Marcus Vinicius Rodrigues Lima
A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO NA TUTELA
JURÍDICA DE GRUPOS VULNERÁVEIS
Copyright© 2013 Marcus Vinicius Rodrigues Lima
Título Original: A Defensoria Pública da União na Tutela Jurídica de Grupos
Vulneráveis
Editor
André Figueiredo
Editoração Eletrônica
Luciana Lima de Albuquerque
Ficha
ISBN: 978-85-7773-602-7
publit soluções editoriais
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Para minha família e em especial para Vinicius Rocha Pinto
Rodrigues Lima, meu filho amado.
RESUMO
O modelo adotado no Brasil para viabilizar a efetivação do aspecto material do princípio da igualdade sob a ótica de assegurar
as bases fundamentais do Estado Democrático de Direito se concretiza, em um de seus pilares, através da Defensoria Pública. O
desenvolvimento da Defensoria Pública e sua expansão, sem incongruências constitucionais, invertem o desencantamento da observação sobre as potencialidades dos princípios do devido processo
legal e inafastabilidade da Jurisdição, auxiliando a obtenção de uma
tutela jurídica adequada com foco de se obter a idealizada ordem
jurídica justa. A presente pesquisa focará especificamente o papel
da Defensoria da Pública da União na missão de, atuando como
função essencial a atividade jurisdicional, contribuir para superar
os obstáculos identificados por Mauro Cappelletti e Bryan Garth,
e assim, densificar o princípio do acesso à Justiça. Nesse contexto,
buscou-se abordar e identificar o processo de constante mutação
dos conceitos sociais ao ponto de através da existência de uma nova
mentalidade e realidade social, adaptarmos a missão da Defensoria Pública da União a novas atribuições oriundas da Lei Complementar nº 132, bem como, contribuirmos para o processo de propagação e absorção da cidadania. A Defensoria Pública da União
cumprindo a missão constitucional da defesa do necessitado em
seu sentido mais amplo, adequado à necessária existência de uma
assistência jurídica lato sensu, consolida atuação defensiva em prol
de diversos assistidos que, por vezes, sofrem coletivamente lesões a
direitos ou potenciais direitos apenas coletivamente considerados.
Nesse contexto, adota-se como conector ou linha guia da análise,
tanto o estudo do direito dos integrantes do grupo como, principalmente, a característica da vulnerabilidade. A partir da vulnerabilidade dos Grupos de assistidos pela Defensoria Pública da União, com
concentração na experiência resultante de atividades desenvolvidas
em São Paulo, vislumbra-se a especificação da tutela jurídica das vítimas de trabalho escravo, dos estrangeiros com direitos humanos
violados, refugiados sem acesso a informação e demais indivíduos
que nutram características de vulnerabilidade e possam ter a tutela
de seus direitos fundamentais assegurada por intermédio da Defensoria Pública da União, representante adequado na res iudicium
deducta relacionada a valores como: dignidade da pessoa humana,
igualdade, direitos humanos, direitos fundamentais e Justiça. Para
tanto lançaremos mão de diferentes estudos de casos concretos viabilizados pela propositura de Ações Civis Públicas e pela dinâmica
de projetos que permitem a maximização da atuação da instituição
em prol de um efetivo acesso à justiça, e sobretudo, pela oferta de
uma tutela jurídica adequada a concretizar uma idealizada ordem
jurídica justa.
Palavras-chave: Defensoria Pública. Tutela. Grupos Vulneráveis.
ABSTRACT
The model adopted in Brazil to enable the realization of the
material aspect of the principle of equality from the perspective of
ensuring the foundations of a democratic state is realized in one of its
pillars, through the Public Defender. The development of the Public
Defender and its expansion, without constitutional inconsistencies,
reverse the disenchantment of observation on the potential of the
principles of due process and non-obviation Jurisdiction, helping
to obtain a legal guardianship with adequate focus to obtain the
idealized fair legal system. This research will focus specifically
the role of the Federal Public Defender in mission, serving as the
essential function of judicial activity, help to overcome the obstacles
identified by Mauro Cappelletti and Garth Bryan, and thus densify
the principle of access to justice. In this context, we sought to address
and identify the process of changing the social concepts to point
through the existence of a new mentality and social reality, adapting
the mission of the Federal Public Defender to new assignments
coming of Complementary Law No. 132, and also contribute to the
process of propagation and absorption of citizenship. The Federal
Public Defender on fulfilling the constitutional mission of defending
the needy in its broadest sense, the necessary existence of adequate
legal assistance lato sensu, consolidates defensive action on behalf
of several assisted that sometimes collectively suffer injuries or
potential rights only considered collectively. In this context, we
adopt as a connector or guide line of analysis, both the study
of the law of the group members as primarily a characteristic of
vulnerability. From the vulnerability of groups assisted by the Federal
Public Defender, with concentration on the experience resulting
from activities in São Paulo, one glimpses the specification of the
legal protection of victims of slave labor, with foreigners violated
human rights, refugees without access information and other
individuals who nurture characteristics of vulnerability and can
have the protection of their fundamental rights safeguarded through
the Federal Public Defender, representing the appropriate res
iudicium deducta related to values such as human dignity, equality,
human rights, fundamental and Justice. For this launch different
hand case studies made possible by filing civil class actions and the
dynamic designs that allow maximization of the performance of the
institution in support of an effective access to justice, and above all,
the provision of a suitable legal protection to achieve an idealized
legal system fair.
Keyword: Public Defender. Protection. Vulnerable Groups.
Sumário
RESUMO............................................................................................. 5
ABSTRACT.......................................................................................... 7
INTRODUÇÃO................................................................................. 11
1. A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO E O ACESSO À JUSTIÇA... 15
1.1 A essência e a razão da existência da Defensoria Pública...... 15
1.1.1 A Defensoria Publica da União e suas peculiaridades.... 26
1.1.2 As balizas do Estado Democrático de Direito e seus
reflexos no acesso à Justiça..................................................... 30
1.1.3 A Defensoria Pública e sua interação com o devido processo
legal, no enfoque da ampla defesa e do contraditório.................. 35
1.1.4. O acesso à Justiça e o reflexo material do princípio da
igualdade................................................................................ 41
1.2 A modernidade e o desencantamento da Defensoria Pública da
União à luz da “Die Normative Kraft Der Verfassung”.................. 44
1.3 O desencantamento da Defensoria Pública da União e a
casuística..................................................................................... 48
1.4 O encantamento desencantado da Defensoria Pública da
União........................................................................................... 59
2. O COMBATE AO FENÔMENO DA VULNERABILIDADE............... 67
2.1 As considerações e peculiaridades do grupo vulnerável......... 67
2.2 Os diversos grupos vulneráveis.............................................. 68
2.3 A legitimidade da Defensoria para Ações Civis Públicas como
instrumento de tutela dos direitos dos grupos vulneráveis............ 70
2.4 As funções institucionais da Defensoria como mecanismo de
combate a vulnerabilidade........................................................... 74
3. A PROTEÇÃO DOS ESTRANGEIROS NA CONDIÇÃO DE
VULNERÁVEIS.................................................................................. 81
3.1 Os estrangeiros e a violação aos valores de cidadania e
dignidade da pessoa humana....................................................... 81
3.2 Estudo de caso1: violação da dignidade humana de presos
estrangeiros, mulas do tráfico, no aeroporto internacional de
Guarulhos ................................................................................... 84
3.2.1. Exposição dos fatos e fundamentos da violação
sistemática de direitos dos vulneráveis.................................... 84
3.2.2. Análise dos direitos violados em confrontação ao sistema
jurídico, ao princípio do devido processo legal e ao princípio
da vedação a prestação ineficiente do Estado......................... 88
3.2.3. Atuação da Defensoria Pública da União na tutela
jurídica adequada focada na violação de direitos do grupo
vulnerável identificado como mulas estrangeiras.................. 102
4. MECANISMOS DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS
E AO TRABALHO ESCRAVO............................................................ 105
4.1 A vulnerabilidade ou hipervulnerabilidade das vítimas, a
atuação da DPU em São Paulo e o princípio do “in dubio pro
legitimado”................................................................................ 105
4.2. Estudo de caso 2: As oficinas de costura em São Paulo e a
redução à condição análoga a de escravo de grupo de estrangeiros,
vítimas de tráfico de pessoas ..................................................... 115
4.2.1 As condições degradantes de trabalho e a privação do
convívio social..................................................................... 115
4.2.2 A natureza preventiva e pedagógica dos danos morais
coletivos originados da redução dos trabalhadores à condições
análogas a de escravo........................................................... 121
4.2.3 Da obrigação assumida pelo Brasil em relação ao
combate ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo – da
prevenção, repressão e reparação......................................... 132
4.2.4 Da responsabilidade da empresa – da subordinação
estrutural e do princípio da primazia da realidade................ 134
4.2.5 A DPU na tutela do grupo vulnerável identificado como
vítimas de tráfico de pessoas e trabalho escravo e o dever de
fiscalização dos postos de trabalho....................................... 141
5 A VULNERABILIDADE REFLEXA DO GRUPO REFUGIADOS...... 147
5.1 O refúgio e o ordenamento jurídico protetivo...................... 147
5.2 Estudo de caso 3: O Direito do acesso a informação e da
motivação das decisões pelo CONARE – Comitê Nacional para
Refugiados................................................................................. 150
6 CONCLUSÃO.............................................................................. 159
Referências................................................................................. 163
INTRODUÇÃO
Ao longo das dificuldades e casos enfrentados durante o exercício
do labor de defensor público federal, e com grande contribuição absorvida pelas reflexões das diversas disciplinas concluídas no mestrado
cujo enfoque viabilizou o aprofundamento de questões essencialmente vinculadas a temas como princípios, moral, devido processo legal,
Justiça dentre outros, tentou-se no presente trabalho canalizar de forma
tópica e sistemática uma reflexão acerca da potência da atuação da
DPU – Defensoria Pública da União, na incipiente e moderna tutela
dos direitos humanos e coletivos de diversos assistidos integrantes de
uma coletividade que nutrem características e condições socioeconômicas dentro de um contexto de vulnerabilidade.
O tema central em que gravita a pesquisa traz como pano de
fundo uma reflexão sobre o tema acesso à justiça, que apesar de
constantemente revisitado ganha novo fôlego sob o enfoque da
atuação de um órgão estatal que busca através das demandas e
defesas individuais e coletivas solucionar ou ao menos enfrentar, os
grandes obstáculos previstos por Mauro Cappelletti e Bryant Garth,
tratados como as ondas do movimento do acesso à justiça refletida
na assistência judiciária aos pobres, na tutela dos interesses difusos
e na busca de um novo enfoque ao acesso à justiça1.
1 A terceira “onda” de reforma inclui a advocacia judicial ou extrajudicial,
seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além.
Ela centra sua atuação no conjunto geral de instituições e mecanismos,
pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo para prevenir
litígios. Cappelletti o denomina de “enfoque do acesso á justiça” por sua
11
A partir da busca da tutela jurídica adequada para os diferentes grupos vulneráveis analisados desenvolve-se a percepção de
que para a concreta e eficiente atuação da Defensoria Pública da
União no desenvolvimento de sua atividade institucional, faz-se necessária implementação de um procedimento de tutela que busque
resguardar e consolidar tanto a defesa dos direitos humanos, principalmente sob o enfoque da dignidade da pessoa humana, quanto,
nos complexos desdobramentos da atuação coletiva, com ênfase no
manuseio de Ações Civis Públicas.
No tocante a estruturação da pesquisa adotou-se como via metodológica inicialmente fazer-se uma abordagem da instituição que
agora se indica como propulsora e viabilizadora da tutela jurídica
dos grupos vulneráveis, de forma a detalhar o quanto possível o
universo da missão ontologicamente ligada à DPU, na execução
dessa importante função essencial a atividade jurisdicional do Estado, distinguindo-a e trazendo a tona características e peculiaridades
que influem diretamente nos desdobramentos da atividade fim da
Defensoria Pública da União, tornando inclusive a tutela coletiva
como ofício de atuação inevitável, dada a reserva do possível.
Inevitável nessa abordagem será durante a delimitação do tema
Defensoria Pública da União trazer ao debate científico parâmetros
de realidade que, infelizmente, orientam, condicionam e limitam a
atividade idealizada dentro de um perfeito sistema de assistência
jurídica, integral e gratuita prevista pelo constituinte, sendo tal fato
inversamente utilizado para fundamentar e reforçar a necessidade
de se valer objetivamente cada vez mais da tutela coletiva, como forma
de viabilizar o máximo de assistência com o mínimo de recursos disponíveis. Nesse campo, será adotada como parâmetro a realidade do
Estado de São Paulo para que seja possível de alguma forma restringir o
campo de pesquisa, o que não impede que a situação apresentada seja
logicamente replicada para outras unidades da federação.
abrangência consistente num método que aproveita as técnicas das duas
primeiras “ondas” de reforma, mas as entende apenas como uma de uma
série de possibilidades. GOMES NETO, José Mario Wanderley. O ACESSO À
JUSTIÇA EM MAURO CAPPELLETTI. Análise teórica desta concepção como
“movimento” de transformação das estruturas do processo civil brasileiro.
Ed. Sérgio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. 2005.
12
Ainda como desdobramento da abordagem optou-se por direcionar
a análise dos temas vetores e fundamentais para a sistematização da
defesa da vulnerabilidade através da abordagem dos direitos humanos e da tutela coletiva, percebendo como esses temas refletem a
salvaguarda dos direitos e viabilizam através de uma correta interpretação a tutela de direitos potencialmente considerados, portanto
suprindo eventual crise de Jurisdição ao propor soluções para lide,
não mais abarcada por demandas individuais.
Ato contínuo buscou-se especificar alguns casos de vulnerabilidade e apontar experiências vivenciadas no desenvolvimento da
atividade fim, na tutela de grupos vulneráveis e, por intermédio de
tais atuações, demonstrar2 as diversas modalidades de vulnerabilidades e grupos vulneráveis, inclusive com divulgação de práticas,
grupos de trabalho, atuações em comitês e projetos exitosos no
âmbito da DPU.
Num balanço final se estabelece um link com referência aos
temas abordados e o princípio do Acesso à Justiça e a correlação
com as práticas desenvolvidas pela Defensoria Pública da União na
busca da defesa da vulnerabilidade de seus assistidos, o que pode
ser entendido com a concretização do princípio do Acesso à Justiça,
a partir de um novo olhar acerca das funções dos defensores que
necessariamente pautam suas missões institucionais a luz da dignidade da pessoa humana e do princípio da reserva do possível.
2 É difícil eliminar da dissertação de mestrado o seu caráter demonstrativo.
Também ela deve demonstrar uma proposição e não apenas explanar um
assunto. Essa parece ser uma exigência lógica de todo trabalho, desde que
tenha objetivos de natureza científica bem definidos. SEVERINO, Antônio
Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo. Cortez Editora. 23ª
Ed. Revista e atualizada. 5ª Reimpressão. 2007. P. 222.
13
1. A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO
E O ACESSO À JUSTIÇA
1.1 A essência e a razão da existência da Defensoria Pública.
Ao desenvolvermos a análise da estrutura, do papel e da missão da Defensoria Pública temos que ontologicamente focar seu
público alvo, a quem se destina nas suas funções típica e atípica
a Defensoria Pública, e, então, necessariamente fazermos uma
abordagem introdutória que leve em consideração o fato notório da
má distribuição de renda no Brasil.
O Brasil ocupa a 4ª colocação entre os países da América Latina com distribuição de renda mais desigual. Segundo relatório3
do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos
(ONU-Habitat), apenas Guatemala, Honduras e Colômbia estão
piores que o Brasil.
Durante o século XX, a América Latina e Caribe passaram por
diversas transformações no modelo econômico vigente, que produziu, por sua vez, essenciais alterações demográficas e sociais. Essas
mudanças são percebidas pelo desenvolvimento das cidades e principalmente pela forma como a população passa a se concentrar nas
áreas urbanas e também pelo papel que esse mesmo contingente
populacional desenvolve na atividade econômica dos países.
3
Disponível
em:
http://www.onuhabitat.org/index.php?option=com_
docman&task=cat_view&gid=362&itemid=18. Consulta em 09 de set. de 2012.
15
Nas últimas décadas as economias dos países Latinos tem crescido, apesar de crises econômicas, e o atual contexto de volatilidade
das economias do mundo, principalmente, no final desse século.
Entretanto, a riqueza gerada e os modestos avanços alcançados,
desde de 1990, na luta contra pobreza, segundo relatório da ONU4,
não são suficientes para aplacar o elevado e generalizado quadro de
desigualdade vivenciado.
Ademas de la pobreza, el principal problema que
afronta America Latina y el Caribe es la desigualdad. La
region esta considerada la mas desigual del mundo18. Es
una desigualdad patente principalmente en la distribucion
de la renta, pero tambien en el habitat, el acceso a bienes
y servicios (de educacion, salud, financiamiento, etc.),
a oportunidades de empleo, al patrimonio, y al espacio
publico, entre otros factores que determinan el bienestar
del individuo.
En la region, el 20% de poblacion mas rica tiene em
promedio un ingreso per capita casi 20 veces superior
al ingreso del 20% mas pobre19. No obstante, las
diferencias son considerables y, mientras en Venezuela
y Uruguay, que son los menos inequitativos de la region,
la diferencia de ingreso entre el quintil mas rico y el mas
pobre no supera las diez veces, en los paises con mayor
desigualdad puede exceder las 30.
Outra perspectiva para avaliar o grau de desigualdade social
presente no Brasil reside no estudo e na compreensão proposta pelo
índice GINI5, que segundo atualização de 2012, encontra-se em
4 _Idem. p.40. La riqueza generada y los modestos avances logrados en
la lucha contra La pobreza desde 1990 no han significado una reduccion
significativa de la brecha de desigualdad. Amplios sectores de poblacion
urbana viven atrapados em circulos viciosos de pobreza e inequidad,
cuyo resultado son ciudades divididas social y espacialmente, pese a las
multiples oportunidades de desarrollo economico y social que ofrece la
urbanizacion.
5 Descrição: Mede o grau de desigualdade na distribuição da renda
domiciliar per capita entre os indivíduos. O valor pode variar de zero,
quando não há desigualdade (as rendas de todos os indivíduos têm o mesmo
valor), até 1, quando a desigualdade é máxima (apenas um indivíduo detém
16
patamares acima de 0,566, o que aproxima os níveis de desigualdade
social brasileira a patamares de países como Honduras e Guatemala.
El promedio del indice de Gini20 correspondiente a
America Latina y el Caribe ha estado por encima del que
han tenido las demas regiones del mundo desde, por ló
menos, 197021. En la region, los paises mas desiguales
por la distribucion de la renta son (ordenados de mayor
a menor coeficiente) Guatemala, Honduras, Colombia,
Brasil, Republica Dominicana y Bolivia, todos ellos com
un coeficiente por encima de 0,56. Por debajo de 0,50
se encuentran Costa Rica, Ecuador, El Salvador, Peru y
Uruguay. Venezuela, el pais con menos inequidad de ingreso (0,41 de Gini), era, segun calculos para 2009, mas
desigual que Estados Unidos o el pais mas inequitativo de
la zona euro (Portugal), ambos con un valor de 0,3822.
Nesse quadro de realidade, as consequências nefastas da desigualdade social existente criam uma ponte de ouro facilmente
percebida por qualquer leigo observador7, a ponto de conferir o
status de direito fundamental a previsão constituinte da Defensoria
Pública.
Tal status decorre de sua assim chamada natureza jurídica estar essencialmente atrelada ao princípio fundamental do Acesso a Justiça,
tido em um aspecto objetivo como verdadeiro direito pré-processual
toda a renda da sociedade e a renda de todos os outros indivíduos é nula).
Disponível em: http://www.brasil.gov.br/sobre/economia/indicadores/
disoc_rdcg/indicadorview. Consulta em 09 de set. de 2012.
6 Disponível em: http://www.onuhabitat.org/index.php?option=com_
docman&task=cat_view&gid=362&itemid=18. Consulta em 09 de set. de
2012.
7 No Brasil existe o reconhecimento de que as desigualdades são elevadas
– o que pode ser verificado na mídia, nas relações sociais do cotidiano ou
comprovado nas estatísticas oficiais. Quando aos brasileiros é perguntado
“as diferenças de renda são muito grandes em seu país?” ou “dentre estas
imagens de sociedade, qual que melhor descreve o seu país?”, eles não
hesitam em apontar com severidade o pior dos quadros. RUDI, Rocha;
ANDRÉ, Urani. Distribuição da Renda no Brasil: um Ensaio sobre a
Desigualdade Desconhecida. Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade
– IETS. 2005.
17
capaz de viabilizar ao Estado que quer ser Democrático exercer seu
papel promovendo a função concreta da Lei, ao prestar a Jurisdição.
O contexto do desenvolvimento da estrutura defensorial está
necessariamente vinculado à constatação de que a sociedade brasileira apesar de todo o crescimento midiático propagado possui
elevado grau de pobreza e extrema desigualdade8 na distribuição
da renda, pois a maioria das famílias brasileiras, por não concentrar suficientemente a renda em suas mãos encontram-se excluídas
de diversos direitos fundamentais, tornando-se imperativo tratar o
tema Defensoria Pública como um dos mecanismos de geração de
maior equidade e efetiva capacidade de erradicação da pobreza,
como lucidamente abordado em Cadernos Adenauer 1: Pobreza e
política Social9.
Políticas de crescimento que intensifique a dinâmica
econômica e social do país devem, evidentemente, ser
estimuladas. Mas a única via do crescimento econômico
para reduzir a pobreza nos parece fora de foco. A desigualdade encontra-se na origem da pobreza e combatê-la
torna-se um imperativo. Imperativo de ordem moral, justificado pelas evidentes e suficientes razões de cidadania
e justiça social, mas, também um imperativo da eficácia,
na medida em que políticas voltadas para geração de
maior equidade apresentam significativa capacidade de
erradicar a pobreza no Brasil.
Considerada minimente a desigualdade social como mecanismo
concreto de desigualdade econômica cria-se uma estrutura social
que potencialmente inviabiliza a reparação de efeitos reflexos da
8 Apesar de ser relativamente rico, o Brasil é um país extremamente
desigual. A comparação internacional nos revela, com extrema clareza, que
o grau de pobreza do Brasil é significativamente superiora média dos países
com renda per capita similar à brasileira, indicando a relevância da má
distribuição dos recursos para explicar a intensidade da pobreza nacional.
BARROS, Ricardo Paes, HENRIQUES, Ricardo, MENDONÇA, Rosane,
FARIA, Vilmar E., VILLALOBOS, Verônica Silva, SCHWEICKERT, Rainer.
Cadernos Adenauer 1: Pobreza e política Social. São Paulo. Fundação
Konrad Adenauer. 2000. p. 17.
9 Idem, p.29.
18
própria desigualdade, se ausente, postulante capaz de com independência e eficiência transportar a lesão à igualdade ao poder
constitucionalmente legitimado, na lógica da inafastabilidade do
Poder Judiciário.
Esse raciocínio provoca a percepção que a desigualdade pode
ser gerada inclusive por instrumento normativo e que, por vezes,
o maior ofensor de direitos e gerador de desigualdade é o próprio
Estado, na temática abordada, o poder executivo federal, que
através da iniciativa de lei, medidas provisórias e demais atos
normativos fulmina direitos, agravando o sentimento de injustiça
fundado em dispositivos de dogmática estéril ou mero interesse
político e não social.
A análise desenvolvida ganha importância e relevo ao aplicarmos a máxima de que o direito existe em prol da sociedade10, e não
encontra legitimidade quando se reporta a própria dogmática, pois,
nesse caso nos defrontamos com verdadeira crise de legitimação e
exercício niilista do direito. Além disso, o direito deve nascer proporcionalmente a ars11, que assume o sentido de jus, e que pode ser
entendido como arte do bom e do equitativo, como assim ensina
Tércio Sampaio Ferraz Junior.
Desde a Antigüidade, o saber sobre o direito tinha a
ver com a técnica, com a arte (techne, ars). Os romanos
falavam em ars boni et aequi. A noção de ars, do direito
(jus) como arte do bom e do eqüitativo, tinha fundamento
na filosofia grega.
Entretanto, toda vez que a dogmática se apresenta como um fim
em si mesma, fragiliza-se a obtenção de uma ordem justa e aumenta
o risco de que sentimentos humanos sejam abalados, a ponto de
10 Também os direitos do homem são, indubitavelmente, um fenômeno
social. Ou, pelo menos, são também um fenômeno social: e, entre os
vários pontos de vista de onde podem ser examinados (filosófico, jurídico,
econômico, etc.), há lugar para o siciológico, precisamente o da sociologia
jurídica. BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Tradução: Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro. Editora Campus. 1992. p. 68.
11 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 4ª
ed., São Paulo: Atlas, 2003. (p.348).
19
tornar a vida humana insuportável e configurar o máximo da perturbação existencial12, frente a uma situação de total injustiça.
Ao superficialmente analisarmos a essência dos desdobramentos normativos e a finalidade do Direito e percebermos que sua
justificação encontra-se na sociedade, temos que agregar valor histórico a análise dessa afirmação e na contemporaneidade de uma
sociedade de massa 13 que vivência a solidão, ou o chamado
“homem solidão”, analisarmos o absoluto, as virtudes naturais e
o direito inerente ao homem, para que, através da existência e da
ação de uma razão unificadora, possamos concluir pela necessidade da defesa de valores supremos de igualdade e dignidade da
pessoa humana e todas as decorrências desses princípios.
E exatamente por tal consideração e o fato da Defensoria Pública estar atrelada a esse inquebrantável valor humano que urge além
de sua definitiva implementação, também sua estruturação.
A Defensoria Pública tem seu marco constitucional e regulatório no
disposto no art. 134, caput, da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 que prevê “A Defensoria Pública é instituição essencial a
função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a
defesa, em todos os graus dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”.
A essência da referida previsão tem por finalidade o esforço
constituinte, de ao menos normativamente, prever instrumentos de
12 Idem, (p. 352) “Dizse, assim, que o direito deve ser justo ou não tem
sentido a obrigação de respeitálo. Ou seja, a perda ou a ausência do sentido
de justiça é, por assim dizer, o máximo denominador comum de todas
as formas de perturbação existencial, pois o homem ou a sociedade, cujo
senso de justiça foi destruído, não resiste mais às circunstâncias e perde, de
resto, o sentido do deverser do comportamento”.
13 Quanto mais fácil se torna a vida em uma sociedade de consumidores
ou de trabalhadores, mais difícil será conservar a consciência das exigências
da necessidade que a compele, mesmo quando a dor e o esforço, as
manifestações externas da necessidade, são quase imperceptíveis. O perigo é
que tal sociedade, deslumbrada pela abundância de sua crescente fertilidade
e presa ao suave funcionamento de um processo interminável, já não seria
capaz de reconhecer a sua própria futilidade – a futilidade de uma vida que
“não se fixa nem se realiza em assunto algum que seja permanente, que
continue a existir depois de terminado [seu] trabalho. ARENDT, Hannah.
A Condição Humana. Tradução: Roberto Raposo, revisão técnica: Adriano
Correia. – 11ª ed. Rio de Janeiro: forense Universitária 2010. p. 167/168.
20
efetivação do princípio da igualdade em seu aspecto material, de
forma a tentar suprir as dificuldades previstas pelas diversas ondas
renovatórias14 frente à viabilização do acesso à Justiça.
Essa intenção não passa despercebida ao professor Uadi Lammêgo Bulos ao afirmar que apesar de o brocardo de Ovídio15 não
vigorar no Brasil em razão do arcabouço normativo existente, os
pobres, em nosso país, não tem acesso condigno à Justiça, pois os
recursos são insuficientes, o que torna a previsão da Defensoria Pública mero sopro de esperança, incapaz de inverter a direta ofensa
da ideia do acesso igualitário à Justiça.
No mesmo tom temos os vetustos ensinamentos de José Afonso
da Silva16 ao fazer referência a mesma deficiência e maximizar a importância do direito individual a igualdade17 elevando-o a notório
direito fundamental
Uma velha observação de Ovídio ainda vigora nos nossos dias, especialmente no Brasil: Cura pauperibus clausa est,
ou no vernáculo: o Tribunal está fechado para os pobres” Os
pobres ainda tem acesso muito precário à justiça. Carecem
de recursos para contratar advogados. O patrocínio gratuito tem-se revelado de deficiência alarmante.
Contudo, a Defensoria Pública está constitucionalizada18 e registrada como essencial19 à atividade do Poder Judicial sem a qual
14 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen
Gracie Nortflleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988.
15 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 6ª Ed. P.1413.
cura pauperibus clausa est – “o Tribunal está fechado para os pobres”.
16 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª Edição
revista. São Paulo. Malheiros Editores. 1998.
17 Idem. p.588. A assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos vem configurada, relevantemente,
como direito individual no art. 5º, LXXIV. Sua eficácia e efetiva aplicação,
como outras prestações estatais, constituirão um meio de realizar o princípio
da igualização das condições dos desiguais perante a Justiça.
18 Art. 134 da CRFB/88. A Defensoria Pública é instituição essencial à
função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação Jurídica e a
defesa, em todos os graus, dos necessitados na forma do art. 5º, LXXIV.
19 O que significa tal essencialidade? Não se trata, obviamente de uma
compulsoriedade de atuação em qualquer procedimento judicial - as
21
o princípio da inafastabilidade da jurisdição20 faria reserva aos
necessitados que compõem a grande maioria da população.
A mencionada essencialidade gera ao Estado o dever jurídico de
manter a Defensoria em patamares de dignidade e transcendência
institucional fazendo com que o tema Defensoria seja dotado de
uma vertente sempre positiva na hermenêutica legal ou constitucional, ou seja, o aprimoramento institucional está atrelado a princípio
fundamental para a interpretação de questões envolvendo a instituição,
por tratar-se a Defensoria Pública de cláusula aberta de grande valor
hermenêutico21.
Ponto essencial e que merece nossa atenção reside na referência
“necessitado”, que implica tratamento específico para Defensoria na terminologia “assistido” e para o Judiciário, jurisdicionado.
Quem seria esse necessitado22? Para minimamente adentrarmos a
esse campo temos que primeiramente diferenciar as atividades típicas
e atípicas da Defensoria Pública.
demais funções essenciais também não operam sempre. Muito acima disso,
a essencialidade constitucional da Defensoria transmite essencialidade e
transcendência a instituição, significando o reconhecimento da relevância
no Brasil, da advocacia voltada aos necessitados, que compõem a grande
maioria da população. SOUZA, José Augusto Garcia de. A nova Lei
11.448/07, os escopos extrajurídicos do processo e a velha legitimidade
da Defensoria Pública para ações coletivas. In José Augusto Garcia de
Souza (coordenador). A Defensoria Pública e os Processos Coletivos:
comemorando a Lei 11448, de 15 de janeiro de 2007. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008.
20 O exercício da jurisdição constitui atividade eminente pública. Aliás,
é o que vem expresso no art. 5º, XXXV, do texto constitucional: ‘A lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’,
que consubstancia o princípio constitucional da inafastabilidade do Poder
Judiciário. ALVIM, Eduardo Arruda. Direito processual civil. 3. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: editora dos Tribunais: 2010. p.44.
21 SOUZA, José Augusto Garcia de. A nova Lei 11.448/07, os escopos
extrajurídicos do processo e a velha legitimidade da Defensoria Pública
para ações coletivas. In José Augusto Garcia de Souza (coordenador). A
Defensoria Pública e os Processos Coletivos: comemorando a Lei 11448, de
15 de janeiro de 2007. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.p.228.
22 O art. 2º, parágrafo único, da Lei 1060, de 05 de fevereiro de 1950,
prevê: “Considera-se necessitado, para os fins legais todo aquele cuja
situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os
honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família”.
22
Segundo Ada Pellegrini dentre as funções típicas da Defensoria
Pública estaria à vinculação e atuação da instituição para o chamado “necessitado econômico”, aquele comprovadamente carente
de recursos econômicos que tem por inviabilizado o exercício da
cidadania e o acesso à justiça, pela insuficiência de recursos para
custear um advogado, sem que comprometa a sua própria subsistência. Dessa forma, o necessitado econômico estaria amparado
pela atuação típica da Defensoria Pública.
Como atuação atípica da Defensoria, ainda segundo Ada Pellegrini, teríamos toda a atuação institucional que deriva de lei, como
nas hipóteses de curadoria especial e defesa criminal, pela imposição constitucional da necessidade de ampla defesa e contraditório
dentro do devido processo legal, o que corresponderia à atuação
atípica da Defensoria para o chamado “necessitado jurídico”23. Por
fim, ainda na estrutura da atuação atípica estaria vinculada a atuação
da Defensoria para os “necessitados organizacionais” ou carentes
organizacionais24 e nesse ponto, a pesquisa se destaca.
Contudo, filio-me ao pensamento de José Luiz Garcia de Souza
que considera como atuações típicas da Defensoria as que englobam tanto os “necessitados econômicos” como os “necessitados jurídicos”, pois, o fato de a atuação derivar de uma imposição legal
faz com que tal atividade seja rotulada ou ao menos classificada
também como típica. Resta, agora sim, como verdadeira atividade
atípica da Defensoria Pública toda a atividade voltada ou que tenha
23 O necessitado jurídico apresenta uma modalidade de carência que
decorre de um fundamento constitucional ou legal que imprime por
força normativa, a necessidade da tutela jurídica assecuratória de valores
indisponíveis a manutenção do devido processo legal, como são as
exigências da manutenção ampla defesa e do contraditório, principalmente,
nos processos criminais, sob pena de se incorrer em nulidade processual
absoluta. Dessa forma, o Estado se vale de seu órgão oficial imbuído de
viabilizar o acesso à justiça, para suprir a mencionada necessidade e,
portanto, fortalecer o Estado Democrático de Direito, que nessa sistemática,
por vezes, afasta a letargia da defesa criminal que foca na procrastinação a
principal estratégia para a ocorrência da prescrição penal e a impunidade.
24 Grinover, Ada Pellegrini. Acesso à justiça e o Código de Defesa
do Consumidor, in O Processo em Evolução. Rio de Janeiro, Forense
Universitária. 1996. p. 116/117.
23
por objeto a manutenção, defesa ou propagação de um relevante
valor social ou moral. Essa estrutura de pensamento amplia e propaga a atuação institucional da Defensoria de forma adequada aos
seus objetivos, missão e princípios que tem por finalidade tutelar
a pluralização do fenômeno da carência25, além de ter uma correlação com a Lei Complementar 32, na tutela de todo e qualquer
grupo vulnerável.
A corroborar a busca pela tutela jurídica adequada temos a
tutela em prol dos interesses dos necessitados organizacionais, e
diversos grupos vulneráveis que, por vezes, só vislumbram a tutela
de seus interesses por intermédio de ações coletivas, motivo pelo
qual, a tutela jurídica deve recair primordialmente sobre o objeto
juridicamente tutelado, sendo assim, para se falar em acesso à justiça passa a ser considerado, cada vez mais, de menor importância,
questões afetas a legitimidade e ao pedido, privilegiando-se a res
iudicium deducta coletiva abordada na demanda.
Ainda no tocante as potencialidades constitucionais tem-se a
independência da Defensoria Pública como característica indispensável a eficiente execução da gama de funções a ela imputadas.
Tal independência reside tanto no aspecto financeiro orçamentário,
além da iniciativa de sua proposta orçamentária, quanto na independência funcional do agente político que é o defensor público.
Sobre o primeiro aspecto da independência acima narrado faz-se
necessário destacar a incompreensível distinção consignada no
texto constitucional, quando teratologicamente restringe a referida autonomia financeira e orçamentária e a iniciativa de proposta
25 Há muitos anos, refletindo sobre esse tema (...) chegamos à conclusão
de que a tendência, no tocante às atribuições da Defensoria, era claramente
expansiva, sobretudo quanto às chamadas funções “atípicas”, aquelas que
se desenvolvem independentemente da situação de carência econômica/
financeira do beneficiário. Nossa conclusão baseou-se em vários fatores
contemporâneos, como o avanço do solidarismo no Direito — favorecendo
considerável “dessubjetivação” da ordem jurídica — e a pluralização do
fenômeno da carência. GARCIA DE SOUZA, José Augusto. A legitimidade
da Defensoria Pública para a tutela dos interesses difusos (uma abordagem
positiva). Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.
htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao047/Felipe_
Borges.html. Consulta em 24 de Nov. 2012.
24
orçamentária apenas as defensorias estaduais, desconsiderando o
princípio da unidade26 da Defensoria Pública ao ponto de por tal
omissão gerar um prejuízo aos assistidos pobres que tem pretensões
a serem ajuizadas na esfera federal, como se isso fosse possível.
Sem nos debruçarmos detidamente sobre a conjuntura política,
á época, do registro da autonomia limitada apenas as Defensorias
Estaduais, apesar de genericamente atrelado ao fato de até o presente momento a Defensoria Pública da União ainda estar instalada em
caráter emergencial, importante fundamentar a ocorrência da teratologia jurídica no princípio do nemo potest venire contra factum
proprium27, pois o Estado ao promover tal diferenciação implementa
26 Além do fundamento infraconstitucional (art. 3° da Lei Complementar
n° 80/94), o princípio institucional da unidade tem sede constitucional no
próprio caput do artigo 134 da Constituição Federal, uma vez que tal norma,
emanada do poder constituinte originário, reza, no singular: “A Defensoria
Pública é instituição...”. Daí decorre que o parágrafo inserido no art. 134
pela Emenda Constitucional n° 45/2004, no sentido de conferir autonomia
financeira e orçamentária apenas às Defensorias Públicas Estaduais e não
à Defensoria Pública da União e à Defensoria Pública do Distrito Federal e
dos Territórios, em expressa contrariedade ao caput do art. 134 da CRFB/88,
deve ser considerado inconstitucional em sua interpretação literal, devendo
ser feita interpretação conforme, ampliando o alcance do dispositivo, para
conferir tal autonomia à Instituição como um todo. MENEZES, Felipe
Caldas. Defensoria Pública da União: Princípios Institucionais, Garantias e
Prerrogativas dos Membros e um Breve Retrato da Instituição. Disponível
em:
http://www.dpu.gov.br/pdf/artigos/artigo_principios_institucionais_
Felipe.pdf .Consulta em 24 de Nov. de 2012.
27 A fundamentação da ocorrência de tal princípio também está atrelada
a necessidade de segurança jurídica na interpretação da unidade da
Defensoria Pública, o que afastaria o efeito que restou concretizado em
dar tratamento diferenciado e injustificado para as Defensorias em seus
diferentes ambitos, estadual e federal. Nesse sentido “Outro fundamento
de índole constitucional do nemo potest venire contra factum proprium
é o megaprincípio da segurança jurídica, erigida a princípio e valor
constitucional pela vigente Constituição da República, que consagra
a inviolabilidade à segurança no caput do seu art. 5º (compreendendo,
como espécie, indubitavelmente, a segurança nas relações jurídicas), e
assevera em seu preâmbulo que a instituição de um Estado Democrático
se destina também a assegurá-la. A proibição de agir contraditoriamente
vai ao encontro da exigência comum de estabilidade das relações jurídicas,
porquanto a possibilidade de frustrar legítimas expectativas contraria o
anseio coletivo pela paz social e frustra a própria finalidade do Direito, que
25
uma ruptura da essencialidade da Defensoria Pública, na ótica do
princípio da unidade, promovendo flagrante ofensa ao princípio do
acesso à justiça por descompasso estrutural da Defensoria Pública
no âmbito federal.
1.1.1 A Defensoria Publica da União e suas peculiaridades
A Defensoria Publica da União é o órgão oficial28 do Estado incumbido de viabilizar o acesso à justiça a todo aquele que necessite
de postulação e defesa, judicial ou extrajudicial, na esfera federal.
No âmbito da Defensoria Pública da União importante salientar que é considerando necessitado econômico quem se enquadra
nos critérios estabelecidos pelo Art.1º da Resolução nº 13, de 25
de outubro de 2006, do Conselho Superior da Defensoria Pública
da União – CSDPU, “Presume-se necessitado todo aquele que integre família cuja renda mensal não ultrapasse o valor da isenção
de pagamento do imposto de renda.”, sendo o critério objetivo da
atuação institucional, a isenção do imposto de renda, bem como, a
viabilidade da atuação pela análise subjetiva da renda e dos gastos
do assistido, com o consequente deferimento da atuação pelo defensor público federal natural.
é o de promovê-la. FACCI, Lucio Picanço. A proibição do comportamento
contraditório no âmbito da Administração Pública: A tutela da confiança
nas relações jurídico-administrativas. Revista da EMERJ, v. 14, n. 53, 2011.
Disponível em http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/
revista53/Revista53_197.pdf. Consulta em 12 de jan. 2013.
28 Se o Estado brasileiro, por qualquer de seus entes, almeja aplicar
dinheiro público na assistência jurídica aos necessitados, obrigatoriamente
deve aplicá-los na Defensoria Pública. Veja-se bem, não se trata aqui de
defender que a Defensoria Pública tem o monopólio da assistência jurídica.
