VI Encontro Nacional da Anppas
18 a 21 de setembro de 2012
Belém - PA – Brasil
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“JÁ NÃO DÁ MAIS PRÁ RESPIRAR”: o caso da
comunidade do “Piquiá de Baixo”, em Açailândia MA
Wilson Madeira Filho (UFF)
Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF),
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direto (PPGSD) da UFF.
[email protected]
Eduardo Castelo Branco e Silva (UFF)
Mestrando PPGSD-UFF
[email protected]
Rodolfo Bezerra de Menezes Lobato da Costa (UFF)
Mestrando PPGSD-UFF
[email protected]
Deborah Zambrotti Pinaud (UFF)
Mestranda PPGSD-UFF
[email protected]
Jamile Medeiros de Souza (UFF)
Mestranda PPGSD
[email protected]
Resumo
O caso do bairro Piquiá de Baixo, no Município de Açailândia, no estado do Maranhão, onde cerca de
350 famílias vivem em condições desumanas, em razão de estarem no entorno de guserias que
prestam serviços à empresa Vale, é o ponto de partida para debater os rumos da justiça ambiental no
Brasil. A questão é desenvolvida através de três pontos: 1) a importância do Município de Açailândia
na rota do modelo de desenvolvimento extrativista mineral na Amazônia; 2) o caso do Piquiá de
Baixo; 3) as dificuldades de articulações discursivas trans-institucionais e para-institucionais.
Palavras-chave
Justiça ambiental; Mineração; Direitos humanos.
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“JÁ NÃO DÁ MAIS PRÁ RESPIRAR”:
O caso da comunidade do “Piquiá de Baixo”, em Açailândia MA.
Os moradores do bairro de Piquiá de Baixo, no município de Açailândia (MA), organizados por
meio de uma Associação de Moradores, demandaram encaminhamento de denuncia ao Ministério
Público Estadual do Maranhão, que distribuiu, em 2011, ação civil pública contra a Vale e empresas
de ferro gusa instaladas no município, requerendo reparação por danos à saúde e ao meio ambiente,
provocados pela contaminação do solo, água e ar da localidade, há mais de vinte anos.
O caso ganhou repercussão em janeiro de 2012 a partir de matéria na Revista Caros amigos.
Todavia, ainda em maio de 2011, a Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH), juntamente
com as ONGs Justiça Global Brasil e Justiça nos Trilhos lançaram o documento Brasil – quanto
valem os direitos humanos? Impactos sobre os direitos humanos relacionados à indústria da
mineração e da siderurgia em Açailândia (FIDH: 2011), onde relata os casos do Assentamento
Califórnia e do bairro do Piquiá de Baixo.
Estivemos em Açailândia em outubro de 2011 mapeando conflitos locais e, em janeiro e
fevereiro de 2012, atuando no Município a partir do escopo proposto pelas ações extensionistas do
Projeto Rondon, em parceria do Ministério da Defesa com as universidades1.
Em visita ao bairro de Piquiá de Baixo e às guserias no seu entorno, especialmente a guseria
Nordeste, constatamos a impressionante situação dos moradores, expostos a condições ambientais
extremas. A frase que dá título a esse trabalho, “Já não dá mais para respirar”, dita por uma das
moradoras por nós entrevistadas, expressa, mesmo em sua redundância gramatical, a situação
1
A equipe que atou na operação Babaçu, no município de Açailândia, foi coordenada pelo Prof. Dr. Wilson Madeira Filho,
co-coordenada pela prof. Dr.a Ana Maria Motta Ribeiro e contou com a participação dos estudantes Janaina Tude Sevá,
Rodolfo Bezerra de Menezes Lobato da Costa, Eduardo Castelo Branco e Silva, Jamille Medeiros de Souza, Andréia de
Mello Martins, Deborah Zambrotti Pinaud, Caio Barros Matos e Juliana Gomes Moreira. Os trabalhos de campo realizados
pela equipe, composta por alunos de Direito, Sociologia e Geografia, consistiram em levantamento de dados, documentos e
depoimentos de moradores da cidade e cercanias em diversos temas ligados à tecnologia democrática, em especial a
mobilização social para ações de tratamento de dependentes químicos e estratégias para contenção do crack, auxílio jurídico
às demandas coletivas de justiça ambiental, realização da cartografia social dos diversos assentamentos rurais na região e a
prestação de auxílio ao governo municipal na elaboração e implantação de um plano de tratamento de resíduos sólidos a ser
incorporado na revisão do Plano Diretor da cidade.
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absolutamente paradoxal de permanência de centenas de família expostas à poluição atmosférica e
vulnerabilizadas enquanto exército industrial de reserva.
O caso, portanto, emblemático por diversos motivos, é exemplar, nos parece, para relatar
dificuldades operacionais no campo da elaboração discursiva no âmbito de uma colonização
democrática, em face seja da manutenção de padrões conservadores na procedimentalização jurídica
seja na apropriação discursiva por expoentes dos setores empresariais dos princípios constitucionais
da administração.
Desse modo, desenvolveremos a questão através de três pontos: 1) a importância do
Município de Açailândia na rota do modelo de desenvolvimento extrativista mineral na Amazônia; 2) o
caso da poluição no bairro Piquiá de Baixo; 3) as dificuldades de articulações discursivas transinstitucionais e para-institucionais.
