DEVIDO PROCESSO LEGAL, DIREITOS FUNDAMENTAIS E
LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO
Flávia Moreira Guimarães Pessoa
SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. A importância dos direitos fundamentais 3. Os direitos fundamentais processuais e o devido processo legal - 4.
O livre convencimento motivado enquanto direito fundamental - 5.
Considerações finais - 6. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo busca analisar o livre convencimento motivado
enquanto direito fundamental. Para se atingir o objetivo proposto, formula
apontamentos
sobre
os
direitos
fundamentais.
Em
seguida,
trata
especificamente do princípio do devido processo legal. Por fim, cuida do
livre convencimento motivado enquanto garantia inserta no princípio do
devido processo legal.
2. A IMPORTÂNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A conceituação do que sejam direitos fundamentais é particularmente
difícil,
tendo
em
vista
a
ampliação
e
transformação
dos
direitos
fundamentais do homem no envolver histórico. Aumenta essa dificuldade, o
fato de se empregarem várias expressões para designá-los, como "direitos
naturais", "direitos humanos", "direitos públicos subjetivos", "liberdades
fundamentais", etc.
Ingo Sarlet (2006, p. 35-37) estabelece a distinção entre "direitos
fundamentais", "direitos humanos" e "direitos do homem". Nesse sentido,
1
segundo o autor, o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles
direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito
constitucional positivo de determinado Estado, enquanto que a expressão
direitos humanos seria relativa aos documentos de direito internacional,
por referir-se às posições jurídicas que se reconhece ao ser humano como
tal, independentemente de sua vinculação a determinado Estado. Já a
expressão "direitos do homem" seria, segundo Sarlet (2006, p. 37)
marcadamente jusnaturalista, de uma fase que precedeu o reconhecimento
dos direitos no âmbito do direito positivo interno e internacional.
Alexy (2003, p. 21) aponta três conceitos de direito fundamental, que
separa em concepções formais, materiais e procedimentais. A concepção
formal, segundo o autor, baseia-se na maneira em que está disposta a
normatividade de direito positivo dos direitos fundamentais. Assim, direitos
fundamentais são todos aqueles catalogados expressamente como tais na
Constituição. Trata-se de uma definição simples, porém, como o próprio
Alexy (2003, p. 21) alerta, insatisfatória. Assim, conclui o autor (2003, p.
23) que os conceitos formais de direitos fundamentais referidos a catálogos
consagrados nas normas constitucionais podem ser úteis do ponto de vista
prático, mas em seu fundo deve haver sempre um conceito material de
direito fundamental.
Em relação à definição material dos direitos fundamentais, Alexy
(2003, p. 27) ressalta que é necessário que existam diversos tipos de
direitos fundamentais que possam ser correlatos a diferentes concepções
de
Estado.
Assim,
por
exemplo,
para
o
Estado
Burguês,
direitos
fundamentais seriam os direitos liberais do indivíduo, o que exclui as ações
positivas do Estado.
A definição procedimental exposta por Alexy (2003, p. 29) aponta
para uma definição formal a partir da qual se estabelece que as decisões
2
do parlamento não possam ser tomadas por maioria simples, de forma que
se estabelecem quoruns privilegiados para sua modificação.
Outrossim, cumpre frisar que o conteúdo dos direitos fundamentais
foi sendo paulatinamente alterado, a partir da verificação do seu caráter
histórico. Com efeito, consoante assinala Canotilho (2003, p. 1395), os
direitos
fundamentais
Constituição
"pressupõem
decisivamente
concepções
operantes
na
de
Estado
atividade
e
de
interpretativo-
concretizadora das normas constitucionais".
Importa destacar, ainda, a classificação dos direitos fundamentais
procedida por Ingo Sarlet (2006, p. 194) que os divide em dois grupos:
direitos fundamentais como direitos de defesa e direitos fundamentais
como direitos a prestações. Esse último grupo, por seu turno, subdivide-se
em direitos a prestações em sentido amplo, direitos à proteção, direitos a
prestações em sentido estrito - direitos sociais - e direitos à participação
na organização e procedimento.
A primeira divisão apontada, relativa aos direitos de defesa e direitos
a prestações, parte da clássica distinção efetivada pela doutrina. Com
efeito, os direitos fundamentais de defesa se dirigem a uma obrigação de
abstenção por parte dos poderes públicos, que deverá respeitar os direitos
individuais. Por outro lado, os direitos fundamentais a prestações implicam
uma postura ativa do Estado, que é obrigado a colocar à disposição dos
indivíduos prestações de natureza jurídica e material (SARLET, 2006, p.
216).
Em relação aos direitos de defesa, estes abrangem não somente os
tradicionais direitos de liberdade e igualdade, como também os direitos à
vida, à propriedade, às liberdades fundamentais de locomoção, de
consciência,
de
manifestação
de
pensamento,
de
imprensa
3
e
de
associação,
além
dos
direitos
que
irradiam
da
personalidade,
da
nacionalidade e da cidadania, bem como os direitos coletivos.