Evidentemente que não. O necessitado tem o direito de escolher se quer
ser assistido por um advogado privado – que lhe cobrará, tão somente,
os honorários de êxito na ação -, se deseja atendimento de um escritório
modelo de Faculdade de Direito, etc. Mas o Estado Brasileiro não tem
essa escolha. Se almejar prestar assistência jurídica aos necessitados,
deve fazê-lo nos termos da Constituição, por intermédio da Defensoria
Pública. Revista das Defensorias Públicas do Mercosul/Defensoria Pública
da União._DPU/REDPO – Reunião Especializada de Defensores Públicos
do Mercosul. SALES, José Rômulo Plácido. Acesso à Justiça e Defensoria
Pública no Brasil. Revista n.1. Outubro/2010.
26
A atuação do defensor público segue genericamente parâmetros de competência afetos a fixação da competência da justiça
federal prevista no artigo 109, da CRFB/88 e demais atribuições
constitucionais.
Entretanto, a própria Lei Complementar n. 80, prevê que a
atuação institucional da Defensoria Pública ocorrerá priorizando a
conciliação, transação, composição e a resolução extrajudicial das
lides, sendo diretriz de concentrada eficácia, pois traça como meta
evitar demandar por demandar.
A atuação da Defensoria Pública da União por força de lei ocorre
nas esferas judicial e extrajudicial, na Justiça Federal, com frequência, nas áreas: previdenciária, postulando judicialmente benefícios
denegados pela autarquia federal (INSS); criminal, viabilizando os
princípios do contraditório e ampla defesa ao necessitado jurídico;
civil, em casos de revisão de contratos bancários como SFH, PAR,
FIES; no tributário, embargando execuções fiscais.
Ainda por imposição legal a Defensoria Pública da União atua
na Justiça Eleitoral, na Justiça Militar da União e na Justiça do
Trabalho, esta última, dado o princípio da reserva do possível, tem
globalmente a atuação contingenciada com fundamento em embasada decisão do Conselho Superior da Defensoria Pública da União,
por absoluta falta de estrutura que viabilize a mínima atuação29.
Exceção registrada apenas pelo incipiente projeto piloto da DPGU
– Defensoria Pública Geral da União, em Brasília, que consta com
a criação de apenas 4 ofícios trabalhistas30.
Os defensores federais atuam ainda: junto ao Tribunal Marítimo,
principalmente, nas defesas acerca de imputação de responsabilidade
29 Disponível em: http://ultimainstancia.uol.com.br/justica-do-trabalho/
falta-de-estrutura-impede-atuacao-da-defensoria-em-causas-trabalhistas/.
Consulta em 24 de Nov. de 2012.
30 Brasília, 28/01/11 – Como projeto piloto, a Defensoria Pública da União
no Distrito Federal (DPU/DF) conta desde novembro de 2010 com quatro
ofícios trabalhistas. O objetivo é fortalecer a atuação da DPU na Justiça do
Trabalho, que é uma das suas atribuições constitucionais. Disponível em:
http://www.dpu.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=
3476:entrevista-defensor-fala-sobre-atuacao-piloto-da-dpu-na-justica-traba
lhista&catid=79:noticias4&Itemid=220. Consulta em 24 de nov. de 2012.
27
por albarroamento de embarcações, nas hipóteses de curadoria especial; nos presídios de segurança máxima federal, viabilizando a
defesa, correta execução da pena e a prevalência dos direitos humanos,
no curso da execução criminal dos condenados que cumprem pena
no sistema prisional federal; e nos JEFs Juizados Especiais Federais,
nas chamadas pequenas causas em que a demanda tem o valor máximo de até 60 salários mínimos, principalmente, junto às Turmas
Recursais em que se faz necessário a presença de advogado.
A Defensoria Pública da União possui para cada campo de atuação e esfera de atribuições uma forma de especificação de trabalho,
uma divisão interna das atribuições dentro de sua estrutura que segue
uma lógica de eficiência atrelada à dificuldade da matéria trabalhada, que imprime a necessidade de especialização do defensor
público federal. Exatamente, com fundamento nessa lógica é que se
criou no âmbito da DPU o chamado ofício, que é sempre titularizado por defensor federal que passa a trabalhar vinculado a matéria
geral ou especializada.
Entretanto, e principalmente31, após a alteração do art.5º da Lei
7.347/85, pela Lei 11.448, de 15 de janeiro de 2007, e que passou a
incluir a Defensoria Pública, no rol de legitimados para propositura
de Ação Civil Pública a instituição se estruturou mais uma vez para
especializar sua atuação através da criação de ofícios de DHTC –
Direitos Humanos e Tutela Coletiva, em que o defensor que titularizar o mencionado ofício possui exclusividade para propositura de
ACPs – Ações Civis Públicas, inclusive com atuação interiorizada
no Estado, em subseções judiciais em que a DPU não está instalada.
Importante ressaltar que a Defensoria Federal está organizada e
assim idealizada32 para atuar em todas as esferas e graus de jurisdição,
31 A jurisprudência mesmo antes dessa alteração legislativa já reconhecia
a legitimidade da Defensoria Pública para propositura de Ações Civis
Públicas, seguindo lógica de princípio de economia processual. Entretanto,
dada a interpretação extensiva pela ausência do critério ope legis, a própria
jurisprudência resgatou das class actions a vinculação da pertinência
temática, e que após a alteração legislativa pela inclusão da Defensoria,
não mantém mais o fundamento da exigência por mera isonomia entre os
legitimados.
32 O modelo idealizado viabiliza a Defensoria ser um grande instrumento
provocador de inovações judiciais, pois permite que as questões afetas
28
pois a composição da carreira é formada por 3 categorias de defensores33, sendo certo que os defensores de segunda categoria34 executam
as atividades acima mencionadas, sempre junto a um juiz de primeira
instância, ou seja, no primeiro grau de jurisdição. Contudo, os defensores de primeira categoria35 executam suas atividades junto aos Tribunais
Regionais Federais, Tribunais Eleitorais, Tribunais Regionais do Trabalho
e Turmas Recursais. Por último, tem-se os defensores de categoria especial36 que atuam atrelados aos Tribunais Superiores, TST – Tribunal
Superior do Trabalho, TSE – Tribunal Superior Eleitoral, STM – Superior
Tribunal Militar, STJ – Superior Tribunal de Justiça e STF – Supremo
Tribunal Federal, inclusive com constante e firme atuação do Defensor
Público Geral Federal, em diversas sustentações orais no Plenário
do STF37.
aos hipossuficientes e necessitados cheguem até aos Tribunais Superiores,
inviabilizando as costumeiras preclusões, e permitindo um posicionamento
final acerca de temas, matérias devidamente préquestionadas, como
reserva do possível, mínimo existencial, insignificância e as diversas esferas
de vulnerabilidade e carência atualmente vivenciadas.
33 Art. 19. A Defensoria Pública da União é integrada pela Carreira de
Defensor Público Federal, composta de 3 (três) categorias de cargos efetivos:
I – Defensor Público Federal de 2ª Categoria (inicial); II – Defensor Público
Federal de 1ª Categoria (intermediária); III – Defensor Público Federal de
Categoria Especial (final). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/LCP/Lcp80.htm. Consulta em 24 de nov. de 2012.
34 Art. 20. Os Defensores Públicos Federais de 2ª Categoria atuarão
junto aos Juízos Federais, aos Juízos do Trabalho, às Juntas e aos Juízes
Eleitorais, aos Juízes Militares, às Auditorias Militares, ao Tribunal Marítimo
e às instâncias administrativas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/LCP/Lcp80.htm. Consulta em 24 de nov. de 2012.
35 Art. 21. Os Defensores Públicos Federais de 1ª Categoria atuarão nos
Tribunais Regionais Federais, nas Turmas dos Juizados Especiais Federais,
nos Tribunais Regionais do Trabalho e nos Tribunais Regionais Eleitorais.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp80.htm.
Consulta em 24 de nov. de 2012.
36 Art. 22. Os Defensores Públicos Federais de Categoria Especial atuarão
no Superior Tribunal de Justiça, no Tribunal Superior do Trabalho, no
Tribunal Superior Eleitoral, no Superior Tribunal Militar e na Turma Nacional
de Uniformização dos Juizados Especiais Federais. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp80.htm. Consulta em 24 de
nov. de 2012.
37 O defensor-geral público federal, Haman Tabosa de Moraes fez sua
sustentação oral no dia 10 de agosto. Entre advogados de renome, como
Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, o destaque
29
1.1.2 As balizas do Estado Democrático de Direito e seus reflexos
no acesso à Justiça
Ao tratarmos de valores e princípios tão afetos a um contexto
democrático, não podemos nos esquecer da evolução e a história
da formação do Estado38 Moderno, que em seu início não nasce
atrelado a conceito de democracia, igualdade ou prevalência de
direitos individuais, mas sim, como resposta direta a modificações
socioeconômicas39.
Apenas com o desenvolvimento e a necessidade de que a
burguesia fosse definitivamente considerada pelo modelo de
para o décimo dia de julgamento do processo do mensalão foi para um
defensor público, que conseguiu livrar o primeiro réu do julgamento no
Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros foram unânimes ao confirmar
nesta quarta-feira a nulidade do processo contra o empresário Carlos Alberto
Quaglia, permitindo que a ação seja retomada na Justiça de primeiro grau.
Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/julgamento-domensalao/noticias/0,,OI6081782-EI20760,00- Unico+defensor+publico+no
+julgamento+livra+reu+do+mensalao.html. Consulta em 24 de nov de 2012.
38 Devido à variedade de objetos que o termo comumente denota, definir
“Estado”, torna-se difícil. Às vezes, a palavra é usada em um sentido bem
amplo, para indicar a “sociedade” como tal ou alguma forma especial
de sociedade. [...] A situação revela-se mais simples quando o Estado é
discutido a partir de um ponto de vista puramente jurídico. KELSEN,
Hans. Teoria Geral do Direito e Estado. Martins Fontes. São Paulo. 1992.
p.183. Há pensadores que intentam caracterizar o Estado segundo posição
predominantemente filosófica; outros realçam o lado jurídico e, por último,
não faltam aqueles que levam mais em conta a formação sociológica de seu
conceito. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10ªed.(revista e atualizada)
5ª Tiragem. Editora: Malheiros. São Paulo. 1997. p.62.
39 Desde que se desintegrara o Império Romano do Ocidente (século V),
a Europa Ocidental se organizara em Reinos resultantes da fusão entre
as sociedades germânica e romana. Esses Reinos, geralmente de curta
duração, na fase de transição do escravismo ao feudalismo (séculos V ao
X), assistiram a decomposição do Estado e da Monarquia centralizada
como instituições políticas dominantes. Essas transformações políticas
correspondiam a transformações socioeconômicas que reduziram a
sociedade a microcosmos estanques: feudo, rural, auto-suficiente, agrário,
e onde todos se submetiam a um suserano. AQUINO, Rubim Santos Leão
de. HISTÓRIA DAS SOCIEDADES: Das sociedades modernas às sociedades
atuais. 26ºed.rev. e atualizada. - Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1993.
p.29-30
30
poder vigente, dado renascimento comercial e urbano vivenciado em contraposição ao feudalismo, se desenvolveu a atividade de centralização política e territorial canalizada na figura
dos Reis40.
Com efeito a burguesia ligada principalmente
ao comercio tinha suas atividades dificultadas pelo
feudalismo, marcada pela pluralidade de moedas e
pedágios, pela multiplicidade de alfândegas, pela diversidade de leis (baseadas em costumes locais), pela
insegurança. Interessada em remover esses obstáculos
e ampliar seus negócios em uma escala nacional, a
burguesia forneceu auxílio a empresa centralização
política e territorial realizada pelos Reis, sobretudo a
partir do século XII.
Contudo, identificado o sistema de centralização com formação de estruturas com a chancela do Estado e da própria
Constituição, tem-se no referido processo dinamismo41 e desvinculação capazes de extirpar imperfeições que nos dão um
modelo de Estado com destino democrático e soberano, amparado por um núcleo rígido.
O processo de conformação de um Estado favorece
determinadas formas de estrutura constitucional de acordo
com as forças sociais e históricas envolvidas. A constituição não propõe um Estado, mas propõe um modelo de
Estado. A soberania, inclusive é a origem da constituição moderna, com sua pretensão de destacar um núcleo
rígido e inalterável do poder político, contrapondo-se a
noção tradicional de constituição mista, predominante
durante Idade Média.
Lógica essa que se considerada nos leva a identificar o modelo
de evolução social e constitucional, sempre contínuo, apesar de
40 _Idem.p.30.
41 BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: Para uma Crítica do
Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p.19.
31
fases de ingovernabilidade42 e caos43, destinado a alcançar um Estado de Direito44, em que a razão do Estado está, segundo a teoria
Hobbesiana, na manutenção da condição de civilidade trazida pelo
próprio Leviatã, sendo tal percepção mero ponto de partida para
aferição da cidadania como direito fundamental.
O discurso da razão de Estado e a teorização hobbesiana
do Leviatã têm em comum de acordo com Gianfranco
Borrelli, a finalidade de solucionar a situação permanente de conflitos civis e de insegurança que derivam do
exaurimento da política eclesiástica na Europa no século
XVII. A questão posta era a da disciplina necessária para
garantir a existência do Governo, a segurança dos indivíduos e sua obediência nos conflitos de autoridade.
42 Segundo Melo (1994), o conceito de “ingovernabilidade” emerge
como categoria da sociedade política durante a passagem da década de
60 para 70, como instrumento analítico do diagnóstico conservador frente
ao quadro de estagflação nos países centrais (decorrentes sobretudo dos
alegados excessos do Welfare State) e à “crise de autoridade” resultante
da “ressurreição do ativismo político e da emergência de novos direitos
de minorias que pressionam e que extrapolam a capacidade resolutiva
dos governos democráticos”. BITTAR, Eduardo C. B. História do Direito
Brasileiro. Ingovernabilidade versus Estado Constitucional: Judiciário e crise
dos poderes numa perspectiva política. 2ª ed. rev. ampl. São Paulo. Editora
Atlas S. A. 2010. p.400.
43 A física tradicional, observa Prigogine, identificava a ordem com
as estruturas de equilíbrio: o modelo dessa concepção era o cristal.
Inversamente via-se no não equilíbrio uma ameaça contra a ordem. Mas
hoje nós sabemos, acrescenta ele, que o não equilíbrio pode redundar tanto
na ordem, quanto na desordem. Abstrato, certamente, mas essencial. Pois
não é sobre esse modelo que todo nosso universo funciona? Vivemos a
contínua alternância entre o caos e a ordem, com um grande consumo de
energia em cada etapa. GUY, Sorman. Os verdadeiros pensadores de nosso
tempo. (Coleção Tempo e saber). Tradução de Alexandre Guasti. Editora
Imago. Rio de Janeiro. 1989. p.43.
44 O Estado de Direito, mais do que um conceito jurídico, é um conceito
político que vem à tona no final do século XVIII, início do século XIX. É
fruto dos movimentos burgueses revolucionários, que naquele momento se
opunham ao absolutismo e ao Estado de Polícia. Surge como ideia força de
um movimento que tinha por objetivo subjulgar os governantes a vontade
legal, porém, não de qualquer lei. BASTOS, Celso Ribeiro. Dicionário de
Direito Constitucional. São Paulo. Saraiva. 1994. p.64.
32
Apesar de ter vigorado a concepção de Estado Mínimo as
transformações sociais e a vulnerabilidade coletiva exigiam do
Estado maior participação, maior dinamismo, ao ponto de
imprimir características democráticas45 ao incipiente Estado formal
e de Direito, que então passa a ter como seus objetivos valores e
princípios atrelados à ideia de cidadania, ainda que consignados em
normas programáticas, que não estão acéfalas de eficácia no enredo
de uma Constituição Simbólica46.
Os movimentos políticos do final do século XIX, início do XX, transformaram o velho e formal Estado de
Direito num Estado Democrático, onde, além da mera
submissão a lei, deveria haver a submissão à lei, deveria
haver a submissão à vontade popular e aos fins propostos
45 _Idem. p.64.
46 A inconsistência da "ordem constitucional" desgasta o próprio discurso
constitucionalista dos críticos do sistema de dominação. Desmascarada a
farsa constitucionalista, segue-se o cinismo das elites e a apatia do público.
Tal situação pode levar à estagnação política. É possível que, como
reação, recorra-se ao "realismo constitucional" ou "idealismo objetivo", em
contraposição ao "idealismo utópico" existente. Mas, como ensinaram as
experiências de "constitucionalismo instrumental" de 1937 e 1964, o recurso
a essa semântica autoritária não implicará, seguramente, a "reconciliação
do Estado com a realidade nacional", mas, antes, a identificação excludente
do sistema jurídico estatal com as "ideologias" e interesses dos detentores
eventuais do poder. Nesse caso, serão impostas "regras-do-silêncio"
ditatoriais, negando-se a possibilidade de críticas generalizadas ao sistema
de poder, típica da constitucionalização simbólica. E principalmente por
isso que não se deve interpretar a constitucionalização simbólica como
um jogo de soma zero na luta política pela ampliação ou restrição da
cidadania, equiparando-a ao "instrumentalismo constitucional". Enquanto
não estão presentes "regras-do-silêncio" democráticas nem ditatoriais, o
contexto da constitucionalização simbólica proporciona o surgimento
de movimentos e organizações sociais envolvidos criticamente na
realização dos valores proclamados solenemente no texto constitucional
e portanto, integrados na luta política pela ampliação da cidadania. Não
se pode excluir a possibilidade, porém, de que a realização dos valores
democráticos contidos no documento constitucional pressuponha um
momento de ruptura com a ordem de poder estabelecido, com implicações
politicamente contrárias à diferenciação e à identidade/autonomia do
Direito. NEVES, Marcelo. Constitucionalização Simbólica. Academia. São
Paulo. 1994. p. 161-162.
33
pelos cidadãos. Assim o conceito de Estado Democrático não é um conceito formal, técnico, onde se dispõe
um conjunto de regras relativas à escolha dos dirigentes
políticos. Já a democracia é algo dinâmico em constante
aperfeiçoamento, sendo válido dizer que nunca foi plenamente alcançada.
É exatamente no processo dinâmico da obtenção de um Estado Democrático que se busca atingir e somatizar característica de
Estado de Direito, sendo necessário para tanto a presença de duas
estruturais fundamentais, quais sejam, a democracia e os direitos
fundamentais dos indivíduos. Dada a presença desses dois pilares
temos a configuração mínima para obtenção de um Estado Democrático de Direito, que possuia mecanismos de justiça constitucional
e proporcionalidade para superar suas próprias incongruências,
harmonizando, por vezes, colisões entre direitos fundamentais.
Contudo quando a incongruência paira sobre mecanismos e
institutos que buscam assegurar direitos fundamentais individuais e
cidadania, entende-se que o próprio Estado Democrático de Direito
resta prejudicado pela supressão de seus pilares de instituição. Dessa forma, estando a Defensoria Pública atrelada à existência, defesa
e manutenção desses pilares, eventual mecanismo de justiça social
ou proporcionalidade não alcança respaldo, e, portanto, não atinge
a paz social.
Levando em consideração a exceção constitucional relativa à
ausência de autonomia da Defensoria Pública da União e tendo
em mente que a restrição diz respeito à instituição que tem
por objetivos47 temas atrelados a direitos fundamentais e a própria
manutenção do Estado de Direito, o silêncio eloquente ou proposital esquecimento da Defensoria Pública da União gera ofensa às
funções do acesso à justiça, enquanto instrumento de garantia
47 Art. 3-A da Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994 e
redação incluída pela Lei Complementar n. 132, de 2009. São objetivos
da Defensoria Pública: I – a primazia da dignidade da pessoa humana e a
redução das desigualdades sociais; II – a afirmação do Estado Democrático
de Direito; III – a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e IV – a
garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
34
fundamental inerente à cidadania e responsável pela realização das
garantias individuais e sociais.48
Tivemos a oportunidade de observar que o acesso à
justiça envolve um conceito muito mais amplo que admissão em juízo ou que acesso ao judiciário, podemos
dizer que acesso à justiça tem a função dual de ao
mesmo tempo ser uma garantia fundamental inerente à
cidadania e também velar pela realização de todas as
demais garantias individuais e sociais.
1.1.3 A Defensoria Pública e sua interação com o devido processo
legal, no enfoque da ampla defesa e do contraditório.
A Defensoria Pública tem por missão típica, conforme bem define José Augusto Garcia de Souza, superar o critério financeiro e
prestar a tutela jurídica ao necessitado econômico, avançando o
obstáculo previsto por Mauro Capelletti e Guarth, na primeira onda
renovatória. Além disso, assume também como função típica prover
a assistência do chamado “necessitado jurídico”, pois tal atribuição
decorre de funções institucionais.
No tocante a abordagem tópica não é a intenção uma vasta digressão sobre tais princípios de tamanha importância na concretização do Estado Democrático de Direito, tal pretensão certamente
levaria a necessidade de uma obra inteira sobre o tema. O que se
pretende, sim, é demonstrar o ponto de conexão entre os conceitos e
sua eficácia prática, bem como a importância do papel da defensoria
na concretização desse direito fundamental, com validez universal49.
48 FONTAINHA, Fernando de Castro. Acesso à Justiça: Da contribuição
de Mauro Cappelletti à Realidade Brasileira. Editora: Lumen Jures. Rio de
Janeiro. 2009. p 34.
49 Os direitos fundamentais, são, por um lado, elementos essenciais
do ordenamento jurídico nacional respectivo. Por outro, porém, eles
remetem para além do sistema nacional. Nesse exceder do nacional
deixam distinguir-se dois aspectos: um substancial e um sistemático. Os
direitos fundamentais rompem, por razões substanciais, o quadro nacional,
porque eles se querem poder satisfazer as exigências a serem postas a eles,
devem abarcar os direitos do homem. Os direitos do homem têm, porém,
independentemente de sua positivação, validez universal. ALEXY, Robert.
35
O princípio do devido processo legal, como bem se sabe, vem
previsto expressamente na Constituição Federal de 1988, no rol do
art. 5º, em seu inciso LIV, ao dispor que “ninguém será privado da
liberdade sem o devido processo legal”. Referido princípio veio
pela primeira vez, expressamente previsto na Constituição de 1988,
como nos ensina Sérgio Luiz Wetzel de Mattos50, que traz ainda
outras considerações importantes sobre o tema.
Como se sabe, a Constituição de 1988 recepcionou o
due processes of law do direito anglo-americano. “Devido
processo legal” é, pois, tradução quase literal da expressão
due processes of Law, que foi utilizada, pela primeira vez
no capítulo 3° do 28° Estatuto de Eduardo III, de 1354,
segundo o qual “No man of what state or condition he be,
shall be put out of his lands or tenements nor taken, nor
disinherited, not put to death, without he be brought to
answer by due processes of law”. A ideia de due processes
of law, contudo, remonta à Magna Carta inglesa de 1215,
a qual, na célebre cláusula n° 39, estipulava que “Nenhum
homem livre será detido ou preso, nem privado de seus
bens (disseissiatur), banido (utlagetur) ou exilado ou, de
algum modo, prejudicado (destruatur), nem agiremos ou
mandaremos agir contra ele, senão mediante juízo legal
de seus pares ou segundo a lei de sua terra (nisi per legale
iudicium parium suarum vel per legem terrae).
No direito norte-americano surge posteriormente a distinção
entre substantive due process of law (devido processo legal substantivo) e procedural due process of law (devido processo legal
processual)51. Assim, Sérgio Luiz Wetzel de Mattos prossegue concluindo que “pode-se conceituar substantive due process of law
como o princípio de garantia de liberdade em geral contra as
arbitrariedades do Estado”52.
Constitucionalismo Dircursivo. Tradutor Luís Afonso Heck, 2ªed. Revista.
Porto Alegre, 2008. p.55.
50 MATTOS, Sérgio Luiz Wetzel de. Devido processo legal e proteção de
direitos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p.17 e 18.
51 Idem, (p. 19).
52 Idem, (p.31).
36
No mais, se percebe que, atrelado ao princípio do devido processo legal, tem-se assegurado vários direitos aos cidadãos. Pode-se
então dizer, como sugere Nery Junior53, que o princípio do devido
processo legal “é a base sobre a qual todos os outros princípios se
sustentam”.
A garantia à ampla defesa é um notável exemplo também de
atuação do devido processo legal, assim como deve garantir o acesso à justiça, a possibilidade de revisão dos julgados através do duplo
grau de jurisdição, o direito de apelar em liberdade, ou seja, inúmeras são as aplicações nas quais a evocação do devido processo
legal é primordial, para que assim outros direitos individuais sejam
amplamente garantidos.
Quanto à ampla defesa tem-se o art. 5º, LV, da Constituição
Federal de 198854, ao asseverar que “aos litigantes, em processo
judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes.”
Restringindo a análise do referido princípio para os fins a que
se pretende o presente estudo, cumpre vislumbrar a ampla defesa
e o contraditório sob a perspectiva da igualdade de armas. Nessa
vertente assim nos ensina Nelson Nery Júnior55
Como decorrência do princípio da paridade das partes, o contraditório significa dar as mesmas oportunidades
53 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição
federal. 7ª ed. Revisada, ampliada e atualizada. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2002. p.32. 54 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: LV - aos litigantes, em processo judicial
ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório
e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Disponível
em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Consulta em 22 de nov. de 2012;
55 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição
federal. 7ª ed. Revisada, ampliada e atualizada. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2002. p.152.
37
para as partes (Chancengleichheit) e os mesmos instrumentos processuais (Waffengleichheit) para que possam
fazer valer os seus direitos e pretensões, ajuizando ação,
deduzindo resposta, requerendo resposta, requerendo e
realizando provas, recorrendo das decisões judiciais etc.”
A par de toda importância histórica que o devido processo legal
trouxe para o direito desde os tempos da Magna Carta, fato é, que
não é tão óbvia e clara sua aplicação na modernidade quando tratamos de questões envolvendo o acesso à justiça em conjunto com
a ampla defesa.
Podemos citar como um exemplo histórico relativamente recente nas democracias modernas o caso Gideon v. Wainwright (1963)56.
Em referido julgado emblemático na Suprema Corte Americana,
fora reconhecido, pela primeira vez, a nulidade de uma condenação criminal sem a assistência de um advogado. Nele se discutia a
aplicação da emenda nº. 6, que determinava a necessidade de assistência de um advogado, apenas nos crimes que não implicassem
como sanção a pena de morte.
Como se pode notar, o que choca nesse exemplo é a constatação que em meados do século XX, em um país reconhecidamente
democrático a condenação de hipossuficientes, pessoas com vulnerabilidade econômica, sem o acompanhamento de defesa técnica,
era comum.
56 Charged in a Florida State Court with a noncapital felony, petitioner
appeared without funds and without counsel and asked the Court
to appoint counsel for him, but this was denied on the ground that the
state law permitted appointment of counsel for indigent defendants in
capital cases only. Petitioner conducted his own defense about as well as
could be expected of a layman, but he was convicted and sentenced to
imprisonment. Subsequently, he applied to the State Supreme Court for a
writ of habeas corpus, on the ground that his conviction violated his rights
under the Federal Constitution. The State Supreme Court denied all relief.
Held: The right of an indigent defendant in a criminal trial to have the
assistance of counsel is a fundamental right essential to a fair trial, and
petitioner's trial and conviction without the assistance of counsel violated
the Fourteenth Amendment. Betts v. Brady, 316 U.S. 455, overruled. Pp.
336-345. Disponível em: http://www.law.cornell.edu/supct/html/historics/
USSC_CR_0372_0335_ZS.html. Consulta em 20 de nov. de 2012.
38
Leda Boechat Rodrigues, em seu livro A Corte de Warren (Civilização Brasileira)57, informa que, em decorrência dessa decisão,
somente no Estado da Flórida outros 976 prisioneiros foram libertados, por também haverem sido julgados sem o patrocínio de um
advogado. Em seu voto, o Chief Justice Warren58 afirmou que o caso
Gideon "iria produzir quase uma revolução em alguns Estados", mas
salientou que "quaisquer que fossem as despesas estaduais, seriam
recompensadas não apenas pelo tratamento mais justo dos desafortunados, como também pelo melhor e mais eficiente funcionamento
dos tribunais criminais, com a assistência dos advogados”.
Como se percebe, o devido processo legal como direito fundamental a um processo justo decorre inevitavelmente do fornecimento
pelo próprio Estado de uma assistência jurídica integral e gratuita,
apta a gerar não só o acesso à justiça sob um ponto de vista ativo,
mas também a garantir a ampla defesa efetiva, caso contrário inviabilizado estaria o próprio conceito de processo justo.
Com tal observação, conclui-se que, ainda que não houvesse
previsão expressa na Constituição Federal de 1988 de seus incisos
LV e LXXIV, nos quais asseveram a ampla defesa e que o Estado
prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, tal garantia decorreria da simples
invocação do célebre inciso LIV ou ainda da própria ideia de igualdade jurídica59 ex vi do caput, do Art 5º, da Constituição Federal, e
57 Numa petição de certionari (uma espécie de agravo) de cinco páginas,
Gideon pediu à Suprema Corte que revisse sua condenação. Alegou que
penetrara num salão de bilhar com a intenção de praticar um pequeno roubo,
fora preso e processado, solicitara ao juiz, durante a fase da instrução, que
lhe nomeasse defensor, e este se negara a fazê-lo. Insistira, argumentando
que a Suprema Corte havia decidido terem todos os cidadãos acusados de
crime direito à assistência de um advogado. O juiz não o atendera, e ele
fora condenado a cinco anos de prisão. Terminara sustentando que julgar
um homem pobre por um crime, sem lhe dar advogado, significava priválo de processo legal regular (due process). RODRIGUES, Leda Boechat. A
Corte de Warren. Editora Civilização brasileira. Rio de Janeiro. 1991. p.189.
58 Idem. p. 193.
59 Com tal pensamento, reporto-me a trecho do item 5, das Conclusões
de Fernanda Tartuce, em sua obra Igualdade e Vulnerabilidade no Processo
Civil: “5. Inserida no devido processo legal, a isonomia conecta-se a
outras garantias constitucionais. Para concretizar a inafastabilidade da
39
a concepção de um mínimo jurídico60 comum que necessariamente
estrutura os efeitos da cidadania61.
Como juristas afetos a preceitos constitucionais e cientes dos
efeitos nefastos de nos deixarmos levar pelos fatores exógenos
vinculados ao poder vigente ou mesmo ao leigo clamor popular,
vislumbramos tentativas, cada vez mais agressivas e até certo ponto
irracionais, de enfraquecer o valor do direito da ampla defesa e do
contraditório, frente a noção de impunidade cotidiana.
Entretanto, por mais que a mentalidade social seja da generalização os espasmos de reação não podem ser excepcionalmente
focados para determinados casos de grande repercussão, pois, exatamente nesses momentos temos o tão caro enfraquecimento das
jurisdição, é imperativo assegurar que os necessitados possam transpor os
óbices sociais e econômicos que dificultam o acesso a ela. A isonomia
relaciona-se também à dignidade porque contar com iguais oportunidades
é essencial para o desenvolvimento pleno dos direitos de personalidade.
Da perspectiva do devido processo legal é preciso considerar que este
não deve focar simplesmente as regras procedimentais que descrevem as
diferentes previsões positivadas em nível infraconstitucional, mas também
a harmonia das previsões com a igualdade, como esta constitui fator que
legitima a segurança jurídica, o intérprete deve estar preparado para lidar
com eventuais conflitos entre tão importantes diretrizes. O contraditório e
ampla defesa também se ligam a isonomia, porque a efetiva participação
dos sujeitos processuais demanda a equalização de oportunidades [...].
TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de
Janeiro. Forense. 2012. p. 352-353.
60 A cidadania seria a atribuição de um mínimo de direitos e deveres a
todos que tivessem o vínculo político com o Estado, em razão desse
vínculo. Este mínimo com o tempo foi sendo ampliado com a atribuição
de mais direitos a cada um em função de seu vínculo com o Estado. Assim,
a idéia do mínimo jurídico comum a todos os que fazem parte do Estado
é inerente à idéia de cidadania, seja qual for o tamanho desse mínimo.
MEDES, Regina Lúcia Texeira. Ensaios sobre a Igualdade Jurídica – Acesso
a Justiça Criminal e Direitos de Cidadania no Brasil. Org. Maria Stella de
Amorim, Roberto Kant de Lima e Regina Lúcia Teixeira Mendes. Lumen
Iures. Rio de Janeiro, 2005.
61 Com idêntica estrutura de raciocínio jurídico se pode afirmar que
a previsão da Defensoria Pública possui natureza jurídica de direito
fundamental amparado por cláusula pétrea, e, independentemente, de
seu indicativo normativo deriva reflexamente do art. 1º da Constituição da
República.
40
instituições e, por tabela, da própria cidadania. Nesse ponto, o que
parece ser mais desolador é o fato de que a massa que exige a condenação a todo custo e de forma antecipada, é a que possui como
escudo, contra os violadores de direitos constitucionais, por vezes,
apenas os próprios direitos que bradam pela disposição alheia62.
1.1.4. O acesso à Justiça e o reflexo material do princípio da
igualdade
Primeiramente, há que se trazer a norma constitucional balizadora do acesso à Justiça no Brasil inserta no inciso XXXV, do art. 5°,
da Constituição Federal, o qual determina que “A lei não excluirá da
apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito.”
Entretanto, para se fazer valer a conhecida cláusula de inafastabilidade do poder judiciário temos que assegurar um direito pré
processual que é o acesso da parte ao poder judiciário e para tanto,
constantemente, tratamos do tema da igualdade63 no enfoque material, pois sob esse prisma temos inevitável correlação com a ideia
de Justiça.
62 Oportuna as declarações do criminalista Marcio Tomas Bastos proferidas no
18º Congresso Internacional de Ciências Criminais – IBCCRIN, em SP. Durante
o evento, Bastos afirmou que o instituto da defesa está se enfraquecendo no
mundo inteiro e considerou a imprensa como parcialmente responsável. “Com
a presença avassaladora da mídia, estamos criando figuras que, aos olhos da
opinião publicada, não merecem e não podem ser defendidas”, criticou. Na
avaliação do advogado, há no Brasil até mesmo um conceito para caracterizar
esses réus: são os “indignos de defesa”. “Tive um caso recentemente que me
provocou um desgaste de imagem muito grande, mas o fato é que as pessoas
achavam que aquele réu não podia ser defendido por este advogado”, afirmou
Bastos, que foi alvo de críticas por defender o contraventor Carlos Augusto
Ramos, o Carlinhos Cachoeira. “Nega-se cada vez mais a certas pessoas esse
direito [de defesa], como se elas não fossem dignas de defesa”, declarou.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-ago-28/thomaz-bastos-votopeluso-mensalao-anulado. Acesso em: 03 de setembro de 2012.
63 Formalmente, a igualdade perante a Justiça está assegurada pela
Constituição, desde a garantia de acessibilidade a ela (art.5º, XXXV). Mas
realmente essa igualdade não existe, pois está bem claro hoje que tratar
‘como igual’ a sujeitos que economicamente e socialmente estão em
desvantagem, não é outra coisa senão uma ulterior forma de desigualdade
e injustiça. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª
Edição revista. São Paulo. Malheiros Editores. 1998. p. 222.
41
Por vezes, o agente provocador da desigualdade está na própria
lei que pode e deve criar situações de desigualdade em oposição
à determinada parte, que formalmente sustenta relação jurídica
equânime em relação às demais partes. E sob esse aspecto temos
materialmente a necessidade de tal previsão conforme consigna
José Afonso da Silva64 “O outro prisma da igualdade e da justiça manifesta-se quando a lei cria situações de desigualdades em
confronto concreto com outras, que lhe sejam iguais, como o dispositivo que trata de forma desigual a entes que devam litigar em
igualdade de condições.”
Ocorre, porém, que referida norma está longe de abarcar todo
o verdadeiro alcance do acesso à justiça conforme assevera a balizada doutrina de Fernando de Castro Fontainha65
Tivemos a oportunidade de observar que acesso à justiça envolve um conceito muito mais amplo que admissão em juízo ou que acesso ao judiciário. Podemos dizer que acesso à justiça tem a função dual de ao mesmo
tempo ser uma garantia fundamental inerente à cidadania
e também velar pela realização de todas as demais garantias individuais e sociais. Por isso que se reafirma que
a aplicação deste princípio é de fato bastante delicada,
uma vez que, ao passo que devem ser abolidas as formalidades e barreiras à realização de um direito, deve-se
ter bastante cuidado para que garantias outras não sejam
como tais formalidades encaradas.
No mais, não há como estudar o tema sem mencionar a grande
contribuição dos autores Mauro Cappelletti66 e Bryant Garth, pilar
para qualquer aprofundamento no tocante aos estudos dos obstáculos
e análise dos mecanismos suficientes a promover um efetivo acesso
à Justiça. A mencionada obra traz uma subdivisão metodológica em
64 Idem. p.222.
65FONTAINHA, Fernando de Castro. Acesso à Justiça: Da contribuição
de Mauro Cappelletti à realidade Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Iuris, 2009. 66 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen
Gracie Nortfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris. 1988. p. 31.
42
relação ao movimento do acesso à justiça, classificando cada momento ou “onda” de acordo com o objeto mediato de estudo.
Resumidamente, em referida obra, Cappelletti e Garth trazem
três ondas de movimento do acesso à justiça, vinculando a necessidade da superação de determinados obstáculos de diversas naturezas para se viabilizar o efetivo acesso à justiça. Destarte, a primeira
“onda” renovatória explanou o movimento de assistência judiciária
aos necessitados econômicos, já a segunda se referia à tutela dos
direitos difusos e a terceira atenta para o acesso à representação
em juízo buscando uma concepção mais ampla de acesso à justiça.
Na análise de uma das atividades típicas da Defensoria Pública
temos o necessitado econômico, objeto de estudo na 1ª “onda”
renovatória. Com efeito, cumpre trazer as reflexões José Mario
Wanderley Gomes Neto67
Os primeiros esforços no sentido de propiciar a realização do acesso à justiça foram no sentido de promover
a prestação de serviços jurídicos aos mais carentes, partindo-se do seguinte axioma: quanto mais desenvolvido
o ordenamento jurídico nos moldes modernos, maior a
necessidade da presença de um advogado, indispensável
nas difíceis tarefas de interpretar a lei cada vez mais complexa e de decifrar os detalhes procedimentais referentes
ao ingresso e à permanência em juízo.
Para Mauro Cappelletti e Bryant Gart68, os obstáculos para o
acesso à justiça podem ser assim sistematizados: (1) custas judiciais,
pequenas causas e tempo de duração do processo; (2) recursos financeiros das partes, aptidão para reconhecer um direito e propor
uma ação ou apresentar sua defesa, existência de litigantes habituais
e eventuais; (3) problemas especiais relacionados aos interesses difusos, de natureza transindividual. Alertam ainda que um estudo
67 GOMES NETO, José Mario Wanderley. Acesso à justiça em Mauro
Cappelletti, Análise teórica desta concepção como “movimento” de
transformação das estruturas do processo civil brasileiro. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris, 2005.p. 62.
68 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen
Gracie Nortfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988. p. 15-29.
43
sério do acesso à justiça não pode negligenciar o inter-relacionamento entre as barreiras existentes.
Portanto, o que imprime o foco do Estado na busca da Justiça
social é o efeito material do princípio da igualdade que mais do
que viabilizar o mero acesso ao poder judiciário, abarca relevante
perspectiva de obtenção ao acesso a uma ordem jurídica justa, viabilizadora de uma verdadeira justiça igualitária69.
1.2 A modernidade e o desencantamento da Defensoria Pública
da União à luz da “Die Normative Kraft Der Verfassung”
Em fins do século XVII, a matriz unificadora da evolução humana
repousa sobre a questão religiosa70 e sobre um discurso unificador
unilateral que tem por consequência gerar deformações da prática
cotidiana inclusive paralisia de laços sociais71. Nesse processo, a
religião antes base para o processo de evolução assume postura de
inimiga da liberdade – Nietzsche rejeita Deus72 exatamente por69 CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant. Acesso à Justiça, cit., p 68.
70 De uma coisa apenas sabemos: que uma parte dos seres humanos
está salva, a outra ficará condenada. Supor que mérito humano ou culpa
humana contribuíam para fixar esse destino significaria encarar as decisões
absolutamente livres de Deus, firmadas desde a eternidade, como passíveis
de alteração por obra humana: ideia impossível. WEBER, Max. A ética
protestante e o “espírito” do capitalismo/Max Weber, tradução: José Marcos
Mariani de Macedo. São Paulo – Companhia das Letras, 2004. p.96.
71 Desde o fim do século XVIII, o discurso da modernidade tratou apenas,
sob nomes que mudam, sobre um único assunto. É um discurso que trata
da paralisia dos laços sociais, da privatização e da desunião, ou seja,
destas transformações da prática cotidiana unilateralmente racionalizada
que, por sua vez, suscitam a necessidade de um equivalente um substituto
da potência unificadora que representava a religião. HABERMAS, Jürgen
(1988), Le discours philosophique de la modernité, Paris: Galimard, 1988, p.
166, apud BERTEN, André. Modernidade e Desencantamento – Nietzsche,
Weber e Foucault. Tradutor: Marcio Anatole de Souza Romeiro. Editora
Saraiva. 2011. p.21.
72 Com minha condenação do cristianismo, não quisera ter ofendido uma
religião semelhante, que o ultrapassa pelo número de crentes, o budismo.