Foto: www.justicanostrilhos.org/
1. O fim do açaí e a formação da Guselândia
O município de Açailândia é localizado na mesorregião Bico de Papagaio, que abrange área
alcançando parte dos territórios dos estados do Pará, Tocantins e Maranhão. Tal área, nas décadas
de 1970, 1980 e 1990 foi um grande foco de conflitos agrários entre fazendeiros e pequenos
posseiros de terras, gerando um sólido histórico de mortes por disputas de terras. A exploração
extrativista de madeira teve inicio na década de 1970 por estímulo de programas como o
POLOCENTRO e POLAMAZÔNIA que visavam a expansão da fronteira agrícola na região. (BRASIL:
2009)
Visando a diminuição das tensões entre aqueles que detinham a terra e os que demandavam
acesso à mesma, na década de 1980 o Governo Federal instituiu um processo de regularização
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fundiária na região legitimando a presença dos posseiros. A partir da década de 1990, os esforços
federais no sentido de regularização fundiária e reconhecimento da posse por parte dos pequenos
agricultores se intensificou, sendo os assentados, hoje, atores relevantes na região.
O advento de projetos de alta monta econômica, como o Projeto Grande Carajás, desviou o
foco econômico histórico da região, alterando as atenções prestadas à pecuária e agricultura para
atividades como a mineração e suas indústrias colaterais e a prestação de serviços a esta atividade
econômica, tornadas, numa visão “modernizante”, atividades de suporte à própria constituição das
cidades.
Entretanto, o sonho de ser dono de terras trouxe milhares de migrantes para o sul do
Maranhão no final da década de 1970 e início da década de 1980. Momento em que ainda não se
havia iniciado o processo de industrialização do município de Açailândia, onde predominava o avanço
da agricultura mecanizada, principalmente soja, milho e arroz.
“Vim para cá tem mais de trinta anos”, declarou-nos um morador do bairro do Piquiá de Baixo,
“pro corte da madeira. Era floresta isso daqui tudo”. Vale dizer, a expansão da fronteira agrícola e o
projeto extrativista mineral foram ações paralelas e concorrentes naquele território, tendo em comum
a expropriação e o domínio de terras e a destruição do patrimônio ambiental natural, mormente o país
se estruturasse para instituir sua Política Nacional de Meio Ambiente.
Estudos constantes no Plano de ação para a mesorregião do Bico de Papagaio realizado pelo
Ministério da Integração Nacional voltados à aferição do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) na
região sugerem um IDH considerado médio para a maioria da população. Há de se considerar,
todavia, que as operações de mineração, agora preponderantes na região, implicam em um grande
fluxo de capital, o que eleva o PIB da região e tal elevação acarreta em um PIB per capita maior do
que o ordinário. O mesmo relatório (BRASIL: 2009) ainda indica que, na região, a maior parte da
população não tem acesso a serviços que seriam presumidos com tais índices de IDH e, ainda mais,
a concentração de renda é uma das maiores do país.
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Imagem: www.fidh.org
As duas principais atividades que contribuem ao desenvolvimento do PIB são a produção
agropecuária e a extração mineral. A atividade agropecuária caracteriza-se pelo baixo nível de
tecnologia empregada para a mesma, sendo expressiva a presença da agricultura familiar e a
agricultura de médio-porte. Em contrapartida, a extração mineral recebe grande influxo de capital e é
caracterizada por um alto índice técnico, o que é compreensível dada a presença da Vale e os
estudos da região que a apontam como uma área com grande potencial para a mineração, sendo a
maior jazida de ferro de alta densidade do planeta. Foi a presença da atividade mineradora na região
que possibilitou o surgimento de projetos de grande porte como a Estrada de Ferro e a Hidrelétrica de
Tucuruí. A atividade mineradora exerce hoje um papel de força motriz na economia local em uma
proporção quase absoluta.
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Como é o caso de parte significativa de Açailândia, a comunidade do bairro Piquiá de Baixo
formou-se com a vinda de trabalhadores migrantes em busca de trabalho com o ciclo extrativista
madeireiro na região. O açaí que grassava na região foi praticamente extinto (atualmente a Secretaria
Municipal de Meio Ambiente possui projeto de plantio de mudas de açaí, em razão de recuperar
simbolicamente a importância do nome da cidade). A diminuição da madeira acarretou em
empobrecimento e estagnação econômicos profundos, tendência esta que só veio a ser revertida
com a vinda da então Companhia Vale do Rio Doce (hoje Vale S.A.) na década de 1980 por ocasião
do Projeto Grande Carajás, que inaugurou o polo siderúrgico.
Em conversa com a Secretária de Agricultura do município de Açailândia, que chegou à região
na década de 1980, esta destacou que a alteração acusada pela transformação da economia local,
da extração de madeira como atividade econômica principal do município para a economia em torno
do minério de ferro em gusa, foi responsável por um processo que inverteu a população
economicamente ativa dedicada à agricultura de 69,9% (em 1985) para 44,6% (em 2006).
O Projeto Grande Carajás foi um projeto idealizado no final do período do regime militar pela
então estatal Companhia Vale do Rio Doce com o objetivo de explorar e escoar a produção de
minérios da região, até hoje considerada uma das mais ricas em minérios do planeta. Açailândia
desempenha um papel primordial em tal projeto por conta de ser um dos pontos de distribuição e
processamento do minério de ferro recolhido em Carajás em ferro-gusa.