Em relação aos direitos fundamentais como prestações, estes se
encontram vinculados à concepção de que ao Estado incumbe colocar à
disposição os meios materiais e implementar as condições que possibilitem
o efetivo exercício das liberdades fundamentais. Dentro da subdivisão,
efetivada por Sarlet (2006) entre direitos a prestações em sentido amplo e
estrito, tem-se que, segundo o autor, na rubrica de direitos a prestações
em sentido amplo enquadram-se todos os direitos fundamentais de
natureza tipicamente (ou, no mínimo, predominantemente) prestacional que
não se enquadram na categoria de direitos de defesa. Quanto aos direitos
a prestações em sentido estrito, Sarlet (2006, p. 221) aponta que estes se
reportam à atuação dos poderes públicos como expressão do Estado
Social. Trata-se, por outro lado, de direitos a prestações fáticas que o
indivíduo, caso dispusesse de recursos necessários, poderia obter através
de particulares. São, assim, os chamados direitos fundamentais sociais.
Voltando-se aos direitos fundamentais à prestação em sentido amplo,
Sarlet (2006, p. 222) destaca os direitos à proteção, que seriam aqueles
que outorgam ao indivíduo o direito de exigir do Estado que este o proteja
contra ingerências de terceiros em determinados bens pessoais.
Há, também, a dimensão dos direitos fundamentais de participação
na organização e procedimento. Tal dimensão outorga legitimidade ao
Estado
Democrático
de
Direito,
ao
tempo
em
que
assegura
uma
democracia com elementos participativos. Neste aspecto, Sarlet (2006, p.
226) afirma que importantes liberdades pessoais somente atingem um grau
de efetiva realização no âmbito de uma cooperação por parte de outros
titulares de direitos fundamentais, implicando prestações estatais de cunho
organizatório.
4
Tal prévia análise do conceito e conteúdo dos direitos fundamentais
é relevante para a verificação do devido processo legal enquanto direito
fundamental processual, o que será visto no tópico seguinte.
3.
OS
DIREITOS
FUNDAMENTAIS
PROCESSUAIS
E
O
DEVIDO
PROCESSO LEGAL
Na
análise
do
livre
convencimento
motivado
enquanto
direito
fundamental é importante ressaltar a existência de direitos fundamentais
processuais, tema bem desenvolvido por Julio Guilherme Muller (2004) que
aponta como direitos fundamentais principais aqueles expressos no art. 5º,
caput, 1 e seus incisos XXXV,
2
LIII,
3
LIV,
4
LV,
5
LVI 6 e LX,
7
ou seja, os
princípios da igualdade, do devido processo legal, contraditório, ampla
defesa, publicidade dos atos processuais, inadmissibilidade de provas
obtidas por meios ilícitos, inafastabilidade da jurisdição e juiz natural
(MULLER, 2004, p. 66). Ao lado dos direitos fundamentais processuais
principais, Muller (2004, p. 67) também aponta os direitos fundamentais
materiais
adstritos,
como
a
exigência
de
motivação
das
decisões,
8
consagrada no art. 93, IX da Constituição Federal.
1
Art. 5º Constituição Federal: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes.
2
Art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito;
3
Art. 5º, LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
competente;
4
Art. 5º, LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal;
5
Art. 5º, LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes;
6
Art. 5º, LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
7
Art. 5º, LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a
defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;
8
Art. 93, IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e
fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a
presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a
estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo
não prejudique o interesse público à informação.
5
Em classificação um pouco diversa, Fredie Didier Júnior (2006, p. 3374) aponta os seguintes: a) direito fundamental a um processo devido
(devido processo legal); b) direito fundamental à efetividade (à tutela
executiva); c) direito fundamental a um processo sem dilações indevidas;
d) direito fundamental à igualdade; e) direito fundamental à participação
em contraditório; f) direito fundamental à ampla defesa; g) direito
fundamental à publicidade.
Ao lado dos direitos fundamentais processuais, assinalem-se, ainda,
as garantias processuais que, embora consagradas na Constituição
Federal, não se constituem em direito fundamental. Entre elas, podem-se
explicitar a previsão de vários órgãos do Judiciário, com atribuições e
competências fixadas, a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de
vencimentos dos magistrados e membros do Ministério Público (MULLER,
2004, p. 67).
O devido processo legal é um direito fundamental de conteúdo
complexo. Segundo Fredie Didier Júnior "trata-se de uma cláusula geral e,
portanto, aberta, que a experiência histórica cuida de preencher" (DIDIER
JÚNIOR, 2006, p. 53).
Para Oreste Nestor de Souza Laspro traduz o devido processo legal
a "obediência à lei para obtenção de julgamento adequado, justo e équo,
conforme aos princípios constitucionais, que atuam concorrentemente e
não de forma singular, a todos os indivíduos, protegendo-os de qualquer
discriminação" (LASPRO, 1995, p. 88).