Ambas pertencem a religiões niilistas - são religiões de decadência – mas
o que as separa é marcante no mais alto grau [...]. O budismo é uma
religião para homens tardios, para raças que se tornaram boas, benignas,
superintelectualizadas, que não são muito suscetíveis a dor , esta religião
leva as pessoas à paz, ao bom humor, a uma dieta da inteligência , a um certo
44
que a religião por ele é identificada como castradora da liberdade
– então entre a crença e a liberdade deve-se optar pela liberdade
como forma a estancar o sentimento de inaudita solidão interior do
indivíduo73.
Ato contínuo, o que se passa a analisar é o processo de desencantamento da religião como absoluto74 a partir de uma visão
niilista, não por uma ausência de valor, mas pelo fato do próprio
valor ser o nada.
A sequência dessa reflexão começa com a indagação de o que a
modernidade tenta colocar em substituição ao absoluto da religião?
A modernidade adota como referência o homem como produtor
de mercadoria em uma sociedade que se torna despolitizada e se
satisfaz com essa lógica mercadológica. Hannah Arendt assim denomina essa estrutura de “homem laborans”75, pois o homem deixa
de produzir obras e consolidar registros de sua humanidade para
endurecimento do corpo. O Cristianismo pretende domar feras, seu meio
é torná-las doentes – o enfraquecimento é a receita cristã para domesticálas, civilizá-las. NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. Der Antichrist, Fluch
auf das Christentum. Texto integral. Tradução: Antonio Carlos Braga. 2ª ed.
Editora Escala. p.47 e 51-52.
73 Ora, em sua desumanidade patética, essa doutrina não poderia ter
outro efeito sobre o estado de espírito de uma geração que se rendeu a
sua formidável coerência, senão este, antes de mais nada: um sentimento
de inaudita solidão do indivíduo. WEBER, Max. A ética protestante e o
“espírito” do capitalismo/Max Weber, tradução: José Marcos Mariani de
Macedo. São Paulo – Companhia das Letras, 2004. p.95.
74 Idem. p.95-96. E, por fim, nenhum Deus: pois mesmo cristo só morreu
pelo eleitos, aos quais Deus havia decidido desde a eternidade dedicar
sua morte sacrificial. [Isto: a supressão absoluta da salvação eclesiásticosacramental (...) era absolutamente decisivo em face do catolicismo.
Aquele grande processo histórico-religioso de desencantamento do mundo
que teve início com as profecias do judaísmo antigo e, em conjunto
com o pensamento científico helênico, repudiava como supertição e
sacrilégio todos os meios mágicos de busca da salvação, encontrou aqui
sua conclusão... Não havia nenhum meio mágico, melhor dizendo, meio
nenhum que proporcionasse a graça divina a quem Deus houvesse decidido
negá-la.]
75 ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, revisão
técnica: Adriano Correia. – 11.ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2011.
45
o futuro, pois a dominação econômica não permite ao trabalho o
efeito de emancipação e libertação, mas sim, de alienação.
Exatamente essa metamorfose do absoluto, que transforma a
condição do homem em mero produtor de mercadorias para o outro,
é que fundamenta esse processo de desencantamento da realidade
posta, apesar e independentemente de razões e potenciais normativos – que se levados a efeito gerariam a referência defendida do chamado encantamento desencantado ou ainda do não
desencantamento.
O processo acima revelado se subsume faticamente à questão
da Defensoria Pública, pois suas potencialidades normativas
devidamente atreladas a manutenção e ao resguardo de direitos
fundamentais, humanos, bem como, os objetivos e fundamentos do
Estado Democrático de Direito, fazem com que a ausência de sua
efetiva implementação e estruturação gerem um processo de desencantamento com a ordem jurídica posta, que nem de longe alcança,
nesse modelo, a pretensão de ser justa.
Nessa perspectiva, não se pode por ingerências políticas ou fatores reais de poder se inverter a racionalidade constitucional e a
força normativa de seus preceitos, senão estaremos em uma estrutura
de velado regresso social por expresso e deliberado sucateamento
de uma instituição, que propõe demandas contra a própria estrutura
de Poder.
Então é pertinente a indagação de qual o interesse e a obrigação
do Ente Federado76, que mais pratica atos lesivos contra os assistidos
– tendo em vista ser o maior demandante e demandado do Poder
Judiciário – ter ele mesmo que criar e estruturar uma instituição que
postulará contra seus interesses.
O levantamento foi realizado com os tribunais de todo
o País e tem como referência os processos que não foram
definitivamente baixados em 31 de março de 2010. Traz,
portanto, recortes por setor da Justiça. Em relação ao Judiciário Federal, por exemplo, o estudo evidenciou o setor
76 Disponível em: http://www.editorajc.com.br/2012/07/uma-justica-parapoucos. Acesso em 03 de out.2012.
46
público também como maior litigante, com participação
em 77% dos processos. Os bancos, por sua vez, são responsáveis por 19% das ações judiciais.
De acordo com a pesquisa, do total de processos promovidos pelos cem maiores litigantes, o INSS é responsável por mais de 40% do total, somente na Justiça Federal, sendo 81% no pólo passivo. A participação da Caixa
Econômica, por sua vez, no bolo de ações envolvendo
bancos, é de 98%, sendo em 74% com parte ré.
Na Justiça do Trabalho, novamente o setor público,
acompanhado pelos bancos, indústrias e telefonia, representam 82% do total de ações. Com relação à administração, no entanto, chama a atenção o fato deste setor
encontrar-se no pólo ativo na maior parte das ações em
curso (81%). De acordo com o estudo, “não foi possível
identificar nem analisar as razões para essa excessiva participação do setor público federal enquanto pólo ativo na
Justiça do Trabalho”
A resposta encontra-se com Konrad Hesse77, em sua obra A força normativa da Constituição:
A constituição jurídica não configura apenas a expressão de uma dada realidade. Graças ao elemento
normativo, ela ordena e conforma a realidade política e
social. As possibilidades, mas também os limites da força
normativa da Constituição resultam da correlação entre
ser (Sein) e dever ser (Sollen).
A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra despertar “a força que reside na natureza das coisas”, tornando-a ativa. Ela própria
converte-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social. Essa força impõe-se de forma tanto
mais efetiva quanto mais ampla for a convicção sobre a
inviolabilidade da Constituição.
A partir dessa análise é que à chamada vontade da Constituição
(Wille zur Verfassung) deve ser o norte, a referência para guiar qual77 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição (Die normative Kraft
der verfassung). Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, 1991.
47
quer processo de transformação do paradigma do absoluto, seja
para evitar o desencantamento, seja para atribuir novos valores e
encantamentos de institutos desencantados pela realidade ou por
fatores reais de Poder.
1.3 O desencantamento78 da Defensoria Pública da União e a
casuística
Para uma real compreensão desse processo vamos explicitar
pontos que consagram o abismo entre a realidade e as metas constitucionais, no paradigma da Defensoria Pública da União, principalmente tomando por base a realidade vivenciada no Estado de
São Paulo79.
Nesse momento, é necessário pontuar a presente dissertação
como a tentativa de mais um defensor promover uma revolução80
ideológica, para efetivação de direitos fundamentais, ou, ao menos,
se desincumbir do aguilão dilacerador da honra e do encargo de
viabilizar o acesso à justiça no Brasil.
78 Para o paradigma projetado faz-se apontamento do trecho seguinte:
“(...) a tese do desencantamento pode ser interpretada de duas maneiras
diferentes. De um lado, é possível considerar que a racionalização das
imagens do mundo tornou toda a referência ao sagrado e ao transcendental
caduca; neste caso, é a dimensão religiosa, em toda a sua extensão, que
seria abolida – este é um dos significados oferecidos pelo niilismo. De
outro lado, pode-se também pensar que o que se tornou obsoleto é a
pretensão de uma religião – qualquer que seja ela - de oferecer um sentido
último para todos, de se colocar como depositária de um único quadro
de referência, de assumir uma atitude hierárquica em relação a todas as
atividades humanas atribuindo-lhes significado e valor. BERTEN, André.
Modernidade e Desencantamento – Nietzsche, Weber e Foucault. Tradutor:
Marcio Anatole de Souza Romeiro. Editora Saraiva. 2011. p.25.
79 As informações e dados registrados foram colhidos e absorvidos durante
dois anos de exercício de Chefia da maior unidade da Defensoria Pública
da União no Brasil.
80 (...) as Defensorias públicas federais e estaduais serão mais uma
instituição falha? Cabe aos Defensores Públicos abrir os tribunais aos
pobres, é uma missão tão extraordinariamente grande que, por si, será
uma revolução, mas também se não cumprida convenientemente, será um
aguilhão na honra dos que receberam e, porventura, não a sustentaram.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª Edição
revista. São Paulo. Malheiros Editores. 1998. p.222.
48
Inicialmente cumpre indicar que, em que pese o disposto nos
arts. 5º, LXXXIV, e, 134 da Constituição Federal, a DPU, inclusive
a unidade de São Paulo/SP, está instalada em caráter emergencial
e provisório81 sendo impossível, com a estrutura atual, a prestação
universal de assistência judiciária gratuita em todas as demandas
que seriam afetas à DPU.
Visando minorar o déficit na assistência judiciária gratuita e
universal a DPU realizou, no ano de 2010, concurso público para
provimento de cargos de defensores públicos federais de segunda
categoria, o qual culminou na aprovação de 323 candidatos, inclusive sub judices.
Em 26 de agosto de 2010 foram nomeados 137 candidatos e,
em razão de novas vacâncias, em 29 de setembro de 2010, foram
nomeados mais 3 aprovados. Não obstante, cerca de 182 candidatos aprovados aguardam a criação de novas vagas e o respectivo
provimento.
Os indivíduos constantes na referida lista formaram a “Comissão dos Aprovados do 4º Concurso da Defensoria Pública da
União” que vem se concentrando na mobilização política para
a aprovação do anteprojeto de lei para a criação de 600 cargos
da carreira de defensor público federal, em trâmite no Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão – MPOG, sob o número
03000.006273/2010-36.
Todavia, em que pesem todos os esforços existentes, o Governo
Federal, através da Portaria nº 39, de 25 de março de 2011, editada
pela Ministra de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão, suspendeu, por tempo indeterminado, a realização de concursos públicos
e a autorização para provimento de cargos públicos federais82.
81 Lei n. 9020, de 30 de março de 1995. Dispõe sobre a implantação,
em caráter emergencial e provisório, da Defensoria Pública da União e dá
outras providências.
82 Ainda que o quadro apresentado evolua para tonalidades que gerem
uma melhora da situação apresentada, a reflexão sempre será atual para
indicar o tratamento e como as questões que envolvem o acesso à justiça
no âmbito federal são tratadas. Dessa forma, mesmo como histórico dos
acontecimentos a informação apresenta relevância contemporânea.
49
Ainda mais grave, o corte no orçamento público levado a cabo
pela Presidente, vem dificultando, de forma excessivamente danosa
à população, não apenas a criação de novos cargos de defensores
públicos visando à concretização do acesso à justiça aos hipossuficientes, mas também o próprio desenvolvimento do trabalho
institucional da DPU, a qual carece de verba inclusive para os
deslocamentos dos defensores.
Verifica-se, através de levantamento realizado pela “Comissão
dos Aprovados do 4º Concurso da Defensoria Pública da União”83
a disparidade entre o número de cargos existentes nas carreiras do
Ministério Público da União – cerca de 1.698 membros, da Advocacia Geral da União – cerca de 7.970 membros, e das Magistraturas
Federais – cerca de 1.775 membros, e Trabalhistas – cerca de 3.574
membros em relação à Defensoria Pública da União, a qual possui
uma média de 470 defensores em todo o pais84.
Como paliativo a esse processo de desencantamento, diante
da impossibilidade de se deixar os hipossuficientes sem acesso à
justiça, e atento às dificuldades existentes na universalização da
assistência judiciária gratuita pelas Defensorias Públicas, o Poder
Judiciário já regulamentou tanto pelo Conselho da Justiça Federal,
conforme Resolução 541/07, quanto pelo Conselho Nacional de
Justiça, dada Resolução 62/09, a nomeação de advogados dativos
83 Disponível em: http://www.aprovadosdpu2010.com.br. Consulta em 15
de maio de 2012.
84 A disparidade também é apontada no seguinte trecho: “Sobre a atual
estrutura da DPU, sabe-se que a Instituição possui nos seus quadros 477
Defensores Públicos Federais lotados hoje em todas as capitais do país e
em algumas grandes cidades do interior. Contudo, são 740 Varas Federais,
mais de 700 Procuradores da República, mais de 4.400 Procuradores
Federais, mais de 1.500 Advogados da União e mais de 2.400 Procuradores
da Fazenda Nacional. Infere-se, a partir desses números, que a quantidade
de defensores públicos federais é ínfima para um país das dimensões
do Brasil e que a União está bem assessorada juridicamente, o que não
acontece com o povo brasileiro, em virtude da quantidade reduzida de
Defensores Público Federais, o que dificulta o acesso à justiça para o povo
hipossuficiente no sentido jurídico e financeiro”. HASSAN, Eduardo Amin
Menezes. DPU precisa de autonomia para cumprir sua função. Disponível
em:
http://www.conjur.com.br/2011-fev-27/defensoria-pública-uniaoapoio-poder-publico. Consulta em 20 de nov. de 2012..
50
e o cadastramento de advogados voluntários para suprir a falta da
Defensoria Pública nas subseções judiciárias e nas comarcas.
Ademais, a Resolução nº 558/07 do Conselho da Justiça Federal85
permite que, na impossibilidade de atuação da Defensoria Pública da
União, seja nomeado advogado dativo nos seguintes termos:
Art. 1º No âmbito da Justiça Federal, a assistência judiciária aos beneficiários da gratuidade de justiça será
realizada pela Defensoria Pública da União.
§ 1º Na hipótese de não ser possível a atuação de
Defensor Público da União, pela inexistência ou pela
deficiência de quadros, o juiz poderá nomear advogado
voluntário ou dativo para atuação no processo.
§ 2º Não se designará advogado dativo quando houver advogados voluntários cadastrados aptos a exercerem
este múnus, salvo se o juiz da causa entender que a assistência judiciária da parte não puder ser adequadamente
prestada por um dos advogados voluntários, hipótese em
que será obrigatória a comunicação à Corregedoria, justificando tal providência.
Não obstante, o custo para a nomeação dos advogados dativos
para atuação na Justiça Federal e Trabalhista, conforme levantamento realizado pela Comissão atingiu, no ano de 2009, o montante de
R$ 80.407.115,00 (oitenta milhões, quatrocentos e sete mil e cento
e quinze reais), o suficiente para a contratação de 581 (quinhentos
e oitenta e um) defensores públicos federais de 2ª Categoria, com a
simples realocação da verba pública, sem significar, portanto, ônus
financeiro para a União.
Vale ressaltar que o próprio Tribunal de Contas da União no
acórdão nº 544/2011, já reconheceu a deficiência no número de
defensores públicos e servidores do quadro administrativo da Defensoria Pública da União indicando recomendações.
As recomendações foram consideradas em implementação, tendo em vista que apesar de ter havido aumento
85 Disponível em: http://www2.cjf.jus.br/jspui/handle/1234/3735.
Consulta em 25 de maio de 2012.
51
no número de procuradores, bem como de pessoal da
área meio e administrativa, por meio de cessão de órgãos
e entidades da Administração Federal, os anteprojetos
que versam sobre aumento do quadro de pessoal da DPU
estão paralisados no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; que a quantidade atual de procuradores
e de servidores está aquém das necessidades da Defensoria; e que ainda não há lotação mínima de defensores
em todos os núcleos já instalados. O cargo de corregedor
foi criado pela Lei 12.230/2010, estando pendente sua
regulamentação por Decreto Presidencial86.
Independentemente do quadro aqui esboçado, o Governo
Federal, mesmo após o corte orçamentário e a suspensão dos
concursos e das nomeações, promoveu a nomeação de diversos
servidores federais em 2011, dentre os quais destaco cerca de 120
Procuradores Federais, em 24 de maio de 2011, cerca de 231 auditores fiscais da Receita Federal do Brasil, em 17 de junho de 2011,
e cerca de 240 Peritos Médicos Previdenciário.
Sublinho, ademais, a autorização promovida pelo Ministério do
Planejamento Orçamentário e Gestão – MPOG, para a nomeação
no ano 2011, de 200 candidatos aprovados em concurso público
para o cargo de Policial Rodoviário Federal e de 83 habilitados para
o cargo de Analista, 37 para Técnico e 10 para Procurador do Banco
Central do Brasil.
Cumpre indicar, por fim, através de análise de atendimentos realizados em 2010, que na unidade da DPU em São Paulo, somente
em outubro do ano indicado, foram abertos 786 Processos de
Assistência Jurídica - PAJ´s de 2ª Categoria e 398 de 1ª Categoria, sendo remetido à Instituição uma média de 600 processos
judiciais para as devidas providências, o que denota a expressiva
quantidade de atendimentos mensais.
Em relação aos atendimentos, verificou-se a realização, somente em outubro de 2010, de 611 iniciais e 1.121 retornos
de atendimento, além de 38 tele-atendimentos, 34 atendimen86 Disponível em: http://br.vlex.com/vid/-333224194. Consulta em 20 de
nov. de 2012.
52
tos virtuais e 49 atendimentos avulsos, totalizando uma média de
1.853 atendimentos.
Com atenção a tais dados, percebe-se que atualmente a DPU/
SP opera no limite máximo, tendo em vista o reduzido número de
defensores e de servidores o que inviabiliza a cobertura de todas
as áreas jurídicas de atuação institucional da Defensoria Pública
da União.
Desta forma, a DPU/SP promove ações judicias e extrajudicias
nas áreas criminal, eleitoral, cível, previdenciário, tributário, militar
e de direitos humanos e tutela coletiva, abstendo-se das demandas
trabalhistas devido à reserva do possível.
Em análise estatística da Justiça do Trabalho em São Paulo,
verifica-se que existem 90 Varas Trabalhistas de primeiro grau com
628.583 processos ativos. Em segundo grau há uma média de
64.516 processos por ano – a análise de 2010, tendo atualmente
103.771 processo ativos. Também na área de dissídios coletivos
o número é expressivo havendo, no ano de 2009, 206 processos
ajuizados.
Por tais razões, não é demasiado afirmar que a atuação da
Defensoria Pública da União encontra-se no limite do possível, motivo pelo não se efetiva a potencialidade normativa da
atuação da DPU 87 em relação aos atendimentos na área trabalhista ou em outras localidades, especialmente no interior,
sem que haja grave lesão a toda atuação institucional.
Com base em tais fatos, o CSDPU - Conselho Superior da
Defensoria Pública da União, na 122ª sessão ordinária, corroborou
a legitimidade na restrição do atendimento em demandas trabalhistas, conforme se depreende do seguinte voto da relatora Tatiana
Siqueira Lemos.
Determinar, hoje, que a Defensoria Pública da União
em São Paulo passe a atuar de forma irrestrita na Justiça
87 Art. 20, da Lei Complementar nº 80. “Os Defensores Públicos Federais
de 2ª Categoria atuarão junto aos Juízos Federais, aos Juízos do Trabalho, às
Juntas e aos Juízes Eleitorais, aos Juízes Militares, às Auditorias Militares, ao
Tribunal Marítimo e às instâncias administrativas”.
53
do Trabalho seria enorme irresponsabilidade, que, além
de resultar em um atendimento insatisfatório aos hipossuficientes litigando naquela corte, sem dúvidas viria desestruturando o atendimento que já vem sendo muito bem
realizado nas Justiças Federal, Militar e Eleitoral paulistas”, acentuou Tatiana em voto, cuja cópia será remetida
à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão naquele
estado. Essa recomendação serve como mais um instrumento de pressão, a indicar a inadiável necessidade de
se estruturar efetivamente a Defensoria Pública da União,
que já desde 1994 amarga a condição de criada em caráter emergencial.
Pelo mesmo motivo, a DPU no estado de São Paulo encontra-se impossibilitada de estender o atendimento para municípios nos
quais não há unidade da Instituição instalada, e por tal razão se vê
obstada de atuar quando há solicitação de designação de defensor
público federal por juízos federais do interior.
Nesse sentido, agrava-se, ainda mais, o processo de desencantamento quando percebermos uma incongruência constitucional, fruto de inserção e diferenciação injustificável do
poder constituinte derivado, a partir da concessão apenas para
Defensorias Públicas Estaduais da autonomia financeira e orçamentária. Tal fato gera a ruptura e a divisão de uma instituição
que natural e logicamente só pode ser una, pois como tratar
diferentemente assistidos da justiça federal em detrimento da
justiça estadual, como estabelecer mitigação social apenas
para o acesso à Justiça Federal?
Consignada essa incongruência inconstitucional88, a ausência
de dotação orçamentária específica originada da inexistência
88 ADI n º 4282-3/2009, proposta pela ANDPF – Associação Nacional dos
Defensores Públicos Federais, que intenta obter a reparação das ofensas
ao pacto federativo, isonomia e unidade entre as Defensorias Públicas
dos Estados e da União, através de interpretação conforme a Constituição.
Esta seria usada no parágrafo 2º do artigo 134, para abarcar a Defensoria
Pública da União como autônoma, em todos os campos de atuação, com o
propósito de cessar a violação da cláusula pétrea Defensoria Pública gerando
ainda, uma inconstitucionalidade por arrastamento de todos os dispositivos
infraconstitucionais que tratem ou regulamentem a mencionada autonomia.
54
de autonomia financeira e orçamentária e de iniciativa de sua
proposta orçamentária, deferida constitucionalmente apenas
para as Defensorias Públicas Estaduais 89, ex vi art. 134, § 2º,
CRFB, inviabiliza a adoção de medidas alternativas, tal qual a
celebração de convênios com a OAB, nos moldes do estabelecido pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Tal previsão, por sua clara inconstitucionalidade, motivou
o ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 41823/2009, pela Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais
– ANADEF, visando a supressão do vocábulo “estadual” no referido
dispositivo, a qual encontra-se, ainda, pendente de julgamento pelo
Supremo Tribunal Federal.
Vale indicar, ademais, que, reforçando o acesso à justiça, a Organização dos Estados Americanos – OEA – editou a Resolução,
AG/RES. nº 2656, na qual recomenda “aos Estados membros que já
disponham do serviço de assistência jurídica gratuita que adotem
89 Os efeitos do desencantamento se agravam com o distanciamento
das Defensorias Estaduais comparativamente a da União, pois a relatada
autonomia começa a se consolidar e viabilizar elementos objetivos de
estruturação do órgão estatal, apenas estadual, incumbido de assegurar o
direito fundamental do acesso à justiça, como se percebe com a seguinte
conquista: “A Câmara aprovou em Plenário, nesta quarta-feira (21), o
Projeto de Lei Complementar 114/11, do Senado, que permite aos estados
gastar até 2% da receita corrente líquida com pessoal da Defensoria
Pública, diminuindo o percentual atualmente destinado ao Executivo
estadual. (...) A cota da defensoria sairá do Executivo progressivamente.
De acordo com o projeto, os estados que gastarem com o pessoal da
defensoria menos de 1,5% da receita corrente líquida no ano de publicação
da futura lei complementar poderão gastar esse mesmo percentual no ano
seguinte. Daí em diante, a cada ano, poderão crescer os gastos à razão
mínima de um quinto da diferença entre o percentual e os 2% estipulados,
com a consequente diminuição do montante direcionado ao Executivo.
Os estados que já gastam 1,5% ou mais da receita poderão usar, já no
ano seguinte ao da publicação, os 2% estipulados. Autonomia. O projeto
também coloca a Defensoria Pública nos demais artigos da lei que remetem
às obrigações de cumprimento de metas fiscais, apresentação de contas,
gestão fiscal e relatório de despesas. Com isso, o órgão terá mais autonomia
para gerenciar os recursos repassados e responderá diretamente pelo seu
uso. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/agencia/noticias/DIREITOE-JUSTICA/430751-APROVADA-REGULAMENTACAO-DE-AUTONOMIADAS-DEFENSORIAS-ESTADUAIS.html. Acesso em: 22 de nov. de 2012.
55
medidas que garantam que os defensores públicos oficiais gozem
de independência e autonomia funcional”90.
Outro ponto específico, que merece destaque, é o Projeto de
Lei Federal que objetiva a criação de quadro de carreira de apoio a
Defensoria Pública da União, mas que até o momento, em que pese
o longo lapso temporal, permanece em trâminte no Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão.
A aprovação de tal projeto mostra-se, também, essencial para
a universalização do acesso à justiça promovido pela Defensoria
Pública da União, eis que o quadro de apoio é imprescindível para
a realização das atividades diárias das unidades da Instituição.
Por tudo quanto exposto, percebe-se a omissão do Poder Público Federal na concretização dos objetivos fundamentais insculpidos no art. 3º da CRFB/8891 e seu distanciamento dos fundamentos da República Federativa do Brasil previsto no art. 1º da
CRFB/8892. Dessa forma, além de restar demonstrado cabalmente
a clara omissão inconstitucional em face do art. 5º, LXXIV93 e art.
13494, ambos da Constituição da Republica Federativa do Brasil
em detrimento da maior parte da população brasileira composta
essencialmente de grupos vulneráveis e economicamente hipossuficientes, temos a consolidação do processo de desencantamento
90 Disponível em: http://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/11698/
AG_RES_2656_pt.pdf. Consulta em 22 de nov. de 2012.
91 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o
desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
92 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a
cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.
93 Art. 5º, LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita
aos que comprovarem insuficiência de recursos;
94 Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa,
em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
56
em relação a uma instituição que busca viabilizar o exercício de
um direito fundamental de acesso à justiça, que é a Defensoria
Pública da União.
Sendo o clímax do declarado desencantamento a realidade
consignada na Portaria nº 36895, de 15 de junho de 2012, do Defensor Público Geral Federal, que promoveu o fechamento da unidade
95 O DEFENSOR PÚBLICO-GERAL FEDERAL, usando das atribuições que
lhe são conferidas pelo artigo 8º, incisos I e III, da Lei Complementar nº 80,
de 12 de janeiro de 1994,
Considerando o Memorando Conjunto nº 002/2012-DPU/SP, datado de
12.6.2012, mediante o qual o defensor público-chefe da Defensoria Pública
da União em São Paulo/SP requer a designação de servidores em caráter
de força-tarefa, bem como autorização para restrição do atendimento ao
público;
Considerando a situação de extrema defasagem do quadro de servidores do
órgão da Defensoria Pública da União em São Paulo indicada no relatório
da correição ordinária realizada pela Corregedoria-Geral Federal da
Defensoria Pública da União, nos dias 24 e 25.5.2012, que aponta a DPU/
SP como sendo o órgão com menor quantidade de servidores por defensor;
Considerando que o déficit de servidores no órgão da DPU/SP vem
acarretando atraso relevante nas rotinas essenciais do Cartório, motivando
acúmulo no processamento interno de novas demandas, ocasionando
iminente risco de perda de prazos processuais e de perecimento do direito
do assistido;
Considerando a notícia de que foram realizados 2157 atendimentos em
dezesseis dias úteis na DPU/SP, e que apenas no mês de abril de 2012 havia
1.896 movimentações em atraso;
Considerando que ainda não foram autorizadas as reposições das vacâncias
de cargos do Plano Geral de Cargos do Poder Executivo – PGPE para
exercício na DPU/SP;
Considerando que os órgãos de origem estão solicitando o retorno dos
servidores requisitados que exercem suas atividades na DPU/SP;
Considerando que, em visita realizada pelo Defensor Público-Geral Federal
à DPU/SP, em 11.6.2012, restou verificada a insuficiência no quadro de
servidores, circunstância que reduziu a capacidade de trabalho no órgão,
RESOLVE:
Art. 1º - Restringir a atuação no órgão da Defensoria Pública da União
em São Paulo/SP às demandas urgentes que envolvam risco de restrição à
liberdade de locomoção e periclitação da vida e da saúde, pelo prazo de
quarenta e cinco dias, a contar de 18 de junho de 2012.
Art. 2º - Esta Portaria entra em vigor na data da publicação.
Portaria nº 368 da DPGU, publicada no DOU, em 18.06.2012, na secção
1, página 166.
57
de São Paulo por 45 dias, por absoluta falta de estrutura humana
e física, para o exercício de atividades vinculadas a já relatada
missão constitucional da instituição, conforme considerações
abaixo apresentadas.
Importante ressaltar que o inconformismo com a situação vivenciada sempre foi latente e ininterruptamente propagado pelos
canais midiáticos96, como verdadeira ação de agentes políticos
contra ofensas a direito fundamental de acesso à justiça dos necessitados, na esfera federal, sendo certo que o encerramento das
atividades de atendimento na DPU/SP, apesar de drástico pode ser
interpretado como adequado ao disposto no art. 4-A, II97, da Lei
Complementar 80, de 12 de janeiro de 1994, pois se o serviço ou
atividade fim não pode ser tido como eficiente e de qualidade, por
absoluta ineficiência ou inexistência de meios, não pode ser prestado de outra forma que não a prevista em lei.
96 Com os trabalhos prejudicados por falta de pessoal, a DPU-SP (Defensoria
Pública da União em São Paulo) vai interromper o atendimento ao público
a partir de segunda-feira (18). A decisão foi tomada pela instância federal
do órgão depois que o Defensor-Geral, Haman Tabosa, esteve na unidade
paulista e constatou a impossibilidade de continuação do serviço com o
número de servidores disponíveis atualmente.A interrupção dos trabalhos
tem efeito sobre a população de baixa renda, pois a instituição é responsável
por prestar assistência jurídica ao cidadão carente em casos que tramitam
no âmbito da Justiça Federal. De acordo com o chefe substituto da DPU-SP,
Marcus Vinícius Rodrigues Lima, as pessoas que demandavam o serviço
estavam sendo prejudicadas porque muitos prazos foram perdidos.— Isso é
um desserviço, porque o assistido muitas vezes acaba perdendo o direito na
ação. Já tínhamos limitado a atendimento de 200 para 110 senhas por dia,
mas agora nem esse número temos condições de atender. Estamos em uma
situação de absoluta impossibilidade de prestar um serviço de qualidade.
Disponível
em:
http://noticias.r7.com/sao-paulo/noticias/defensoriapubica-da-uniao-em-sp-fecha-as-portas-ao-publico-a-partir-desta-segundafeira-20120618.html. Acesso em 04 de out. de 2012; Disponível em: http://
g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2012/06/defensoria-publica-da-uniao-emsp-fecha-parte-do-atendimento.html. Acesso em 04 de out. de 2012.
97 São direitos dos assistidos da Defensoria Pública, além daqueles previstos
na legislação estadual ou em atos normativos internos: II – qualidade e
eficiência do atendimento. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/lcp/Lcp80.htm. Acesso em 04 de out. de 2012.
58
1.4 O encantamento desencantado da Defensoria Pública da
União
Constatado o desencantamento, como com tal realidade podemos
vislumbrar novos valores para antigos institutos? O mecanismo que
se pretende confrontar tal questionamento deve necessariamente
partir pela racionalização e preservação da mencionada referência
constitucional, para então buscarmos novos encantamentos.
Para perfeita compreensão do encantamento proposto tendo por
paradigma a análise da religião e as críticas de Feuerbach98 e Marx
Weber, não se pode desconsiderar a oposta afirmação de Weber de
que “a religião seria lógica e enciclopédia popular, espírito de um
mundo sem espírito”. Então o paradigma, gera desencantamento
através da alienação existente na face opiácia do conformismo99, e,
ao mesmo tempo permite encantamento por servir de fundamento
da combativa evolução.
(...) Marx procurou mostrar que a religião é uma forma de conhecimento e explicação da realidade usada
pelas classes populares para dar sentido as coisas, as relações sociais e políticas, encontrando significações que
lhes permitam, periodicamente, lutar contra os poderes
tirânicos.
Ao se propor uma interpretação viável a religião, que já não
se apresenta mais como absoluto, o caminho da transformação a
ser trilhado necessariamente passa pelo niilismo100, que apesar de
98 No século XIX, o filósofo Feuerbach criticou a religião como alienação.
(...) A alienação religiosa é esse longo processo pelo qual os homens não
se reconhecem no produto de sua própria criação e transformam-no num
outro (alienus), estranho, distante, poderoso e dominador. O domínio
da criatura (Deuses) sob seus criadores (homens) é alienação. CHAUI,
Marilena. Filosofia série Brasil. Editora Ática. São Paulo. 2005. p.148.
99_Idem.p149. Se, por um lado, na religião, existe a face opiácia do
conformismo, por outro, existe a face combativa dos que usam o saber
religioso contra as instituições legitimadas pelo poder reológico-político.
100 É interessante observar que o termo niilismo foi introduzido na filosofia
por Friedrich Jacobi para denunciar as consequências da crítica kantiana:
o idealismo, o de Kant e de Johann Fichte, parece incapaz de atingir o
59
possuir diferentes designações apresenta uma essência anárquica
que libera inovadora força criadora, capaz de gerar reconstrução
do próprio paradigma, bem como, na mesma lógica da Defensoria
Pública.
Pelo entendimento da possibilidade de se extrair efeitos positivos
na consideração do paradigma religioso, da mesma forma, adotamos o processo de encantamento para a realidade desencantada da
Defensoria Pública da União.
Nessa perspectiva, faz-se referência aos ensinamentos de Paulo
Bonavides101, ao se traçar elementos objetivos, para aferição de novos valores dada à interrupção do relatado ciclo funesto
Legitimidade também se adquire. E se adquire gradativamente, paulatinamente, por obra de uma caminhada
lenta de consenso, incorporação de valores e salvaguarda
de princípios, que são indubitavelmente o cimento da ordem constitucional: ordem reforçada com o tempo, com
o exercício das franquias públicas e civis, com a educação do povo, com o respeito às garantias constitucionais,
com o tirocínio da liberdade. A legitimidade perdida se
restaura também mediante observância de princípios e
direitos fundamentais. Essa observância é a única forma
de acabar com a crise constituinte, estampada na desorganização moral e espiritual da sociedade e do Estado.
Entretanto, apesar da solução estar atrelada ao encerramento
dos problemas levantados e o respeito da constituição, destaca-se
próprio real do qual ele deve fazer um objeto de fé (...) O desespero diante
do absurdo do mundo e da vida poderia levar ao suicídio, mas o niilismo
também comporta uma confiança na fecundidade de uma negação que,
por radical que seja, libera forças ainda desconhecidas. “A paixão pela
destruição é uma força criadora”: a formula de Bakunin tem uma ressonância
nietzschiana. LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. Tadução: Lúcia M.
Endlich Orth. 6 ed. – Petrópolis. RJ. Editora Vozes. 2011. p. 188.
101 BONAVIDES, Paulo. Aula Magna – XIX Conferência Nacional de
advogados – Florianópolis, setembro de 2005 – Fundamentos e rumos da
democracia participativa (Soberania, Legitimidade e Unidade Nacional).
Revista Latino Americana de Estudos Constitucionais, Número nº7. Del
Rey. Janeiro/junho de 2007. p.672.
60
a seguir todas as diligências implementadas pela Defensoria Pública da União em São Paulo, que, se não atribuem solução a questão
geram o início da releitura que aqui se defende como forma de
obter uma densificação do princípio do acesso à justiça, a luz do
princípio da reserva do possível.
No início de 2011, de forma pioneira foram constituídos
Grupos Temáticos de Trabalho102, para promovermos com maior
eficiência a tutela jurídica de diversos grupos vulneráveis
São Paulo, 12/05/2011 – Os Defensores Públicos Federais atuantes em São Paulo constituíram três Grupos de
Trabalho (GTs) voltados para a área cível: de Estrangeiros,
Contratos Bancários e Habitação. Nas reuniões, são discutidas ideias e teses jurídicas, por vezes organizadas em
bancos de pesquisa.
A defesa dos direitos humanos tem sido de forma inovadora
amparada por novas perspectivas de atuação da DPU103, principalmente na tutela coletiva e a defesa de vítimas de crime,
conforme informação veiculada “Defensoria Pública da União
em São Paulo (DPU/SP) exige na Justiça que rede de lojas de
moda feminina cheque condições de trabalho de terceirizadas
e cobra R$ 300 mil de danos morais coletivos por flagrante de
trabalho escravo” 104
Por fim, ainda a título exemplificativo, importante ressaltar
o pioneiro Termo Técnico de Colaboração celebrado entre as
Defensorias Pública federal e estadual do Estado de São Paulo com o Serviço Franciscano de Solidariedade – Sefras, tendo
por finalidade promover orientação, difusão de cidadania com
participação de assistentes sociais 105 e atendimento jurídico
102 Disponível em: http://www.dpu.gov.br . Consulta em 20 de set. 2012.
103 Essas novas perspectivas de atuação serão objeto de estudo em capítulo
que abordará os fundamentos e a construção jurídica da defesa e da tutela
de diversos grupos vulneráveis pela Defensoria Pública da União.
104
Disponível
em
http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.
php?id=1858&name=DPU-ajuíza-ação-contra-a-Collins-por-trabalhoescravo. Consulta em 10 de set. de 2012.
105 A participação de servidoras com especialização em Assistência Social,
61
a moradores de rua106, grupo extremamente vulnerável e que tem
direito a ter acesso à justiça.
Conclui-se com base no III Diagnóstico das Defensorias Públicas107 realizado pelo Ministério da Justiça, que a atuação da instituição, mesmo quando fulminada pela reserva possível encontra
mecanismos para viabilizar e expandir o Acesso à Justiça, sempre
priorizando mecanismos inovadores e alternativos de resolução de
conflitos.
No período de 2006 a 2008 o aumento no volume
de trabalho dos Defensores Públicos foi significativo. O
número de atendimentos realizados pelas Defensorias
Públicas aumentou em 45,17%. (...). Com relação ao número de ações ajuizadas ou respondidas, o aumento no
período foi de 66,59%. O predomínio das ações foi na
área cível, que em 2008 foi de 84% do total. O número de audiências com a participação de Defensores Públicos nos últimos três anos, assim considerados os atos
voltados para a instrução de um procedimento judicial
ou administrativo, aumentou em 52,57%. Ainda nesse
é função institucional da Defensoria Publica e decorre de uma assistência
jurídica integral e gratuita lato senso, conforme previsão do art. 4º, IV da
Lei Complementar n. 80 “Art 4º. São funções institucionais da Defensoria
Pública – prestar atendimento interdisciplinar, por meio de órgãos ou de
servidores de suas Carreiras de apoio para o exercício de suas atribuições”.
106 A Defensoria Pública da União (DPU) criou um grupo de trabalho
nacional para integrar a instituição à Política Nacional para a População em
Situação de Rua, instituída pelo governo federal em 2009. A estrutura será
implantada na cidade de São Paulo, onde, de acordo com dados oficiais,
vivem 42,7% dos 13.666 brasileiros sem-teto. [...] A Política Nacional para
a População em Situação de Rua foi instituída pelo Decreto Presidencial
7.053/2009. O documento estipula como população em situação de rua “o
grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema,
os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de
moradia convencional regular”. Outra característica elencada é o uso de
logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e
de sustento. Disponível em: http://www.dihitt.com.br/barra/gt-vai-integrardpu-a-politica-nacional-para-moradores-de-rua. Consulta em 05 de set.
2012.
107 Disponível em: http://www.portal.mj.gov.br. Consulta em 11 de set.
de 2012.
62
período, os acordos extrajudiciais que contaram com a
participação de Defensores Públicos tiveram um aumento de 65,14%, e as prisões em flagrante comunicadas à
Defensoria Pública tiveram um aumento de 129,96%.
Houve aumento também no número de habeas corpus
impetrados ao STJ e STF por um Defensor Público.
Entre 2006 a 2008, o número de habeas corpus impetrados endereçado ao superior tribunal de Justiça, por um
Defensor Público aumentou 63,78%. nesse período, foram mencionados 1.047 habeas corpus concedidos pelo
STJ. (...). Durante 2008, o Supremo concedeu 83 habeas
corpus tendo a Defensoria Pública como impetrante. Em
2009, até 30/09/2009, o STF já havia concedido 84 habeas corpus tendo novamente a Defensoria Pública como
impetrante. (...). A existência de algum programa, ação
ou projeto que contempla formas alternativas de resolução de conflitos na Defensoria Pública foi relatada por
61,54% das instituições.
Na lógica do encantamento desencantado além da mudança
do paradigma que permite rotineiramente a Defensoria Pública da
União se valer de novas formas e perspectiva para lidar com antigos
problemas e assim, pontualmente ir superando indevidas barreiras
de atuação, tem-se como indicativo de esperança, de transformação
e concretude das potencialidades constituintes, da essência do direito fundamental Defensoria Pública da União, projetos de criação
de novos cargos, assim como, o caminhar em direção a autonomia
financeira e orçamentária.
No tocante à primeira relatada esperança, já concretizada, em
setembro de 2012, foi encaminhado pelo Ministério do Planejamento projeto de lei que contempla o plano de interiorização da
Defensoria Pública da União e autorização para criação de novos
789 cargos de defensor público federal108, tendo sido a proposta
inclusa no projeto de Lei Orçamentária Anual de 2013.