Conforme explicações dos técnicos da Vale, em visita que realizamos às instalações em
Açailândia, o procedimento, em linhas gerais, consiste na mineração do ferro em Carajás, no estado
do Pará e no transporte deste minério de ferro em estado bruto, através da Estrada de Ferro Carajás
para o polo siderúrgico de Açailândia, onde se concentram pelo menos cinco guserias, as usinas que
transformam o minério em ferro-gusa. Após processado, esse material torna a seguir pela mesma
estrada de ferro para o porto de São Luís, onde é exportado para todo o mundo, especialmente a
China, uma das maiores consumidoras deste material em todo o globo. Cada trem de minério de ferro
que completa o trajeto Carajás-São Luís carrega aproximadamente quarenta mil toneladas de minério
de ferro ou ferro gusa processado, dependendo do estado da viagem. Ainda compõem o Projeto o
Porto de Ponta da Madeira, em São Luís, usado para o escoamento por parte da Vale e a usina
hidrelétrica de Tucuruí, construída originalmente para garantir o fornecimento de energia para as
indústrias necessárias para a execução do Projeto pelo governo do Brasil.
A empresa Vale administra, em regime de concessão, a ferrovia de 892 km que liga a mina de
ferro de Parauapebas (PA) ao Porto de Itaqui em São Luís (MA). Em 2010, a empresa começou
obras de duplicação da ferrovia, estimada em R$ 8,29 bilhões, buscando ampliar o fluxo de
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mercadorias. Movimentos sociais como a ONG “Justiça nos Trilhos” vem questionando a fragilidade
jurídica e a pertinência dos licenciamentos, face aos impactos sociais.
Por conta da importância de tal polo industrial, ocorreu a formação e o estabelecimento de
uma miríade de indústrias e prestadoras de serviço e materiais colaterais à atividade das guserias,
como carvoarias, importantes para alimentar os fornos das guserias, e extensas áreas de plantação
de eucalipto, a matéria prima para a produção de carvão vegetal por parte das carvoarias. Tais
fatores, aliados com as emissões próprias das guserias bem como o alto teor de pó de minério de
ferro por se tratar de um ponto de distribuição contam como fatores adicionais para uma infinidade de
problemas de saúde para a população de toda a cidade de Açailândia, mas, em especial, para a
comunidade que se localiza em Piquiá.
Cinco empresas siderúrgicas estão instaladas desde o final dos anos 1980 na região do
povoado de Piquiá de Baixo. Elas são: Viena Siderúrgica S. A.; Gusa Nordeste S. A.; Ferro Gusa do
Maranhão; Siderúrgica do Maranhão S. A.; Companhia Siderúrgica Vale do Pindaré. Todas estas
empresas são clientes da Vale.
A Viena Siderúrgica S. A. começou suas operações em 1988 e hoje é a principal exportadora
de ferro gusa no Brasil. Conforme informações do site institucional, “sua planta industrial é moderna e
eficiente tendo sido construída com a mais alta tecnologia, incluindo um sistema de injeção de carvão
pulverizado (ICP) além de Termoelétrica e Sinterização” A Gusa Nordeste S. A. pertence ao grupo
Ferroeste, cuja produção é exportada para empresas norte-americanas, segundo um funcionário da
empresa. A Ferro Gusa do Maranhão Ltda (FERGUMAR), uma usina produtora de ferro gusa em
lingotes, foi fundada em abril de 1995. Iniciou suas atividades quase dois anos após a sua criação,
em janeiro de 1997. Opera com dois altos-fornos em turnos de revezamento, com a capacidade de
produção de 216.000 t/ano. O ferro gusa é exportado 100% para países como Estados Unidos, para
a Ásia e para a Europa. A Companhia Siderúrgica Vale do Pindaré foi a primeira instalada em
Açailândia, no final da década de 1980. Pertence ao grupo multinacional brasileiro Queiróz-Galvão
S.A. e em 2011 foi unificada com a Siderúrgica do Maranhão S. A. (SIMASA), conhecida como
Siderúrgica Queiroz Galvão.
As cinco empresas siderúrgicas estão filiadas ao Sindicato das Indústrias de Ferro Gusa do
Maranhão (SIFEMA), cujo presidente é atualmente o empresário e pecuarista Cláudio Azevedo,
também presidente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), diretor
da Federação das Indústrias do Estado do Maranhão (FIEMA) e Secretário Estadual de Agricultura do
Estado do Maranhão.
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Ao longo dos primeiros anos de funcionamento, todas estas empresas funcionaram
queimando carvão proveniente de bosque nativo. Pouco a pouco (mas ainda não completamente) as
empresas estão utilizando carvão proveniente de grandes plantações de eucaliptos na região. Nessas
carvoarias, segundo o documento anexado ao CD da novela de rádio Retalhos de uma vida: uma
produção em combate ao trabalho escravo contemporâneo, produção do Centro de Defesa da
Vida e dos Direitos Humanos Carmen Bascarán (CDVDH/CB), ainda são registrados casos de
relações trabalhistas análogas à escravidão e, também, trabalho infantil. Os dados relativos ao
período 2001-2010 indicam 76 casos apenas em Açailândia, correpondendo a 29,7% dos casos de
“trabalho escravo” no Estado do Maranhão, com 50% dos casos atendidos e 307 trabalhadores
libertos.
