4 54 Uruguai 63 Argentina 97.2 98 74 Taiwan 96.1 78 Chile 95.7 83 Paraguai 88 Kuwait 93.3 89 Portugal 93.3 90 Venezuela 91 Peru 92.9 94 Filipinas 92.6 95 Tailândia 92.6 96 Singapura 92.5 100 Panamá 91.9 104 Equador 91 105 China 90.9 108 Colômbia 90.4 109 Indonésia 90.4 117 Malásia 88.7 94 93 118 Brasil 88.6 Fonte: CIA World Factbook, Janeiro 1, 2009 68 ANEXO D Coeficiente de Gini no mundo (2009). Fonte: CIA World Factbook, Janeiro 1, 2009