108 “Brasília – Com a meta de ampliar o acesso da população de baixa
renda à assistência jurídica gratuita, o número de Defensorias Públicas da
União (DPU) deve passar das atuais 58 para 200 unidades distribuídas por
todo o território nacional até 2015. A informação está na edição de hoje
(16) da coluna semanal Conversa com a Presidenta. No texto da coluna, a
63
Ato contínuo, e elemento a justificar o encantamento proposto,
consolidou-se a sanção da Lei n. 12.763, de 27 de dezembro de
2012, que criou 789 cargos de defensor público federal109, contudo,
todos os cargos permanecem vinculados a fatores orçamentários
com previsão de implementação gradual, que na lógica da Defensoria gera preocupação110.
A razão propulsora dessa iniciativa tem por pano de fundo,
além do irrisório número de atuais 481 defensores federais, diluídos por todo o Brasil e em diferentes categorias, o fato da DPU
estar em apenas 22%111 das subseções federais e a União ter sofrido
presidenta Dilma Rousseff destaca a garantia de direitos como fundamental
para o acesso à cidadania: “Um dos pilares da cidadania é a garantia
do acesso aos direitos, para a qual é fundamental um sistema de justiça
democrático, eficiente e transparente”. Disponível em: http://www.ebc.
com.br/2012/10/presidenta-dilma-anuncia-ampliacao-das-defensoriaspublicas-da-uniao. Consulta em 24 de out. de 2012.
109 Serão destinados 732 cargos para a Segunda Categoria (inicial), 48 para
a Primeira Categoria (intermediária) e 9 para a Categoria Especial (final). O
provimento dos cargos será realizado de forma gradual, de acordo com a
previsão orçamentária para cada exercício. A prioridade da instituição é
nomear os 136 aprovados no último concurso para a carreira, realizado
em 2010 e, a partir de então, realizar um novo certame. De acordo com
o defensor público-geral federal, Haman Tabosa de Moraes e Córdova, "o
ingresso de todos os aprovados no 4º concurso é o primeiro passo após a
sanção da lei, que precisa ser efetiva na medida em que se faz urgente a
inserção desses profissionais no quadro institucional a fim de reforçar o
trabalho que desempenhamos com os atuais defensores públicos federais".
Disponível em http://www.dpu.gov.br. Consulta em 11 de jan. 2013.
110 Art. 2o O provimento dos cargos criados por esta Lei será realizado
de forma gradual e será condicionado a expressa autorização em anexo
próprio da lei orçamentária anual, com dotação suficiente, nos termos do §
1º do art. 169 da Constituição Federal.
111 A criação de novos cargos de defensor público federal, a carreira de apoio
e a aprovação do quadro de funções gratificadas para estruturação do modelo
de gestão descentralizada são os principais objetivos atuais da Defensoria
Pública da União. Entre 2001 e 2011, a DPU passou de 7 mil para 1,3
milhão de atendimentos. A ideia é expandir o quadro funcional para que seja
cumprido o Plano de Interiorização, que visa a dotar as localidades onde há
instalações da Justiça Federal com um núcleo da Defensoria”. Disponível em:
http://www.dpu.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=93
11:criacao-de-789-cargos-de-defensor-federal-esta-na-proposta-orcamentariapara--2013&catid=215&Itemid=458. Consulta em 09 de set. de 2012.
64
inúmeras condenações em ACPs – Ações Civis Públicas, propostas pelo MPF – Ministério Público Federal, para implementação
definitiva da DPU e, lotação de defensores públicos federais,
principalmente, em regiões com diminuto IDH – índice de desenvolvimento humano.
Portanto, a justificar a última esperança de que a instituição federal do Estado incumbida de viabilizar o direito fundamental do
acesso à justiça possa fazê-lo com eficiência na área federal, tem-se
duas frentes de batalha, que são: ADI112 – Ação Declaratória de Inconstitucionalidade proposta pela ANADEF – Associação Nacional
dos Defensores Públicos Federais, com fundamento no princípio da
unidade da Defensoria Pública, para finalidade de promover a supressão da expressão “estaduais” da redação prevista no art. 134,
§2º, da Constituição Federal; e a PEC – Proposta de Emenda a Constituição, já aprovada113 no Senado Federal a unanimidade, com dois
turnos de votação, para concessão114 de expressa autonomia finan112 A Defensoria Pública da União (DPU) foi admitida como amicus
curiae em processo, no Supremo Tribunal Federal (STF), referente à Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4282-3, que pede a extensão da
autonomia administrativa e de iniciativa de proposta orçamentária à DPU.
Como “amigo da corte”, a Instituição prestará informações para ajudar os
ministros do Supremo em sua decisão. A ação questiona parte da Emenda
Constitucional nº 45/2004, que muda o artigo 134 da Constituição Federal,
determinando que apenas as Defensorias Públicas Estaduais tenham
autonomia plena, excluindo a DPU. Disponível em:http://www.dpu.gov.
br/index.php?option=com_content&view=article&id=4064:adi-pedesimetria-entre-defensorias-estaduais-e-da-uniao&catid=79&Itemid=220.
Consulta em 13 de set. de 2012.
113 Justificativa consignada no Parecer da PEC nº 82 de 2011. “Na Justificação,
os autores defendem a necessidade de se conferir à Defensoria Pública
da União o mesmo tratamento hoje conferido às Defensorias Estaduais,
que gozam de autonomia administrativa e funcional desde 2004, uma vez
que a DPU é instituição fundamental para a implementação e a prática da
cidadania, possibilitando o acesso à justiça para parcela considerável da
população brasileira. Acrescentam os autores da proposição que apesar do
pequeno número de defensores federais – cerca de quatrocentos e oitenta
– a DPU realizou mais de um milhão de atendimentos no ano de 2010,
trabalho que é fruto da abnegação dos defensores, uma vez que lhes faltam
melhores condições para ajudarem as camadas menos favorecidas da
sociedade a terem acesso ao Judiciário”.
114 PEC nº 82 de 2011. Acresce § 3º ao art. 134 da Constituição Federal para
65
ceira e iniciativa de proposta orçamentária as Defensorias Públicas
da União e do Distrito Federal.
assegurar às Defensorias Pública da União e do Distrito Federal autonomia
funcional e administrativa, iniciativa de sua proposta orçamentária dentro
dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação
ao disposto no § 2º do art. 99 da Constituição Federal.
66
2. O COMBATE AO FENÔMENO DA
VULNERABILIDADE.
2.1 As considerações e peculiaridades do grupo vulnerável.
Com o compromisso de delimitar a matéria que será pesquisada
na presente dissertação optou-se, no geral, na abordagem do tema
vulnerabilidade, como sendo a característica de um determinado
grupo, apesar da origem da mesma ser sempre individual, ou
peculiaridade que qualifica o estado vivenciado por determinado
indivíduo de estar sujeito a qualquer tipo de vulneração.115
Ao tratarmos da peculiaridade do grupo na característica da
vulnerabilidade, se faz, inicialmente, uma opção metodológica no
que diz respeito ao desenvolvimento da característica do grupo de
assistidos que, por si só, já nutririam a condição de vulnerabilidade
econômica no desenvolvimento de uma das atividades típicas da
Defensoria Pública, que é a defesa e postulação dos direitos dos
necessitados econômicos individual ou coletivamente, na esfera
judicial ou administrativa.
O que se registra é que a necessidade econômica em si já
constituiria vulnerabilidade suficiente a imprimir característica ao
115 Vulnerável. Adj2g1. Que pode ser vulnerado. 2. Diz-se do ponto pelo
qual alguém ou algo pode ser atacado. FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa dicionário. 7ª.
ed. – Curitiba: Ed. Positivo. 2008.
67
grupo adequadamente tutelado pela Defensoria Pública. Entretanto,
optou-se por considerar a vulnerabilidade do grupo objeto da pesquisa além da característica da necessidade econômica, apesar de
a mesma ser suficiente para sozinha imprimir a característica da
vulnerabilidade.
A referida opção metodológica leva em consideração a possibilidade de restringindo o campo de pesquisa agregar valor ou
potencialidade lesiva aos direitos dos integrantes do grupo, afim de
que a vulnerabilidade no paradigma seja maximizada pela própria
ofensa ou condição humana do grupo, independentemente da
existência ou não da vulnerabilidade econômica.
Ainda no desbravar metodológico da pesquisa, ao se procurar
nos estudos de caso a maximização da vulnerabilidade, o que
também se quer demonstrar é o desempenho de um relevante novo
papel da Defensoria Pública da União como verdadeiro representante adequado, a postular como legitimado extraordinário os direitos
e interesses dos vulneráveis.
E mais, ao tratarmos da vulnerabilidade, nessa perspectiva
maximizada, sem o compromisso de se desenvolver o conceito da
hipervulnerabilidade, mas tendo por norte essa ideia, busca-se consolidar a necessária participação da Defensoria Pública da União na
tutela jurídica adequada para o reestabelecimento dos direitos reflexos
da ofensa: a cidadania, aos direitos fundamentais e humanos.
E tendo valores e princípios tão caros ao Estado de Direito,
como pano de fundo da defesa da cidadania e combate a vulnerabilidade da pessoa humana, analisarmos o mecanismo de atuação
da Defensoria nessa dinâmica defensiva ao limite de se apreciar
o questionamento de um novo enfoque de efetividade ao acesso
à justiça.
2.2 Os diversos grupos vulneráveis
Registradas as devidas ressalvas metodológicas adentramos especificamente a dinâmica do estudo do universo de grupos vulneráveis tutelados ou passíveis de tutela pela Defensoria Pública da
União, e mais uma vez, para que não haja abstração e dispersão
68
da lógica jurídica116, é necessária uma seleção dos casos a serem
analisados.
Ainda a justificar a necessidade da mencionada delimitação
indica-se o fato de que a Defensoria atualmente apresenta, com a
reforma da Lei Complementar nº 80, um alargamento de suas atribuições, ainda não estabilizadas. E mais, se no exercício da função
de viabilizar o acesso à justiça, o defensor se pauta por direitos fundamentais que em si, possuem verdadeiro dispositivo constitucional
para ampliação dos direitos fundamentais que é o art5º,§2º117, da
CRFB/88, o labor, a missão, os casos não encontram natural ou
normativa limitação.
Transparece que, do ponto de vista normativo, o
dispositivo constitucional sob enfoque permite resolver
deficiências na enumeração dos direitos, que vão sendo
empiricamente constatadas. (...) No aspecto jurídico, a
Constituição contém norma bastante para resolver deficiências na enumeração dos direitos, necessita, porém, ser
realizada também em todos os aspectos previstos, inclusive com a implementação de medidas concretas para o
efetivo gozo dos direitos por todo o povo.
Portanto, seguindo a fórmula antecipadamente anunciada de se
buscar outras vulnerabilidades além da econômica e a maximização
da própria ofensa ou lesão da condição de ser humano, optou-se
pela apresentação de casos118 com preliminar abordagem temática
116 Apesar de se poder aplicar a Lógica Formal ao direito, aquela não
se confunde com esta; ela é na verdade uma lógica material, calcada
na experiência e na materialidade dos assuntos jurídicos, dentro de um
contexto de argumentação e de um desenvolvimento não puramente
demonstrativo, mas de uma articulação fundamentalmente opinativa, e
portanto de persuasão retórica. ALVES, Alaôr Caffé. Lógica: pensamento
formal e argumentação: elementos para o discurso jurídico – 5º Edição –
São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 406.
117 DOBROWOLSKI, Sílvio. Direitos Fundamentais – A Cláusula de
expansão do artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição de 1988. Revista LatinoAmericana de estudos constitucionais. Diretor: Paulo Bonavides. Editora:
Del Rey. Número 7. Janeiro/junho de 2006. p.256.
118 Antecipadamente a prematura crítica de que o foco da atuação e dos
casos apresentados estariam restritos a estrangeiros e não a brasileiros, fato é
69
acerca de temas como: violação de direitos de presos estrangeiros
e ofensa ao devido processo legal; reflexos da caracterização do
trabalho escravo, e tráfico de pessoas e a questão dos refugiados, na
dinâmica do procedimento de solicitação do refúgio e problemas
enfrentados.
2.3 A legitimidade da Defensoria para Ações Civis Públicas como
instrumento de tutela dos direitos dos grupos vulneráveis.
A Defensoria Pública, instituição com status constitucional (art.
134, CF/88)119 e função precípua de atuar na defesa e consolidação
dos interesses da população mais pobre deste país, restou legitimada, pelo critério legal, para figurar no pólo ativo de Ações Civis
Públicas, a partir da promulgação da Lei nº 11.448/07, que alterou
o artigo 5º, da Lei 7.347/85120, que a inseriu no rol de legitimados,
na esteira das reformas que têm o escopo de dotar o sistema jurídico
nacional de maior efetividade.
Ressalta-se que a Lei n. 7.347/85, com a nova redação que lhe
deu a Lei nº 11.448/07, não condiciona a atuação da Defensoria
Pública apenas quando haja interesse exclusivo de hipossuficientes. Aliás, para que a norma ganhe os contornos democráticos que
lhe pretendeu dar o legislador, assegurando o acesso à justiça dos
necessitados, é indispensável que, quando em risco ou violado direito difuso, coletivo ou individual homogêneo, caiba à atuação da
Defensoria Pública.
Como não há limitativos na Lei de Ação Civil Pública, é possível
concluir, inclusive, que mesmo não havendo interesses de hipossuficientes é possível à tutela de direito metaindividual pela Defensoria
Pública, em mais uma hipótese de função atípica da instituição,
que a defesa e a tutela jurídica apresentada relacionam-se menos ao caráter
subjetivo da tutela e mais a defesa objetiva do universal valor humano, que
como tal, está atrelado a estrangeiros ou brasileiros pela simples razão de
sermos todos seres humanos.
119 Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa,
em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
120 Art. 5º. Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação
cautelar: II - a Defensoria Pública.
70
como já são a curadoria especial no processo civil e a defesa dativa
no âmbito criminal, por exemplo.
O tratamento jurídico dispensado à Defensoria Pública pela Lei
n. 7.347/85 é o mesmo assegurado ao Ministério Público, à União,
Estados, Distrito Federal e Municípios, isto é, independentemente
de quaisquer requisitos. Diferente é o tratamento dado às associações, que além do requisito temporal de constituição há mais de
ano, devem incluir, entre suas finalidades institucionais, a proteção
ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico, para que possam promover a ação civil pública. Se o
legislador já previu tratamento diferenciado, estabelecendo requisitos de atuação para um dos legitimados (as associações), certo é
que não exige o cumprimento de quaisquer outros requisitos para
os demais legitimados, caso contrário, faria ressalva expressa no
texto da lei.
Com muito mais razão, portanto, dá-se a atuação da Defensoria Pública da União na tutela de grupos vulneráveis, porque,
logicamente os integrantes do grupo são necessitados pela inerente
vulnerabilidade que os aflige, portanto, adequado ao conceito
amplo de necessitado que permite a tutela da Defensoria seja para
o necessitado jurídico ou organizacional.
Dessa forma, a legitimação da Defensoria Pública visa a assegurar o acesso à justiça, e não restringi-lo, evitando-se decisões
contraditórias e o acúmulo de demandas, versando sobre o mesmo
fato. Portanto, não há dúvida de que esse instrumento processual é
um dos mais eficazes para garantir o direito à razoável duração do
processo e à celeridade de sua tramitação (art. 5º, inc. LXXVIII, da
CF/88), à medida que torna desnecessária a reprodução de inúmeras demandas individuais idênticas, evitando a sobrecarga do Poder
Judiciário e todos os transtornos daí decorrentes.
Sobre a necessidade de aplicação do princípio da tutela coletiva,
destaca-se trecho doutrinário de Ada Pellegrini Grinover:
“A interpretação rigorosa da técnica processual, no
processo individual, tem dado margem a que um número
71
demasiado de processos não atinja a sentença de mérito,
em virtude de questões processuais (condições da ação,
pressupostos processuais, nulidades, preclusões etc.). As
normas que regem o processo coletivo, ao contrário, devem ser sempre interpretadas de forma aberta e flexível
– há disposição expressa nesse sentido no Anteprojeto
de Código Brasileiro de Processos Coletivos – e o juiz
encontrará nelas sustentáculo para uma postura menos
rígida e formalista. O princípio geral do processo coletivo
– capaz de transmitir-se ao processo individual – é muito
claro, nesse campo: observado o contraditório e não havendo prejuízo à parte, as formas do processo devem ser
sempre flexibilizadas.”121
Ainda quanto à alteração promovida pela Lei n. 11.448/07, cita-se trecho de DIDIER e ZANETI:
A nova redação do art. 5º da LACP (Lei 7.347/1985),
determinada pela Lei n. 11.448/2007, prevê expressamente a Defensoria Pública (art. 5º, II, LACP) entre os
legitimados para a propositura da ação civil pública.
Atende, assim: a) a evolução da matéria, democratizando a legitimação (...); b) a tendência jurisprudencial que
se anunciava. Além disso, a redação do dispositivo ficou
mais clara.122
A legitimidade justifica-se, portanto, levando-se em consideração que a tutela jurisdicional coletiva é um dos instrumentos jurídicos mais importantes na proteção da dignidade humana, já que a
atuação coletiva apenas cumpre seu objetivo quando potencializa
o indivíduo, não como um apêndice do coletivo, mas como parte
integrante e indispensável.
O cabimento da ação civil pública mostra-se ainda mais evidente em razão do interesse social relevante presente no caso, uma
vez que há caráter constitucional dos direitos individuais homogêneos, como supramencionado. Isto decorre da própria natureza do
121 Direito processual coletivo, p.306.
122 DIDIER JR, Fredie, ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil
– processo coletivo, vol.4.3ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2008.p.239.
72
direito em questão, a dignidade da pessoa humana, e determina a
legitimidade da Defensoria, o que se mostra por interpretação analógica desta decisão:
O Ministério Público possui legitimidade para propor
ação civil pública com o fim de obter certidão parcial do
tempo de serviço que segurado tem averbado em seu favor.
Com base nesse entendimento, a Turma negou provimento a agravo regimental em recurso extraordinário em que
o Instituto Nacional de Seguro Social – INSS sustentava
ofensa aos artigos 127 e 129, III, da CF. Considerou-se
que o direito á certidão traduziria prerrogativa jurídica,
de extração constitucional destinada a viabilizar, em favor do indivíduo ou de uma determinada coletividade
(como a dos segurados do sistema de previdência social),
a defesa (individual ou coletiva) de direitos ou o esclarecimento de situações, de tal modo que a injusta recusa
estatal em fornecer certidões, não obstante presentes os
pressupostos legitimadores dessa pretensão, autorizaria a
utilização de instrumentos processuais adequados, como
o mandado de segurança ou como a própria ação civil
pública, esta, nos casos em que se configurasse a existência de direitos ou interesses de caráter transindividual,
como os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Enfatizou-se que a existência, na espécie, de interesse social relevante, amparável mediante ação civil pública, restaria ainda mais evidenciada, ante a constatação
de que os direitos individuais homogêneos ora em exame
estariam revestidos, por efeito de sua natureza mesma, de
índole eminentemente constitucional, a legitimar desse
modo, a instauração, por iniciativa do parquet, de processo coletivo destinado a viabilizar a tutela jurisdicional
de tais direitos. RE 472489 AgR/RS, rel. Min, Celso de
Mello, 29.4.2008. Informativo nº 504 do STF / 2008.
Portanto, não resta qualquer dúvida quanto à legitimidade da
Defensoria Pública para propor Ações Civis Públicas, principalmente, para tutela de Grupos Vulneráveis/Necessitados, seja por
interpretação do princípio da tutela coletiva como pela nova redação
da Lei 7.347/85, em razão da Lei 11.448/07.
73
2.4 As funções institucionais da Defensoria como mecanismo de
combate a vulnerabilidade
A Defensoria como instituição possui sua organização e regulamentação prevista na Lei Complementar nº 80, de 1994, alterada pela Lei Complementar nº 132, de 2009, que previu inúmeras
novas atribuições e garantias e que nos permitem avaliar um novo
sistema de assistência jurídica integral e gratuita ao necessitado,
fundado nos direitos fundamentais, humanos e na dignidade da
pessoa humana.
Nessa dimensão, a Defensoria agrega valor ao ponto de contribuir
com o singelo desempenho de suas atribuições, para o resgate de
grupos sociais em situação de vulnerabilidade socioeconômica123.
Essa conclusão pode ser facilmente extraída pela interpretação literal do art. 1º da Lei Complementar 80: “A Defensoria Pública é
instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos
direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial,
dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos
necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art.
5º da Constituição Federal.”
Ainda na proposta de uma análise sistemática, outras funções
institucionais da Defensoria Pública ratificam a instituição como essencial a manutenção do Estado Democrático de Direito e ao papel
123 A partir de uma leitura atenta do art. 1º da LC 80/94, tem-se a dimensão
da importância da Defensoria Pública para realização do projeto normativoconstitucional de 1988, especialmente no que tange ao objetivo fundamental
(3º, III) de trazer para o seio de nossa comunidade político-estatal os
indivíduos e grupos sociais em situação de vulnerabilidade socioeconômica.
E, nesse sentido, o papel a ser desempenhado pela Defensoria Pública é
justamente o de tornar acessível as pessoas necessitadas o nosso sistema de
justiça, mas, acima de tudo, promover a tutela e efetivação dos seus direitos
fundamentais, de modo a lhes assegurar nada menos do que uma vida
digna. FENSTERSEIFER, Tiago. O controle judicial das políticas públicas
destinadas à efetivação do direito fundamental das pessoas necessitadas
à assistência jurídica integral e gratuita. In José Augusto Garcia de Souza
(coordenador). Uma nova Defensoria Pública pede passagem. Reflexos
sobre a Lei Complementar 132/09. 1ª ed. Rio de Janeiro: Juris. 2011. p.341.
74
que aqui se propõe que é a Defensoria possuir natureza jurídica
de inquestionável direito humano fundamental, contribuindo diretamente para o resgate de grupos humanos em situação de vulnerabilidade, conforme os arts. 4º, III, VI, X e XI, todos da LC 80/94124,
que tornam a Defensoria umbilicalmente ligada à manutenção e
proteção dos direitos humanos.
Necessário citar o Pacto de San José da Costa Rica125, do qual o
Brasil é signatário, para então afirmar que os direitos essenciais do
homem devem ser respeitados, reconhecendo que tais direitos não
derivam do fato do homem pertencer a determinado Estado, mas
sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana,
razão pela qual justificam uma proteção internacional.
De acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria
só serão garantidos se forem criadas condições que permitam a
cada pessoa gozar dos seu direitos econômicos, sociais, culturais,
bem como dos seus direitos civis e políticos. O reconhecimento da
dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus
iguais é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo.
Segundo o artigo 22 da Declaração Universal do homem e do
cidadão: “Todo o homem, como membro da sociedade, tem direito
124 Art. 4º da LC 80/94. “São Funções institucionais da Defensoria Pública,
dentre outras: III – promover a difusão e conscientização dos direitos
humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico; VI – representar aos
sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, postulando
perante seus órgãos; X – promover a mais ampla defesa dos direitos
fundamentais dos necessitados abrangendo seus direitos individuais,
coletivos, sociais, econômicos, culturais, ambientais, sendo admissíveis
todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva
tutela; e XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da
criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades
especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros
grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado”.
125 Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969. Preâmbulo:
“Reconhecendo que os direitos essenciais da pessoa humana não derivam
do fato de ser ela nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter
como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam
uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou
complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos”.
75
à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada
Estado, dos direitos econômicos, sociais culturais, indispensáveis à
sua dignidade a ao livre desenvolvimento de sua personalidade126”.
A Defensoria Pública da União preza pela dignidade dos seres
humanos, pois tem por função institucional a orientação jurídica e a
defesa, em todos os graus, dos necessitados. É instituição essencial à
função jurisdicional do Estado, justamente por garantir o direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados,
e, dessa forma, com a simples execução de suas tarefas, missões
legais e constitucionais, rotineiramente, combate a vulnerabilidade
que aflige diversos grupos vulneráveis.
Ressalte-se que a Defensoria executa diversas atividades de combate
à vulnerabilidade buscando promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre pessoas em conflito
de interesses e para tanto, se vale de todas as técnicas de composição e
administração de conflitos127. Essa orientação se aplica inclusive quando
em um dos polos da lide temos o próprio Estado.
A Defensoria desenvolveu diversos projetos para priorizar a solução administrativa e, por vezes, até política da vulnerabilidade
como se destacam: GATRUA, Grupo de Trabalho desenvolvido em
SP, para o atendimento interdisciplinar aos moradores de rua, Projeto de erradicação ao escalpelamento128, DPU nas escolas – projeto
126 Direitos Humanos. – 3. Ed. – Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de
Edições Técnicas, 2007. Conteúdo: Atos Internacionais – Normas Correlatas
de Direito Interno – Doutrina – Índice do Tribunal Penal Internacional. p.17.
127 Art. 4º da LC 80/94. “São Funções institucionais da Defensoria Pública,
dentre outras: II – promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos
litígios, visando a composição entre as pessoas em conflito de interesses,
por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas
de composição e administração de conflitos; (Redação dada pela Lei
Complementar nº 132 de 2009).
128 Projeto vencedor do prêmio INNOVARE, VII edição 2010: O
escalpelamento é uma realidade comum entre a população ribeirinha da
Amazônia e nada tem a ver com a prática utilizada pelos índios guerreiros
retratados nos filmes do velho oeste americano. Trata-se de acidente de
consumo que ocorre dentro de pequenas embarcações ribeirinhas que
navegam pela região norte, acidente cujos efeitos ultrapassam a pessoa
da vítima, alcançando sua família, a comunidade local e a sociedade de
76
que busca promover a difusão de cidadania nas escolas, nos termos
do art. 4º, III, da Lei Complementar nº 80/94, GT de Refugiados, coordenado pela Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado de
São Paulo, e também existente em outros estados. Inúmeros são os
projetos, Comitês, Conselhos e Grupos de Trabalho em que a DPU
atualmente está inserida, sendo oportuno destacar a recente vitória
em mais um INNOVARE – 2012, na categoria Defensorias, com
projeto de assistência a hanseníase desenvolvido no Maranhão.
A hanseníase ou mal de Hansen, popularmente
conhecida como “lepra”, é enfermidade que carrega
milenarmente estigmas que ainda hoje reproduzem preconceitos, tal como o de conceber o isolamento social
dos acometidos pela doença como prática de profilaxia.
um modo geral. O escalpelamento ocorre quando pessoa com cabelo
comprido aproxima do eixo descoberto entre o motor e a hélice, tendo os
cabelos puxados pela forte rotação deste arrancando todo ou parte o couro
cabeludo, inclusive sobrancelhas, orelhas e, dependendo do caso, grande
parte da pele do rosto e do pescoço. Não é necessário afirmar que isto causa
deformações gravíssimas e até, por vezes, a morte. As principais vítimas são
mulheres, sendo a maioria crianças, com faixa etária de maior incidência
entre os 5 e os 16 anos, seguido de 17 a 30 anos e por último acima de
31 anos. O projeto de erradicação do escalpelamento por embarcação
na Amazônia desenvolvido pela Defensoria Pública da União tem duas
linhas de atuação: ações reparadoras e ações preventivas. Nas ações
reparadoras, a Defensoria Pública da União orienta a vítima sobre seus
direitos, providência a documentação para o recebimento da indenização
com base no seguro DPEM, garante a cirurgia plástica reparadora, além
de estimular a vítima para freqüentar cursos de capacitação visando a
sua ressoacialização. O acesso à Justiça é feito por meio da abertura do
Processo de Assistência Jurídica – PAJ na unidade da Defensoria Pública da
União local, com a presença da vítima, e, a partir daí, será providenciado
todos os documentos necessários desta, além do preenchimento da Ficha
de Identificação de Vítima de Escalpelamento – FIVE, vide anexo, cujas
informações serão necessárias para traçar política pública visando à
erradicação do acidente. Em relação às ações preventivas, o foco principal
é cobrir o eixo que liga o motor a hélice nas embarcações ribeirinhas e
promover campanhas de prevenção e orientação, em especial, ensinando
como agir diante de um acidente causador do escalpelamento objetivando
minorar as seqüelas. Disponível em: http://www.premioinnovare.com.
br/praticas/erradicacao-do-escalpelamento-justica-para-a-populacaoinvisivel/. Consulta em 26 de nov. de 2011.
77
O Estado brasileiro, seguindo parâmetros científicos desenvolvidos no século XIX, instituiu como prática oficial
a internação e o isolamento compulsório de hansenianos
em hospitais e estabelecimentos similares desde a década
de 1920. Tal prática culminou em excessos no controle da doença, causando graves danos a direitos básicos
de indivíduos, como cerceamento da liberdade, torturas
físicas e psicológicas, falta de acesso à educação, aos
direitos políticos e ao convívio social, bem como rompimento absoluto dos vínculos familiares. No Maranhão,
com a finalidade de abrigar e tratar enfermos da hanseníase, foi criada na década de 1930 a Colônia do Bonfim,
que recebeu centenas de hansenianos compulsoriamente
isolados. Não coincidentemente, o local escolhido era
separado fisicamente do Centro da cidade de São Luís
por um braço de mar e estigmatizado há séculos como
“área maldita”, destinada inicialmente à quarentena de
escravos enfermos e, após a abolição, ao isolamento de
pessoas com doenças contagiosas ou transtornos mentais. Atualmente denominado Hospital Aquiles Lisboa,
vinculado à Secretaria de Estado de Saúde do Maranhão,
a Colônia ainda abriga dezenas de hansenianos, constituindo-se num dos 33 (trinta e três) antigos hospitais-colônia do país. Com o objetivo de mitigar a injustiça social
institucionalizada pelo Estado brasileiro com pessoas internadas na Colônia do Bonfim e com seus descendentes,
a Defensoria Pública da União em São Luís, provocada
em março de 2009 pelo Movimento de Reintegração das
Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN), desenvolve projeto de atenção multissetorial a tal coletividade.
A prática envolve defensores públicos federais que atuam
nas áreas de Direitos Humanos, Direito Previdenciário
e Direito Civil e visa, em síntese: a reestruturação física e de recursos humanos do Hospital Aquiles Lisboa; a
concessão administrativa ou judicial da pensão especial
federal prevista na Lei n. 11.520/2007, destinada a compensar pessoas atingidas pela hanseníase e submetidas
a isolamento e internação compulsória até 31/12/1986;
78
a obtenção de indenização pela demora na concessão
da referida pensão; o fornecimento a órteses e próteses a
internos e egressos da Colônia que delas necessitem em
razão de deficiências e mutilações causadas pela hanseníase; e a atuação rumo à aprovação de lei que preveja
indenização aos descendentes de internos da Colônia retirados compulsoriamente do convívio de seus pais logo
após o nascimento, os chamados “filhos separados”129.
129
Disponível
em:
http://www.premioinnovare.com.br/praticas/
assistencia-a-atingidos-pela-hanseniase-no-maranhao/. Consulta em 20 de
nov de 2012.
79
3. A PROTEÇÃO DOS ESTRANGEIROS
NA CONDIÇÃO DE VULNERÁVEIS
3.1 Os estrangeiros e a violação aos valores de cidadania e
dignidade da pessoa humana
A dignidade é a qualidade de cada pessoa que a faz merecedora
de respeito por parte do Estado, implicando vários direitos e deveres fundamentais que lhe assegurem contra todo e qualquer ato de
cunho degradante, garantindo-lhe as condições mínimas para uma
vida digna.
Fato é que, com a Declaração de Direitos do Homem, em
1948, os valores nela expressos, foram aceitos por toda a humanidade, concretizando-se, portanto, a universalidade de tais
valores. Como bem sintetiza Bobbio130.
Com a Declaração de 1948, tem início uma terceira e última fase, na qual a afirmação dos direitos é, ao
mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido
de que os destinatários dos princípios nela contidos não
são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado,
mas todos os homens, positiva no sentido de que põe
em movimento um processo em cujo final os direitos do
homem deverão ser não apenas proclamados ou apenas
130 BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Tradução: Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro. Editora Campus. 1992.
81
idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos
até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado.
(...) A Declaração Universal contém em germe a síntese
de um movimento dialético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina
na universalidade não mais abstrata, mas também ela
concreta, dos direitos positivos universais.
O reconhecimento de direitos humanos trouxe como reflexo profunda modificação na concepção de Estado. O indivíduo, concretamente considerado, passa a sujeito de direitos, diferenciando-se, a
partir daí, a relação de Estado e cidadão. O Estado moderno, portanto,
é concebido para atender aos interesses do cidadão.
O preâmbulo da Declaração já aponta os valores nos quais
se fundam, elevando, sem dúvida, o indivíduo a sujeito de direitos, ao trazer o princípio da dignidade humana, como vetor a
informar os direitos ali protegidos.
Os importantes pactos internacionais, de proteção aos direitos do homem, que se seguiram, reafirmaram a importância
deste vetor – a dignidade da pessoa humana, sendo de se destacar o pacto internacional dos direitos civis e políticos de 1966,
pacto internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais,
também de 1966, ambos aprovados pela assembléia geral das
Nações Unidas, a convenção americana de direitos humanos
(pacto de São José da Costa Rica).
O pacto internacional dos direitos econômicos, sociais e
culturais, em inteira consonância com os direitos já declarados
pela declaração dos direitos do homem, tratou de incorporar
dispositivos da citada declaração, desta feita, sob a forma de
preceitos obrigatórios e vinculantes, como bem ressalta Flávia
Piovesan (Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional – Saraiva, 2009).
Na disposição do seu artigo décimo-primeiro131, já assegura que:
131Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionaisdh/tidhuniversais/cidh-dudh-psocial.html. Consulta em 15 de out de 2012.
82
Art. 11-1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado
para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma
melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a
consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido,
a importância essencial da cooperação internacional
fundada no livre consentimento.
Percebe-se que o mencionado Pacto, trouxe norma vinculante e obrigatória para todos os Estados aderentes, no sentido
de que deve ser assegurado a todo cidadão o direito a um nível
de vida adequado.
Um “nível de vida adequado”, sem dúvida não se realiza se
não se garantir mecanismos de acesso ao mercado de trabalho.
Este, o mínimo essencial, do qual o Estado não pode se desvincular.
E com clareza, dada à universalidade do preceito humano, a
garantia da dignidade ampara além dos nacionais, também os
estrangeiros, pela sua simples condição de serem humanos.
Ao Estado e especialmente todos os órgãos e entidades que
compõem ou atuam ao lado do Estado, no exercício de função
pública, cabe não só o dever de respeito a esse valor humano,
como também de proteção e promoção dos direitos fundamentais.
Neste sentido, é disposição do Artigo 8º da Declaração dos Direitos do Homem:
Toda a pessoa tem direito a recurso efectivo para as
jurisdições nacionais competentes contra os actos que
violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidas pela Constituição ou pela Lei132.
Portanto, defende-se a dignidade da pessoa humana para que o
indivíduo possa realizar totalmente as suas necessidades básicas, o
132 Direitos Humanos. – 3. Ed. – Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de
Edições Técnicas, 2007. Conteúdo: Atos Internacionais – Normas Correlatas
de Direito Interno – Doutrina – Índice do Tribunal Penal Internacional. p.15.
83
que já se chamou de piso vital mínimo. Sendo certo, que essa defesa,
em virtude de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil,
extrapola uma cômoda posição passiva de apenas evitar, com os
seus próprios atos, o desenvolvimento de ofensa à dignidade da
pessoa humana, pois a defesa desse valor intrínseco a manutenção
do Estado Democrático de Direito faz com que o Estado tenha que
estar sempre vigilante a inibir toda e qualquer prática vulneradora
do valor humano, perpetrada por quem quer que seja.
3.2 Estudo de caso1: violação da dignidade humana de presos
estrangeiros, mulas do tráfico, no aeroporto internacional de
Guarulhos
Para melhor compreensão da problemática será abordado o caso
pelo seguinte roteiro: exposição dos fatos e fundamentos da violação
sistemática de direitos; a análise dos direitos violados em confrontação
ao sistema jurídico, ao princípio do devido processo legal e ao princípio da vedação a prestação ineficiente do Estado; atuação da Defensoria Pública da União na tutela jurídica adequada focada na violação
de direitos do grupo vulnerável identificado como mulas estrangeiras.
3.2.1. Exposição dos fatos e fundamentos da violação sistemática
de direitos dos vulneráveis
O aeroporto internacional de Guarulhos é o principal e mais
movimentado aeroporto do Brasil, em razão de servir ao Estado de
São Paulo, de grande relevância econômica e cultural no país. Circula, diariamente, um grande volume de cargas e de passageiros,
motivo pelo qual, muitas organizações criminosas utilizam-no para
o transporte de entorpecentes.
É pacífico que o Brasil já integra a rota do tráfico, especialmente
como ligação entre a América do Sul e a Europa, pelo grande número de vôos. São vários os casos em que são detidos passageiros
com intenção de transportar drogas, seja no próprio corpo ou em
outros objetos.133
133 PF prende holandesa com mais de 3 kg de ecstasy em Cumbica. A Polícia
Federal em São Paulo prendeu ontem (28) no aeroporto internacional de
Cumbica, em Guarulhos (Grande SP), uma holandesa de 18 anos com 3,325
kg de comprimidos de ecstasy.(...) PF prende no aeroporto de Guarulhos
84
A segurança do aeroporto internacional de Guarulhos é feita
pela polícia federal, que conta com uma delegacia no próprio aeroporto, já que busca combater possíveis crimes federais, a exemplo do
tráfico internacional de entorpecentes134. A estrutura do aeroporto
conta também com o aparato da polícia civil (com função principal
de registrar ocorrências e perda de objetos) e da polícia militar (com
atribuição restrita aos crimes militares e policiamento ostensivo),
que também têm unidades no local.
Apesar da estrutura policial existente no aeroporto internacional
de Guarulhos, tanto da polícia federal como da própria polícia civil e
até mesmo da polícia militar, o DENARC – Departamento de Narcóticos tinha estabelecido um sistema de plantão de seus inspetores no
local, em razão da grande circulação de pessoas e bagagens.
A atuação do grupo de inspetores do DENARC era feita de forma independente de outras polícias – sobretudo a polícia federal
– e até mesmo de outros grupos do próprio departamento, o que
gerava repetidas e desnecessárias abordagens policiais ao mesmo
indivíduo. Os termos de depoimento dos policiais em vários casos
permitiam inferir a habitualidade das ações no Aeroporto:
sul-africano acusado de tráfico. Policiais federais prenderam segunda-feira
(21) um sul-africano no aeroporto internacional de São Paulo, em Guarulhos
(região metropolitana), sob acusação de tráfico internacional de drogas. Com
ele, a PF (Polícia Federal) afirma que foram apreendidos aproximadamente 5
kg de cocaína. Disponível em:http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/
ult95u367938.shtml Consulta em 10 de abril de 2012.
134 Art. 144 da CRFB/88. “A segurança pública, dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública
e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes
órgãos: § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente,
organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: I
- apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento
de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas
e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha
repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme,
segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo
da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de
competência; III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária
e de fronteiras; IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia
judiciária da União”.
85
(...) encontrava-se de serviço no Aeroporto Internacional de Cumbica, no município de Guarulhos, em cumprimento à escala deste Departamento de Narcóticos, com
vistas ao combate ao narcotráfico135.
(...) Na data dos fatos, escalados por esta divisão,
dirigiram-se ao aeroporto e passaram a diligenciar e investigar junto às companhias aéreas para identificarem
possíveis traficantes internacionais de drogas136.
(...) estava de diligências de combate ao narcotráfico no Aeroporto Internacional de Cumbica em
Guarulhos/SP, em cumprimento à escala deste Departamento (...) 137.
Ao identificarem um suspeito, seja pela análise de nacionalidade, destino e justificativa da viagem, comportamento inquieto, ou
ainda decorrente de supostas denúncias anônimas, os inspetores do
DENARC realizavam busca na bagagem e no corpo dos suspeitos,
com o intuito de barrar o transporte ilegal de entorpecentes. Em casos não raros, mesmo não encontrando indícios de ilegalidade com
essa busca, encaminhavam os flagrados, geralmente estrangeiros, a
algum hospital próximo, para que fosse tirada uma radiografia, a fim
de identificar a possível ingestão de entorpecente.
Tal procedimento era semelhante à atuação da polícia federal, que concentra a atribuição de investigação de crimes federais,
no ponto de priorizar a salvaguarda da vida do preso. No entanto,
constatou-se, como regra, a prática dos policiais civis de transportarem
os suspeitos, estrangeiros flagrados com entorpecente, do Aeroporto
Internacional em Guarulhos, até a sede do próprio DENARC, na
Zona Oeste de São Paulo, local em que era então lavrado auto de
prisão em flagrante.
Destaca-se trecho de oitiva de inspetor do DENARC sobre a regra
adotada pelos policiais do Departamento:
135 Processo 2007.61.19.008739-7, Termo de depoimento do Investigador
X. (dados preservados em razão do sigilo)
136 Processo 2007.61.19.007272-2, Termo de depoimento do Investigador
Y. (dados preservados em razão do sigilo)
137 Processo 2007.61.19.009909-0, Termo de depoimento do
Investigador Z. (dados preservados em razão do sigilo)
86
Ainda no aeroporto foi constatada a presença de cocaína na bagagem, onde foi dada voz de prisão. Não sou
subordinado à polícia do aeroporto, nem a polícia federal,
razão pela qual os réus foram apresentados no DENARC.