No mesmo sentido, A carta de Açailandia: novo pacto contra a escravidão, de 18 de
novembro de 2006, resultado da II Conferência Inter-participativa sobre trabalho escravo e
super-exploração em fazendas e carvoarias, que reuniu, no Município, cerca de duzentas pessoas,
entre militantes de movimentos sociais, representantes de instituições do poder público, entidades da
sociedade civil e especialistas sobre o tema, já declarava:
A estrutura fundiária extremamente concentrada e a falta de alternativas de
desenvolvimento em locais de baixa renda mantém reservas de mão-de-obra que
garantem constante disponibilidade de força de trabalho barata para grandes
propriedades rurais e carvoarias. (BASCARAN, TEIXEIRA & MOURA: 2007, p.184).
Por sua vez, o parque industrial da cidade de Açailândia está num processo de aumento de
investimentos sem resolver problemas já denunciados pelos movimentos sociais (poluição
atmosférica, ruídos e despejo de resíduos). A aciaria da Gusa Nordeste está em processo de
construção de empreendimento que pretende produzir, além do ferro gusa, aço para a indústria
doméstica e para a exportação. Para alguns moradores de Açailândia, funcionários do poder público
e empresas instaladas, a aciaria se apresenta como uma solução para o processo de agregação de
valor sobre os produtos comercializados através da cidade. Sem resolver antigos problemas das
guseiras, há o risco de que o novo investimento seja responsável por outros problemas ou mesmo a
intensificação dos antigos.
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Visão noturna do bairro Piquiá de Baixo. Foto de Rodolfo B. de M. L. da Costa
2. Resíduo humano: o caso do bairro Piquiá de Baixo
Desde 2005 na região produzem-se cerca de 47 mil toneladas de carvão vegetal ao ano, em
71 altos-fornos industriais, que estão a uma distância de menos de 1 km do assentamento onde
vivem cerca de 350 famílias. Os problemas respiratórios tem sido apresentados pelos moradores em
diversos depoimentos, reportagens e vídeos, com constantes diagnósticos médicos apontando
problemas respiratórios nos moradores, principalmente nas crianças e idosos.
Tais patologias englobam problemas respiratórios, tanto agudos quanto crônicos, além de
doenças de pele, alta incidência de câncer na população, problemas digestivos, problemas
oftalmológicos, abortos, problemas cardíacos e outros (ALBINO: 2007; SILVA: 2011). Outro ponto
também observado é a patente ausência de vida animal nativa como peixes, e animais de pequeno
porte, como pássaros. O drama ambiental se espelha na própria etimologia do nome do bairro,
havendo moradores que indicam ser o Piquiá um pequeno pássaro, já pouco comum no local,
enquanto outros, especialmente técnicos da guseria, acreditam tratar-se de uma sigla correspondente
a Parque Industrial Químico de Açailândia.
O pátio de distribuição da Vale bem como as cinco guserias implantadas na região se
localizam todas na área do polo industrial de Açailândia, localizado ao lado da comunidade de Piquiá
de Baixo. O que deveria ser um ponto de oportunidade e prosperidade para esta comunidade vizinha,
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se transformou em fonte de tormento devido ao diversos fatores de degradação ambiental
provocados pela presença das indústrias.
A área efetivamente tornou-se uma “zona de sacrifício”, conforme relato na reportagem feita
pela Revista Caros Amigos em sua edição de janeiro de 2012. Em nome de um impacto menor na
área do município como um todo, e conciliando o influxo de capital que a presença da mineradora e
das guserias traz para o município, concentram-se, em uma área relativamente diminuta, os vetores
poluentes. Esta disposição acarreta a caracterização de Piquiá de Baixo como a “Cubatão da
Amazônia”, em referência aos grandes índices de poluição experimentados por esta cidade paulista
no início dos anos de 1980. A comparação é nefasta, mas as condições de vida da população
refletem claramente esta referência e, até certo ponto, a justifica.
A água que alimenta a comunidade é captada pelas guserias para a refrigeração das caldeiras
utilizadas para o processamento do ferro-gusa e depois devolvida ao Rio Piquiá, seguindo então para
a comunidade onde é utilizada para consumo, higiene e outros afazeres. A água que chega à
comunidade tem uma coloração incomum, amarelada, com temperatura elevada, de quase 40°C, e
apresenta um nível de pH com tendências ácidas e um nível de resíduos metálicos, destacando a
presença notável de Chumbo e Crômio, acima do recomendado (OLIVEIRA: 2011). Tais índices
apresentados implicam, entre outras coisas, a impossibilidade da vida aquática prosperar nos rios e
na lagoa da região, e no gradual envenenamento, por metais pesados, da população que utiliza esta
água para sua subsistência.
Água utilizada pelas guserias que irá abastecer os poços do bairro do Piquiá de Baixo.
Foto de Wilson Madeira Filho
Após ser utilizada, a água aquecida e contendo ferro e diversos solutos dissolvidos escorre
por canaletas e é jogada novamente no rio, contaminando suas águas. Adicionalmente, as empresas
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não contam com rede de captação e tratamento de águas pluviais, de forma que a drenagem ocorre
de modo natural e leva o material particulado acumulado nos pátios para a lagoa situada a poucas
centenas de metros abaixo. Não há também nenhum tipo de tratamento dos efluentes líquidos
(OLIVEIRA: 2011).
Os problemas não se limitam somente aos corpos aquosos da região. O ar da localidade é
também severamente comprometido por conta de diversos fatores: o armazenamento, ao ar livre, do
minério de ferro bruto e do ferro gusa que espera o transporte ao porto da capital do estado; as
emissões das chaminés dos fornos e caldeiras das guserias no local que, por conta da demora no
reaquecimento dos mesmos, em caso de desligamento, devem permanecer funcionando vinte e
quatro horas por dia, expelindo grande quantidade de fumaça. Os efeitos desta alta concentração de
fumaça são os mais facilmente observados e são, ainda, os responsáveis pela maior quantidade de
problemas relatados pelos moradores da região.
