Uma reforma do ensino superior que funcionou JOSÉ ALEXANDRE SCHEINKMAN Clark kerr , presidente da Universidade da Califórnia de 1958 a 1967, foi um personagem controverso. Criticado por estudantes por sua inflexibilidade e pelos políticos de direita por não reprimir mais duramente o movimento estudantil, ele foi demitido, na primeira oportunidade, pelo então recém-eleito governador Ronald Reagan. Mas Kerr deixou como herança o sistema universitário da Califórnia. Para atender a demanda dos "baby boomers", ele aumentou as vagas e definiu três tipos de instituição pública: no primeiro, os poucos campi da Universidade da Califórnia, instituições de pesquisa e ensino de pós-graduação em que também estudariam os alunos de graduação mais promissores. No segundo nível, as 19 (hoje, 23) universidades estaduais da Califórnia com a missão principal de educar alunos de graduação. E, finalmente, os colégios comunitários dedicados à educação vocacional, mas que também serviriam de trampolim para alunos com menor preparo se transferirem, após dois anos de estudo, para as universidades. O Plano Kerr não regulou as universidades privadas. O sistema é inegavelmente elitista. Alunos que não terminam o secundário entre os primeiros 33% só têm acesso aos colégios comunitários. A Universidade da Califórnia é a única instituição pública no Estado que pode outorgar doutorados ou diplomas em medicina ou direito. Como é padrão nos Estados Unidos, os professores-assistentes não são vitalícios e há diferenças significativas de remuneração entre docentes. Uma medida com impacto redistributivo é a cobrança de anuidades daqueles que podem pagar e a concessão de bolsas de manutenção para alunos pobres. O objetivo foi criar uma universidade pública em que a pós-graduação e a pesquisa estivessem entre as melhores do mundo, garantindo ao mesmo tempo acesso à educação terciária a todos os que terminassem o ciclo médio. A reforma funcionou. A Universidade da Califórnia-Berkeley, em conjunto com Stanford, uma universidade privada, foi um motor essencial para o desenvolvimento do Vale do Silício. Em torno da Universidade da Califórnia-São Diego, criou-se uma das mais importantes concentrações em biotecnologia no mundo. O sistema universitário francês oferece uma comparação. Todos os que passam o exame final da educação secundária têm acesso a universidades públicas gratuitas, que não têm direito de selecionar alunos, exceto por critério geográfico. As diferenças salariais e de carga de ensino são muito menores do que na Califórnia, e mesmo os professoresassistentes são vitalícios. O sistema francês é mais igualitário, mas tem um custo para a sociedade. Ele tem sido muito menos capaz de produzir as inovações que geram o crescimento econômico. Há uma fuga de cérebros, em busca de melhores condições de trabalho, da França para os Estados Unidos e a Inglaterra. Os benefícios gerados pela Universidade da Califórnia ultrapassam a fronteira americana. Nos últimos 15 anos, não houve um só Prêmio Nobel de Medicina dado a um francês, mas quatro laureados eram professores da Universidade da Califórnia. Um desses, Stanley Prusiner, descobriu um novo mecanismo biológico de infecção que está por trás de moléstias como a da vaca louca e sua variante humana, a doença de Creutzfeldt-Jakob. A cura dessas enfermidades vai dever também um pouco ao Plano Kerr. Propostas de reforma da educação superior em vários países do mundo estão sendo influenciadas pela experiência da Califórnia. Uma exceção lamentável parece ser o anteprojeto apresentado ao Congresso pelo ex-ministro Tarso Genro.