Esse procedimento é o mesmo que é adotado pela polícia federal em situações semelhantes, quando o preso é
apresentado na respectiva sede. Há instrução legal nesse
sentido, cujo nome específico não me recordo138.
O DENARC – Departamento de Investigações sobre Narcóticos,
órgão especializado da polícia civil do Estado de SP, tem atribuição para investigar e operar em todo o Estado de São Paulo, sendo
função precípua de qualquer policial a prisão em flagrante, pois,
segundo o artigo 301, do Código de Processo Penal: “qualquer do
povo poderá e as autoridades policiais deverão prender quem seja
encontrado em flagrante delito”.
A recorrente medida, porém, não encontra justificativa plausível
e muito menos fundamento legal, uma vez que existe delegacia da
polícia federal, que possui atribuição legal139 para a investigação de
crimes de tráfico internacional, em razão da competência da justiça federal, no próprio aeroporto. Ademais, há um posto da polícia
civil no local, cuja estrutura hierárquica é seguida pelo DENARC.
Tais fatos, por si só, já evidenciam a possibilidade da lavratura do
auto de prisão no próprio Aeroporto e dispensam a necessidade de
deslocamento até outra distante unidade policial.
Grande parte dos suspeitos era formada por estrangeiros, que se
submetem às indicações dos inspetores do DENARC, havendo casos
138 Oitiva da testemunha A, referente ao processo n 2007.61.19.0097056, em audiência realizada em 06/06/2008.
139 Já o aspecto relativo à fixação constitucional de atribuições entre as
polícias judiciárias, estadual e federal é objeto principal da presente obra.
Assim, quando alguém é detido em flagrante delito, deve-se indagar, antes
de mais nada, se o fato a ser conhecido e averiguado pertence às atribuições
da Polícia Federal ou da Polícia Civil visando a apresentação do detido à
autoridade com atribuição constitucional, à autoridade competente, pois
somente esta tem poderes legítimos para analisar fato que enseja tão grave
restrição a direito individual que é a privação da liberdade do indivíduo.
DAURA, Anderson Souza. Inquérito policial: competência e nulidades dos
atos de polícia judiciária. Curitiba: Juruá, 2006. p.126/127.
87
em que nem sequer compreendem a língua falada pelas autoridades. Segue-se a isto um trajeto de no mínimo 40 (quarenta) minutos,
no cálculo mais otimista, já que é notório o tumultuado trânsito de
São Paulo e de Guarulhos, sobretudo das vias que ligam as cidades (Rodovia Presidente Dutra, Marginal Tietê e Marginal Pinheiros).
São numerosos os casos de assistidos pela DPU em que os acusados
foram levados à sede do DENARC140 para a lavratura do auto de prisão em flagrante, sem necessidade, como nos seguintes processos141:
2007.61.19.008739-7; 2007.61.19.007272-2; 2008.61.19.002135-4;
2008.61.19.003493-2; 2007.61.19.007622-3; 2007.61.19.007447-0;
2007.61.19.002330-0; 2007.61.19.008835-3; 2007.61.19.006972-3;
2007.61.19.009344-0; 2007.61.19.007677-6; 2007.61.19.007676-4;
2007.61.19.008337-9; 2007.61.19.009266-3; 2007.61.19.007813-0.
A alternativa mais óbvia, eficaz e legal seria a lavratura do auto
no Aeroporto Internacional, local da própria prisão em flagrante,
como ocorre em muitos casos de tráfico. Mesmo nas situações em
que o suspeito era levado a um hospital de Guarulhos, caso se constate a ingestão de entorpecente, o mais adequado era a lavratura
do auto no local mais próximo, e não em outra cidade, a muitos
quilômetros e até mesmo horas de percurso.
3.2.2. Análise dos direitos violados em confrontação ao sistema
jurídico, ao princípio do devido processo legal e ao princípio da
vedação a prestação ineficiente do Estado.
Uma análise mais detida permite concluir que o descumprimento do Código de Processo Penal gera uma série de fatores prejudiciais aos assistidos pela Defensoria, assim como para os demais
nacionais ou estrangeiros presos no Aeroporto Internacional, ao
ponto de, em razão da ausência de instrumentos individuais de tutela e a complexidade da lesão possamos dar características de alta
140 Destaque-se que, somente dos 190 casos cujas audiências foram
realizadas do período 30/01/2008 a 28/05/2008 pelos Defensores do
Núcleo de Guarulhos, cerca de 40% foram flagranteados pelo DENARC.
141 Todos os autos de processo em referencia foram julgados pelas
varas federais criminais da Justiça Federal de Guarulhos, com a defesa
patrocinada pela Defensoria Pública da União, sendo certo que a instrução
criminal dos diversos processos serviu de instrumento probatório para o
desenvolvimento da tutela do grupo vulnerável ora apresentado.
88
vulnerabilidade ao grupo de estrangeiros submetidos à atuação das
forças do Estado, com ofensa a legalidade142.
É certo que formalização da apreensão e da prisão pelo flagrante
cabe, apenas, à autoridade do local da apreensão ou prisão, conforme indicam os artigos 304143 e 308144 do Código de Processo Penal.
Tais dispositivos visam à legalidade da prisão, como meio de
assegurar a eficácia do direito fundamental da segurança jurídica,
que consiste no respeito à dignidade da pessoa humana, aos direitos
fundamentais e à proibição de retrocesso social145 no direito constitucional brasileiro.
142 Quanto ao princípio da legalidade, ensina o Ministro Gilmar Mendes:
“Tal como outras ordens constitucionais, a Constituição brasileira consagra
como princípio básico o postulado da legalidade segundo o qual "ninguém
está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei" (CF, art. 5.º, II). O princípio da legalidade contempla, entre nós, tanto a
idéia de supremacia da lei (Vorrang des Gesetzes), quanto a de reserva legal
(Vorbehalt des Gesetzes). O princípio da reserva legal explicita as matérias
que devem ser disciplinadas diretamente pela lei. Este princípio, na sua
dimensão negativa, afirma a inadmissibilidade de utilização de qualquer
outra fonte de direito diferente da lei. Na sua dimensão positiva, admite-se
que apenas a lei pode estabelecer eventuais limitações ou restrições. Por
seu turno, o princípio da supremacia ou da preeminência da lei submete a
administração e os tribunais ao regime da lei, impondo tanto a exigência
de aplicação da lei (dimensão positiva) quanto a proibição de desrespeito
ou de violação da lei (dimensão negativa)”. Disponível em http://www.stf.
jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/sta235.pdf. Consulta em 09 de
jan. de 2013.
143 Art. 308 do Código de Processo Penal “Apresentado o preso à
autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua
assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso.
Em seguida, precederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e
ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo,
após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal,
o auto”.
144 Art. 304 do Código de Processo Penal “Não havendo autoridade no
local em que se houver efetuado a prisão, o preso será apresentado a do
local mais próximo”.
145 (...) para o cidadão, a possibilidade de confiar na eficácia e, acima
de tudo, na efetividade dos direitos que lhe são assegurados pela ordem
jurídica já integra, de certo modo, um direito à segurança. Como também
nesta esfera o leque de alternativas segue imenso (em se considerando
as peculiaridades de cada manifestação especial do direito à segurança)
89
Pela correta interpretação dos trechos legislativos, destacamos
dois vetores essenciais para a lavratura do auto de prisão em flagrante: competência e proximidade. Assim, a regra, a contrario sensu, é de que a lavratura do auto de prisão em flagrante deve ser feita
pela autoridade competente mais próxima do local em que ocorreu
a prisão146.
No mesmo sentido, o direito à segurança jurídica é visto
sob a perspectiva não só da pessoa em si, quanto a seus direitos
fundamentais, mas também em relação à própria ordem jurídica contra atitudes de viés retrocessivo, que atentem contra
posições jurídicas (sobretudo direitos fundamentais) já previstas
normativamente.
Embora não haja uma previsão expressa da segurança jurídica,
esta é contemplada pela expressão genérica “segurança”, segundo
determinação do caput do artigo 5º da Constituição. Além disso,
esta relacionada a diversas outros princípios, tais como a legalidade, proteção ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico
perfeito; legalidade e anterioridade, assim como garantias processuais de individualização da pena, devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
centraremos a nossa atenção na idéia de proteção da pessoa (notadamente
dos seus direitos fundamentais) e da própria ordem jurídica objetiva contra
medidas de cunho retrocessivo, isto é, que tenham por escopo a redução
e/ou supressão de posições jurídicas (aqui tomadas em sentido amplo) já
implementadas.SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental
à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais
e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista
latino-americana de estudos constitucionais. Editora Del Rey. Número 6 –
julho/dezembro de 2005. p.321-322.
146 De acordo com o artigo 290, compete a lavratura do flagrante à
autoridade da circunscrição onde foi efetuada a prisão, e não a do local
do crime. Por isso, não há ilegalidade quando a prisão é feita por agentes
de uma Delegacia e o auto é presidido por outra autoridade, quando se
atende ao disposto no artigo 290. não havendo autoridade no lugar em
que se tiver efetuado a prisão, o capturado será logo apresentado à do
lugar mais próximo. É o que determina o artigo 308, sendo entendimento
doutrinário que lugar mais próximo é aquele que mais rapidamente pode
ser conduzido o capturado. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 16ª
ed. rev. e atual. até janeiro de 2004. São Paulo: Atlas, 2004.
90
Assim, o princípio da segurança envolve a proteção da confiança147 e a proibição de retrocesso. O primeiro aspecto consiste no
grau de previsibilidade que os cidadãos podem depositar no ordenamento jurídico, quanto às previsões já existentes.
Portanto, para que se evite o referido retrocesso, devem ser aplicadas as regras processuais de modo correto, sem interpretações
ou desvios por parte dos inspetores policiais, de modo a garantir,
não só os direitos individuais dos presos, como também a própria
legislação.
Partindo para uma análise da condição humana e sua vulneração, a ação ilegal das forças policiais do Estado gera clara afronta
aos direitos humanos148, já que o transporte a um local distante,
sem qualquer necessidade, fere o princípio da dignidade da pes147 “De qualquer modo, ainda no que diz com a proteção de confiança,
esta atua como importante elemento para a aferição da legitimidade
constitucional de leis e atos de cunho retroativo, até mesmo pelo fato
de que a irretroatividade de determinados atos do poder público
encontra o seu fundamento justamente na necessidade de proteger a
confiança do cidadão na estabilidade de suas posições jurídicas e do
próprio ordenamento, o que tem levado ao reconhecimento, para além
da salvaguarda dos direitos adquiridos, até mesmo de um certo grau de
proteção das assim denominadas expectativas de direitos, assim como da
necessidade de estabelecer regras de transição razoáveis, nos casos de uma
alteração de determinados regimes jurídicos”. SARLET, Ingo Wolfgang.
A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da
pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social
no direito constitucional brasileiro. Revista latino-americana de estudos
constitucionais. Editora Del Rey. Número 6 – julho/dezembro de 2005.
p. 344.
148 Ressalte-se que muitos dos suspeitos, além da dificuldade da
comunicação, em muitos casos mal sabem a natureza e a quantidade da
droga que transportavam. Após a realização das buscas, algumas vezes até
íntima, os suspeitos são levados a uma unidade policial muito distante e
durante o percurso não têm informações precisas sobre a sua situação em
um país com o qual não estão habituados. Com isso, além da restrição
da liberdade, que já possui um caráter extremamente excepcional, sofriam
imotivadamente com a longa espera por uma definição e também para
relatarem a sua versão dos fatos, indicando fatos que lhes sejam favoráveis
ou informações que possibilitem a prisão de aliciadores e membros de
quadrilhas internacionais, para a esperança do futuro gozo de causas gerais
e especiais de diminuição de pena.
91
soa humana149, consagrado na Declaração Universal dos Direitos do
Homem, artigo 5º150, e na Constituição Federal (artigo 1º, inciso III)151.
No caso das mulheres, a violação aos direitos é ainda maior152.
Conforme trecho de depoimento de investigador de polícia: “No
DENARC não existe cela feminina, razão pela qual as rés, quando
necessário, ficam numa sala improvisada”153.
Assim, questionou-se a atuação dos Inspetores de Polícia do
DENARC quanto ao tratamento às suspeitas e presas, pelo baixo
número de policiais femininas e pela referida ausência de estrutura
para o devido tratamento.
Importante salientar que, isoladamente154, a violação ao sistema jurídico processual pela destinação ilegal da autoridade policial
para lavratura do flagrante e o agregado desrespeito ao devido
149 A partir de uma única ofensa ao ordenamento jurídico, sendo a
lesão afeta a direitos fundamentais, o próprio sistema repercute a ofensa
quase como progressão geométrica para diversas outras garantias legais e
constitucionais. Tais constatações podem ser singelamente exemplificadas
nas diversas ocorrências de infrações disciplinares de policiais no tocante a
tomada de entorpecentes, dinheiro e discricionariedade da própria prisão,
conforme fartamente noticiado pela imprensa.
150 Artigo 5º da CRFB/88 – Ninguém será submetido a tortura, nem a
tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
151 Art. 1º da CRFB/88 – A República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a
dignidade da pessoa humana.
152 A percepção da violação contra o direito de presas estrangeiras foi
realizada de forma interdisciplinar e associada ao relevante trabalho de
campo efetuado pelo ITTC - em parceria com a Defensoria Pública da
União em Guarulhos. A pesquisa consistiu na colheita de inúmeros relatos
de presas acerca da atuação irregular efetuada pelos policiais civis do
DENARC e é apresentado, com ineditismo, para o presente estudo de caso.
153 Processo 2007.61.19.007677-6, termo de depoimento do Investigador
de polícia F.
154 Não havia uma medida individual ou que pudesse ser adotada no
desenvolvimento da defesa de uma “mula” presa pelo DENARC, de forma
a coibir a prática ilegal, ou seja, o defensor no desenvolvimento da garantia
constitucional da ampla defesa e do contraditório não possui instrumentos
possíveis de serem aplicados no processo individual e que contemplassem
uma tutela jurídica adequada, não só ao vulnerável, mas também ao grupo
com a mesma característica.
92
processo legal na fase do Inquérito, não repercutiam quaisquer prejuízos ao processo, pois o IPL- Inquérito Policial continuava a servir
de base ao oferecimento da denúncia, sem gerar quaisquer nulidades
ou complicadores inclusive correcionais na esfera administrativa,
em razão da prática adotada pelos policiais.
Na esteira da análise dos reflexos do sistema violado, além do
desrespeito à regra processual, há também um esvaziamento do
instituto do flagrante postergado ou diferido. Essa modalidade se
caracteriza como aquela em que a autoridade tem discricionariedade para escolher o melhor momento para realizar a prisão em
flagrante. No entanto, diante da prática dos policiais do DENARC,
há um esvaziamento desse instituto, pois a polícia federal, que se
trata da polícia judiciária da União e que possui contato com órgãos
policiais internacionais, como a INTERPOL, tem como opção adiar
um flagrante para conseguir mais informações, apenas monitorando
a “mula”. Porém, os policiais são, muitas vezes, surpreendidos pela
lavratura do flagrante dessa mesma “mula” no DENARC, frustrando
operações mais complexas.155
Seguindo a mesma lógica, pode-se também constatar prejuízo
à percepção do instituto da delação premiada. Como a atuação do
155 Assim indicava o delegado da polícia federal no aeroporto internacional
de Guarulhos, no Ofício 510/ 2008 – DPF/AIN/SP: “Todo o trabalho
[realizado pelo Núcleo de Operações e pela Unidade de Inteligência
Policial no Aeroporto Internacional de Cumbica] visa não apenas a prisão
de quem transporta o entorpecente (popularmente chamado de 'mula'),
mas também do verdadeiro proprietário da droga. Para tanto, os agentes
federais mesmo após terem fortes suspeitas de que um passageiro está
carregando drogas em seu corpo ou em sua bagagem preferem aguardar o
máximo de tempo possível, sem perder a 'mula' de vista, enquanto outro
membro da equipe policial procura por 'olheiros' e 'aliciadores' do tráfico
que permanecem no saguão para se assegurarem que a 'mula' conseguiu
embarcar. Tal trabalho demanda tempo, profundo conhecimento do
aeroporto e, principalmente, a tranquilidade de que o suspeito não será
abordado por outros policiais que não têm conhecimento da operação em
curso. Quando necessário e possível, parte da equipe se dirige ao T.V.V. da
Infraero para realizar o acompanhamento do alvo através das câmaras de
TV. Com a permanência de equipes da DENARC no saguão tal atividade
policial resumiu-se a abordar a 'mula' e realizar a prisão imediatamente,
sob pena da DENARC abordar e retirar a mula do aeroporto sem trazer
qualquer conhecimento à autoridade policial federal.”
93
departamento de investigações sobre narcóticos é mais restrita que
a da polícia federal, tanto territorial quanto materialmente, os inspetores do DENARC não demonstram grande interesse156 pela investigação mais profunda e detalhada sobre as organizações criminosas.
Mesmo quando informam ao preso o direito à delação premiada,
instituto que visa à colaboração do réu, o instituto não se perfaz
na sua plenitude, já que os inspetores do DENARC atuavam em
uma esfera bem menor que os agentes da polícia federal, esses sim,
responsáveis por uma investigação mais profunda quanto às conexões internacionais na rota do tráfico, bem como, pela atuação em
outros estados e postos de fronteira, enquanto a atuação da polícia
civil é restrita ao Estado de São Paulo.
Com isso, nos casos em que a prisão era feita de modo antecipado pelos inspetores do DENARC, as delações sobre organizações
criminosas em outros Estados, de regra, não eram investigadas,
em razão da falta de atribuição do departamento especializado da
polícia civil.
Segundo posicionamento da doutrina e da jurisprudência157, a
concessão dos benefícios da delação premiada não se baseia na
156 A mentalidade policial no tocante ao combate ao tráfico de entorpecentes
possui dois parâmetros que conduzem a atuação, que são: quantidade de
entorpecente apreendidos e prisões. Dessa forma, o que aqui se afirma é
que para que o DENARC pudesse atingir o binômio referido o objeto da
informação delatada tinha que, necessariamente, estar circunscrito seja
aos limites territoriais da atuação do DENARC ou as forças materiais e de
pessoais com as quais o referido departamento foi contemplado (e que são
diretamente proporcionais ao seu campo de atuação, ou seja, no máximo
ao Estado de São Paulo), daí a notória falta de interesse em determinados
desdobramentos cujo resultados não seriam contabilizados na atuação do
referido órgão.
157 O posicionamento jurisprudencial quanto à delação premiada é
demonstrado pela seguinte ementa: “ PENAL. APELAÇÃO. TRÁFICO DE
DROGAS. MATERIALIDADE DELITIVA E AUTORIA DO CRIME. DOLO.
INTERNACIONALIDADE DEMONSTRADA.FIXAÇÃO DA PENA-BASE
ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. DELAÇÃO PREMIADA NÃO INCIDE NA
ESPÉCIE. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA PREVISTA NO ART. 33,
§4º, DA LEI 11.343/06. CAUSA DE AUMENTO DE PENA PREVISTA NO
ART. 40, INCISO I, DA LEI 11.343/06. COMBINAÇÃO DE LEIS VEDADA.
REGIME FECHADO. RECORRENTE PRESA. I. Robusto conjunto probatória
de autoria e materialidade delitiva legitima o decreto condenatório em
94
mera veracidade das informações, mas exige a efetiva prisão dos
delatados. Já que os policiais do DENARC não têm atribuição para
atuação em outros Estados e muito menos contato direto com organizações policiais de outros países, as delações não contribuem
para o efetivo combate ao tráfico internacional, uma vez que somente são presas as “mulas”, indivíduos de baixa periculosidade e
alta vulnerabilidade. Além do prejuízo à própria justiça, há desrespeito ao direito do réu, que deixa de receber benefícios pela falta de
atribuição ou de eficiência das autoridades policiais que efetuaram
sua prisão.
As consequências práticas da ilegalidade policial foram também verificadas pelas numerosas denúncias existentes contra a
atuação do DENARC, muitas vezes veiculadas na mídia.
relação ao tráfico. II. O dolo está presente na conduta praticada pela
recorrente. As circunstâncias do flagrante e o robusto quadro probatório
não são infirmados pelas alegações da defesa. III. A internacionalidade
independe da transposição de fronteiras. IV. A quantidade e natureza
do entorpecente (cocaína) apreendido com a recorrente autoriza a
elevação da pena-base, em razão da maior reprovabilidade da conduta,
com a elevação da pena-base, nos termos do art. 59 do CP. V. A delação
premiada caracteriza-se pela efetiva colaboração da qual resulta o
desmantelamento da quadrilha ou bando, o que não se verifica na
hipótese dos autos. VI. A aplicação combinada de leis é vedada pelo
ordenamento, de modo que o aspecto favorável de uma delas é aquele
que exsurge da ótica da totalidade dos dispositivos, cuja análise depende
do caso concreto. Na hipótese em apreço, a ultratividade da lei anterior
é mais gravosa à recorrente. VII. A causa de diminuição de pena prevista
no Art. 33, §4º, da Lei 11.343/06 tem as circunstâncias previstas no Art.
59 do CP, com as preponderâncias do Art. 42 da novel legislação antidroga, como vetor à dosagem da fração (discricionariedade vinculada).
Em se tratando de benesse, de redução de pena, não se cogita de bis in
idem. VIII. A mínima redução, combinada com o aumento de 1/06 da
nova lei, pela transnacionalidade, resulta em pena mais elevada do que
a imposta com base nos dispositivos da lei anterior, de modo que afasto
a retroatividade mencionada. IX. A recorrente faz jus ao regime fechado,
por serem as circunstâncias do Art. 59 do CP totalmente desfavoráveis. X.
A recorrente respondeu ao processo presa e não houve alteração de fato,
nem surgiu prova nova a ensejar o reconhecimento da desnecessidade
da cautela. XI. Apelação desprovida.”(Apelação criminal n. 27868,
julgado em 19/05/2008, TRF 3ª região).
95
As notícias mencionam a corrupção158, lavagem de dinheiro159 e
o abuso de autoridade como graves e recorrentes problemas. O deslocamento até outra unidade policial pode possibilitar ao flagrado
o oferecimento de suborno aos policiais160, assim como a aceitação
por estes; o desvio de entorpecente161, que abastece até mesmo o
158 Policiais são suspeitos de negociar jóias (...) Comerciante de pedras
preciosas afirmou ao Ministério Público Estadual que seus principais
clientes são policiais civis de SP. Cerca de 20 integrantes de dois setores
especializados da Polícia Civil de São Paulo, o Deic (departamento de
roubos) e o Denarc (narcóticos), são investigados atualmente pelo Ministério
Público Estadual sob a suspeita de lavar dinheiro obtido com a prática de
crimes com a compra de pedras preciosas, principalmente esmeraldas.
Texto extraído do Jornal FOLHA DE S. PAULO. Caderno Cotidiano, C4. 13
de junho de 2008.
159 Chefe do Denarc está na mira do MP (...) Integrante do Conselho da
Polícia Civil, o direito do Departamento Estadual de Narcóticos (Denarc),
delegado Everardo Tanganelli Júnior, está sob investigação do Ministério
Público Estadual (MPE) por suspeita de enriquecimento ilícito e lavagem
de dinheiro. Segundo o Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime
Organizado (Gaeco), ele tem salário de R$ 8 mil, mas acumulou um
patrimônio de R$4,5 milhões. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.
br/folha/cotidiano/ult95u49971.shtml. Consulta em 10 de junho de 2008.
160 Um recente caso de ampla divulgação midiática foi a prisão do traficante
colombiano Juan Carlos Ramirez Abadia, que deu 800 (oitocentos) mil
dólares aos inspetores, na própria sede do DENARC, logo após sua prisão.
Disponível em: http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/brasil/conteudo.
phtml?tl=1&id=702885&tit=. Consulta em 10 de junho de 2008.
161 Casa de ferreiro espeto é de pau: Dos 300 quilos de cocaina apreendidos
pelo DENARC e sob sua responsabilidade apenas 98 foram entregues à justiça
o restante sumiu das dependências do órgão cuja função seria inibir o tráfico
e não disseminá-lo. (...) Depois do assassinato a sangue frio do motoboy
Firmino, denunciado pela Formas&Meios em todos os detalhes e requintes
criminosos elaborados pelo promotor Pedro Baracat e seu irmão delegado
do DEIC aliados aos favores de amigos promotores ou não que cederam seus
relógios na tentativa de difamar e incriminar o motoboy enquanto o promotor
Baracat, em sua índole malvada posava de suposta vítima, sendo inocentado,
até mesmo no porte de arma ilegal. A denúncia agora é sobre mais um
órgão do Estado Paulista que tem como principal função controlar o tráfico
de drogas, o DENARC. Há quase dois anos, um helicópetro foi apreendido
com 300 quilos de cocaina. A quantidade só não consta da declaração do
Boletim de Ocorrência e do auto de prisão do piloto Márcio de Jesus, como
foi noticiado e divulgado pelo próprio departamento como um grande feito.
Disponível em: http://folhadanoite.blogspot.com/2008_01_01_archive.html
– Consulta em 23 de maio de 2008.
96
mercado interno de drogas, uma vez que não é feito um controle
rígido sobre a quantidade de droga apreendida; desvio de bens do
acusado, mesmo quando não há indício de relação dos bens com
a prática criminosa (o que é bastante comum no caso de aparelhos
celulares); e desvio de dinheiro, às vezes de altas quantias em poder
das “mulas”, para os gastos da viagem. Além disso, não são raros os
casos em que policiais do DENARC são acusados de extorsão e até
mesmo assassinato, aproveitando-se do exercício de sua função162.
O devido processo legal, cujo marco de surgimento é a Magna
Carta de 1215, engloba não somente o aspecto judicial, mas também a atuação administrativa. Assim, a fase inquisitiva do inquérito
policial também está adstrita a este princípio, de forma a se coibir
abusos e irregularidades, para a participação e o acesso à justiça.
Aliado à noção de direitos coletivos, configura-se o devido processo social:
Sob tais perspectivas é possível determinar-se, assim, uma releitura do princípio do devido processo
legal, que passa a assumir uma vocação coletiva, daí
mensurando-se os contornos do devido processo social, dependente, muito mais que da ampliação e da
desburocratização do aparelhamento judiciário ou de
alterações legislativas, do abandono da dogmática em
prol da efetividade da prestação da justiça, da compreensão do papel que o Poder Judiciário deve desempenhar
na construção do Estado Democrático mediante a afirmação dos direitos individuais e sociais fundamentais
... não constitui, em absoluto, qualquer subversão.
Trata-se apenas de emprestar efetiva vigência a um
princípio geral de hermenêutica acentuado por expressa
disposição normativa implementada no ordenamento
jurídico brasileiro em 1942 ..., segundo a qual 'na
162 Observa-se que grande parte destas denúncias poderia ser evitada
caso os inspetores seguissem adequadamente os preceitos do Código de
Processo Penal, uma vez que o encaminhamento do acusado e de todo
o material apreendido à unidade da polícia federal, no local da prisão,
reduziria drasticamente a oportunidade de policiais e presos agirem contra
o interesse público.
97
aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela
se dirige e às exigências do bem comum.163
Tendo por base esta noção, depreende-se que o descumprimento
das normas do Código de Processo Penal ofende também o devido
processo legal, em ofensa a um direito fundamental atrelado a cláusula
pétrea164, que engloba princípios do juiz natural, direito ao silêncio e não autoincriminação, contraditório, ampla defesa, estado ou
situação jurídica de inocência, vedação de revisão pro societate e
inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente165.
Tem-se, então, que a prisão de indivíduos pelos inspetores do
DENARC no aeroporto internacional de Guarulhos associada à lavratura do auto de prisão em flagrante na sede do departamento da
polícia civil, na cidade de São Paulo, contraria de forma patente a
determinação do Código de Processo Penal de que o preso deve ser
levado à autoridade policial mais próxima, quando não houver no
local em que foi efetuada a prisão. É bastante claro que os nacionais
e estrangeiros detidos no aeroporto internacional de Guarulhos devem ser levados a uma das unidades policias existentes no próprio
local e, quando acusados da prática de um crime de competência
da justiça federal, o procedimento mais adequado é a destinação à
delegacia da polícia federal.
Como consequência da clara contrariedade à lei, ocorreu lesão
a direitos humanos166 dos presos e também ao interesse público,
163 VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo. São Paulo: Malheiros, 2007,
p.151. Expressão “devido processo social” é de Mauro Cappelletti.
164 Art. 5º, LIV, da CRFB/88. “ninguém será privado da liberdade ou de
seus bens sem o devido processo legal” c/c Art. 60, §4º da CRFB/88. “Não
será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV – os
direitos e garantias individuais”.
165 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal, 8ª ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007. pp. 23-36.
166 Cuando hoy hablamos de derechos humanos invocados ante lós
tribunales y otros órganos de salvaguardia de los derechos humanos,
La realidad muestra que hay um derecho humano omnipresente,
abrumadoramente invocado sobre todos los otros derechos humanos. Es
El derecho humano a um proceso justo o a La tutela judicial efectiva, y,
en muchísimas, muchísimas ocasiones, La invocación al derecho humano
instrumental como violado, es única em La demanda o recurso, es decir,
98
pelo desrespeito ao princípio da eficiência, previsto no artigo 37,
caput, da Constituição Federal, aliado aos subprincípios decorrentes do princípio da proporcionalidade.
Há uma dupla perspectiva do princípio da proporcionalidade:
proibição do excesso e proibição da proteção insuficiente/deficiente. Quanto à primeira visão, tem-se que o Estado tem de agir de
forma equilibrada quanto à consecução de suas finalidades e a restrição de direitos que impõe aos particulares. Assim, não podem
ser relegados os direitos fundamentais dos acusados no momento
de sua prisão. Caso haja de fato situação que enseja a prisão em
flagrante, qualquer cidadão tem o poder, enquanto as autoridades
policiais têm o dever de dar voz de prisão ao acusado. No entanto,
em respeito à regra processual e aos direitos individuais, o preso
deve ser encaminhado à autoridade policial mais próxima. Assim,
ao se possibilitar a melhor apuração dos fatos, há benefício à Justiça
e ao próprio acusado.
O mesmo raciocínio é fruto do garantismo negativo, uma vez
que visa a combater os excessos do Estado. Desta forma, não é ilegal a prisão em flagrante se a realidade fática assim indicar, mas
deve ser lavrado o auto de prisão no próprio aeroporto. Em respeito
à competência da justiça federal e à atribuição da polícia judiciária
da União, era a unidade policial mais adequada é a delegacia da
polícia federal, localizada no aeroporto internacional de Guarulhos.
Por outro lado, pode o princípio da proporcionalidade ser entendido como a proibição da proteção insuficiente/deficiente. Tal
subprincípio exige que haja a efetiva implementação dos diversos
direitos garantidos em nossa ordem jurídica, que se revestem como
deveres ao Estado.
Aplicado ao caso em tela, tem-se que os direitos fundamentais
dos indivíduos detidos por inspetores do DENARC e levados à sede
do departamento, em outra cidade, não eram respeitados, tanto em
relação à sua condição humana quanto à condição de preso, em
el cidadano no se queja de la violación del derecho a un proceso justo,
que por La violación del instrumento, haja impedido La protección del
derecho material. Revista Derechos Humanos. Cátedra UNESCO de
Derechos Humanos Universidad de La República. Año 2 Nº2 – Junio de
2004. Fundación de cultura universitária. p.14.
99
razão do abuso na restrição de sua liberdade e no não provimento real de direitos como a delação premiada, como demonstrado
anteriormente. Este é um critério essencial para que se constate a
violação de direitos em razão do exercício inadequado das funções
dos policiais do DENARC, Departamento da Polícia Civil, como nos
casos já analisados.
Ademais, a prática reiterada dos policiais do DENARC
revelou um desrespeito do princípio da eficiência, já que o
deslocamento do preso até a sede do Departamento dispende
gastos desnecessários com recursos materiais e humanos e,
principalmente, prejudica a necessária e correta atividade policial, essencial à atividade jurisdicional.
Por fim, registre-se que houve indicações da chefia da polícia
federal no aeroporto, quanto à série de prejuízos gerados pela atuação inadequada do DENARC, em resposta a quesito constante de
ofício enviado pela Defensoria Pública:
8) Há prejuízo ao efetivo combate ao tráfico internacional de entorpecentes na ocasião em que os inspetores
levam os presos à sede do DENARC, em São Paulo – Capital, ao invés de encaminharem à sede da Polícia Federal
no Aeroporto Internacional de Guarulhos?167
8) Sim, há prejuízo efetivo ao trabalho de repressão
ao tráfico internacional de drogas pelas seguintes razões:
8.a – o citado trabalho dos agentes federais de acompanhamento visual de mulas até a descoberta de olheiros
e aliciadores que permanecem no saguão do aeroporto é
impedido pela abordagem prematura da mula por inspetores da DENARC;
8.b – recebemos semanalmente diversas requisições
da Justiça Federal para instauração de inquéritos decorrentes de prisões efetuadas por inspetores da DENARC.
Se as prisões fossem realizadas pela Polícia Federal o
aprofundamento das investigações seria feito de imediato
mediante instauração de inquérito policial por portaria.
Ocorre que o tempo decorrido desde a prisão em flagrante pelo DENARC até instauração de portaria para
167 Ofício nº 197 - 2008/NDPU – Guarulhos – 3R/SP.
100
continuidade das investigações pela Polícia Federal acarreta prejuízos irrecuperáveis às investigações além de
sobrecarregar todas as instituições envolvidas: prisão em
flagrante pela DENARC, vários dias até apresentação de
relatório pela autoridade policial e encaminhamento dos
autos à Justiça Federal; novo encaminhamento dos autos
ao MPF, o qual, após análise das informações elabora requisição de novas diligências, desta vez à Polícia Federal;
encaminhamento de cópia da requisição pela Justiça
Federal à Polícia Federal e, finalmente, distribuição e instauração de novo procedimento investigativo. Ora, além
da movimentação desnecessária de tantas instituições, as
quais já são sobrecarregadas de trabalho, o tempo perdido é incomparável para com o objetivo pretendido,
perde-se o princípio da oportunidade.
8.c – desde a chegada da DENARC, a qual não repassa qualquer informação sobre as prisões efetuadas, há
grave distorção das estatísticas repassadas à Coordenação-Geral de Repressão ao Tráfico de Drogas da Polícia
Federal, dificultando-se o estabelecimento de política de
combate ao tráfico mais efetiva nesta circunscrição;
8.d – com as prisões efetuadas pela DENARC também
as unidades de inteligência policial federal deixam de
receber informações, as quais poderiam alimentar operações em andamento podendo ocasionar, em tese, duas
operações contra o mesmo alvo: uma da polícia federal e
outra da polícia civil.
8.e – recebemos reclamações da receita Federal sobre entrada indiscriminada e sem observância dos procedimentos legais e normas de segurança de policiais civis
do DENARC em áreas restritas. A entrada de policiais
civis em áreas restritas deve observar prévia emissão de
crachá pela INFRAERO mediante autorização expressa
conjunta da Polícia Federal e Receita Federal, fato que
não tem sido observado por alguns policiais civis;
8.f – recebemos reclamações das embaixadas e do
Itamarati sobre as abordagens realizadas em passageiros estrangeiros no saguão deste aeroporto, não sendo
possível dizer se tais pessoas foram abordadas por agentes federais ou por inspetores da DENARC (em razão da
burocracia natural que envolve o recebimento de uma
101
reclamação formulada em outro país, o qual abrange diversas instituições de dois países, as reclamações chegam
após meses de sua concorrência, dificultando sua apuração).(grifos nossos)168
3.2.3. Atuação da Defensoria Pública da União na tutela jurídica
adequada focada na violação de direitos do grupo vulnerável
identificado como mulas estrangeiras.
Consagrados os fundamentos legais da legitimidade da DPU
para o manuseio de Ações Civis Públicas e a par de toda a fundamentação desenvolvida, pode-se ainda questionar, equivocadamente, o fato de qualquer medida adotada pela DPU em relação
à atuação policial afetar169 atribuição constitucional do Ministério
Público170, no tocante ao controle externo da atividade policial171.
A DPU ao manusear Ação Civil Pública para corrigir172 a já
mencionada ilegal atividade policial, o faz com o enfoque da tutela
168 Ofício 510 / 2008 – DPF/AIN/SP.
169 Em razão da proximidade de valores tutelados pela Defensoria Pública
e pelo Ministério Público, como órgãos públicos de relevante função
social, indicou-se a possibilidade de ingresso do Ministério Público Federal
no pólo ativo da presente ação, pois, além de atuar como custus legis pelo
dever de resguardar direitos individuais, tem legitimidade ativa quanto à
ação civil pública, conforme art. 5º, I, da Lei 7.347/85. Ademais, a matéria
repercute aspecto de controle externo da atividade policial e a pretensão
ora deduzida influencia diretamente a eficiência das investigações da
polícia federal e ao efetivo combate ao tráfico de drogas.
170 A intervenção de co-legitimado nas ações coletivas está expressamente
prevista pelo §2º do artigo 5º da Lei 7.347/85, que seria hipótese de assistência
litisconsorcial, inclusive com possibilidade de ampliação do pedido. DIDIER
JR, Fredie, ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil – processo
coletivo, vol.4.3ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2008.p.265.
171 Por absurdo, caso se entendesse que inexista possibilidade de litisconsórcio
ulterior, bastaria que o segundo co-legitimado propusesse em separado outra
ação civil pública ou coletiva, com pedido mais abrangente ou conexo,
e isso provocaria a reunião de processos, e então ambos os co-legitimados
acabariam sendo tratados como litisconsortes. MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa
dos interesses difusos em juízo. 15ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.256.
172 A Lei 7.347/85 prescreve ser cabível a ação civil pública contra atos
comissivos ou omissivos que causem danos a quaisquer direitos difusos ou
coletivos.
102
dos direitos humanos, fundamentais, amparada por uma legitimidade incondicionada para tutela coletiva frente à notória existência
de grupo vulnerável, que, por si só, transforma a DPU, além de
legitimado extraordinário173, também representante adequado174 a
promover a tutela jurídica adequada ao grupo vulnerável - mulas do
tráfico internacional.
Dessa forma, a partir do momento que qualquer ato ou omissão lesiva a direitos humanos e fundamentais, de quaisquer grupos
vulneráveis potencialmente tuteláveis pela Defensoria Pública, se
protrai no tempo, a mesma Defensoria Pública se legitima por qualquer
meio hábil a reparar a ofensa ou consequência175, independentemente, da causa, ainda que a medida seja impugnar, modificar ou
extinguir a própria causa da lesão aos direitos do grupo vulnerável.
Importante também mencionar que a competência da justiça
federal tem adequação pela omissão por parte da União176, que
não atuou de forma suficiente para assegurar o efetivo exercício
das atribuições de seu aparato policial (polícia federal), acarretando, reflexamente, desrespeito a direitos individuais. Isso revela, por
173 Se é possível até a atuação atípica (quando não há interesses
metaindividuais de hipossuficientes em jogo), não resta dúvida quanto
à legitimidade da Defensoria Pública quando há evidente interesse de
necessitados, isto é, das chamadas “mulas” que são presas no Aeroporto
Internacional de Guarulhos, que não têm condições financeiras de
patrocinar seus próprios advogados e que, por conta disso, necessitam ser
assistidos pela Defensoria Pública da União.
174 Nenhuma outra instituição com legitimidade para operar Ações
Civis Públicas, pelos fundamentos expostos, seria capaz ou deteria o
conhecimento, informações e experiências para absorver e identificar as
lesões aos direitos humanos do grupo vulnerável, estrangeiros – mulas do
tráfico internacional.
175 Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre
outras: X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos
necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais,
econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de
ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.
176 Art. 109 da CRFB/88 – Aos juízes federais compete processar e julgar:
I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública
federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou
oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à
Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.
103
sua vez, ofensa aos dispositivos de tratado internacional177, como
já afirmado quanto à convenção americana de direitos humanos.
Uma vez que a União é responsável pela implementação de direitos
e garantias – previstos pela Constituição ou por mecanismos internacionais, assume a responsabilidade pelas lesões aqui relatadas.
Dessa forma, a Defensoria Pública da União em Guarulhos,
com a finalidade de tutelar o grupo vulnerável, estrangeiros, “mulas”
– do tráfico internacional, ajuizou Ação Civil Pública e obteve decisão
favorável em sede de antecipação de tutela178, posteriormente, confirmada em sentença, que determinou aos policiais civis do DENARC
que ao efetuarem prisões no Aeroporto Internacional de São Paulo
conduzissem os presos a autoridade policial competente, ou seja, o
delegado de polícia federal do Aeroporto Internacional.
177 Art. 109 da CRFB/88 – Aos juízes federais compete processar e julgar:
III – as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estados
estrangeiros ou organismo internacional.
178 Levando-se em consideração as razões aqui expedidas em cotejo
ao requerimento de antecipação de tutela pleiteado pelo autor, forte na
verossimilhança decorrente desta sentença de procedência, CONCEDO
ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA JURISDICIONAL (art. 12 da Lei
7347/85 e art. 273 do Código de Processo Civil) pelo que determino aos
inspetores da Polícia Civil do DENARC que apresentem toda e qualquer
substância entorpecente e pessoas nacionais ou estrangeiras presas/
flagranteadas no interior, exterior ou imediações do Aeroporto Internacional
de Guarulhos/SP à autoridade policial da Delegacia Policial Federal
(Delegado de Polícia Federal) do Aeroporto Internacional de Guarulhos.
