ENTREVISTA joão magueijo Rui Cardoso Martins: [...] Voltaire o quê, João? João Magueijo: Essa história newtoniana de o Universo ser um relógio, e toda a história do relojoeiro cego, digamos assim. Basicamente, como é que a tua vivência terrena interfere no mundo. E o grande exemplo foi exatamente o terramoto de Lisboa, precisamente por contradições como aquela que disseste. Eu não sabia desta aqui do Intendente, sabia da outra lá em baixo. A ideia do Leibniz, no fundo, de que havia um princípio finalista no Universo. As coisas aconteciam para um fim. E o fim era a bondade. Obviamente, o Cândido é a gozar com isso; aquilo é só desgraças e confusões. RCM: O Cândido foi escrito contra Leibniz. JM: Precisamente. Mas com o Leibniz ainda havia um bocado de respeito, quem levou mais porrada foi o [filósofo, matemático e astrónomo francês] Maupertuis. Este foi quem, inclusivamente até hoje, formulou o princípio da ação mínima, ou seja, as coisas acontecem para minimizar a ação. Mas isso era visto de uma maneira literal, filosófica. Era o mundo, não era só um instrumento matemático, mas uma coisa filosófica. O tempo não existe Conversa de cervejaria entre o escritor Rui Cardoso Martins e o astrofísico João Magueijo Espero que o leitor da Espiral do Tempo não se ofenda com João Magueijo! Para o astrofísico português, as grandes complicações, o turbilhão que desafia a gravidade e o calendário perpétuo que antecipa os anos bissextos têm uma ‘precisão ridícula’. Afinal, o astrofísico do Imperial College de Londres, que desafiou Einstein com a hipótese de a luz ter sido muito mais rápida nos instantes iniciais do Universo, trabalha com um relógio atómico. Só daqui a 15 mil milhões de anos se vai atrasar... um segundo, a idade atual do Universo. Obriguei-o a fazer as contas, entre mariscos e imperiais, numa ruidosa cervejaria com vista para o Intendente, a zona de prostíbulos e má fama poupada pelo terramoto de 1755 que arrasou as igrejas da Baixa cheias de fiéis e que inspirou Voltaire para Cândido, o eterno otimista no melhor dos mundos possíveis. Uma conversa desde o tempo em que se acreditou num ‘Deus-relojoeiro’ (Newton), até se concluir que o tempo nem sequer existe. Como o princípio desta conversa, que se perdeu num prato de camarões. final. É mesmo assim... O tempo é uma coisa complicadíssima. RCM: O fluir do tempo, para nós, é uma experiência sensorial, quase. JM: Mas é uma coisa que não existe fisicamente, sequer. É uma ilusão psicológica, fisiológica. RCM: Fisiológica... a degeneração das tuas células, tu sentes isso, não é? JM: E aí voltamos aos relógios atómicos: nós envelhecemos eletromagneticamente, uma coisa engraçadíssima. RCM: Como assim? JM: Os processos químicos e biológicos são todos eletromagnéticos. São coisas que têm a ver com eletricidade e magnetismo e eletrões a ir para um lado e para o outro. O nosso peso é forças nucleares, mas aquilo que muda é tudo eletromagnético. O que faz o tique-taque é exatamente aquilo que faz o tique-taque de um relógio atómico: está relacionado com transições e processos eletromagnéticos. E o que acontece é que, se houvesse uma velocidade da luz variável, essa constante que faz as coisas variarem, o que faz o tique-taque variar a ele próprio, o tal relógio atómico que atrasa um segundo ao fim da idade toda do Universo, teria um erro sistemático. RCM: Como é que o tempo entrava aí? O tempo era onde as coisas se inscreviam. JM: Claro. O tempo é diferente. De certa maneira, se tens uma teoria finalística, não há tempo. As coisas já existem para um fim... O tempo é tramado, porque, basicamente, na física, precisamente por causa dos princípios da ação mínima, não há fluir do tempo. O tempo não existe, é um parâmetro... que nem sequer é mesmo um parâmetro. Basicamente, as coisas existem em quatro dimensões espaço-tempo. Mas a ideia do fluir do tempo, que é uma coisa psicológica óbvia – nós estamos aqui e sentimos o tempo a fluir – não cabe dentro da