O ar da região é comparativamente mais difícil de respirar que o de regiões vizinhas. Toda a
comunidade é coberta por um pó escuro granuloso que, mesmo após limpo, se deposita no ambiente
em pouco tempo novamente. Tal pó, de acordo com os relatórios ambientais levantados, é
responsável por problemas respiratórios e alérgicos em toda a população, causando sinusites,
carcinomas, bronquite, tosses, dificuldades para respirar, crises crônicas de asma, antracose,
enfisemas e outras doenças ordinariamente observadas em fumantes, mineiros ou habitantes de
grandes centros urbanos. O alto nível de poluição do ar também é responsável por irritações
cutâneas, alergias e outras patologias relacionadas à pele. O alto índice de mortalidade por doenças
respiratórias reforça a precariedade do ar da região (MERLINO: 2012). Mães têm como reclamação
comum crises respiratórias de suas crianças, sinusites, cansaço crônico e outras doenças de cunho
respiratório (SILVA: 2011).
Os problemas ainda se refletem na deterioração do solo e afetam a vida vegetal da área. O
depósito do pó negro, que compromete a saúde e a higiene dos moradores, também se deposita nas
folhas das plantas do local. Tal resíduo, em altas quantidades, dificulta a captação de luz solar e
compromete o desenvolvimento da vegetação. O grande tráfego de veículos de grande porte na
região para transporte de bens e pessoas, inclusive o próprio trem da estrada de ferro, provoca
vibrações constantes no solo, o que é evidenciado por rachaduras e aberturas de fendas no solo.
Tais ocorrências são um risco para o transito dos moradores e, na estação das chuvas, essas fendas
acumulam água, o que se configura como vetor de doenças e criadouro de insetos.
Somados aos riscos ambientais e ecológicos, a precariedade da estocagem de subprodutos
em algumas áreas na proximidade indicam mais um fator de risco. Crianças rotineiramente brincam
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no meio de resíduos, muitos deles tóxicos e perigosos. Mais de uma morte já ocorreu por conta de
acidentes em montes de resíduos não protegidos adequadamente (MERLINO: 2012). Pela
necessidade, ainda, de que certos materiais estejam completamente secos para serem
adequadamente empregados no processo do ferro-gusa, nos períodos de seca o pó dos diversos
materiais é levado pelo vento, agravando ainda mais a vulnerabilidade dos habitantes da região.
Em uma de nossas visitas ao local constatamos que um muro fôra construído ao fundo de
várias casas, aumentando a sensação de claustofobia, ao tempo em que protegia terreno e estações
elétricas da Vale S. A.
O único posto de saúde da comunidade está fechado, ainda que exista ao menos um parecer
técnico recomendando enfaticamente que seja feita a reabertura. Não há comercio que não seja o de
pequeno porte ou o informal. Não existem agências bancárias ou farmácias, nem telefone público em
qualquer ponto. No caso de uma crise respiratória mais grave, o paciente deve tomar algum
transporte até o hospital ou uma clínica na cidade.
É notável o tom de perplexidade e urgência nos laudos periciais, sendo todos unanimes em
declarar as condições de vida na região como totalmente incompatíveis com a manutenção da
ocupação humana na região: “A experiência de profissional médico, de professor universitário e
membro consultor do Ministério da Saúde (...) nunca se deparou com queixas e manifestações que se
assemelhassem às descritas pelos habitantes de Piquiá de Baixo” (SILVA: 2011).
Com todos os eventos já descritos, é natural que tenha se formado uma rede de apoio a esta
população fragilizada. As redes sociais Justiça Global Brasil e Justiça nos Trilhos, com uma
participação da pastoral católica local, do Ministério Público Estadual, da Defensoria Pública, da FIDH
e da Secretaria Estadual de Direitos Humanos e de atores advindos das varias associações de
moradores denunciaram os impactos negativos que a presença da Vale trouxe para a população
local.
Em 14 de fevereiro de 2011, o site da rede Justiça nos Trilhos divulgou que dezenas de
trabalhadores das siderúrgicas Viena e Fergumar paralisaram os trabalhos de forma geral. Desde
agosto de 2009, os trabalhadores da Viena Siderúrgica teriam tido sua jornada de trabalho reduzida e
seu salário cortado. Ganhariam ao redor de um salário mínimo por mês, trabalhando em turnos
cansativos, inclusive à noite, em condições pesadas e arriscadas. Segundo esses relatos, não
raramente era pedido aos trabalhadores “dobrar” seu turno, chegando assim a doze horas
consecutivas de trabalho. A cesta básica mensal teria sido suspensa pela diretoria da empresa logo
após a assinatura da convenção coletiva. Nos últimos meses o assédio moral da empresa teria se
tornado ainda mais forte.
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Foto: www.justicanostrilhos.org/
3. A encruzilhada discursiva
O caso do bairro Piquiá de Baixo com toda sua dramaticidade coloca também em relevo
aspectos procedimentais das estratégias de colonização democrática. Por colonização democrática
temos identificado modelos de valorização de direitos, com aportes gradativos de capacitação para
gestão publica e paraestatal, na linha de associativismos, cooperativismos e busca de meios
alternativos para resolução e mediação de conflitos (MADEIRA FILHO: 2011; MADEIRA FILHO &
GOMES: 2010).