Trecho da Sentença proferida nos autos da ACP nº 2008.61.19.004680-6,
proposta pela Defensoria Pública da União perante a Justiça Federal de
Guarulhos.
104
4. MECANISMOS DE ENFRENTAMENTO
AO TRÁFICO DE PESSOAS179 E AO
TRABALHO ESCRAVO180
4.1 A vulnerabilidade ou hipervulnerabilidade das vítimas, a
atuação da DPU em São Paulo e o princípio do “in dubio pro
legitimado”.
Ao iniciarmos o estudo da vulnerabilidade das vítimas submetidas ao crime de redução a condição análoga de escravo e tráfico
179 O tráfico de pessoas apesar de ser estudado como um fenômeno, que
envolve diferentes modalidades, para a presente pesquisa será abordado sobre
o enfoque da exploração para o trabalho num movimento centrípeto, interno.
180 Com o enfoque determinado ao fenômeno do tráfico de pessoas
de forma a viabilizar uma abordagem pontual tem-se, geralmente, nas
hipóteses em que configurado previamente o trabalho escravo de vítimas
estrangeiras, também submissão a anterior tráfico de pessoas; daí a
necessidade da abordagem conjunta dos institutos. Importante também
especificar a abordagem sobre o gênero trabalho forçado, trabalho em
regime de servidão, que é considerado pela OIT como a forma mais
disseminada de ‘escravidão contemporânea’, como descreve Denise Pasello
Valente: “Para a OIT, o trabalho forçado ou obrigatório apresenta-se como
gênero do qual é espécie: ‘a escravidão é uma forma de trabalho forçado’
(MELO, Luís Antônio Camargo de. op. cit). Trabalho forçado é um conceito
mais amplo e engloba também hipóteses que não se assemelham ao já
referido exercício do direito de propriedade sobre outrem (escravidão).
NOVAIS, Denise Pasello Valente. Tráfico de pessoas para exploração do
trabalho: trabalhadores em situação análoga à de escravo em São Paulo.
São Paulo: LTr, 2012. p.54.
105
de pessoas relevante contextualizar a vulnerabilidade, a partir do
próprio contexto fático da incidência dos eventos que imprimem
a tutela não apenas da Defensoria, mas também de diversos outros
institutos e organismos oficiais do Estado.
Essa análise da vulnerabilidade do grupo submetido aos reflexos
do trabalho escravo ou do tráfico de pessoas gera a diferenciação
da amplitude da vulnerabilidade em comparação a outros grupos
com tal característica exigindo uma dedicação e combate constante
a referida vulnerabilidade, pois as violações a direitos humanos e
fundamentais são pulverizadas em diversas direções e com tamanha
intensidade que ao grupo não se aplica os instrumentos disponíveis
de cidadania, por sua própria iniciativa, em razão da natureza da
própria vulnerabilidade.
Alguns elementos podem ser considerados para aferição perfunctória da existência da mencionada vulnerabilidade, sendo certo que a
ausência e a sua cumulação podem também servir como parâmetro
de aferição da intensidade da própria vulnerabilidade: Manter empregado trabalhando sob condições contrárias às disposições de proteção
ao trabalho; deixar de conceder período mínimo de 11 (onze) horas
consecutivas para descanso entre duas jornadas de trabalho; exceder
de 8 (oito) horas diárias a duração normal do trabalho; prorrogar a jornada normal de trabalho além do limite legal de 2 (duas) horas diárias
sem qualquer justificativa legal; adoção de práticas discriminatórias;
descontos ilegais nos salários dos empregados; deixar de efetuar, até
o 5º dia útil do mês subsequente ao vencido, o pagamento integral
do salário mensal devido aos empregados; manutenção de diversas
famílias de empregados na mesma unidade residencial; pagamento de
salário inferior ao mínimo vigente; manutenção das áreas de trabalho
em desrespeito às normas de proteção e de saúde do trabalhador; manter o local de trabalho sem iluminação adequada; deixar de manter as
condições de iluminação e/ou ruídos e/ou conforme térmico e/ou a
proteção contra outros fatores de risco químico e físico; manter o local
de trabalho em estado de higiene incompatível com o gênero de atividade; deixar de manter os banheiros em bom estado de conservação,
asseio e higiene; deixar de garantir boas condições sanitárias e de conforto ou deixar de disponibilizar sanitários permanentes adequados ao
uso e separados por sexo ou deixar de disponibilizar local para lanche;
106
deixar de garantir a elaboração e efetiva implementação do programa
de controle médico de saúde ocupacional.
Importante mencionar que a natureza da vulnerabilidade imprime, por vezes, inclusive a restrição da liberdade de locomoção
das vítimas ou do grupo, o que impede ou, no mínimo, dificulta o
acesso ou contato das vítimas com as estruturas do Estado responsáveis pelo combate à prática vulneradora e o resgate ou tutela dos
institutos oficiais do Estado, o que nos permite indicar as vítimas de
trabalho escravo como um grupo submetido à vulnerabilidade em
seu máximo grau.
No tocante a experiência acumulada pela Defensoria Pública
União na tutela do referido grupo, importante ressaltar o papel dos defensores na composição do COETRAE – SP, Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em São Paulo; a interseção da atuação
com o Comitê de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e a atuação do
ofício de DHTC que será objeto de estudo mais detalhado.
No desdobramento da atuação do ofício DHTC – Direitos Humanos e Tutela Coletiva, rotineiramente, a tutela das vítimas de trabalho escravo, na perspectiva da atuação em São Paulo ocorre com
o intuito de minimamente fazer cessar a vulnerabilidade dado o
resgate da cidadania, a busca da responsabilização criminal dos
indivíduos diretamente envolvidos com a privação da liberdade em
virtude da execução dos atos de redução a condição análoga de escravo, e por fim com ações individuais e, principalmente, coletivas
de responsabilização civil dos tomadores e reais beneficiários do
serviço executados em condições de alta vulnerabilidade.
Na primeira etapa busca-se, prioritariamente, como desdobramento
do resgate de cidadania do grupo vulnerável a via da composição
de direitos e verbas trabalhista, por intermédio do acordo trabalhista
com a participação dos fiscais do trabalho do MTE – Ministério do
Trabalho e Emprego, os defensores federais, procuradores do Trabalho
e os representantes da empresa tomadora do serviço e real beneficiária da atividade empresarial desenvolvida, com baixo custo
de produção, em razão da grave violação de direitos trabalhistas.
Apenas, quando inviabilizada a composição há a possibilidade da
propositura de RTs –Reclamações Trabalhistas pela DPU para co107
brança judicial dos direitos e verbas trabalhistas devidas, tanto pelo
responsável direto pelo estabelecimento, quanto e, principalmente,
pelo tomador do serviço e real beneficiário, dada caracterização de
irregular terceirização.
Na etapa criminal, importante esclarecer que o crime de redução à condição análoga a de escravo é da competência da Justiça
Federal e que a denúncia oferecida pelo MPF – Ministério Público
Federal gera a possibilidade de uma dupla atuação institucional da
Defensoria Pública da União, inclusive com a presença de diferentes defensores federais em polos opostos da demanda criminal. Para
se compreender a referida possibilidade deve-se analisar a própria
essência e complexidade da estrutura econômica que desempenha
e exige um modelo de atividade pautado pela maximização dos
lucros e para tanto cobra a redução exacerbada dos seus custos;
daí a necessidade que o representante ou testa de ferro esteja também imbuído dessa mentalidade e seja capaz de exigir e impor a
seus subordinados uma rotina degradante e desumana, através de
mecanismos de indiferença e normalidade mental, ainda que do
próprio algoz.
Assim tal estrutura ganha eficiência quando para o lugar do
algoz, capataz ou oficinista, se indica pessoa que outrora se encontrava em situação de vulnerabilidade, quase como uma espécie de promoção dentro da vulnerabilidade, o que faz com que
mentalmente o referido representante não perceba a crueldade da
imposição, pois ele mesmo já vivenciou tal contexto, motivo pelo
qual dado o oferecimento da denúncia, o capataz ou testa de ferro
de eventual oficina de costura ou estabelecimento, também faz jus
a defesa patrocinada por um defensor criminal federal.
De outro lado, agora com a atuação do defensor do DHTC, a
partir do fundamento e do papel da vítima no processo penal, o
defensor federal se valendo do instituto da assistência de acusação
se habilita no processo como tal, com uma tripla função: auxiliar o
MPF na busca do deferimento do pedido de acusação municiando
a instrução com os detalhes da violação de direitos, em virtude do
contínuo contato com as vítimas; formular pedido específico para
que a sentença condenatória englobe o mínimo de reparação civil,
108
não excludente de eventual reparação civil autônoma, sendo a própria sentença o título executivo judicial; e por fim, e mais importante,
fazer verdadeira ponte de ouro entre a instrução criminal e as provas
produzidas no processo penal e nas RTs, com a fundamentação e as
provas necessárias para gerar uma responsabilização civil do tomador do serviço ou empresa, que imprime uma terceirização irregular.
A utilização de provas emprestadas de outro processo é comumente aceita pelos Tribunais, inclusive o STF – Supremo Tribunal
Federal, quando respeitado o pressuposto constitucional do contraditório. O STF permite a mobilidade dos elementos probatórios desde que haja respeito às garantias fundamentais, o que se visualiza
quando a prova a ser emprestada foi produzida sob a égide do contraditório e da ampla defesa, é dizer, quando esta foi produzida com a
participação da parte no processo que tomará a prova emprestada181.
Seguindo a mesma orientação, o Tribunal Superior do Trabalho
entende que a existência de prova produzida sobre a mesma
181 Corroborando tal assertiva veja-se o seguinte precedente: EMENTA:
I. Recurso extraordinário: descabimento: falta de prequestionamento
da matéria constitucional suscitada no RE (CF, art. 5º, LV). II. Recurso
extraordinário, prequestionamento e habeas-corpus de ofício. Em recurso
extraordinário criminal, perde relevo a discussão em torno de requisitos
específicos, qual o do prequestionamento, sempre que - evidenciando-se
a lesão ou a ameaça à liberdade de locomoção - seja possível a concessão
de habeas-corpus de ofício (cf. RE 273.363, 1ª T,., 5.9.2000, Pertence, DJ
20.10.2000). III. Prova emprestada e garantia do contraditório. A garantia
constitucional do contraditório - ao lado, quando for o caso, do princípio
do juiz natural - é o obstáculo mais freqüentemente oponível à admissão e
à valoração da prova emprestada de outro processo, no qual, pelo menos,
não tenha sido parte aquele contra quem se pretenda fazê-la valer; por isso
mesmo, no entanto, a circunstância de provir a prova de procedimento a
que estranho a parte contra a qual se pretende utilizá-la só tem relevo, se
se cuida de prova que - não fora o seu traslado para o processo - nele se
devesse produzir no curso da instrução contraditória, com a presença e a
intervenção das partes. Não é a hipótese dos autos: aqui o que se tomou
de empréstimo ao processo a que respondeu co-ré da recorrente, foi o
laudo de materialidade do tóxico apreendido, que, de regra, não se faz em
juízo e à veracidade do qual nada se opõe. (RE 328138, Relator(a): Min.
SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 16/09/2003, DJ 1710-2003 PP-00021 EMENT VOL-02128-03 PP-00508 RTJ VOL-00191-01
PP-00313)
109
circunstância fática discutida em processos distintos não viola o
contraditório182.
Esse precedente foi utilizado para ratificar o entendimento da possibilidade de utilização da prova emprestada no Agravo de Instrumento em Recurso de Revista n° TST-AIRR-64440-21.2005.5.17.0005,
onde foi determinado que:
Garantido o contraditório tanto no processo de origem como no processo de destino, a prova emprestada
é admissível, mesmo não sendo prevista em lei, porque
‘todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a
ação ou a defesa’ (CPC, art. 332) e porque somente ‘são
inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios
ilícitos’ (CF, art. 5º, LVI).
Assim, inclusive por estar em conformidade com o
princípio da efetividade da tutela jurisdicional, há de se
considerar válida prova emprestada de outro processo,
ainda que inexista identidade de partes, já que assegurado o exercício do contraditório e da ampla defesa pela
parte contra quem se está fazendo valer a referida prova.
Logo, não há que falar-se em ofensa aos incisos LIV e LV
do artigo 5º da Constituição Federal.
Na última etapa de execução dos desdobramentos temos a
eventual propositura de Ação Civil Pública183 pela Defensoria Pú182 PROVA PERICIAL EMPRESTADA - PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Não há falar em ofensa ao princípio do contraditório pela utilização de prova
pericial emprestada, se o laudo produzido em outro processo trata da mesma
questão fática em debate nestes autos, qual seja, a doença profissional
do Reclamante. Agravo de Instrumento desprovido. Processo: AIRR 789598/2001.3 Data de Julgamento: 05/04/2006, Relatora Ministra: Maria
Cristina Irigoyen Peduzzi, 3ª Turma, Data de Publicação: DJ 12/05/2006.
183 Além da busca da responsabilização do tomador de serviço com
a formulação de pedido de condenação de dano moral coletivo, em
tese, também seria possível desenvolver fundamentação e pedidos
de condenações em verbas trabalhistas dos trabalhadores vítimas de
exploração do trabalho, sendo minimamente necessária a discriminação e
individualização das referidas verbas.
110
blica da União, na Justiça do Trabalho184, como verdadeira medida
a atacar a estrutura econômica de uma sociedade de consumo que
busca o lucro desenfreado, com maximização dos lucros alcançados
por intermédio de dumping social, terceirizações e quarteirizações
irregulares, violação da legislação trabalhista e ofensa aos direitos
humanos de trabalhadores, normalmente estrangeiros.
Nesse contexto, a própria Lei Complementar 80/94 consagra a
atuação da Defensoria Pública na tutela de grupos vulneráveis, seja economicamente, seja socialmente, seja politicamente, conforme se depreende dos inciso XI e XVIII do art. 4º, do estatuto legal de referência.
Dessa forma, seja pela interpretação dada pelo Supremo
Tribunal Federal, seja pela própria legislação pátria, os deveres institucionais da Defensoria Pública são numerus apertus e
devem abarcar a defesa de todos os grupos vulneráveis, o que,
por certo, inclui aqueles indivíduos submetidos ao tráfico de
pessoas e reduzidos à condição análoga a de escravo.
184 A Emenda Constitucional nº 45/04 ampliou a competência da Justiça
Trabalhista fixando nesta especializada a competência para julgamento de “as
ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação
de trabalho” (art. 114, VI, CF). Nesse ponto basta demonstrar a jurisprudência
consolidada no âmbito do Supremo Tribunal Federal por meio do seguinte aresto
exemplificativo: EMENTA: CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA JUDICANTE
EM RAZÃO DA MATÉRIA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS
MORAIS E PATRIMONIAIS DECORRENTES DE ACIDENTE DO TRABALHO,
PROPOSTA PELO EMPREGADO CONTRA SEU (EX-)EMPREGADOR.
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. ART. 114 DA MAGNA CARTA
DE 1988. PROCESSOS EM CURSO NA JUSTIÇA COMUM DOS ESTADOS.
IMPERATIVO DE POLÍTICA JUDICIÁRIA. SÚMULA VINCULANTE 22 DO
STF. 1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Conflito
de Competência 7.204, da minha relatoria, concluiu que a Lei Republicana
de 1988 conferiu à Justiça do Trabalho a competência para processar e julgar
as ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de
acidente de trabalho. Mais: como imperativo de política judiciária, decidiu,
por maioria, que o marco temporal da competência da Justiça trabalhista é o
advento da EC 45/04. 2. A nova orientação, cristalizada na Súmula Vinculante
22 do STF, alcança os processos em trâmite pela Justiça comum estadual, desde
que pendentes de julgamento de mérito. 3. Agravo Regimental desprovido.
(AI 634728 AgR, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Primeira Turma, julgado em
01/06/2010, DJe-145 DIVULG 05-08-2010 PUBLIC 06-08-2010 EMENT VOL02409-09 PP-01975 RDECTRAB v. 17, n. 194, 2010, p. 71-74) .
111
Ratificando tal orientação, o STJ – Superior Tribunal de Justiça,
embora no caso estivesse analisando a legitimação do Ministério
Público, acabou extinguindo todas as dúvidas acerca da legitimação também da Defensoria Pública ao consagrar o instituto do “in
dubio pro legitimatio”185, nas ações coletivas. Assim, se há dúvida
185 PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
PROTEÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA FÍSICA, MENTAL OU
SENSORIAL. SUJEITOS HIPERVULNERÁVEIS. fornecimento de prótese
auditiva. Ministério PÚBLICO. LEGITIMIDADE ATIVA ad causam. LEI
7.347/85 E LEI 7.853/89. 1. Quanto mais democrática uma sociedade,
maior e mais livre deve ser o grau de acesso aos tribunais que se espera seja
garantido pela Constituição e pela lei à pessoa, individual ou coletivamente.
2. Na Ação Civil Pública, em caso de dúvida sobre a legitimação para
agir de sujeito intermediário – Ministério Público, Defensoria Pública e
associações, p. ex. –, sobretudo se estiver em jogo a dignidade da pessoa
humana, o juiz deve optar por reconhecê-la e, assim, abrir as portas para
a solução judicial de litígios que, a ser diferente, jamais veriam seu dia
na Corte. 3. A categoria ético-política, e também jurídica, dos sujeitos
vulneráveis inclui um subgrupo de sujeitos hipervulneráveis, entre os quais
se destacam, por razões óbvias, as pessoas com deficiência física, sensorial
ou mental. 4. É dever de todos salvaguardar, da forma mais completa e
eficaz possível, os interesses e direitos das pessoas com deficiência,
não sendo à toa que o legislador refere-se a uma "obrigação nacional a
cargo do Poder Público e da sociedade" (Lei 7.853/89, art. 1°, § 2°, grifo
acrescentado). 5. Na exegese da Lei 7.853/89, o juiz precisa ficar atento ao
comando do legislador quanto à finalidade maior da lei-quadro, ou seja,
assegurar "o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas
portadoras de deficiência, e sua efetiva integração social" (art. 1°, caput,
grifo acrescentado). [...] 7. A própria Lei 7.853/89 se encarrega de dispor
que, na sua "aplicação e interpretação", devem ser considerados "os valores
básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do
respeito e dignidade da pessoa humana, do bem-estar, e outros indicados
na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito" (art. 1°,
§ 1°). [...] 9. A tutela dos interesses e direitos dos hipervulneráveis é de
inafastável e evidente conteúdo social, mesmo quando a Ação Civil Pública,
no seu resultado imediato, aparenta amparar uma única pessoa apenas. É
que, nesses casos, a ação é pública, não por referência à quantidade dos
sujeitos afetados ou beneficiados, em linha direta, pela providência judicial
(= critério quantitativo dos beneficiários imediatos), mas em decorrência
da própria natureza da relação jurídica-base de inclusão social imperativa.
Tal perspectiva – que se apóia no pacto jurídico-político da sociedade,
apreendido em sua globalidade e nos bens e valores ético-políticos que
o abrigam e o legitimam – realça a necessidade e a indeclinabilidade de
proteção jurídica especial a toda uma categoria de indivíduos (= critério
112
sobre a legitimação para agir na Ação Civil Pública deve ser deferida ao substituto adequado, a legitimação para agir a fim de se
garantir o acesso à justiça.
Ademais, o STJ consagrou a noção de grupo hipervulnerável,
no qual estão inseridos aqueles indivíduos que necessitam de uma
inclusão social imperativa o que legitimaria, per si, o tratamento
coletivizado por qualquer substituto coletivo adequado. Eis excerto
do voto condutor:
A tutela dos interesses e direitos dos hipervulneráveis é de inafastável e evidente conteúdo social, mesmo
quando a Ação Civil Pública, no seu resultado imediato,
aparenta tutelar apenas uma única pessoa. É que, nesses
casos, a Ação é pública, não por referência à quantidade dos sujeitos afetados ou beneficiados, em linha direta, pela providência judicial (= critério quantitativo dos
beneficiários imediatos), mas em decorrência da própria
natureza da relação jurídica-base de inclusão social imperativa . Esta última perspectiva – que se apóia no pacto
qualitativo dos beneficiários diretos), acomodando um feixe de obrigações
vocalizadas como jus cogens. 10. Ao se proteger o hipervulnerável, a rigor
quem verdadeiramente acaba beneficiada é a própria sociedade, porquanto
espera o respeito ao pacto coletivo de inclusão social imperativa, que lhe
é caro, não por sua faceta patrimonial, mas precisamente por abraçar a
dimensão intangível e humanista dos princípios da dignidade da pessoa
humana e da solidariedade. Assegurar a inclusão judicial (isto é, reconhecer
a legitimação para agir) dessas pessoas hipervulneráveis, inclusive dos
sujeitos intermediários a quem incumbe representá-las, corresponde a
não deixar nenhuma ao relento da Justiça por falta de porta-voz de seus
direitos ofendidos. [...] 12. A possibilidade, retórica ou real, de gestão
individualizada desses direitos (até o extremo dramático de o sujeito,
in concreto, nada reclamar) não os transforma de indisponíveis (porque
juridicamente irrenunciáveis in abstracto) em disponíveis e de indivisíveis
em divisíveis, com nome e sobrenome. Será um equívoco pretender lêlos a partir da cartilha da autonomia privada ou do ius dispositivum,
pois a ninguém é dado abrir mão da sua dignidade como ser humano,
o que equivaleria, por presunção absoluta, a maltratar a dignidade
de todos, indistintamente. [...] 15. Recurso Especial não provido. (REsp
931.513/RS, Rel. Ministro CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ FEDERAL
CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), Rel. p/ Acórdão Ministro HERMAN
BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/11/2009, DJe 27/09/2010).
113
jurídico-político da sociedade, apreendido em sua globalidade e nos bens e valores ético-políticos que o abrigam
e o legitimam – realça a necessidade e a indeclinabilidade de proteção jurídica especial a toda uma categoria
de indivíduos (= critério qualitativo dos beneficiários diretos), acomodando um feixe de obrigações vocalizadas
como jus cogens.
Ao se proteger o hipervulnerável, a rigor quem verdadeiramente acaba beneficiada é a própria sociedade,
porquanto espera o respeito ao pacto coletivo de inclusão social imperativa , que lhe é caro, não por sua faceta
patrimonial, mas precisamente por abraçar a dimensão
intangível e humanista dos princípios da dignidade da
pessoa humana e da solidariedade. Assegurar a inclusão
judicial (isto é, reconhecer a legitimação para agir) dessas pessoas hipervulneráveis, inclusive dos sujeitos intermediários a quem incumbe representá-las, corresponde
a não deixar nenhuma ao relento da Justiça por falta de
porta-voz de seus direitos ofendidos.
[...] A possibilidade, retórica ou real, de gestão individualizada desses direitos (até o extremo dramático de
o sujeito, in concreto, nada reclamar) não os transforma
de indisponíveis (porque juridicamente irrenunciáveis in
abstracto ) em disponíveis e de indivisíveis em divisíveis,
com nome e sobrenome. Será um equívoco pretender
lê-los a partir da cartilha da autonomia privada ou do
ius dispositivum, pois a ninguém é dado abrir mão da
sua dignidade como ser humano, o que equivaleria, por
presunção absoluta, a maltratar a dignidade de todos,
indistintamente.
Vale indicar que embora o acórdão trate dos portadores de
deficiência como um grupo inserido na categoria “hipervulnerável”, a caracterização desta permite sua abrangência também
para os indivíduos submetidos ao tráfico de pessoas e reduzidos
à condição análoga a de escravo, eis que em tais situações o
indivíduo resta afastado até mesmo do mínimo existencial, havendo lesão a sua dignidade, saúde, liberdade, direitos sociais
e outros direitos e garantias fundamentais tão caros ao regime
democrático.
114
Pelo exposto, não há como se questionar a legitimação coletiva
da Defensoria Pública in casu, sob pena de se gerar clara violação
ao acesso à justiça dos ora substituídos.
4.2. Estudo de caso 2: As oficinas de costura em São Paulo
e a redução à condição análoga a de escravo de grupo de
estrangeiros, vítimas de tráfico de pessoas
Considerando tratar-se de caso que tem seu desdobramento
com similar modus operandi, executado indistintamente por diversas empresas do ramo de vestuário, optou-se como ressalva metodológica a supressão da identificação específica de determinada
empresa e eventuais vítimas e envolvidos, para que possamos, com
profundidade, nos atermos ao estudo cientifico das estruturas e
engrenagens do complexo econômico criminoso envolvendo as oficinas de costura em São Paulo.
Por outro lado, não deixaremos de abordar as circunstâncias
e peculiaridades dos casos que geram a correta compreensão da
gravidade do ilícito perpetrado e alta vulnerabilidade a que grupos
de estrangeiros, em sua maioria, são submetidos, sendo destacada
a participação da Defensoria Pública da União no foco e na constante perspectiva de viabilizar ao grupo vulnerável identificado, a
tutela jurídica adequada, que permita concluir pelo efetivo acesso
à justiça186.
4.2.1 As condições degradantes de trabalho e a privação do
convívio social.
Em outubro de 2009, uma mulher boliviana pertencente a uma
das várias oficinas de costura de SP conseguiu fugir da oficina de
costura e solicitou assistência ao consulado boliviano e à Defensoria
Pública da União. Com o primeiro contato estabelecido com a DPU
SP, dada a situação de alta vulnerabilidade apresentada pela assistida
e o indicativo da existência de grupo com a mesma característica
186 A metodologia adotada torna livre a análise e o desenvolvimento
do estudo científico do caso paradigma, pois a partir da construção do
problema, tendo por base diversos casos viabiliza-se um conglomerado
de situações degradantes que somadas enriquecem a fundamentação e a
abordagem jurídica e jurisprudencial da problemática.
115
montou-se, junto com os fiscais do trabalho integrantes de órgão específico de combate ao trabalho escravo do MTE – Ministério do Trabalho
e Emprego, verdadeira, operação de resgate de cidadania.
Os fiscais do trabalho após levantamento de inteligência definiram data para realização do resgate na oficina de costura indicada, com a presença de defensores federais integrantes de Comitês
temáticos, e a polícia federal. A partir da constatação da existência
da vulneração e identificação dos elementos objetivos e subjetivos
dessa triste realidade, outros órgãos de atuação e novos desdobramentos surgem, inclusive para Defensoria Pública da União.
Com a produção dos relatórios de fiscalização do MTE e a instauração de IPLs pela PF, a DPU exerce, inicialmente, a tentativa de
consolidação de atos de cidadania, na seguinte medida: auxiliou a obtenção de inclusão de testemunhas no PROVITA – órgão de proteção
a vítimas e testemunhas, por determinado período; promoveu diversos
procedimentos administrativos com o fim de obtenção de regularização migratória; propiciou as vítimas um amplo esclarecimento do
contexto criminoso a que estavam submetidas esclarecendo, inclusive,
os direitos que faziam jus, além de, como um dos desdobramentos
da já mencionada atuação do ofício de direitos humanos, ingressar
como assistente de acusação no processo criminal, instaurado devido a prática, em tese, dos crimes descritos nos arts. 149187,203188,
187 Art. 149 do Código Penal. “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo,
quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o
a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua
locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem: I - cerceia o uso de qualquer meio de
transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos
ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I - contra criança
ou adolescente; II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
origem”. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
188 Art. 203 do Código Penal “Frustrar, mediante fraude ou violência, direito
assegurado pela legislação do trabalho:Pena - detenção de um ano a dois anos,
e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº
9.777, de 29.12.1998) § 1º Na mesma pena incorre quem: (Incluído pela Lei
nº 9.777, de 29.12.1998) I - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de
determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em
116
288 189 e 297 190 do Código Penal e 125, XII 191 , da Lei
6815/80.
No referido processo, constam dos autos, além de diversos depoimentos pessoais de trabalhadores, o boletim de ocorrência n°
X/2009, que relata o flagrante realizado em imóvel de propriedade
do algoz, demonstrando de maneira explícita as condições degradantes que viviam os bolivianos mencionados na denúncia oferecida
pelo Ministério Público Federal.
virtude de dívida; (Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998) II - impede alguém
de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio
da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais. (Incluído pela Lei nº
9.777, de 29.12.1998) § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se
a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de
deficiência física ou mental”. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998)
189 Art. 288 do Código Penal “Associarem-se mais de três pessoas, em
quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes: Pena - reclusão, de um a
três anos. (Vide Lei 8.072, de 25.7.1990) Parágrafo único. A pena aplica-se
em dobro, se a quadrilha ou bando é armado”.
190 Art. 297 do Código Penal. “Falsificar, no todo ou em parte, documento
público, ou alterar documento público verdadeiro: Pena - reclusão, de dois
a seis anos, e multa. § 1º - Se o agente é funcionário público, e comete o
crime prevalecendo-se do cargo, aumenta-se a pena de sexta parte. § 2º Para os efeitos penais, equiparam-se a documento público o emanado de
entidade paraestatal, o título ao portador ou transmissível por endosso, as
ações de sociedade comercial, os livros mercantis e o testamento particular.
§ 3º Nas mesmas penas incorre quem insere ou faz inserir: I - na folha de
pagamento ou em documento de informações que seja destinado a fazer
prova perante a previdência social, pessoa que não possua a qualidade
de segurado obrigatório II - na Carteira de Trabalho e Previdência Social
do empregado ou em documento que deva produzir efeito perante a
previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter sido
escrita; III - em documento contábil ou em qualquer outro documento
relacionado com as obrigações da empresa perante a previdência social,
declaração falsa ou diversa da que deveria ter constado. § 4º Nas mesmas
penas incorre quem omite, nos documentos mencionados no § 3º, nome do
segurado e seus dados pessoais, a remuneração, a vigência do contrato de
trabalho ou de prestação de serviços”.(Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
191 Art. 125 do Código Penal. “Constitui infração, sujeitando o infrator
às penas aqui cominadas: (Renumerado pela Lei nº 6.964, de 09/12/81):
[..] XII - introduzir estrangeiro clandestinamente ou ocultar clandestino
ou irregular: Pena: detenção de 1 (um) a 3 (três) anos e, se o infrator for
estrangeiro, expulsão”.
117
Conforme se depreende do relatório de fiscalização elaborado
pelo MTE através do programa de combate a fraude e a terceirização irregular, seção de segurança e saúde do trabalhador, diversos
estrangeiros teriam sido submetidos à condição análoga a de escravo
pela EMPRESA X192, por meio de prepostos.
Durante a abordagem do MTE no local do complexo oficinista, os
vizinhos consignaram a privação de convívio social dos estrangeiros
que raramente saíam da construção sendo que “as únicas oportunidades em que eram efetivamente vistos era por ocasião das aberturas
dos portões do imóvel para a entrada e saída de veículos utilitários”,
o que foi corroborado pelas vítimas em diversas declarações.
Também restaram demonstradas as condições degradantes em
que os trabalhadores e suas famílias se encontravam, não havendo
sequer separação efetiva entre os ambientes de trabalho e de domicílio, estando eles submetidos a uma jornada mínima de 14 horas
de trabalho, de segunda à sábado.
Foi constatado que essa coexistência de situações em um mesmo ambiente: “trabalho em ritmo intenso, moradia e alimentação
coletiva, dificuldade de comunicação, falta de contato com a comunidade do entorno, ausência de documentos e medo de deportação,
192 Nesse sentido foi destacado no relatório do MTE: “A empresa auditada,
EMPRESA X. EPP, é inteiramente responsável pela situação encontrada. O
emaranhado em rede das empresas envolvidas na cadeia produtiva é de
inteiro conhecimento e aprovação da empresa autuada. A empresa autuada
compõe, na verdade, grupo empresarial que comanda e exerce seu poder
de direção e ingerência de diversas formas sempre no sentido de adequar
a produção de peças de vestuário à sua demanda, a seu preço e à sua
clientela. Investe em uma marca forte, de grande valor comercial, indicando
um fundo de comércio baseado na marca e no estilo que vende. Impõe
esse estilo a seus fornecedores, que são, na verdade, meros intermediadores
de mão de obra barata e precarizada. Tais pseudo empresas interpostas,
chamadas pela autuada de fornecedoras, funcionam, na realidade, como
verdadeiras células de produção da EMPRESA X. EPP, todas interligadas
em rede, simulando contratos de fornecimento de mercadorias, mas
que, na realidade, encobertam nítida relação de emprego entre todos os
obreiros das empresas interpostas e a empresa autuada. A rede varejista
X comercializa exclusivamente a sua marca própria, demandando forte
gestão de fornecedores (definição de peças, qualidade, preço, logística,
etc.), conforme constatado na auditoria”.
118
explicam a situação de enclausuramento a que eram submetidos
esses trabalhadores, implicando na dependência total, de sua vida e
a de seus familiares à figura do oficinista”.
Em relação às condições de segurança e higiene foi relatado que:
Em todas as oficinas de costura do complexo conhecido como “Calderon193”, as condições de segurança e
saúde são inexistentes, indicando extrema precariedade
no local de trabalho. Não há extintores de incêndio, as
cadeiras são improvisadas, a ventilação e iluminação
são insuficientes, os trabalhadores vivem e trabalham
no mesmo local, as instalações sanitárias são precárias e
coletivas, as instalações elétricas estão sobrecarregadas e
foram feitas de forma irregular (“gato”), os quartos são de
tamanho diminuto, sobrecarregados com diversos trabalhadores e seus pertences pessoais, e situados ao longo
do corredor que faz ligação entre as oficinas de costura,
área de trabalho, e a cozinha coletiva. A iluminação é
precária e as condições sanitárias insuficientes. No local
foi constatada uma infestação de piolhos – escabiose atacando a maioria das crianças que ali vivem.
A título exemplificativo das condições aos quais os trabalhadores eram submetidos verifica-se o cômodo descrito no relatório
de fiscalização onde “não há ventilação ou iluminação naturais, a
janela encontra-se em frente a outra parede. Varais improvisados,
concentração de umidade e acumulação fúngica, aumentando e intensificando as doenças do trato respiratório”.
Desta forma, destacam-se as seguintes conclusões do Ministério
do Trabalho e Emprego:
1 – A situação constatada in loco na oficina de costura do sr. MAL configura trabalho análogo ao de escravo, conforme preceituado no artigo 149 do Código Penal
brasileiro, em virtude da jornada de trabalho exaustiva e
das condições degradantes de trabalho;
193 Nome fictício, dado o sigilo da referência.
119
2 - A oficina do sr. MAU é apenas uma das 78 oficinas
inidôneas (sem empregados registrados e sem recolhimento do FGTS) contratadas pela EMPRESA X (Jan/2009
a Jun/2010) para a executar integralmente a atividade de
costura – essencial ao desenvolvimento do seu negócio –
das peças de roupas produzidas por sua grife;
3 - A terceirização da “facção” das atividades de costura
contratadas pela EMPRESA X, principalmente de trabalhadores de nacionalidade boliviana, se dá mediante a
utilização fraudulenta de operações de “industrialização
por conta de terceiros nos moldes do ICMS”, visando
ocultar a subordinação reticular ensejadora do vínculo
empregatício com os costureiros que assim têm seus
direitos trabalhistas frustrados, acarretando ainda a sonegação do FGTS e do INSS;
4 - O baixo valor pago pela EMPRESA X aos oficinistas – em média R$ 1,00 por peça para a costura das
roupas de sua grife é causa direta para a perpetuação das
condições degradantes a que estão submetidos os trabalhadores ocupados nessas facções, notadamente os de
nacionalidade boliviana;
5 – O resultado da auditoria fiscal realizada nos
documentos fiscais apreendidos no centro de produção/
logística/armazenagem/distribuição do Grupo da EMPRESA
X demonstra que quase 2 milhões de peças de roupas
foram produzidas no período de Jan/2009 a Jun/2010
nessas circunstâncias, prejudicando aproximadamente
800 trabalhadores (número projetado), com sonegação
de R$ 137.205,02 de FGTS e de aproximadamente R$
400.000,00 de INSS;
6 – A denúncia oferecida pela Defensoria Pública
da União é inteiramente procedente, já que a oficina de
costura da Sra. MALVADA e de seu esposo, Sr. MAU, situada na Rua D., bairro TAL, São Paulo, SP, efetivamente
prestou serviços de costura para a autuada, EMPRESA X,
pelo menos durante os meses de março e abril de 2009,
conforme atestam as notas fiscais. Importante ressaltar
a falta de idoneidade econômico-financeira e moral da
oficina de costura, que não possui nenhum empregado
registrado nem tampouco bens que possam justificar a
viabilidade empresarial da mesma.
120
Concluímos o presente relatório pela constatação da
ocorrência de trabalho análogo ao de escravo sob responsabilidade da empresa autuada, nos termos exatos
dos autos de infração lavrados e dos fundamentos enumerados no presente relatório.
Tendo em vista o caso estudado, constata-se que os fatos relatados com riqueza de detalhes fornecem um parâmetro inicial para
sabermos com que estamos lidando, e a forma como com efetividade pode ser feito ou viabilizado, pela Defensoria Pública da União,
o acesso à justiça a esse grupo hipervulnerável194 ou no mínimo,
vulnerável em elevado grau, pois, ainda que só considerada a
atuação inicial ou meramente informativa da Defensoria Pública da
União, no tocante ao notório resgate de cidadania, a temática da
viabilização do acesso à justiça já estaria presente.
4.2.2 A natureza preventiva e pedagógica dos danos morais
coletivos originados da redução dos trabalhadores à condições
análogas a de escravo.
Dado o relato e a descrição das circunstâncias fáticas do caso
apresentado e peças informativas referentes a Relatórios do MTE,
PAJs – Processos de Assistência Jurídica da DPU, IPL - Inquérito Policial, bem como, no processo criminal, além das jornadas exaustivas
194 Em relação a hipervulnerabilidade, alguns, defendem sua aplicação
a hipótese de idosos envoltos em relações de consumo: As vivências
dos idosos somadas às perdas afetivas que tiveram durante sua vida e às
dificuldades físicas e psíquicas que lhe são inerentes, acabam por lhes deixar
em condição hipervulnerável, até mesmo porque acompanhar a evolução
da sociedade torna-se, gradativamente, uma tarefa árdua. Na busca pelo
tratamento com igualdade, persegue-se a vulnerabilidade física, psíquica
e social para que seja encontrada a sua vulnerabilidade jurídica. Quando
existe desigualdade constatada, as normas jurídicas não podem ser iguais
para todos. Aos que são considerados diferentes, neste caso, em razão do
envelhecimento que os torna hipervulneráveis, precisa ser assegurada a
igualdade jurídica com o objetivo de mitigar sua desigualdade material em
relação aos demais cidadãos. Desta forma, há de se garantir o humanismo
social. DETROZ, Derlayne. A hipervulnerabilidade e os direitos fundamentais
do consumidor no direito brasileiro. Curitiba. 2011. p.57. Disponível em:
http://www.unibrasil.com.br/sitemestrado/_pdf/20100724%20V43%20
-%20Disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf. Consulta em 23 de nov. de 2012.
121
de trabalho e exposição a muitas horas sem condições adequadas
de descanso, a Empresa X sujeitou diversos indivíduos a condições
insalubres, severas e humilhantes de trabalho (salas e janelas fechadas,
sem a menor ventilação, materiais amontoados, precárias condições
de higiene e instalações elétricas, alimentação parca e desbalanceada), deixando, ainda, de pagar a remuneração devida, tudo muito
além do aceitável sob o ponto de vista da legislação trabalhista e das
normas de Organização Internacional do Trabalho e também muito
aquém do mínimo de respeito e consideração que um indivíduo se
faz merecedor em face da dignidade da pessoa humana.
Assim, tendo em vista a sujeição do grupo vulnerável a condições
absolutamente degradantes de trabalho, moradia e alimentação,
além da dor, o sofrimento e a angústia injustamente provocados,
sem contar a privação dos direitos trabalhistas decorrentes da relação de emprego, deixando de receber seus direitos constitucionais
(13º salário proporcional, férias, salário mínimo legal, repouso semanal remunerado, etc), impõe-se a empresa X o pagamento de
indenização pelos danos morais suportados pelas vítimas.
Com efeito, o direito brasileiro dispõe que aquele que por ação
ou omissão voluntária, violar direito, ou causar prejuízos a terceiros, fica obrigado a reparar o dano. A Constituição Federal de 1988,
em seu artigo 5º, incisos V e X, prevê a possibilidade de reparação
do dano moral prestigiando a honra, a vida privada e a imagem das
pessoas, reconhecendo o direito de indenização pelo dano moral195
e material, decorrentes de sua violação. Admite, assim, a reparação
dos danos, que se divide em moral e material.
195 Neste sentido, vale reproduzir a lição de Américo Plá Rodriguez,
in Princípios de Direito do Trabalho, tradução de Wagner D. Giglio, São
Paulo, LTr, 1978, pp. 272, verbis: O contrato de trabalho não cria somente
direitos e obrigações de ordem exclusivamente patrimonial, mas também
pessoal. Cria, de outro lado, uma relação estável e continuada, na qual
se exige a confiança recíproca em múltiplos planos, em direções opostas
e, sobretudo, por um período prolongado de tempo. Para o cumprimento
destas obrigações e a adequada manutenção dessas relações, torna-se
importantíssimo que ambas as partes atuem de boa-fé. Por isso, se diz que a
justificação e a aplicação deste princípio tem um significado, uma duração
e uma necessidade muito superiores às que podem ter em contratos que
se esgotam em um intercâmbio único de prestações ou em uma simples
correspondência de prestações materiais.