física. RCM: Dizes uma coisa a que achei muita graça no livro Mais Rápido que a Luz: é mais difícil, mais complexo, explicar uma ponte suspensa ou um organismo biológico do que o próprio Universo. JM: Isso é porque as coisas se simplificam quando começas a ver as coisas em escalas grandes. À escala pequenina, isto é uma confusão do caraças. Tu estás a pensar que o Universo deve ser uma confusão, porque há mais coisas, mas é ao contrário. RCM: Não cabe nunca? JM: É muito estranho, quer dizer... a ideia de um tempo que flui, a ideia de um presente a fluir, que se separa de um passado e de um futuro, não existe. Não há um ponto a fluir: há uma linha, ponto RCM: O grande exemplo é talvez a equação do Einstein, ou não? JM: Acho que o Universo tem mais a ver com... Basicamente, as coisas transformam-se numa sopa homogénea. À medida que começas a ver 55 ENTREVISTA joão magueijo Porque se as leis da física forem eternas e não houver evolução, de facto o Universo muda mas as leis não mudam. Mas do que nos temos vindo a aperceber, em parte por causa do nosso amigo Voltaire e dessa gente toda, é que isso quer dizer que não há tempo, o tempo não existe, no fundo é um número que tu pões ao longo de uma linha porque te dá jeito, mas não é uma coisa que exista. João Magueijo Astrofísico numa escala maior, não estás, obviamente, a explicar os detalhes, estás a tentar explicar o todo. Não pensas na árvore; queres é a floresta. Mas a coisa engraçada é que a floresta – o ecossistema, digamos assim – é mais simples do que propriamente a árvore, que é uma complicação. Eu acho que isso é verdade em cosmologia. Agora, pode haver... Esta questão do tempo, a questão dos relógios, inclusivamente, enquadra-se na questão: no fundo, será verdade ou não que há evolução? Porque se as leis da física forem eternas e não houver evolução, de facto, o Universo muda, mas as leis não mudam. Mas do que nos temos vindo a aperceber, em parte por causa do nosso amigo Voltaire e dessa gente toda, é que isso quer dizer que não há tempo: o tempo não existe. No fundo, é um número que tu pões ao longo de uma linha, porque te dá jeito, mas não é uma coisa que exista. RCM: Os calendários, obviamente, são já uma construção humana sobre isso... JM: Claro. RCM: A medição do tempo com um relógio, no fundo, é uma ficção. JM: Sim. Mas a coisa que seria engraçada com estes relógios atómicos é que não podes estar à espera todo o tempo do Universo para medires uma variação de um segundo, mas podes ao longo de... Esta porcaria tem precisão suficiente para tu notares se, ao fim de um ano, as constantes eletromagnéticas variaram. O relógio tinha-se desacertado. Porquê? Porque a física em que estava construído tinha, de facto, mudado fisicamente, não é? E, por acaso, eu nunca tinha feito a conta! Tu obrigaste-me a fazer a conta! Dez elevado a menos 18 dá um segundo ao longo da vida toda do Universo! [risos] RCM: Podíamos, portanto, duplicar a vida do Universo até a ‘porcaria’ do relógio com que trabalhas se atrasar... JM: Ou adiantar. RCM: Ao mesmo tempo, parece que estamos a falar da eternidade, não é? Já temos um instrumento... o Homem conseguiu construir um instrumento capaz de simular a eternidade. JM: Se realmente o relógio for baseado na física que nós assumimos ser eterna. Se calhar, não é... A questão é essa: se realmente não houver eternidade e as coisas estivessem a mudar, o relógio dizia-te isso, porque, ao fim de algum, tempo estragava-se todo. RCM: Quanto tempo achas que o Universo ainda vai durar? Tens alguma ideia? JM: Isso ninguém sabe, mas deverá durar pelo menos o dobro da idade que tem. Mas pode continuar para sempre. O que parece que vai acontecer – a gente não sabe – é que vamos entrar numa fase de dominação do vácuo, ou nada. Então, o Universo vive para sempre, mas fica preenchido pelo nada. Isso é uma desgraça. RCM: Mas é uma nada gelado ou quê? Não tem estrelas a brilhar, não tem fusão atómica nas estrelas, não tem nada? JM: Não