Depois de inúmeros documentos de perícia da água, do solo e de condições ambientais e um
esforço dos advogados do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmen Bascaran, que
assumiu a causa da Associação de Moradores de Piquiá de Baixo, os representantes da Defensoria
Pública e do Ministério Público do Estado do Maranhão, a Secretaria Estadual de Direitos Humanos
(SEDIHC) e representantes da Vale e das guserias, firmaram Termo de Compromisso de
Ajustamento de Conduta (TAC). O texto acordado é uma verdadeira pletora cívica e indica a remoção
dos moradores para um novo bairro a ser construído em área a ser indenizada pela Vale e pelas
guserias, onde essas mais de 350 famílias poderiam viver e conviver entre si, livres da poluição,
respeitando os laços comunitários já estabelecidos e garantindo-lhes, o máximo possível, o modo de
vida que tinham antes da chegada das indústrias de ferro gusa, das instalações da Vale S.A. e
demais empreendimentos industriais. Baseando-se, para tanto, nos princípios constitucionais da
dignidade humana, da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, da inviolabilidade
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do direito à vida, dos direitos à saúde e à moradia adequada e do dever de prestar justa e prévia
indenização em dinheiro ao proprietário expropriado.
Sede da Associação dos Moradores do Piquiá de Baixo. Foto de Wilson Madeira Filho
Conforme ficou acertado no acordo, o Sindicato das Indústrias de Ferro Gusa (Sifema)
repassou, no dia 30 de junho de 2011, o valor de R$ 407.474,00 à Prefeitura de Açailândia para a
execução do processo de desapropriação do terreno no qual as centenas de famílias seriam
reassentadas. A área de 38 hectares, localizada à altura do Km 08 da rodovia 222, em Açailândia, é
conhecida como Sítio São João. O valor foi avaliado pelo Crea.
Todavia, uma vez proposta a competente Ação de Desapropriação e depositado em juízo o
valor justo auferido, e determinada a imissão na posse pelo Juiz da 1ª Vara de Açailândia, nos autos
do processo nº 5138-43.2011, reconhecendo, portanto, a legalidade e a urgência da medida de
reassentamento, o passo seguinte seria a produção de levantamentos preliminares e elaboração do
projeto urbanístico, enquanto o Ministério Público negociava com a Caixa Econômica Federal a
possibilidade da população ser incluída no Programa Minha Casa Minha Vida do Governo Federal.
Mas a remoção e realocação dos habitantes foram obstadas. Após a expedição do Decreto de
Desapropriação, duas pessoas alegaram serem proprietárias da área, e propuseram uma Ação
Anulatória, requerendo, em sede de antecipação de tutela, que fossem sustados os efeitos do TAC e
do Decreto Expropriatório. Tal pedido foi negado de plano pelo Juiz da 1ª Vara de Açailândia, que
considerou ausentes os requisitos imprescindíveis para a concessão de medida tão relevante e com
potencial de gerar prejuízos aos interesses de toda uma coletividade, que supera mil e cem pessoas.
Essas duas pessoas, não obstante, recorreram da decisão e, em sede de recurso de Agravo de
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Instrumento interposto fora do prazo legal, e baseado apenas nas alegações dos agravantes sem que
houvesse o cuidado de solicitar informações ao magistrado de 1ª instância, tampouco às partes
agravadas nem aos demais atores envolvidos no TAC, foi concedida liminar, pelo Desembargador da
4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Maranhão, no sentido de suspender os efeitos da
desapropriação. Tal decisão gerou, na prática, efeitos sobre duas ações judiciais distintas: a ação
anulatória de decreto expropriatório (nº. 2514-21.2011.8.10.0022) e à ação de desapropriação (nº.
5138-43.2011.8.10.0022), ambas em trâmite na 1ª Vara Judicial de Açailândia. Uma vez suspensos
os efeitos do decreto expropriatório e impedindo-se a imissão provisória na posse, tornou-se
impossível a tomada das medidas necessárias para a elaboração do projeto urbanístico e
habitacional.
Esta liminar foi concedida com o intuito de proteger os interesses privados de duas pessoas
que, como comprovado nos autos do agravo de instrumento, sequer residem na área em questão,
são proprietários de outras áreas de terra e cuja legitimidade ativa era, ao menos, questionável, pois
não conseguiram comprovar efetivamente a propriedade da área expropriada. Com isso estariam
sendo desconsiderados o manifesto interesse público, a flagrante ilegitimidade e o risco de grave
lesão à saúde, à ordem, e à segurança públicas, deixando clara a urgência da tomada de
providências a fim de garantir condições mínimas de sobrevivência de toda uma comunidade.
Para confrontar e ampliar esse cenário impressionista do Piquiá, tornou-se fundamental para
nossa equipe identificar o perfil dos trabalhadores envolvidos direta e/ou indiretamente com a cadeia
produtiva das guseiras; que, por si só, têm uma independência relativa do principal agente financeiro
da região: a Vale S. A.. Mas a relação umbilical entre a Vale e as guseiras é evidenciada no próprio
discurso de apresentação de uma delas, na qual o funcionário explica que a existência e tamanho
dos estoques de matéria prima possuem certa relatividade em relação à expectativa de venda: “Se as
guseiras pararem a cidade para, então tem um acordo da manutenção de compra e venda de minério
e gusa com a Vale pra não parar.”