122
O dano moral atinge bens de natureza não patrimonial, entre os
quais a honra, imagem, dignidade, ou seja, as qualidades morais, o
respeito pessoal e social construído. Em seu Título II, Capítulo II, a
Constituição da República cuidou dos direitos sociais, buscando garantir aos trabalhadores a consecução das garantias e dos direitos a
que fazem jus, em decorrência da função social que desempenham.
Conclui-se, pois, que a prática de sonegar os mais básicos direitos trabalhistas às vítimas, deixando de lhes pagar as verbas devidas,
além de as sujeitarem a condições de trabalho análogas a de escravos, seu sofrimento psíquico196 por passar por situação vexatória,
padecendo de intranquilidade, humilhação, dor, medo e insegurança, configura-se manifestamente como dano moral.
Vale apontar que a conduta, quando transcende a esfera jurídica
de um indivíduo específico, pode ser fato gerador não de um dano
moral individual, mas também do chamado dano moral coletivo197 que
possui igual guarida constitucional e mesmo grau de tutela jurídica.
Atento a tal conceito, subsume-se a existência do dano moral
coletivo nos casos em que há tráfico de pessoas198 e redução de
196 E, citando texto de Pérez Botija, in Curso de Derecho del Trabajo,
Madri, 1948, pp. 176, o autor conclui: “A relação de trabalho não é um
negócio circunstancial, nem uma fugaz transação mercantil, mas contém
vínculos sociológicos pessoais e permanentes. Ainda que originada de um
fato econômico, não pode resumir-se em direitos e deveres patrimoniais;
coexistem vínculos de ordem moral e espiritual que, em uma moderna
concepção de trabalho, não devemos desconhecer”. BOTIJA, Pérez. Curso
de Derecho del Trabajo. Madri. 1948. pp. 176.
197 Conforme se aufere das palavras de Xisto Tiago de Medeiros Neto: o
“dano moral coletivo (lato sensu), bem como a necessidade de sua reparação,
constituem mais uma evolução nos contínuos desdobramentos do sistema da
responsabilidade civil, significando a ampliação do dano extrapatrimonial
para um conceito não restrito ao mero sofrimento ou à dor pessoal, porém
extensivo a toda modificação desvaliosa do espírito coletivo, ou seja, a
qualquer ofensa aos valores fundamentais compartilhados pela coletividade,
e que refletem o alcance da dignidade dos seus membros. MEDEIROS NETO,
Xisto Tiago. Dano Moral Coletivo. 1ª ed., São Paulo: LTr, 2003, p. 136.
198 Isto porque o Decreto nº 5017/04, que internalizou o protocolo
adicional à convenção das Nações Unidas contra o crime organizado
transnacional relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de
pessoas, em especial mulheres e crianças, conceitua o tráfico de pessoas
como: o recrutamento, o transporte, a transferências, o alojamento, ou o
123
trabalhadores à condição análoga a de escravos, eis que aqui restam
presentes todos os elementos constitutivos do dano moral coletivo,
quais sejam: 1) dano a uma coletividade; 2) fato não aceito socialmente gerando sentimento de indignação; 3) irreversibilidade do
dano causado ou difícil reparação; 4) consequências do fato que
atingem a coletividade significando instabilidade e rompimento do
equilíbrio social199.
Conforme se depreende do Plano Nacional para a Erradicação
do Trabalho Escravo200, “a escravidão contemporânea manifesta-se na
clandestinidade e é marcada pelo autoritarismo, corrupção, segregação social, racismo, clientelismo e desrespeito aos direitos humanos”.
O Relatório Global do Seguimento da Declaração da OIT sobre
Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de 2005 traz dois
elementos essenciais para a caracterização do trabalho forçado (expressão utilizada na ONU, mas que no Brasil é comumente substituída por trabalho escravo201), quais sejam: a involuntariedade e a
coação por meio de ameaça de sanções.
acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras
formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade, ou
à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamento ou
benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade
sobre outra para fins de exploração. A exploração incluíra, no mínimo,
a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração
sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou prática similares à
escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.
199 GOSDAI, Thereza, Cristina. Dano Moral Coletivo Trabalhista e o Novo
Código Civil, in, O Impacto do Novo Código Civil no Direito do Trabalho,
1ª ed., São Paulo: LTr, 2003, p. 205.
200 No âmbito da prevenção, a intenção é diminuir a vulnerabilidade
de determinados grupos sociais ao tráfico de pessoas e fomentar seu
empoderamento, bem como engendrar políticas públicas voltadas para
combater as reais causas estruturais do problema. Quanto à Atenção às
vítimas, foca-se no tratamento justo, seguro e não discriminatório das
vítimas, além da reinserção social, adequada assistência consular, proteção
especial e acesso à justiça. E se entende como vítimas não só os(as)
brasileiros(as), mas também os(as) estrangeiros(as) que são traficados(as)
para o Brasil, afinal este é considerado um país de destino, trânsito e origem
para o tráfico. Plano nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas/
Secretaria Nacional de Justiça . – Brasília : SNJ, 2008. p.10.
201 No âmbito nacional, vários e diferentes termos podem ser usados para
esconder as diferentes formas de coerção que esses países procuram erradicar.
124
Em relação às sanções, o Relatório da OIT afirma que :
Uma ameaça de punição pode assumir múltiplas e
diferentes formas. Evidentemente, a mais extrema implica
violência ou confinamento ou mesmo ameaças de morte
à vítima ou a seus familiares. Pode haver também formas
mais sutis de ameaça, às vezes de natureza psicológica.
Situações analisadas pela OIT envolvem ameaças de denúncia da vítima à polícia ou a autoridades de imigração,
quando sua situação de emprego é ilegal, ou denúncia a
dirigentes locais no caso de jovens forçadas a se prostituírem em cidades distantes. Outras punições podem ser
de natureza financeira, como penas econômicas ligadas
a dívidas, o não pagamento de salários ou a perda de
salários juntamente com ameaças de demissão quando
o trabalhador se recusa a fazer horas extras além do estipulado em seus contratos ou na legislação nacional. Há
casos de empregadores que exigem também de trabalhadores a entrega de seus documentos pessoais para depois
ameaçá-los de confisco, com o objetivo de impor trabalho forçado (fls. 5/6).
Relativamente à involuntariedade, o trabalho forçado resta identificado em determinadas situações onde a vontade do indivíduo é
viciada pela ausência de opção, circunstância comumente originada das próprias ameaças ou das condições impostas aos indivíduos
que, normalmente, encontram-se de forma irregular no país202.
Nos países sul-asiáticos, regiões da Índia, Paquistão e até certo ponto o Nepal,
há nas leis, que pretendem erradicar essa prática coercitiva, definições muito
complexas de “servidão por dívida”. A maioria dos trabalhadores por dívida
encaixar-se-iam plenamente na própria definição de trabalho forçado da
OIT, mas possivelmente há exceções. No Brasil, a expressão preferida para
práticas coercitivas de recrutamento e emprego em regiões remotas é “trabalho
escravo”; todas as situações cobertas por essa expressão parecem enquadrar-se
no contexto das convenções da OIT sobre trabalho forçado (Relatório da OIT).
202 Após exaustiva reflexão sobre o tema, parece-me ser esta (a exploração
sexual) a única situação em que, em tese, há espaço para atribuir relevância
ao consentimento da vítima, já que não parece razoável um sujeito, em pleno
exercício de sua autonomia, sem encontrar-se em condição de vulnerabilidade,
consentir com sua submissão, por exemplo, a trabalho em condições análogas
à de escravo, ao trabalho forçado ou à servidão. Por fim, diante de todas as
125
Em atenção a estas duas características, o Relatório da OIT
aponta situações em que, na prática, consubstanciariam o trabalho
forçado, eis o quadro exemplificativo:
Quadro 1.1
Identificação de Trabalho Forçado na Prática
Falta de consentimento (natureza
involuntária do trabalho)
(“itinerário” do trabalho forçado)
Escravidão por nascimento ou por
descendência de escravo / servidão
por dívida
Rapto ou seqüestro
Venda de pessoa a outra
Confinamento no local de trabalho –
em prisão ou em cárcere privado
Coação psicológica, isto é, ordem
para trabalhar, apoiada em ameaça
real de punição por desobediência
Dívida induzida (por falsificação de
contas,
preços
inflacionados,
redução do valor de bens ou
serviços produzidos, taxas de juros
exorbitantes, etc.)
Engano ou falsas promessas sobre
tipos e condições de trabalho
Retenção ou não pagamento de
salários
Retenção
de
documentos
de
identidade ou de pertences pessoais
de valor
Ameaça de punição (meios de manter
alguém em regime de trabalho forçado)
Violência física contra o trabalhador ou sua
família ou pessoas próximas
Violência sexual
(Ameaça de) represálias sobrenaturais
Prisão ou confinamento
Punições financeiras
Denúncia
a
autoridades
autoridades de imigração,
deportação
(polícia,
etc.) e
Demissão do emprego atual
Exclusão de empregos futuros
Exclusão da comunidade e da vida social
Supressão de direitos ou privilégios
Privação de alimento, habitação ou de
outras necessidades
Mudança para condições de trabalho ainda
piores
Perda de status social
discussões sobre o tema, fica claro que quando se analisa o consentimento da
vítima, verifica-se se a vítima consente com sua exploração. Não se analisa o
consentimento da vítima em relação ao deslocamento. Com, efeito, “muitas
pessoas traficadas migram voluntariamente, mas acabam sendo traficadas.
A migração com consentimento não significa ‘tráfico com consentimento’.
‘Tráfico com consentimento’ é uma contradição de termos, porque ninguém
consente com condições similares à escravidão. NOVAIS, Denise Pasello
Valente. Trafico de pessoas para exploração do trabalho: trabalhadores à
condição análoga a de escravo em São Paulo. São Paulo: LTr. 2012. p .38.
126
Verifica-se, in casu, a existência de diversas circunstâncias arroladas
pela Organização Internacional do Trabalho como caracterizadoras do
trabalho forçado e que retiram das vítimas direitos e garantias fundamentais que consubstanciam a Dignidade da Pessoa Humana.
Isto porque, dado o caso apresentado, as vítimas da empresa
X encontravam-se, ao ficarem confinadas ao ambiente de trabalho
que também era sua residência, privadas do convívio social, sendo
submetidas a condições degradantes de trabalho e de vida.
Da mesma forma, nenhum dos indivíduos portava documentação e todos demonstraram temor perante os oficinistas, tendo
muitos deles externado aos auditores do trabalho seu medo de
serem deportados.
O dano moral, conforme orientação do próprio TST é
caracterizado como uma “lesão a atributos íntimos da pessoa, de
modo a atingir valores juridicamente tutelados, cuja mensuração
econômica envolve critérios objetivos e subjetivos” sendo que “a
indenização por dano moral revela conteúdo de interesse público,
na medida em que encontra ressonância no princípio da dignidade
da pessoa humana, sob a perspectiva de uma sociedade que se
pretende livre, justa e solidária (CF, arts. 1º, III, e 3º, I)” (RR - 3370005.2008.5.09.0068, Relator Ministro: Alberto Luiz Bresciani de
Fontan Pereira, Data de Julgamento: 02/02/2011, 3ª Turma, Data de
Publicação: 11/02/2011).
Com tal conceito, é clarividente a sua caracterização nos
casos de trabalhos forçados com redução dos trabalhadores à
condição análoga a de escravo, o que se aufere dos precedentes
abaixo arrolados:
CONDIÇÕES DE TRABALHO AVILTANTES. DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES PATRONAIS.
AFRONTA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Restando patente que as demandadas, além de não arcarem com suas
obrigações legais, ainda submetiam seus empregados a
condições aviltantes – cárcere decorrente da falta de pagamento de salário, fome, submissão, ameaças e humilhações, torna-se imperiosa a reforma do julgado originário,
127
a fim de responsabilizá-las solidariamente pela satisfação
dos encargos trabalhistas, fiscais e previdenciários, sem
eximi-las de indenizar os obreiros pelos danos morais sofridos. (PROCESSO TRT RO-28325/2003-008-11-00)
TRABALHO FORÇADO. CONFIGURAÇÃO. Os fatos
devidamente comprovados nos autos, demonstram de
maneira incontestável o descuido continuado do empregador com o meio ambiente do trabalho, afetando potencialmente todos os seus empregados, que, ao contrário
do que alega a peça recursal, estavam impossibilitados
do livre exercício do direito de IR e VIR, e o que é mais
degradante, estavam submetidos à condição subumana
como bem retratam as fotos e a fita VHS residentes nos
autos. Está, assim, configurada a prática de dano coletivo (JUSTIÇA DO TRABALHO DA 8ª REGIÃO GABINETE
JUÍZA FRANCISCA OLIVEIRA FORMIGOSA ACÓRDÃO:
00233-2002–114–08–00-X (4ªT/RO 00862/2003))
DANO MORAL COLETIVO – POSSIBILIDADE –
Uma vez configurado que a ré violou direito transindividual de ordem coletiva, infringindo normas de ordem
pública que regem a saúde, segurança, higiene e meio
ambiente do trabalho e do trabalhador, é devida a indenização por dano moral coletivo, pois tal atitude da
ré abala o sentimento de dignidade, falta de apreço e
consideração, tendo reflexos na coletividade e causando grandes prejuízos à sociedade. (ACÓRDÃO TRT/1ª
T./RO 5309/2002)
TRABALHO EM CONDIÇÕES SUBUMANAS. DANO
MORAL COLETIVO PROVADO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. Uma vez provadas as irregularidades constatadas
pela Delegacia Regional do Trabalho e consubstanciadas
em Autos de Infração aos quais é atribuída fé pública (art.
364 do CPC), como também pelo próprio depoimento
da testemunha do recorrente, é devida indenização por
dano moral coletivo, vez que a só notícia da existência de
trabalho escravo ou em condições subumanas no Estado
do Pará e no Brasil faz com que todos os cidadãos se envergonhem e sofram abalo moral, que deve ser reparado,
com o principal objetivo de inibir condutas semelhantes.
Recurso improvido. (ACÓRDÃO 00218-2002-114-0800-1 (1ª T./RO 4453/2003)).
128
Em relação aos precedentes indicados vale colacionar a fundamentação do acórdão 5309/02 do Tribunal Regional do Trabalho da
8ª Região:
A reclamada imputou a um conjunto de trabalhadores que não se pode quantificar, pois aqueles que foram
indenizados restringem-se aos que estavam no local por
ocasião da fiscalização, o exercício de atividade profissional em condições sub-humanas, pois o ambiente de
trabalho não tinha a menor salubridade, sem instalações
higiênicas, sem água potável, com trabalho a céu aberto
e não eram fornecidos os equipamentos de proteção. Essa
atitude da ré abala o sentimento de dignidade, falta de
apreço e consideração, tendo reflexos na coletividade,
pois as normas que regem a matéria envolvendo a saúde,
segurança, higiene e meio ambiente do trabalho e do
trabalhador são de ordem pública. Senão vejamos:
O art. 1º, III da CF/88, diz que a República Federativa
do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos,
dentre outros, a dignidade da pessoa humana. O art. 7º,
também da Magna Carta prescreve que: São direitos dos
trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem
à melhoria de sua condição social: XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde,
higiene e segurança; XXVIII - seguro contra acidentes de
trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo
ou culpa;
A questão também remete a uma lesão ao meio
ambiente do trabalho, cabendo invocar o conceito de
Amauri Mascaro Nascimento, ao dizer que “meio ambiente do trabalho é o complexo máquina-trabalho: as
edificações do estabelecimento, equipamentos de proteção individual, iluminação, conforto térmico, instalações
elétricas, condições de salubridade ou insalubridade, de
periculosidade ou não, meios de prevenção à fadiga, outras medidas de proteção ao trabalhador, jornadas
de trabalho e horas extras, intervalos, descansos, férias,
129
movimentação, armazenagem e manuseio de materiais
que formam o conjunto de condições de trabalho, etc."
(In A defesa processual do meio ambiente do trabalho.
Vol. 63-05/584, São Paulo: Ltr).
Como alerta José Afonso da Silva, em igual sentido,
"merece referência, em separado, o meio ambiente do
trabalho como o local em que se desenrola boa parte da
vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está, por isso,
em íntima dependência da qualidade daquele ambiente". (In Direito ambiental constitucional. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 1995. p. 4-5).
Os danos perpetrados contra uma coletividade de trabalhadores adquire relevância social. [...] Como alerta,
com bastante pertinência, o Prof. José Claudio Monteiro
de Brito Filho, ao versar sobre os conflitos que podem
surgir do desrespeito às normas de meio ambiente do
trabalho: a observância das normas de proteção para a
prevalência de um meio ambiente equilibrado não é do
interesse nem só dos indivíduos, singularmente considerados, nem dos grupos, é do interesse de toda a coletividade, que é, de uma forma ou de outra afetada por
qualquer desequilíbrio existente. Assim, dependendo da
hipótese, pode-se vir a ter uma lesão restrita ao interesse
de um único indivíduo – como no caso de empregador
que deixa de fornecer o equipamento de proteção individual – EPI a único empregado -, passando por lesão de
caráter mais abrangente, envolvendo todo um grupo de
empregados, quando será possível identificar a ofensa a
interesses coletivos em sentido estrito ou a interesses individuais homogêneos, chegando, até, a lesão de ultrapasse a esfera do interesse de uma coletividade determinada
para alcançar o interesse de toda a sociedade. (In A tutela
coletiva do meio ambiente do trabalho. Retirado da página
do autor em 03.12.2002).
Podemos concluir, pois, que cabe ação civil pública
no âmbito da Justiça do Trabalho para a defesa judicial
do meio ambiente do trabalho; e que o meio ambiente
do trabalho não se limita apenas a condições que respeitem o meio ambiente geral, mas que estabeleçam a
higidez do habitat laboral, que deve estar livre de ameaças à saúde e à segurança dos trabalhadores. A lesividade
130
à saúde do trabalhador e ao meio ambiente do trabalho
tem forte carga degradante, merecendo a sanção jurídica,
tal como aplicada pelo juízo de primeiro grau. Todos os
procedimentos adotados contra os trabalhadores conduzem a que se reconheça o dano moral coletivo, porque
atingido o complexo social em seus valores íntimos, em
especial a própria dignidade humana.
Dentro do poder discricionário para fixação do quantum a ser ressarcido à vítima, entendo que as circunstâncias do caso concreto, a gravidade do dano, a situação
do lesante e a condição do lesado (a sociedade), e, ainda,
pelo fato de que o dano moral, no presente feito, assumiu
intensa gravidade, eis que foi objeto de divulgação e
tornou-se conhecido para além daqueles que estiveram
direta ou indiretamente envolvidos nos fatos narrados
nestes autos, levando em conta ainda o fato de se tratar de
uma empresa que vive da exploração da pecuária, sendo reincidente como atestam os vários autos de infração
relacionados à fl. 13 dos autos, onde os fatos descritos
podem voltar a ocorrer, entendo que o valor postulado na
inicial apresenta-se razoável, mantendo-se o deliberado
pela sentença de origem.
Pelo exposto, considerando o estudo de caso apresentado, restando caracterizada a redução dos trabalhadores a condição análoga
a de escravo com a submissão dos mesmos a trabalho forçado, sendo inevitável a aplicação do dano moral coletivo, faz-se o indicativo
que o referido dano moral coletivo representa, ontologicamente, a
principal medida reparadora possível de ser implementada contra
a sistemática econômica que estimula e fortalece o ciclo da degradação humana, pelo foco na maximização dos lucros à custa
da dignidade humana. Isto porque, na visão da Defensoria o dano
moral coletivo possui referibilidade além da eventual reparação das
verbas trabalhistas e assume, por seu viés pedagógico, eficácia de
medida corretiva do sistema de exploração do valor humano.
Dessa forma, a perspectiva da fixação do dano moral coletivo
assumiu uma nova e essencial finalidade que é servir de mecanismo
de prevenção e desestímulo pedagógico, para que empresas de um
determinado setor abandonem formatos de produção incompatíveis
131
com o Estado Democrático de Direito, pois este não se submete aos
caprichos do sistema do capitalismo selvagem.
4.2.3 Da obrigação assumida pelo Brasil em relação ao combate
ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo – da prevenção,
repressão e reparação.
A necessária repressão do tráfico de pessoas e do trabalho
escravo é objetivo assumido pelo Brasil em diversas normas de
garantias de direitos fundamentais.
A título exemplificativo, o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos) preceitua em seu artigo 6º que:
Proibição da escravidão e da servidão
§1. Ninguém poderá ser submetido a escravidão ou
servidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.
§2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho
forçado ou obrigatório. Nos países em que se prescreve,
para certos delitos, pena privativa de liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode
ser interpretada no sentido de proibir o cumprimento da
dita pena, imposta por um juiz ou tribunal competente.
O trabalho forçado não deve afetar a dignidade, nem a
capacidade física e intelectual do recluso.
Tal disposição, internalizada no Brasil com status supralegal (RE
404276, STF), foi regulamentada por diversas normas brasileiras e
que denotam, de forma induvidosa, as obrigações assumidas pelo
país no combate a referida prática degradante.
Ao lado do pacto de São José da Costa Rica, o Brasil, por meio
do Decreto nº 5.017/04, adotou o protocolo adicional à convenção
das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças, conceituando a prática (art. 3, a) como:
(...) o recrutamento, o transporte, a transferências, o
alojamento, ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à
132
ameação ou uso da força ou a outras formas de coação,
ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade, ou
à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação
de pagamento ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para
fins de exploração. A exploração incluíra, no mínimo, a
exploração da prostituição de outrem ou outras formas
de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados,
escravatura ou prática similares à escravatura, a servidão
ou a remoção de órgãos.
Tal protocolo ratifica a idéia de que o tráfico de pessoas e sua
submissão ao trabalho escravo ou análogo à condição de escravo
elimina qualquer manifestação de vontade válida tornando o consentimento da vítima irrelevante para a caracterização do ilicito,
sendo obrigação de cada um dos Estados signatário não apenas a
punição e repressão da conduta, mas também a “aplicação de medidas
que permitam a recuperação física, psicológica e social das vítimas”
(art. 6º, 3) devendo assegurar “que o seu sistema jurídico contenha
medidas que ofereçam às vítimas de tráfico de pessoas a possibilidade
de obterem indenização pelos danos sofridos” (art. 6º, 6).
Em atenção às obrigações assumidas no âmbito internacional,
o governo brasileiro aprovou, por meio do Decreto nº 5.948/06,
a política nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas o qual
adotou como princípios (art. 3º):
I- respeito à dignidade da pessoa humana;
II- não discriminação por motivo de gênero, orientação
sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, atuação profissional, raça, religião, faixa etária,
situação migratória ou outro status;
III- proteção e assistência integral às vítimas diretas e
indiretas, independentemente de nacionalidade e de colaboração em processos judiciais;
IV- promoção e garantia da cidadania e dos direitos
humanos;
V- respeito a tratados e convenções internacionais de
direitos humanos;
133
VI- universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; e
VII- transversalidade das dimensões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, raça
e faixa etária nas políticas públicas.
Parágrafo único.A Política Nacional de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas observará os princípios da proteção
integral da criança e do adolescente
A referida política incumbiu aos órgãos da Justiça e da Segurança Pública a obrigação de “fomentar a cooperação entre os órgãos
federais, estaduais e municipais ligados à segurança pública para
atuação articulada na prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e
responsabilização de seus autores” (art. 8º, I, c).
Assim, analisando as normas que regem a atuação do Governo
no âmbito interno e externo, não há como se afastar a necessidade
de reparação da sociedade e das vítimas, bem como a imposição de
severa punição às empresas que se utilizam do trabalho escravo seja
de forma direta, seja de forma indireta.
Nesse sentido há um imperativo social na condenação da empresa
ou agente cuja conduta ilicita causou não apenas irreparável dano às
vítimas individualmente consideradas, retirando delas inclusive o mínimo existencial caracterizador da dignidade da pessoa humana, mas,
também, profunda lesão ao sistema democrático que preza pela garantia
dos direitos fundamentais e da dignidade em seus níveis mais elevados.
4.2.4 Da responsabilidade da empresa – da subordinação
estrutural e do princípio da primazia da realidade
Retomando o estudo de caso, a empresa X é também uma marca voltada para o vestuário feminino, com aproximadamente 62
(sessenta e duas) lojas no Estado de São Paulo. Sua coleção também
é comercializada em mais de 500 (quinhentas) lojas multimarcas
em todo o território nacional.
Ocorre que uma parte da coleção comercializada pela empresa X é confeccionada no ateliê do Sr. Mal onde são fabricadas
as roupas e acrescentadas as etiquetas da empresa X. Ora, sabe-se
134
que o Direito do Trabalho contemporâneo evoluiu o conceito da
subordinação objetiva para o conceito de subordinação estrutural203
como caracterizadora do elemento previsto no art. 3º da CLT, que
define o contrato de trabalho.
De acordo com a doutrina e jurisprudência204 mais recentes, “a
subordinação estrutural é aquela que se manifesta pela inserção do
203 “EMENTA: ‘SUBORDINAÇÃO RETICULAR’ – TERCEIRIZAÇÃO –
EXTERNALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES ESSENCIAIS – EMPRESA-REDE
– VÍNCULO DE EMPREGO COM O BANCO – 1 A nova organização
produtiva concebeu a empresa-rede que se irradia por meio de um
processo aparentemente paradoxal, de expansão e fragmentação, que,
por seu turno, tem necessidade de desenvolver uma nova forma correlata
de subordinação: a ‘reticular’. 2. O poder de organização dos fatores
da produção é, sobretudo, poder, e inclusive poder empregatício de
ordenação do fator-trabalho. E a todo poder corresponde uma antítese
necessária de subordinação, já que não existe poder, enquanto tal, sem
uma contrapartida de sujeição. Daí que é decorrência lógica concluir que
o poder empregatício do empreendimento financeiro subsiste, ainda que
aparentemente obstado pela interposição de empresa prestadora de serviço.
O primado da realidade produtiva contemporânea impõe reconhecer a
latência e o diferimento da subordinação direta.” (Processo n. 01251-2007110-03-00-5, TRT 3ª. Região, Relator: José Eduardo de R. Chaves Júnior).
204 "TERCEIRIZAÇÃO E SUBORDINAÇÃO ESTRUTURAL - No exercício da
função de instalador/emendador de cabos telefônicos, o autor exercia função
perfeita e essencialmente inserida nas atividades empresariais da companhia
telefônica (Telemar). E uma vez inserido nesse contexto essencial da atividade
produtiva da empresa pós-industrial e flexível, não há mais necessidade de
ordem direta do empregador, que passa a ordenar apenas a produção. Nesse
ambiente pós-grande indústria, cabe ao trabalhador ali inserido habitualmente
apenas "colaborar". A nova organização do trabalho, pelo sistema da
acumulação flexível, imprime uma espécie de cooperação competitiva entre
os trabalhadores que prescinde do sistema de hierarquia clássica. Em certa
medida, desloca-se a concorrência do campo do capital, para introjetá-la no
seio da esfera do trabalho, pois a própria equipe de trabalhadores se encarrega
de cobrar, uns dos outros, o aumento da produtividade do grupo; processase uma espécie de sub-rogação horizontal do comando empregatício. A
subordinação jurídica tradicional foi desenhada para a realidade da produção
fordista e taylorista, fortemente hierarquizada e segmentada. Nela prevalecia
o binômio ordem-subordinação. Já no sistema ohnista, de gestão flexível,
prevalece o binômio colaboração-dependência, mais compatível com uma
concepção estruturalista da subordinação. (...). Vale lembrar que na feliz e
contemporânea conceituação da CLT - artigo 2º, caput - o empregador típico
é a empresa e não um ente determinado dotado de personalidade jurídica.
135
trabalhador na dinâmica da atividade econômica do tomador de seus
serviços, pouco importando se receba ou não ordens diretas desta,
mas, sim, se a empresa o acolhe, estruturalmente, em sua dinâmica
de organização e funcionamento, caso em que se terá por configurada a relação de emprego” (RR 159000-43.2008.5.03.0003), exatamente como ocorre na hipótese vertente.
De outro lado, conforme entendimento do juiz do trabalho da
12ª Região, Dr. Oscar Krost, as profundas alterações pelas quais
atravessa o processo produtivo, especialmente por sua fragmentação e por seu desmembramento, pelo repasse a terceiros de atividades tidas por desvinculadas do fim do negócio, deram origem à
denominada “terceirização”. Todavia, nas palavras do insigne magistrado, “por ausência de regulação específica, bem como pelo
pouco tempo de existência, alguns fenômenos acabam por ocupar
uma zona ‘cinzenta’, carecendo de uma qualificação jurídica precisa, tarefa destinada aos operadores do Direito”.
Em uma destas situações, encontram-se os efeitos gerados em
relação à contratante pelo inadimplemento das obrigações trabalhistas pela contratada em face de seus empregados, no ajuste
conhecido popularmente por ‘facção’. Neste, determinado sujeito
repassa a terceiros a realização de dada atividade integrante da produção, efetuando a paga apenas pelas unidades encomendadas e
entregues, prática comum no ramo têxtil.
Por tal ajuste, ocorre a fragmentação do processo fabril e o desmembramento do ciclo produtivo de manufatura, antes setorizado,
dentro de uma mesma empresa. Há o repasse a um ‘terceiro’ da
realização de parte (facção) das atividades necessárias à obtenção
de um produto final, fenômeno comum no ramo têxtil.
Verifica-se, no entanto, que a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho consolidou o entendimento205 de que o repasse
A relação de emprego exsurge da realidade econômica da empresa e do
empreendimento, mas se aperfeiçoa em função da entidade final beneficiária
das atividades empresariais." (TRT-13, RO 108667-PB00207200900513001,
Rel.Carlos Coelho de Miranda Freire, j. 17/06/2009, 2ª Turma, p.24/08/2009).
205 AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. AÇÃO CIVIL
PÚBLICA. TERCEIRIZAÇÃO DE ATIVIDADE-FIM. DIREITOS INDIVIDUAIS
HOMOGÊNEOS. LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO
136
TRABALHO. Em se tratando de direitos tipicamente individuais ligados entre
si pela mesma situação jurídica base a caracterizar a sua homogeneidade,
e, portanto, o seu alcance coletivo na esfera jurídica dos sujeitos de direito
identificados, na espécie, como empregados terceirizados de instituição
bancária, tem o Ministério Público do Trabalho legitimidade para defendêlos, consoante a interpretação sistemática dos artigos 127 e 129, III, da
Constituição da República, 83, III, da LC-75 e 1, V, da Lei nº 7.347/85.
Precedentes desta Corte e do STF. TERCEIRIZAÇÃO DE ATIVIDADE-FIM.
INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. PROCESSAMENTO DE DADOS. DANO
MORAL COLETIVO. FIXAÇÃO. Se é certo que a terceirização de serviços
passou a ser admitida, no âmbito das relações de trabalho, como meio
de compatibilizar a otimização da atividade empresarial com a geração
de emprego, é, igualmente, certo que, pela mesma razão, ela não pode
ser empregada na atividade-fim empresarial, sob pena de desvirtuar o
instituto, em flagrante desrespeito à legislação trabalhista, entendimento
que veio a ser encampado pela Súmula nº 331 deste Tribunal Superior.
No caso concreto, o quadro fático fixado pelo Tribunal Regional não dá
margem à dúvida de que os terceirizados executavam tarefas típicas de
uma instituição financeira, rotineiramente realizadas por qualquer caixa
ou atendente bancário, as quais incluem o processamento e recebimento,
separação, arquivo e custódia de valores e documentos do tomador dos
serviços, inclusive a compensação, todas executadas de forma direta e
subordinada ao poder diretivo do tomador de serviços. A corroborar esse
contexto fático, somam-se os dados relevantíssimos de que a Resolução
2707 do BACEN deixa clara a natureza essencialmente bancária das
atividades terceirizadas e que muitos dos empregados da prestadora são
oriundos do próprio Banco que os dispensou, aspectos que evidenciam não
apenas a prática desmedida da terceirização para a realização de atividadefim, como a intenção de fraudar direitos próprios da categoria profissional
dos bancários, cuja especialidade merece capítulo próprio na Consolidação
das Leis do Trabalho. Esse entendimento, consagrado no Verbete sumular,
acima mencionado, objetiva manter íntegras as concepções de empregado
e empregador, que constituem os sujeitos de direitos das relações laborais,
bem assim, mantém-se em sintonia com os princípios da livre concorrência
e do respeito aos valores sociais do trabalho, compatibilizados pelo
próprio texto constitucional, ao erigi-los, conjuntamente, como pilares
de sustentação da ordem econômica. Nesse contexto, a fixação de
indenização a título de dano moral, coletivo a ser revertida ao Fundo de
Amparo ao Trabalho, revela-se não apenas consentânea com o caráter
pedagógico da condenação em obrigação de não fazer, como também
sancionador de conduta sabidamente contrária à ordem jurídica, nos
termos da jurisprudência pacífica desta Corte. Decisão agravada que é
mantida. Agravo de instrumento a que se nega provimento. (AIRR - 11764071.2002.5.01.0011 , Relator Ministro: Walmir Oliveira da Costa, Data de
Julgamento: 16/02/2011, 1ª Turma, Data de Publicação: 25/02/2011).
137
da atividade-fim da empresa para intermediárias ou “prepostos
autônomos” constitui verdadeira tentativa de burla à legislação
trabalhista não ratificada pelo Poder Judiciário tornando-a, assim,
ilegal, gerando a responsabilização da empresa terceirizante pelos
danos causados, inclusive os danos morais.
Tal entendimento consubstanciou inclusive orientação sumulada (súmula 331) do TST de forma que a ausência de pessoalidade e
de subordinação direta pelo empregado da empresa contratada não
pode servir de óbice à responsabilização da contratante, já que tais
requisitos não são exigidos pela jurisprudência quando ajustada a
‘terceirização’.
A exclusividade na prestação de serviços sequer se apresenta
como elemento essencial do liame de emprego, podendo um empregado manter contratos com empregadores diversos, de modo
concomitante, sem que um interfira no outro, caso típico de professores e de médicos, tampouco sendo exigida na ‘terceirização’.
A extrapolar a argumentação da responsabilização, pode-se dizer que, a responsabilidade da empresa X encontraria ainda amparo na Teoria do Risco Criado e do Risco Benefício ou Proveito, na
medida em que, segundo VENOSA206 “o sujeito obtém vantagens ou
benefícios e, em razão dessa atividade, deve indenizar os danos que
ocasiona’, já que ‘um prejuízo ou dano não reparado é um fator de
inquietação social (...) a fim de que cada vez menos restem danos
irressarcidos”.
A opção pelo repasse de parte do processo produtivo a terceiros
traz em si, ainda de modo implícito, a assunção dos respectivos
riscos, devendo aquele que assim proceder se cercar de todo o
zelo, agindo com probidade e boa-fé, pelo que dispõe o art. 422
do Código Civil.
Por outro lado, possível reexaminar o prescrito nos arts. 10 e 448,
ambos da CLT, sob o prisma da atual estruturação do sistema fabril,
fundamentando a responsabilização da contratante no entendimento de que, em sentido amplo, o negócio de ‘facção’ representa uma
206 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Responsabilidade Civil.
8. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p. 1-2.
138
modalidade de mudança ‘estrutural da empresa’, atingindo os ‘direitos adquiridos’ pelos trabalhadores, legal e constitucionalmente”207.
Ora, no caso em estudo, conforme depoimentos consignados,
as peças confeccionadas de roupas na pequena oficina de costura,
em sua maior parte, recebem etiquetas com a marca da empresa X,
o que caracterizou repasse da atividade-fim da referida empresa,
beneficiadora desses serviços, estabelecendo-se o vínculo diretamente com ela, nos termos da Súmula nº 331 do TST.
Note-se, outrossim, que a utilização de mão-de-obra ilegal, inclusive mão-de-obra análoga a de escravo, gerou um crescimento
exponencial da Requerida que ao preferir o baixo custo de confecção
das peças, gerado pelas condições degradantes dos seus trabalhadores,
otimizou seu lucro conforme se depreende do aresto do relatório do
MTE abaixo colacionado:
Esta forma de super-exploração da força de trabalho,
negando aos trabalhadores direitos laborais e previdenciários mínimos, dá-se com intuito de maximizar os lucros,
atingindo uma redução do preço dos produtos, caracterizando o dumping social e uma vantagem indevida no
mercado e levando à concorrência desleal.
Essa conduta, que objetiva a redução dos custos de
produção, acaba desestimulando o cumprimento das
normas trabalhistas, gerando um círculo vicioso de
desrespeito aos direitos sociais, constitucionalmente
garantidos.
Além do mais, práticas como essas geram dano à sociedade, configurando exercício abusivo do direito, uma
vez que extrapolam os limites econômicos e sociais.
Segundo apurado na auditoria, o crescimento exponencial do número de lojas da rede da empresa X
coincide com a intensificação, a partir do ano de 2004,
dos processos de diversificação de oficinas fornecedoras,
mormente de estabelecimentos fabris precários e que se
utilizam de mão-de-obra informal.
207 Disponível em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/índex.php/
buscalegis//article/viewFile/23777/23340. Consultado em 20 de out. de
2012.
139
Vale relatar, que mesmo na hipótese irreal de que a empresa X não soubesse da utilização de mão-de-obra análoga a
de escravo, ainda assim sua responsabilização seria necessária.
Isto não só pela aplicação da teoria do risco e do Benefício
acima indicado, mas também pela própria culpa in eligendo e
in vigilando. Ademais, a culpa in vigilando permite a aplicação
de uma teoria já utilizada no direito penal, onde a responsabilização encontra-se muito mais limitada do que no direito
trabalhista e civil, chamada de teoria da cegueira deliberada
(Willful blindness) ou teoria das instruções da avestruz (Ostrich
instructions).
No processo penal, a referida teoria, muito aplicada nos crimes
de lavagem de dinheiro, tem incidência quando o agente finge não
enxergar a ilicitude da procedência de bens, direitos e valores com
o intuito de auferir vantagens. Aqui se condena com base no fato
de que é necessário se precaver no que diz respeito à proveniência
do que está colocando em circulação. Para a teoria da cegueira deliberada, a ignorância deliberada equivale a dolo eventual, não se
confundindo com a mera negligência (culpa consciente)208.
Tal doutrina, mutatis mutandis, pode ser aplicada no caso em
estudo, eis que a empresa X, se não sabia da utilização do trabalho
escravo, deliberadamente decidiu não investigar os elementos que
permitiam o suspeito baixo custo da confecção das roupas para maximizar seu lucro, tornando-se, portanto, responsável pelos danos
causados, uma vez que sua contribuição era de vital importância
para a manutenção do regime ilícito.
Logo, sob qualquer prisma que se examine a questão, necessário o reconhecimento da responsabilização da empresa
contratante pelos danos decorrentes da relação havida com as
vítimas, como forma, inclusive, de assegurar o equilíbrio entre
o valor social do trabalho e a livre iniciativa. E, mais modernamente tem-se sustentado inclusive uma responsabilização objetiva
derivada de cláusula de salvaguarda209, prevista no protocolo de
208 Embargos de Declaração em apelação criminal nº 552/CE, TRF5.
209 Artigo 14. Cláusula de salvaguarda 1. Nenhuma disposição do
presente Protocolo prejudicará os direitos, obrigações e responsabilidades
dos Estados e das pessoas por força do direito internacional, incluindo
140
Palermo, que reconhece aplicabilidade ao princípio do non-refoulement210.
4.2.5 A DPU na tutela do grupo vulnerável identificado como
vítimas de tráfico de pessoas e trabalho escravo211 e o dever de
fiscalização dos postos de trabalho
Ultrapassada a questão acerca da responsabilização da empresa
X em relação à contratação de mão-de-obra análoga a de escravo,
resta fixar a necessária obrigatoriedade de que ela proceda a fiscalização de todos os seus postos de trabalho.
Se por um lado é evidente que há uma obrigação de não fazer,
é dizer, de não contratar a mão-de-obra análoga a de escravo seja
direta, seja indiretamente, é igualmente evidente que a empresa X,
ao contratar indivíduos para a administração dos postos de trabalho
para a confecção da roupa (o que caracterizaria, como no estudo de
o direito internacional humanitário e o direito internacional relativo aos
direitos humanos e, especificamente, na medida em que sejam aplicáveis,
a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos
Refugiados e ao princípio do non-refoulement neles enunciado. 2. As
medidas constantes do presente Protocolo serão interpretadas e aplicadas de
forma a que as pessoas que foram vítimas de tráfico não sejam discriminadas.
A interpretação e aplicação das referidas medidas estarão em conformidade
com os princípios de não-discriminação internacionalmente reconhecidos.
Seminário Nacional sobre Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 10 e 11 de
outubro de 2008. Brasília –DF. p.104.