tem graça nenhuma. RCM: Mas quando é que isso pode acontecer? Daqui a outros 15 mil milhões de anos? JM: Exatamente. RCM: Estamos a meio do caminho, é? E há observações astronómicas e cosmológicas que dizem isso? JM: Quando digo a meio, pode ser um terço, podem ser dois terços, mas é a escala correta, não é ao milésimo. RCM: Um astrofísico também coloca outra questão como esta: nós, como espécie, evoluímos muito rapidamente. JM: Sim. RCM: Uma loucura desde aqueles... macacos, no fundo, os primeiros hominídeos, até agora. Foi de uma rapidez espantosa. Já fizeste as contas, ou alguém já fez: no que é que nos podemos transformar e em quanto tempo é que desaparecemos... JM: [risos] RCM: ... como espécie que se pode considerar humana? JM: O que o Darwin diz não é uma teoria quantitativa, ou melhor, só há pouco tempo é que começou a ser. Os cosmólogos são muito mais precisos. Nesse sentido, é mais fácil fazer cosmologia. Basicamente, temos este instrumento maravilhoso que é olharmos para coisas muito distantes e estarmos a vê-las no passado. Temos acesso ao passado. E porquê? Porque as coisas ficam muito homogéneas, e estás a ver uma coisa distante no passado, mas as coisas, em média, são a mesma ali e aqui. Ora isso não existe em biologia. Ora cá está ela, e vem quente! [Chega uma biológica santola, na hora certa. E duas imperiais para não perder o rumo espaciotemporal.] RCM: Onde é que íamos? JM: Constantes da natureza. Por exemplo, o alfa, que é a constante eletromagnética que explica como é que nós envelhecemos: por uma combina ção da velocidade da luz, a constante de Planck e a carga do eletrão. Não sei se sabes, mas se esta porcaria fosse três por cento para um lado, ou três por cento para o outro, nós não estavamos aqui. RCM: Quando dizes a gente, estás a falar dos dinossauros também? JM: Claro, estou a falar da vida tal como nós a conhecemos. Agora, nós temos um preconceito: assumir que a vida tal como nós a conhecemos é a única forma de vida. Como é que se define vida? A definição mais abstrata é: uma coisa autónoma que consegue processar informação e reproduzirse. Mas isso, no fundo, é uma elaboração. É verdade que há um máximo, nós construímo-nos num máximo da probabilidade de vida em relação ao espaço das constantes. Pode haver outros [no Universo], pode haver um máximo local, pode haver um máximo daqui, um máximo dali. Pode haver coisas completamente diferentes. RCM: A baleia da Gronelândia pode viver mais de 180 anos, alguns elefantes podem viver 100 anos, os papagaios, as tartarugas... Falaste em questões eletromagnéticas, mas também há um medidor de tempo biológico interno de cada espécie, ou não? Mesmo sendo o tempo uma ficção. Ou são só degenerescências e crescimentos de células? JM: É isso. Eu acho que a nossa ideia de o tempo mudar tem uma coisa biológica. Quando eu digo que o tempo é uma ilusão, é uma coisa altamente abstrata que tem a ver com... Pá, tu não queres saber de coisas concretas, tu queres é saber as leis da estrutura do Universo, se existe realmente tempo. Outra questão é o mundo estar a mudar, e nós estarmos a mudar: o nosso envelhecimento. E o nosso envelhecimento é eletromagnético. Quando dizes que uma espécie envelhece de uma maneira diferente da outra, o processo é eletromagnético. Por exemplo, se tu mudasses essa coisa do alfa, bem, era uma desgraça: as moléculas desintegravam-se todas. Mas, abstraindo disso, o rácio dos processos mudava também. Passávamos a viver dez vezes mais... RCM: Há alguém a trabalhar nessa hipótese de vivermos mais? JM: A velocidade da luz variável tem esse fenómeno. É que não eram só as células a variar ao longo do tempo. Mas se tens as equações e se resolveres aquilo tudo ao pé de um buraco negro, o resultado varia no espaço. À medida que te aproximas de um buraco negro, podes ter situações em que... RCM: Vives centenas de anos? JM: E vice-versa. Pode ser muito mais rápido, acabar tudo em instantes. São mais duas, se faz favor! 57