Do ponto de vista estético as grandes estruturas de ferro, cinzentas, com fumaça e poeira
para todos os lados lembram projetos antigos de desenvolvimento, mas, também, são frutos de um
desenvolvimento tecnológico e sinal de um progresso para os novos moradores da Amazônia
Oriental. Migrantes de vários Estados do Brasil, principalmente daquelas regiões com história
relacionada à siderurgia (equipe técnica do Sul e do Sudeste) e profissionais de “chão de fábrica”,
principalmente oriundos do Norte e Nordeste brasileiro, são os artesãos modernos que representam
uma longa herança de conhecimentos e tradições da siderurgia.
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Em maio de 2008 o Estado do Maranhão e a Gusa Nordeste de Açailândia assinaram um
protocolo de intenções para a instalação de uma aciaria na cidade. O novo empreendimento
prospecta a produção de 500.000 toneladas anuais de tarugo de aço. Esse novo empreendimento é
comemorado como sinal de “progresso”; “oportunidade”; “desenvolvimento” e “geração de emprego”.
Assim, a cidade se prepara para uma nova etapa, “da cidade do ferro para a cidade do aço”,
agregando valor aos seus produtos, uma iniciativa que ganha apoio governamental, com
investimentos estrangeiros, incluindo funcionários de origem chinesa, que trabalham na construção
da aciaria. Andando pela unidade industrial que está em fase de construção encontramos
equipamentos com identificações e explicações de uso em português e mandarim.
Guseria Nordeste. Foto de Rodolfo B. de M. L. da Costa
Do ponto de vista técnico é desenvolvida uma série de ações, ainda insipientes – em
consórcio com organizações do sistema “S” (Sebrai/Sesi/Senai) – para qualificação da mão-de-obra
voltada para siderurgia. A qualificação técnica que relaciona a atividade produtiva e a especialização
com focos na gestão ambiental abre espaço para funcionários que, ao mesmo tempo que cuidam de
etapas administrativas nas guseiras, cuidam, também, com um nível de “Relacionamento Público”
externo.
A profissionalização da gestão ambiental é, visivelmente, uma demanda do mercado a ser
atendida pelas empresas, que utilizam seus próprios recursos humanos, com conhecimento já
acumulado no processo produtivo para emissão de análises e pareceres que são encaminhados para
um nível gerencial superior.
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A possibilidade de conjugar o crescimento econômico, confluindo aumento da produtividade
com uma retórica de respeito ao meio ambiente, começa a tomar forma através de práticas que
tentam ser construídas sobre uma realidade social ainda marcada por grandes contrastes. Diante de
profundas transformações espaciais, em um processo de urbanização precária, onde o poder público
não apresenta estratégias correlatas, as empresas são chamadas para a atuar como gestores
territoriais, seja através de projetos de responsabilidade social, ou de inserção profissional e melhoria
da gestão ambiental.
Na cidade de Açailândia também pode ser localizado um clube que originalmente era apenas
para os funcionários da Vale do Rio Doce. Com a privatização esse clube permitiu o ingresso de
outros sócios. As piscinas, campos de futebol, churrasqueiras e os escorregas para um segmento dos
funcionários das empresas (guseiras e Vale) existe ao lado do principal banho público da cidade, no
represamento de um rio, onde há um nível ainda com alto índice de poluição.
Transmitindo os valores corporativos, o funcionário da guseira apresenta os avanços
alcançados pela nova reengenharia de produção que "garante a sustentabilidade dos processos
produtivos": "ferro-gusa produzido com carvão vegetal oriundo de eucalipto reflorestado"; "cimento
produzido com adição de escória do alto-forno"; "energia elétrica termoelétrica produzida com gases
provenientes dos altos-fornos, evitando a liberação na atmosfera"; e "adubos produzidos no processo
produtivo e que são utilizados no plantio de eucalipto".
Os impactos das atividades são visíveis, e não há agente social na cidade que negue a
existência de conflitos entre a atividade produtiva e a qualidade de vida da população do entorno das
unidades industriais. A Igreja Católica do Maranhão reuniu-se para celebrar a 11ª Romaria da Terra e
das Águas, mostrando solidariedade às vítimas de um desenvolvimento descontrolado e de todos os
impactos dos grandes projetos do Maranhão. Aproximadamente 10 mil pessoas se reuniram num
movimento que, segundo a Secretaria de Agricultura de Açailândia, tinha como foco o protesto contra
a situação hoje vivida pelos moradores do Pequiá.
Nesse sentido, por exemplo, o TAC do caso Pequiá possuiu elementos de cogestão, na
medida em que as guserias e a Vale buscaram um meio razoavelmente simples de resolução de um
caso emblemático, tendo em vista a baixa judicialização de questões e a completa ausência de
qualquer diretriz política que leve a uma efetiva responsabilidade social das empresas.
A liminar que suspendeu a transação proposta no TAC - atacada pelo MPE – na realidade
revela a miopia do Tribunal, encastelado institucionalmente, que sequer aferiu o caso concreto.
Conforme se lê na página 5 do pedido do MPE de suspensão de Liminar com antecipação de Tutela
no Processo 0005354-70.2011.8.10.0000:
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Com efeito, por decisão liminar tomada de súbito, [...] em sede de um agravo de
instrumento que aparentemente foi interposto intempestivamente, e baseada apenas
nas alegações dos agravantes, foram sustados os efeitos jurídicos do Termo de
Compromisso de conduta, do decreto expropriatório e impedida a imissão na posse.