210 Desde la adopción de la Convención de Ginebra en el año 1951, el
principio de non-refoulement ha evolucionado hasta convertirse en una
norma de carácter absoluto, es decir, que no admite excepción ni derogación
alguna. Efectivamente, la norma de non-refoulement recogida en los
tratados de derechos humanos cubre una gama más amplia de situaciones,
ya que, además de no admitir derogaciones ni excepciones, no exige que
el peligro esté vinculado al estatus civil o político del individuo, sino que
puede derivar de cualquier causa, y cubre, además de la devolución y la
expulsión, también la extradición. Disponível em: http://www.dicc.hegoa.
ehu.es/listar/mostrar/157. Consulta em 20 de out. de 2012.
211 Apesar de as vulnerabilidades do tráfico de pessoas e do trabalho
escravo serem distintamente consideradas, para o presente estudo de caso,
dada a frequência de incidência dos casos enfrentados com duplicidade de
incidência, considerou-se na fundamentação a dupla incidência no caso
paradigma, ainda que a descrição relatada seja mais adequada a uma das
vulnerabilidades apresentadas que é o trabalho escravo.
141
caso, terceirização ilícita), fica obrigada a fiscalizar e garantir que os
trabalhadores tenham respeitados os seus Direitos Fundamentais212.
Dessa forma, o papel da Defensoria Pública da União na tutela do grupo vulnerável, além de imprimir o resgate da cidadania
das vítimas213, a responsabilização da empresa X com fundamento na violação do imperativo social214, buscou-se ainda gerar
uma obrigação de fazer para empresa X, através da propositura de
212 O relatório do MTE é cabal no reconhecimento do exercício do
poder de fiscalização da produção e da ciência inequívoca da condição
a qual os trabalhadores eram submetidos. Assim: O emaranhado em rede
das empresas envolvidas na cadeia produtiva é de inteiro conhecimento
e aprovação da empresa autuada. A empresa autuada compõe, na
verdade, grupo empresarial que comanda e exerce seu poder de direção
e ingerência de diversas formas sempre no sentido de adequar a produção
de peças de vestuário à sua demanda, a seu preço e à sua clientela. Investe
em uma marca forte, de grande valor comercial, indicando um fundo de
comércio baseado na marca e no estilo que vende. Impõe esse estilo a seus
fornecedores, que são, na verdade, meros intermediadores de mão de obra
barata e precarizada.
213 Foi o que aconteceu com uma grande varejista com sede em São
Paulo. Depois de sofrer autuações em virtude de subcontratações de seus
fornecedores diretos, que submeteram trabalhadores a condições precárias
de trabalho, a empresa firmou Termo de Ajustamento de Conduta com o
Ministério Público do Trabalho, o ministério do Trabalho e Emprego e a
Defensoria Pública da União, comprometendo-se a monitorar e auditar
toda a sua cadeia produtiva, não restringindo sua fiscalização, portanto a
seus fornecedores diretos. O monitoramento nesses termos também busca
auxiliar na identificação de trabalhadores migrantes em situação irregular,
para que o Poder Público, por meio da Defensoria Pública, possa atuar na
regularização e aconselhamento dos trabalhadores. Via reflexa é possível
também um monitoramento dos trabalhadores vítimas de tráfico de pessoas.
NOVAIS, Denise Pasello Valente. Trafico de pessoas para exploração do
trabalho: trabalhadores à condição análoga a de escravo em São Paulo. São
Paulo: LTr. 2012. p.140.
214 A Ação Civil Pública eventualmente proposta para o desenvolvimento
do pedido de condenação em dano moral coletivo por violação do
imperativo social deverá ser ajuizada, necessariamente, na Justiça do
Trabalho. Com base nesse entendimento foi elaborada a súmula vinculante
nº 22 a qual determina que “ A Justiça do Trabalho é competente para
processar e julgar as ações de indenização por danos morais e patrimoniais
decorrentes de acidente de trabalho propostas por empregado contra
empregador, inclusive aquelas que ainda não possuem sentença de mérito,
em primeiro grau quando da promulgação da EC nº 45/04”.
142
ACP215, pois a proteção aos direitos fundamentais não é atribuição
exclusiva do poder público, mas afeta, até mesmo porque os particulares também são destinatários dos deveres por eles gerados, as
relações privadas, especialmente aquelas cuja dignidade da pessoa
humana é lastro para o regramento jurídico, como ocorre nas relações de trabalho.
A incidência direta dos direitos fundamentais nas relações privadas limitando a autonomia da vontade e gerando deveres anexos,
tal qual o da fiscalização ora posto, já foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal conforme se depreende da seguinte ementa:
EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES.
215 Lembre-se, ademais, que o próprio Supremo Tribunal de Federal já estendeu a legitimidade da Defensoria Pública em tutela coletiva para a promoção da defesa de todos os grupos vulneráveis. Assim, o STF, ao defender
as funções institucionais da Defensoria Pública previstas na Constituição
Estadual do Rio de Janeiro , afirmou que a defesa dos economicamente
hipossuficientes não é o limite, mas apenas o âmbito de atuação mínima da
Defensoria (ADIn 558), in verbis: “(...) a própria Constituição da República
giza o raio de atuação institucional da Defensoria Pública, incumbindo da
da orientação jurídica e da defesa, em todos os graus, dos necessitados. Daí,
contudo, não se segue a vedação de que o âmbito da assistência judiciária
da Defensoria Pública se estenda aos patrocínio dos ‘direitos e interesses
(...) coletivos dos necessitados, a que alude o art. 176 da Constituição do
Estado: é óbvio que o serem direitos e interesses coletivos não afasta, por
si só, que sejam necessitados os membros da coletividade. Daí decorre
a atribuição mínima compulsória da Defensoria Pública. Não, porém, o
impedimento a que os seus serviços se estendam ao patrocínio de outras
iniciativas processuais em que se vislumbre interesse social que justifique
esse subsídio estatal.”. Tal conclusão também é alcançada por Ada Pellegrini Grinover na elaboração de parecer sobre a legitimação da Defensoria
Pública no ajuizamento de Ação Civil Pública, sendo que para a referida
autora há distinção, embora ambas categorias legitimem a atuação da Defensoria Pública, entre os economicamente hipossuficientes e os hipossuficientes organizacionais que seriam todos aqueles socialmente vulneráveis,
tais quais os consumidores, os usuários de serviços públicos, os usuários
de planos de saúde, os que queiram implementar ou contestar políticas
públicas, como as atinentes à saúde, à moradia, ao saneamento básico e ao
meio ambiente (Parecer a respeito da argüição de inconstitucionalidade da
legitimidade da Defensoria Pública para propor Ação Civil Pública. Disponível em: http://www.anadep.org.br/. Acesso em: 20 fev. 2011.).
143
EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA
DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS.
RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente
no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas
igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e
jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente
não apenas os poderes públicos, estando direcionados
também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. […] III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO,
AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER
PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO
DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO
CONTRADITÓRIO. [...]
(RE 201819, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a)
p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11/10/2005, DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT
VOL-02253-04 PP-00577 RTJ VOL-00209-02 PP-00821)
Ademais, ainda que se assim não o fosse, a responsabilização in
vigilando e in eligendo, ou ainda, contemporâneamente, a própria responsabilidade objetiva, nos termos já explanados no tópico acima,
vinculam diretamente a empresa X às condutas de seus prepostos
ainda que tal vínculo seja mascarado com um contrato simulado de
terceirização, motivo pelo qual os postos de trabalho, em verdade,
significam verdadeira extensão da atividade produtiva da empresa
recaindo a responsabilidade pelos atos ilícitos sobre a própria empresa que passa a ter o dever de garantir a todos os seus trabalhadores
o respeito aos Direitos Fundamentais e trabalhistas.
Concluindo o presente estudo de caso demonstra-se o relevante
papel desempenhado pela DPU no resgate da cidadania e, principalmente, na disponibilidade do acesso à justiça as vítimas de
144
tráfico de pessoas e trabalho escravo, manuseando todos os instrumentos jurídicos fornecidos pelo ordenamento jurídico, com
destaque para a Ação Civil Pública, independentemente, da existência da pertinencia temática216, que de qualquer modo resta
sempre configurada ao lidarmos com grupos vulneráveis.
216 A pertinência temática do objeto de eventual ação coletiva com o âmbito
de atuação da Defensoria Pública da União resta patente quando analisada
as ações dessa Instituição no combate ao tráfico de pessoas e ao trabalho
escravo. Na Unidade de São Paulo há um trabalho constante visando a
eliminação de tais situações que violam frontalmente Direitos Fundamentais
de indivíduos hipervulneráveis, conforme se depreende da sua participação
no Comitê Estadual Interinstitucional de Prevenção e Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas e nos Comitês Regionais Interinstitucionais de Prevenção
e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Estado de São Paulo (Decretos nº
54.101/09 e 56.508/10, ambos do Estado de São Paulo), bem como no Pacto
Contra a Precarização e pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo
- Cadeia Produtiva das Confecções.Verifica-se, assim, diversos expedientes
administrativos e judiciais nos quais a Defensoria Pública da União objetiva
a tutela dos indivíduos vítimas de tais condutas, o que se constata com
a análise dos Processos de Assistência Judiciária (PAJ) nsº 00264/11,
10710/09, 01621/10, 01720/11, 00176/10, 03890/09 e 0533/07, 09763/09
e 09314/10. Desta forma, seja porque aqueles indivíduos submetidos a tal
situação degradante já seriam, per si, enquadrados como vulneráveis, no
mínimo por uma faceta de hipossuficiência organizacional, seja porque
o grupo atingido é necessariamente inserido na faixa de pobreza, eis que
quando recebiam o salário o recebiam em valor inferior ao mínimo, resta
demonstrada a legitimidade ad causam coletiva da Defensoria Pública da
União.
145
5 A VULNERABILIDADE REFLEXA DO
GRUPO REFUGIADOS.
5.1 O refúgio e o ordenamento jurídico protetivo.
Ao abordarmos o instituto do refúgio implicitamente nos deparamos com o fenômeno das migrações217 que historicamente estão
atrelados à própria condição humana, sendo atividade vinculada
essencialmente a evolução da própria humanidade e sua busca de
constante adaptação ao meio social218. Contudo, ao lado desse relato finalisticamente positivo e tão antigo quanto o gênero migrações
217 Las migraciones, como el trabalho humano al que están íntimamente
ligadas, constituyen um elemento esencial de La vida humana que a
través de la historia universal há definido aspectos fundamentales de las
sociedades como los idiomas, las religiones, el estado, el derecho, la família,
el trabalho, el pensamiento filosófico y científico (...). VICENTE, Osvaldo
Mantero de San. El Derecho a Migrar. Fundación de Cultura Universitaria.
Montevideo – Uruguay. 2010. p. 15.
218 O fenômeno migratório não é recente. Ao contrário, data desde os
primórdios das civilizações. O homem primitivo, quando constatava
que a terra que lhe dava meios necessários para o sustento próprio e dos
seus já estava exaurida, procurava em outras regiões novos campos de
abastecimento (...)De toda sorte, o que se verifica nesse deslocamento é
que as pessoas viajam com grande desejo e esperança de se instalar em
determinado Estado-nação e de iniciar uma “nova vida” sem pressões,
contratempos, ameaças, enfim, sem os perigos que se manifestam em
seu país de origem. GUERRA, Sidney. Direito Internacional dos Direitos
Humanos. São Paulo. Editora Saraiva. 2011.p.43-44.
147
humanas, temos a espécie que implica necessidade de migrar, que
por circunstâncias específicas pode gerar subsunção ao instituto
do refúgio.
Dentre as pessoas ou grupo de pessoas obrigadas a migrar
considerando os deslocamentos internos, os apátridas e os asilados,
temos os refugiados. Que conforme as hipóteses elencadas no art.
1º da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951,
demonstram situações de alta vulnerabilidade.
Quem são os refugiados? São todos os homens e mulheres (idosos, jovens e crianças) que foram obrigados a
deixar seus países de origem por causa de um fundado
temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, por pertencer a um determinado grupo social ou por suas opiniões políticas. A legislação brasileira
sobre refúgio (Lei 9.474 de 22 de julho de 1997) também
reconhece como refugiadas as pessoas que foram obrigadas
a sair de seus países devido a conflitos armados, violência e violação generalizada de direitos humanos. Não
podem se beneficiar da condição de refugiado as pessoas
que cometeram crimes de guerra, contra a humanidade,
contra a paz, crimes hediondos ou que participaram de
atos terroristas ou do tráfico de drogas219.
A Convenção de Viena de 1951220, relativa ao Estatuto do Refugiados, incorporado pelo Brasil através do Decreto 50.215 de 1961,
assegura aos refugiados, conforme se depreende do art. 23, “ o mesmo tratamento em matéria de assistência e de socorros públicos
que é dado aos seus nacionais”, sendo expresso na concessão de
assistência jurídica aos necessitados (art. 16)221.
219 Disponível em: http://www.acnur.org. Consulta em 25 de nov de 2012.
220 Registro que, a abordagem acerca dos dispositivos normativos de
proteção aos refugiados serão consignados de forma específica, a viabilizar
fundamento para posterior introdução de terceiro e último estudo de caso.
221 Artigo 16. Direito de propugnar em juízo. 1. Qualquer refugiado terá,
no território dos Estados Contratantes, livre e fácil acesso aos tribunais. 2. No
Estado Contratante em que tem sua residência habitual, qualquer refugiado
gozará do mesmo tratamento que um nacional, no que concerne ao
acesso aos tribunais, inclusive a assistência judiciária e a isenção de cautio
148
Assim, embora o art. 16 trate de postulação em tribunais, tal
norma deve ser entendida como o deferimento de assistência jurídica para as demandas em todos os órgãos públicos, uma vez que o
próprio art. 23 concede a isonomia.
Da mesma forma, a Declaração de Cartagena apresentou como
uma de suas conclusões:
Primeira - Promover dentro dos países da região a
adoção de normas internas que facilitem a aplicação da
Convenção e do Protocolo e, em caso de necessidade,
que estabeleçam os procedimentos e afetem recursos internos para a proteção dos refugiados. Propiciar, igualmente, que a adoção de normas de direito interno sigam
os princípios e critérios da Convenção e do Protocolo,
colaborando assim no processo necessário à harmonização sistemática das legislações nacionais em matéria de
refugiados.
Nesse sentido, entende-se a necessária concessão de assistência
jurídica gratuita, inclusive por intermédio das Defensorias Públicas
e suas prerrogativas, para a adequada aplicação dos tratados e o
regular processamento do processo adminstrativo para o reconhecimento da condição de refugiado.
Também o pacto de San José da Costa Rico obriga ao Brasil a
“respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu
livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo,
idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer natureza, origem
nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer
outra condição social”.
Com este panorama parece evidente a necessidade de se atribuir aos estrangeiros, em especial aqueles que se encontram em
situações de extrema vulnerabilidade todas as garantias que gozem
judicatum solvi. 3. Nos Estados Contratantes outros que não aquele em que
tem sua residência habitual, e no que concerne às questões mencionadas
no parágrafo 2, qualquer refugiado gozará do mesmo tratamento que um
nacional do país no qual tem sua residência habitual.
149
os brasileitos e que permitam o efetivo gozo de direitos humanos
consagrados pela constituição federal brasileira.
Dentre estes preceitos está o devido processo legal (art. 5° LIV e
LV) e a assistência jurídica gratuita (art. 5° LXXIV), duas garantias que se
desrepeitadas trazem obstáculos intransponíveis à efetivação dos tratados e da própria legislação interna que intenta a efetivação de direitos
fundamentais intrinsecamente vinculados ao mínimos existencial.
Com esta noção, a Lei 9.474/97 estabeleceu o procedimento
para o reconhecimento da condição de refugiado, concedendo ao
CONARE a atribuição para julgamento da pretensão cujo resultado
deverá ser devidamente fundamentado (art. 26) e notificado ao solicitante (art. 27).
Ademais, o próprio art. 28 da Lei 9474/97, determina que “no
caso de decisão negativa, esta deverá ser fundamentada na notificação ao solicitante, cabendo direito de recurso ao Ministro de Estado
da Justiça, no prazo de quinze dias, contados do recebimento da
notificação”.
5.2 Estudo de caso 3: O Direito do acesso a informação e da
motivação das decisões pelo CONARE – Comitê Nacional para
Refugiados.
A Defensoria Pública da União, no exercício de suas atribuições
tem no estrangeiro solicitante de refúgio, típica adequação a exigência de vulnerabilidade econômica e social, suficiente a compulsoriamente prestar assistência jurídica, integral e gratuita, e, portanto,
atua sistematicamente no acompanhamento e defesa dos processos
administrativos de solicitação de refúgio de estrangeiros que, fugindo
de seu país, chegam em território nacional e solicitam a proteção
estatal com base na Lei 9474/97 e demais normativos internacionais.
Assim, em que pese a formulação do pedido e a instrução do
procedimento ocorrer através da Polícia Federal, é o CONARE222
222 O Comitê é composto por representantes dos seguintes órgãos:
Ministério da Justiça, que o preside; Ministério das Relações Exteriores, que
exerce a Vice-Presidência; Ministério do Trabalho e do Emprego; Ministério
da Saúde; Ministério da Educação; Departamento da Polícia Federal;
Organização não-governamental, que se dedica a atividade de assistência
150
que possui competência para o julgamento e a remessa do expediente, em caso de eventual recurso, ao Ministério da Justiça, órgão
ao qual encontra-se vinculado223.
Todavia, a Defensoria Pública da União, atuando em prol dos
solicitantes, encontrou obstáculos impostos pelo referido Comitê na
concretização da ampla defesa e do contraditório, uma vez que
este órgão descumpria flagrantemente não só as prerrogativas da
Defensoria Pública da União de intimação pessoal224 e vista dos
e de proteção aos refugiados no País – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo
e Rio de Janeiro; e Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
– ACNUR, com direito a voz, sem voto.
223 O Conare - Comitê Nacional para os Refugiados é o órgão colegiado,
vinculado ao Ministério da Justiça, que reúne segmentos representativos
da área governamental, da Sociedade Civil e das Nações Unidas, e que
tem por finalidade: analisar o pedido sobre o reconhecimento da condição
de refugiado; deliberar quanto à cessação “ex officio” ou mediante
requerimento das autoridades competentes, da condição de refugiado;
declarar a perda da condição de refugiado; orientar e coordenar as ações
necessárias à eficácia da proteção, assistência, integração local e apoio
jurídico aos refugiados, com a participação dos Ministérios e instituições
que compõem o Conare; e aprovar instruções normativas que possibilitem
a execução da Lei nº 9.474/97. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/main.
asp. Consulta em: 20 de nov. de 2012.
224 Atento a isto, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu sobre a
influência da prerrogativa de intimação pessoal na esfera jurídica do
assistido hipossuficiente, dando tamanha relevância ao instituto que
mesmo após audiência de instrução e julgamento, com a presença do
Defensor Público, há a necessidade de intimação pessoal com remessa
dos autos, tendo em vista a sua íntima relação com a ampla defesa. In
verbis: RECURSO ESPECIAL - DIREITO PROCESSUAL CIVIL - NEGATIVA
DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL - AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO
- FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE - INCIDÊNCIA DA SÚMULA 284/
STF - INTIMAÇÃO PESSOAL - DEFENSORIA PÚBLICA - PROTEGER E
PRESERVAÇÃO A FUNÇÃO DO ÓRGÃO - DEFESA DOS NECESSITADOS
- DEFENSOR PÚBLICO - PRESENÇA - AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E
JULGAMENTO - ENTREGA DOS AUTOS COM VISTA - NECESSIDADE PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA - RECURSO ESPECIAL
PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, PROVIDO. I - A não
explicitação precisa, por parte da recorrente, sobre a forma como teria sido
violado o dispositivo suscitado, no caso, o artigo 535, inciso II, do Código
de Processo Civil, atrai a incidência do enunciado n. 284 da Súmula do STF.
II - O artigo 74 da Lei Complementar Estadual 35/2003, por compreender-se
no conceito de lei estadual, não pode dar ensejo a abertura desta Instância
151
autos, como também, não comunica os fundamentos da decisão
para eventual indeferimento do pleito administrativo, o que, por óbvio, significa irreparável lesão ao devido processo legal aplicado ao
Processo Administrativo (art. 5°, LIV e LV, CF).
Embora a legislação pertinente ao refugiado não faça referência
à intimação da Defensoria, tal necessidade se infere de sua própria
lei orgânica, não podendo ser afastada por decisão administrativa,
conforme procedido pelo CONARE que afirmou que “não há que
se falar em intimação pessoal da Defensoria Pública, pois segundo
o art. 27 da Lei 9474/97, o CONARE deverá notificar apenas o solicitante e a Polícia Federal para as medidas administrativas cabíveis”
(no Ofício n° 576/CONARE).
Da mesma forma, é de evidente atecnia afirmar a inexistência
de litígio nos casos em que há indeferimento do reconhecimento de
refugiado, uma vez que tal decisão reflete uma “pretensão resistida”, a qual pode ser verificada com a própria negativa da pretensão
de ter a proteção do refúgio.
De forma até certo ponto contraditória, mas igualmente ilegal,
no ofício n° 53-GAB/Deest/SNJ/MJ foi indicado que as cópias dos
procedimentos poderiam ser obtidas diretamente na Sede do CONARE, o que, de qualquer forma, viola as garantias institucionais da
DPU previstas em razão da situação específica de seus assistidos.
especial. Incide, na espécie, por analogia o óbice da Súmula n. 280/STF.
III - A necessidade da intimação pessoal da Defensoria Pública decorre de
legislação específica que concede prerrogativas que visam facilitar o bom
funcionamento do órgão no patrocínio dos interesses daqueles que não
possuem recursos para constituir defensor particular. IV - A finalidade da
lei é proteger e preservar a própria função exercida pelo referido órgão e,
principalmente, resguardar aqueles que não têm condições de contratar
um Defensor particular. Não se cuida, pois, de formalismo ou apego
exacerbado às formas, mas, sim, de reconhecer e dar aplicabilidade à
norma jurídica vigente e válida. V - Nesse contexto, a despeito da presença
do Defensor Público, na audiência de instrução e julgamento, a intimação
pessoal da Defensoria Pública somente se concretiza com a respectiva
entrega dos autos com vista,em homenagem ao princípio constitucional
da ampla defesa. VI - Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa
extensão, provido. (REsp 1190865/MG, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA,
TERCEIRA TURMA, julgado em 14/02/2012, DJe 01/03/2012)
152
Em que pese a manifestação do CONARE em relação a existência do serviço da CARITAS225, não há como se entender, com
isso, a possibilidade de se excluir a Defensoria Pública da União do
patrocínio dos estrangeiros que solicitam assistência.
No tocante à assistência jurídica aos refugiados, esclarecemos a Vossa Senhoria que em São Paulo e Rio de
Janeiro, onde existe a maior concentração daquelas pessoas, o atendimento é feito pelas Cáritas Arquidiocesana
de São Paulo226 e Rio de Janeiro para os Refugiados – ACNUR e o próprio Comitê, mantém três advogados à disposição dessa população. Também quero ressaltar que a
Coordenação do Comitê possui quatro assessoras, treinadas pela ONU, que se dedicam a realizar entrevistas com
225 Conforme respostas do CASP aos quesitos apresentados pela DPU,
no PAJ nº17778/2011, configura-se lesão à postulação realizada pelo
próprio representante indicado pelo CONARE, a partir do momento que a
CARITAS não tem acesso à motivação das decisões e, por vezes, tem que
formular recursos sem dados objetivos de impugnação. “2. Como ocorre a
cientificação da decisão de (in)deferimento do refúgio à Cáritas e ao assistido,
em especial, se há comunicação imediata da solução e dos fundamentos
que basearam o decisum;Nas reuniões em que está presente, a CASP tem
conhecimento de quais casos foram deferidos e quais foram indeferidos(...)
Em caso de indeferimento, o solicitante de refúgio é cientificado da data
da reunião Plenária em que seu caso foi analisado e que tem o direito de
apresentar recurso no prazo de 15 dias. Não há qualquer fundamentação
da Plenária do CONARE. 3. Com base em quais dados é elaborada a defesa/
recurso e qual o procedimento adotado diante do indeferimento definitivo
do pleito pelo Ministro da Justiça. Diante da decisão negativa da Plenária
do CONARE, o recurso é elaborado com base em argumentos levantados
durante as discussões do Grupo de Estudos Prévios ou da Plenária do
CONARE, quando há representante da CASP nestas reuniões. Caso não
seja possível obter os fundamentos para o indeferimento da solicitação,
seja por ausência de representantes da CASP nessas reuniões, seja porque o
solicitante de refúgio pediu transferência de estado e não foi acompanhado
por qualquer entidade da sociedade civil, as advogadas reescrevem os
argumentos do solicitante de forma clara e detalhada e, quando possível,
juntam documentos novos ou que já haviam sido apresentados mas podem
não ter sido analisados. Resposta da CASP – Caritas Arquidiocesana de São
Paulo, datada de 13 de abril de 2012.
226 Gostaria de fazer um registro da dedicação, da competência e do
amor com que os integrantes da CASP Caritas Arquidiocesana de São Paulo
exercem o amparo ao refugiado.
153
os solicitantes de refúgio, assim como lhes prestam as informações, de maneira a facilitar o acesso aos procedimentos
que são céleres e especializados. Ainda, o Coordenador-Geral e o Presidente do Comitê são advogados, e estão
sempre dispostos a orientar e a informar os refugiados, os
advogados e funcionários do Poder Público.
Frise-se que a Constituição Federal estabelece que “a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus,
dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.” (art. 134) de forma
que a organização administrativa de órgão federal não pode afastar,
ou, usurpar, tal atribuição.
Aliás, se a União, ou a ONU, oferece tal estrutura, deve-se entender que com isso se está agregando mais uma forma de defesa227
do grupo vulnerável e não substituindo aquela estrutura garantida
pela Constituição.
No sentido da inconstitucionalidade da contratação de advogados particulares como meio de substituição da Defensoria Pública,
decidiu o Supremo Tribunal Federal, em ADI (3892 e 4270) proposta contra legislação Catarinense, portanto, com efeito vinculante
aos órgãos públicos, informando que fere a constituição:
Asseverou-se, ainda, que o modelo catarinense não se
utilizaria de parceria da OAB como forma de suplementar
a defensoria pública ou suprir eventuais carências desta,
mas, naquele ente federativo, a seccional supostamente
cumpriria o papel designado à defensoria — lá inexistente —, ao indicar advogados dativos. Enfatizou-se que o
constituinte originário não teria se limitado a fazer mera
exortação genérica quanto ao dever de prestar assistência judiciária, porém descrevera, inclusive, a forma a ser
adotada na execução deste serviço, sem dar margem
227 Vale frisar, ademais, que a Defensoria Pública goza de independência
funcional, não sofrendo ingerência política, extremamente perniciosa
especialmente em se tratando de análise discricionária da Administração
Pública (ao menos em âmbito administrativo), prerrogativa que a estrutura
montada pelo ACNUR não possui.
154
a qualquer liberdade por parte do legislador estadual (Informativo n° 658, do STF)
Desta forma, não há como se entender a constitucionalidade
da substituição sugerida, seja por violação expressa à atribuição
institucional conferida pela Constituição Federal à Defensoria, seja
pela ausência das prerrogativas daqueles integrantes do quadro de
pessoal do CONARE, o que ensejaria claro prejuízo aos solicitantes acarretado uma fadada ausência de representação adequada, na
defesa da pretensão de assistidos vulneráveis, que são os refugiados.
A consequência reflexa da lesão a direitos, no presente estudo
de caso, gerava o esvaziamento da eficácia recursal, pois se mesmo
com a intermediação da DPU, consagrado o desrespeito as prerrogativas228, a parte solicitante de refúgio/assistido, não tinha acesso a
motivação da decisão como então saberia o que impugnar na peça
recursal!?
Tal prerrogativa, para além de simples benefício no desempenho
do cargo de Defensor Público, consubstancia verdadeira concretização do princípio da isonomia, aplicado ao processo, a fim de
fornecer pariedade de armas aos pólos da Demanda.
É dizer, a legislação, ao determinar o prazo em dobro e a
intimação pessoal, com carga dos autos, visou não facilitar, mas
antes possibilitar a atuação adequada do defensor público diante
do número de assistidos em relação desproporcional aos membros
da Instituição.
Nesse panorama, negar as prerrogativas concedidas significaria
irremediável violação ao devido processo legal, seja em âmbito
judicial, seja em âmbito administrativo, eis que inviabilizaria a atuação do causídico esvaziando a norma constitucional de assistência
judiciária gratuita (art. 5° LXXIV, CRFBF/88), tornando a disposição
fundamental mera legislação simbólica.
228 Nos termos do artigo 44, inciso I, da Lei Complementar nº 80/94, é
prerrogativa do membro da Defensoria Pública da União "receber, inclusive
quando necessário, mediante entrega dos autos com vista, intimação pessoal
em qualquer processo e grau de jurisdição ou instância administrativa,
contando-se-lhes em dobro todos os prazos”.
155
Ademais, a falta de defesa técnica adequada consubstanciaria
clara violação ao devido processo legal e aos seus sub-princípios
da ampla defesa e do contraditório, principalmente, na hipótese de
estrangeiros solicitantes de refúgio que por tal condição apresentam
alta vulnerabilidade, incapazes de autonomamente terem que focar
em seus direitos, quando todos os seus esforços estão destinados a
sua sobrevivencia e de sua família229.
Em relação à consequência pelo desrepeito à intimação pessoal
e contagem em dobro, o Superior Tribunal de Justiça já solidificou
o entendimento de que origina nulidade absoluta, motivo pelo qual
há o imperativo de respeito à norma:
HABEAS CORPUS. SESSÃO DE JULGAMENTO REALIZADA SEM A INTIMAÇÃO PESSOAL DO DEFENSOR
PÚBLICO. CERCEAMENTO DE DEFESA NULIDADE. ORDEM CONCEDIDA. 1. O art. 5º, § 5º, da Lei nº 1.060/50,
estabelece que é prerrogativa da Defensoria Pública, ou
de quem exerça cargo equivalente, a intimação pessoal
de todos os atos do processo, em ambas as instâncias, sob
pena de nulidade absoluta por cerceamento de defesa.2.
A ausência de intimação da defesa, que não pode ser suprida com a simples publicação na imprensa oficial. (HC
103.256/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 24/06/2008, DJe 04/08/2008)
Aliás, outra conclusão não se poderia chegar, haja vista se tratar de prerrogativa umbilicalmente vinculada às garantias da ampla
defesa e do contraditório. Tais precendentes, frise-se, baseiam-se na
orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, assim:
EMENTA: AÇÃO PENAL. Defensor público. Defensoria pública. Assistência judiciária. Sentença condenatória
229 Qualquer outra interpretação ou medida que vise afastar a DPU de
sua missão constitucional deixando o solicitante de refúgio acéfalo é fazer
com que o Estado brasileiro incorra em verdadeiro ilícito internacional,
pois torna compulsória a violação do princípio do non refoulement, já que
o Estado não forneceu instrumentos e meios adequados a implementação
do direito ao refúgio.
156
confirmada em grau de apelação. Intimação pessoal do
procurador. Não realização. Nulidade processual reconhecida. Ofensa ao art. 5°, § 5°, da Lei n° 1.060/50, art.
128, I, da Lei Complementar n° 80/94, e art. 370, § 4º,
do Código de Processo Penal. Precedentes. É nulo o processo penal desde a intimação do réu que não se fez na
pessoa do defensor público que o assiste na causa. (HC
98905, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma,
julgado em 08/09/2009, DJe-195 DIVULG 15-10-2009
PUBLIC 16-10-2009 EMENT VOL-02378-03 PP-00567)
Assim, embora os precedentes tratem de processos judiciais,
não há dúvida quanto a aplicação da orientação nos processos administrativos a teor do art. 5°, LV, da CF que determina expressamente que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo,
e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” c/c ao art. 44, I, da
Lei Complementar n° 80/94 que prevê expressamente que constitui
prerrogativa dos membros da Defensoria Pública “receber, inclusive
quando necessário, mediante entrega dos autos com vista, intimação pessoal em qualquer processo e grau de jurisdição ou instância
administrativa, contando-se-lhes em dobro todos os prazos”.
Pelo exposto, não há como se reconhecer a legitimidade do obstáculo imposto pela União Federal, por meio do CONARE, à intimação
dos atos praticados em processo administrativo de pedido de refúgio,
quando o solicitante encontrar-se assistido pela Defensoria Pública da
União o que gera, ipso facto, nulidade absoluta do procedimento.
Concluido o último estudo de caso, registre-se que por intermédio da propositura de uma Ação Civil Pública ajuizada em SP,
somado a incessante busca de uma resolução administrativa para a
tutela do grupo vulnerável, a DPU e o CONARE firmaram acordo
para atuação conjunta em prol dos estrangeiros refugiados230.
230 Tendo em vista o grande número de estrangeiros que chegam ao Brasil
todos os anos sob a alegação de busca de refúgio, a Defensoria Pública da
União (DPU) e o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), vinculado
ao Ministério da Justiça, firmaram um acordo que permite a atuação da DPU
em favor dos refugiados. Com a parceria, estabelecida na última quartafeira (10), a DPU terá participação nas entrevistas que instruem o processo
157
de solicitação de refúgio e também será notificada de todas as decisões do
Conare. Além disso, os refugiados também poderão ter um contato mais
efetivo com o Comitê, por meio da Assessoria Internacional da DPU e de
toda a rede da Defensoria Pública da União nos vários estados brasileiros.
Na ocasião, a DPU também firmou convênio com o Departamento de
Estrangeiros, ligado à Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da
Justiça. A ideia é acompanhar a situação do atendimento aos estrangeiros
em processo de expulsão, que geralmente ocorre quando o estrangeiro
é preso no Brasil por algum delito. Nesse caso, é aberto um processo
administrativo de expulsão no Ministério da Justiça. Agora, com a parceria,
a DPU também será notificada sobre todos os processos expulsórios de
estrangeiros do Brasil. Assim, a Assessoria Internacional da instituição poderá
abrir um processo administrativo interno para verificar o teor do decreto de
expulsão. Caso haja necessidade, o setor acionará para atuar no caso um
defensor federal no estado ou da categoria especial, dependendo do teor do
processo. Disponível em: http://www.dpu.gov.br/index.php?option=com_
content&view=article&id=9620:dpu-e-conare-firmam-acordos-paraatuacao-junto-a-estrangeiros-refugiados&catid=79&Itemid=220. Consulta
em 26 de nov. de 2012.
158
6 CONCLUSÃO
O acesso à justiça potencialmente considerado deve ser instrumentalizado para, à luz do princípio da primazia da realidade,
gerar justiça à ordem jurídica, pois de nada adiantaria a previsão
constitucionalizada de diversos direitos tidos como fundamentais e
amparados por cláusulas pétreas, se o Poder Judiciário encontra-se
inacessível por critérios de vulnerabilidade gerando como consequência
um contingênte de vulneráveis tidos como “não parte”.
A relatada vulnerabilidade processual ocasionada pela existência de verdadeira ruptura de cidadania, não permite que a pessoa
em estado de vulnerabilidade se habilite a fazer, sob o prisma da
isonomia, parte de uma relação jurídica processual o que implica
falar-se em crise de Jurisdição, já que o Estado-juiz não se desencumbe, satisfatóriamente, de seu dever de prestar a jurisdição.
Considerando o norte a ser seguido pelo Estado que almeja
ser de direito e democrático, e que busca segurança jurídica com
respeito aos preceitos de sua própria constituição, o Brasil adotou
como instituição oficial a assegurar o acesso à justiça a pessoas necessitadas, o modelo de Defensoria Pública. E, é através dessa instituição que o Estado busca viabilizar mecanismos de acesso à justiça
a sociedade que vivência multiplas carências e vulnerabilidades.
O que procuramos demonstrar na presente dissertação é que a
Defensoria Pública, contemporâneamente, obteve um alargamento
de suas atribuições ao ponto de densificar o princípio do acesso à
159
justiça, seja pela utilização de Ações Civis Públicas, seja por novas
práticas, projetos, grupos de trabalho e a execução de suas próprias
atribuições, demonstrando assim novas perspectivas para tutela das
necessidades de diversos grupos vulneráveis.
Nesse contexto, o enfoque das atribuições da Defensoria Pública
se ateve ao ambito federal, com o aprofundamento das peculiaridades e funções da Defensoria Pública da União, com abordagens
de práticas desenvolvidas no Estado de São Paulo. Contudo, dada
a continuidade da abordagem adentramos as mazelas da DPU que
geram quebra da isonomia, do pacto federativo, do princípio da
unidade, comparativamente às Defensorias Estaduais que gozam de
autonomia financeira e orçamentária.
Reflexo dessa distinção inaceitável, tem-se a teratologia de se
dar tratamento diferenciado ao necessitado que almeja acesso à
justiça federal, em relação ao que deseja deduzir pretensão estadual, como se isso fosse possível. O que também se demonstrou é
que, exatamente a partir da diferenciação acerca da autonomia o
elemento capaz de gerar a estruturação definitiva da DPU não se
configura, mantendo a referida instituição, até hoje instalada em
caráter emergêncial, justificando um processo de desencantamento.
Ao justificar o desencantamento da Defensoria Pública da União
adota-se como paradígma o proceso de desencantamento ocorrido em
relação a religião, que perde a caracteristica de absoluto recebendo
a crítica de castradora da liberdade humana. Contudo, assim como a
religião apresenta uma potencialidade de através do niilismo, que nutre características anárquicas, gerar uma reconstrução de seus próprios
valores, a Defensoria Pública da União, através de inovadoras práticas
consolida a dinâmica de um encantamento desencantado.
Dessa forma, para uma reconstrução da Defensoria Pública da
União registra-se a necessidade de se fazer valer a força normativa
da constituição, e com efeito da realidade e da reserva do possível
fortelecer a atuação de ofícios de DHTC – direitos humanos e tutela
coletiva, pois, por intermédio da atuação coletiva se agrega valor a
assitência. A partir do resgate valorativo da DPU analisou-se o foco
da tutela maximizada através da proteção de grupos vulneráveis,
principalmente, pelo manuseio de Ações Civis Públicas.
160
Considerando as diversas vulnerabilidades inclusive a econômica, optou-se pela seleção de alguns temas que permitiram analisar
questões de alta vulnerabilidade, inclusive com a abordagem de
3 complexos estudos de caso, em que a DPU foi decisiva para
adequadamente promover a tutela jurídica das diversas vulnerabilidades. E assim, demonstrar novas perspectivas e atuais obstáculos
ao acesso à justiça por diversos grupos vulneráveis, concretizando
nessa sistemática toda a relevância do papel da Defensoria Pública
da União na busca de ordem jurídica justa.
Todos os casos analisados refletem uma lógica social, que imprime um sistema de ofensas ao valor dignidade da pessoa humana,
indenpendentemente, de um fugaz consentimento da vítima em direção a própria lesão. Dessa forma, injustificável qualquer omissão
estatal ou silêncio eloquente, que acarrete uma relação de continuidade das ofensas aos direitos fundamentais dos vulneráveis, em
especial os estrangeiros, sob pena de Estado brasileiro incorrer em
ilícitos internacionais.
No estudo acerca do sistema de vulneração social, percebe-se,
direta ou indiretamente, a existência de engrenagens de um mercado, que imprime uma lógica mercantilista ao já fragilizado valor
humano, em que pessoas transformam-se em verdadeiras mercadorias retroalimentando uma sociedade de massa, que vive para o
consumo, pouco se importando com as chamadas baixa colaterais
do consumo231.
231 Os conceitos de “danos colaterais”, “baixas colaterais”, e “vítimas
colaterais”, recém-cunhados e instantaneamente populares, pertence
ao vocabulário dos advogados e têm raízes na pragmática da defesa
jurídica, ainda que tenham sido empregadas pela primeira vez por portavozes militares em seus comunicados à imprensa (...) Os danos colaterais
abandonados ao longo da trilha do progresso triunfante do consumismo
se espalham por todo o espectro social das sociedades “desenvolvidas”
contemporâneas. Existe, contudo, uma nova categoria de população, antes
ausente dos mapas mentais das divisões sociais, que pode ser vista como
vítima coletiva dos “danos colaterais múltiplos” do consumismo. Nos
últimos anos, essa categoria recebeu o nome de “subclasse”. BAUMAN,
Zygmunt. Vida para Consumo. A transformação das pessoas em mercadoria.
Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 149 e
155.
161
Assim ocorre quando tratamos das mulas, pessoas que se sumetem ao risco de serem presas pela prática de um crime equiparado ao hediondo, colocando em jogo a própria vida, ao ingerirem
cápsulas de cocaína para efetuar o transporte internacional, bem
como, com as vítimas de tráfico de pessoas para fins de exploração
degradante da força de trabalho, pois em ambos os casos esse refúgo humano ou colateralidade, como é reconhecido pelo sistema
de vulneração social atende uma sociedade de consumo importada
em, cada vez mais, obter bens e mercadorias, ainda que seja, o entorpecente ou a roupa da moda.
Com essa realidade e a demonstração da existência de excluídos,
de pessoas que apresentam alto grau de vulnerabilidade econômica
e social, a Defensoria Pública da União se apresenta como verdadeira
ponte de ouro para a reincerção social dessa “subclasse”, promovendo, resgate de cidadania ao romper o paradígma da vulnerabilidade,
inclusive estancando o inevitável ciclo de revitimização social.
162
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Marcus Vinicius Rodrigues Lima A DEFENSORIA - EAD-DPU