Nelson Nery Júnior considera o due process of law como princípio
básico do processo, do qual derivariam todos os demais. Em suas
palavras: "bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due
process of law para daí decorrerem todas as conseqüências processuais
6
que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença
justa". (NERY JUNIOR, 1997, p. 27).
Trata-se de garantia inserta no art. 5º, inciso LIV da Constituição
Federal, nos seguintes termos: "ninguém será privado da liberdade ou de
seus bens sem o devido processo legal". A inserção da cláusula na
Constituição é sintomática, uma vez que o devido processo legal tanto
pode ser entendido como princípio constitucional do processo, quanto
elemento inerente ao estado de direito, ou ainda, direito fundamental do
cidadão, ou, mais precisamente, instrumento assecuratório do gozo dos
direitos fundamentais.
O primeiro documento legislativo que fez menção ao princípio no
mundo ocidental foi a Magna Carta de 1215, que aludia a Law of the land.
Somente mais de um século depois, já em 1354, é que se teve menção
específica ao termo Due Process of law, no Statute of Westminster of the
Liberties of London.
O conteúdo e significado do princípio 9 são, aliás, bastante discutidos
na
doutrina
processual
pátria.
Segundo
Nelson
Nery
Junior,
em
entendimento já mencionado, o princípio é o principal dentro da Teoria
Geral do Processo, dele derivando todos os demais. Nesse mesmo sentido
se orienta Fredie Didier Júnior (DIDIER, 2006, p. 33). Na mesma
orientação, Paulo Lucon (2006, p. 14) aponta o devido processo legal como
o ponto de convergência de todos os princípios, garantias e exigências do
processo civil.
10
9
Em artigo específico sobre o devido processo legal, Luiz Rodrigues W ambier (1991, p.
55) dedica várias linhas a tratar do significado do princípio, apontando diferentes
posicionamentos lógicos e filosóficos, como os expostos por Arturo Hoyos, John Rawls e
Adolfo Bidart, além de apontar a doutrina dos processualistas nacionais.
10
Como projeções do devido processo legal, Lucon (2006, p. 17) assinala, dentre
outros, o dever de motivação das decisões, a limitação ao poder administrativo, o
respeito a regras de competência, a relativização da coisa julgada e a necessidade de
observância da igualdade substancial.
7
4.
O
LIVRE
CONVENCIMENTO
MOTIVADO
ENQUANTO
DIREITO
FUNDAMENTAL
O sistema da persuasão racional foi adotado após a Revolução
Francesa, época em que a valoração meramente numérica e automática
das testemunhas deixou de ser utilizada. A formação do sistema racional
de valoração das provas teve progressiva evolução, de forma que somente
no século XX pode-se situar a adoção da lógica racional como método de
hermenêutica. Com isso, o sistema do livre convencimento motivado
passou a ser adotado pelas legislações modernas, dentre as quais o
Código de Processo Civil brasileiro, mais precisamente em seu art. 131.
11
Ademais, o art. 93 IX Constituição consagra o princípio, neste aspecto
entendido como direito fundamental material adstrito.
Pode-se definir o sistema do livre convencimento motivado como
aquele no qual o juiz, de conformidade com seus critérios de entendimento,
calcado no raciocínio e na lógica, tendo como base a legislação vigente,
com apoio nos elementos existentes nos próprios autos, tendo que, na
sentença, explanar sua motivação, decide, com racional liberdade, a
demanda proposta.
Verifica-se, portanto, que a motivação é um dos pilares do sistema
da
persuasão
racional,
porque,
através
da
motivação
confere-se
racionalidade e legitimidade à independência de que goza o julgador na
apreciação da prova. Tanto assim que o sistema é também conhecido
como do livre convencimento motivado.
O livre convencimento motivado, porém não é previsão apenas do
art. 93 IX da Constituição. Trata-se, em realidade, de direito fundamental
previsto no art. 5º, LIV da Constituição. Saliente-se, neste aspecto, que
11
Art. 131 Código de Processo Civil. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos
fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, mas
deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.
8
não se trata de garantia para o julgador. Ao contrário, é garantia para a
sociedade, num Estado Democrático de Direito, tendo em vista estar no
conteúdo do devido processo legal.
Assim, ao se tolher a aplicação do princípio da persuasão racional,
ou livre convencimento motivado, além de se ofender o disposto no art. 93,
IX da Constituição, está-se a ferir de morte os princípios do devido
processo legal (art. 5º, LIV) e, em conseqüência, o próprio estado
democrático de direito (art. 1º, caput, da Constituição), razão pela qual se
trata de garantia irrenunciável pelo cidadão.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das considerações expostas, pode-se concluir que o princípio
do livre convencimento motivado pode ser considerado direito fundamental
na medida em que é um dos elementos do devido processo legal esculpido
no art. 5º LIV da Constituição, além de se caracterizar como direito
fundamental material adstrito previsto no art. 93 IX da Constituição.
Em se tratando de direito fundamental e característica do Estado
Democrático de Direito, não se trata de garantia do julgador, mas, ao
contrário, trata-se de garantia das partes e da sociedade, que dele não
pode abdicar.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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9
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