O MPE ainda carreia outros elementos de uma busca política de resolução do caso, citando,
por exemplo, visita que teria sido feita pela Governadora do Estado ao bairro do Piquiá, com
promessa de solução do impasse e a destinação de verba do programa Minha Casa Minha Vida para
assentamento das famílias no novo terreno.
Em entrevistas e reuniões com os membros do Ministério Público e da Defensoria Pública
local foi-nos possível avançar nessa questão, sendo seus titulares jovens, formados há pouco tempo,
vindo de capitais, e com uma visão jurídica mais instrumentalmente democrática. Nesse sentido, o
fato de argumentos civilistas, em especial aqueles relativos ao direito de propriedade, receberem uma
acolhida especial pelo Tribunal, não deixa de fornecer pistas para uma leitura de um possível
conservadorismo jurídico, que muito possivelmente se espraia na própria configuração de poder local
e na aguerrida disputa agrária, em oposição a modelos transversais de renovação dos quadros via
concursos públicos.
Por sua vez a atuação das ONGs enquanto promotoras de cidadania, reforçando as redes
sociais, com apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento dos Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), tende a ideologizar as questões, criando uma polarização,
onde o modelo desenvolvimentista - e, por extensão, a própria atuação do Governo Federal, via PAC
– é configurado simbolicamente como nova fase extrativista, sob bases não complexas. Nessa linha,
a Vale é seguidamente demonizada enquanto fonte de falsos discursos emancipatórios, uma vez que
reproduz um capitalismo predatório, descompromissado com as consequências sociais, acarretando
externalidades negativas simbolicamente caracterizadas no caso Piquiá.
Na mesma linha, a visão tradicional do “empresário”, “dono da indústria”, “dono da fazenda”,
combinado às tendências de mudança no controle societário observadas no universo das maiores
empresas brasileiras (como a ampliação da participação do capital estrangeiro e a relativa redução do
controle familiar) coloca em questão a própria identidade de setores e a composição das estruturas
de classes no Brasil.
As respostas aos conflitos sinalizados, no site da Vale S.A. alternam entre o silencio absoluto
e a declaração de que as obrigações acertadas foram plenamente realizadas. A retórica protocolar de
respeito irrestrito aos direitos humanos também é frequentemente empregada.
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Considerações finais
A participação das universidades na mediação de conflitos, após uma primeira etapa de
mapeamento de casos de (in)justiça ambiental, indica a necessidade de se aprimorar a intermediação
discursiva, que aponta para diversos cenários, entre os quais: a) ampliação da judicialização de fato,
com consequentes analises estruturais da justiça administrativa no país; b) construção de marcos
normativos sobre a responsabilidade social das empresas; c) articulação entre universidades e
movimentos sociais, com ampliação de ações extensionistas no campo dos conflitos sociais, bem
como na formação e especialização de quadros locais que incentivem a busca de meios alternativos
para a resolução de conflitos e para assegurar direitos humanos e condições dignas de trabalho e
moradia.
Do mesmo modo, diante de um Estado não monolítico e de empreendimentos industriais
“plurifacetários” deve ser amplamente debatido o escopo dos planos de aceleração do crescimento,
trazendo vetores não exclusivamente econômicos ou dados econômicos alternativos para compor
modelos multifinalitários.
Resta registrar, em face do caso concreto do bairro Piquiá de Baixo, que, em março de 2012,
a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça decidiu pela legalidade da desapropriação do terreno
destinado ao reassentamento dos moradores. Reconheceu-se a gravidade da situação e o dever das
empresas poluidoras e dos entes públicos de promover soluções imediatas para o problema, dentre
eles a mencionada desapropriação.
Muro construído pela Vale no fundo das casas do Piquiá de Baixo, de maneira a que os moradores não se aproximem de torres da
empresa, mas confinando as famílias. Foto de Rodolfo B. M. L da Costa
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Brasília: MIN, 2009.
CDVDH/CB (Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos – Carmen Bascarán). Retalhos de uma vida:
uma produção em combate do trabalho escravo. Rádio novela. Edição de Josinaldo Moreira. Direção de
Gracinha Donato. Capa de Marcelo Cruz. Elenco: Chrislâyne Sousa, Anderson dos Santos, Hygor Almeida,
Rodrigo Carlos Feleol, Elizeu Robert,Laisa Samelyne e Débora Juliana. Açailândia: CDVDH/CB, 2011.
FEDERAÇÃO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS. Brasil – quanto valem os direitos humanos?
Impactos sobre os direitos humanos relacionados à indústria da mineração e da siderurgia em
Açailândia. Paris- França: FIDH: 2011. Disponível em www.fidh.org.
MADEIRA FILHO, Wilson. “Novas configurações do arcaico: percursos da neo-colonização democrática no
Município de Pracuúba (AP). Em: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; FRAGALE FILHO, Roberto; LOBÃO,
Ronaldo (organizadores). Constituição & ativismo judicial; limites e possibilidades da norma
constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2011, pp. 407-443.
MADEIRA FILHO, Wilson; GOMES, Luiz Cláudio Moreira. “Entradas e bandeiras: o novo processo de
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Monn; SIEBERT, Cláudia; SOUZA, Luis Alberto (organizadores). Experiências em planejamento e gestão
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MERLINO, Tatiana. “Os invisíveis da cadeia de ferro”. Em: Caros Amigos. São Paulo: Editora Casa Amarela,
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OLIVEIRA, Jorge Diniz de. Relatório de análise da água superficial da Lagoa do Quarenta. Imperatriz:
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2011.
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