ASPECTOS PROCEDIMENTAIS DA LEI MARIA DA PENHA E SEUS REFLEXOS NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES FAMILIARES THAIS CÂMARA MAIA FERNANDES COELHO1 RESUMO: Considerando o histórico da violência doméstica sofrida pelas mulheres, foi necessária a promulgação da Lei Maria da Penha sendo um procedimento mais célere que garante a proteção da integridade física e psíquica da mulher independente de sua orientação sexual. PALAVRAS-CHAVE: mulher, violência doméstica, procedimento e Lei Maria da Penha. 1. INTRODUÇÃO A Lei n.11.340/06, denominada Lei Maria da Penha, entrou em vigor em 22 de setembro de 2006, estabelecendo mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres, independente de orientação sexual, e definindo ainda as formas de violência como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.2 1 Advogada especializada em Família e Sucessões. Professora de Direito Civil na Faculdade de Direito Promove e no UNI-BH. Especialista em Direito Civil pelo IEC- PUC/Minas. Mestranda em Direito Privado pela PUC Minas e Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. 2 Art. 7º da Lei n.11.340/2006: São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularizarão, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimonio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação, ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. Maria da Penha Maia Fernandes foi um importante símbolo da luta contra a violência doméstica. Em 1983, quase foi assassinada pelo ex-marido, o professor universitário Marco Antonio Herredia, que efetuou um disparo contra a mesma, deixando-a paraplégica. Na segunda tentativa de homicídio, tentou eletrocutá-la e afogá-la. Ela não faleceu, mas sofreu lesões irreversíveis. Em 2001, após 18 anos da prática do crime, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica e recomendou algumas medidas no tocante ao caso concreto de Maria da Penha, bem como em relação às políticas públicas do Estado para enfrentar a violência doméstica contra as mulheres brasileiras. Somente após a intervenção da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da OEA, o agressor foi então preso, mas por apenas dois anos (quase duas décadas após o crime...), sendo mais um caso de impunidade no país. A Lei n.11.340/2006 busca concretizar os compromissos internacionais assumidos pelo Estado Brasileiro, mais especificamente na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará de 1994 (aprovada no Brasil, pelo Decreto Legislativo n.107, de 31.08.95 e promulgada pelo Decreto n.1.973, de 01.10.96) e na Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, adotada em 1979 no âmbito da Organização das Nações Unidas.3 2. UM NOVO MICROSSISTEMA A Lei Maria da Penha é um microssistema que atende às necessidades especiais da violência doméstica e familiar sofrida pelas mulheres, promovendo a realização da sua personalidade e a tutela da dignidade da pessoa humana. Estamos num momento de quebra de paradigmas, sendo necessário ser concedido um tratamento diferenciado à mulher, haja vista a sua posição de inferioridade na história da humanidade. Mas o que se espera é que essas 3 GARCIA, Emerson. Proteção e inserção da mulher no Estado de Direito: a Lei Maria da Penha. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister, Belo Horizonte: IBDFAM, n. 8, p. 29, fev./mar. 2009. desigualdades culturais entre homens e mulheres sejam reduzidas por completo, até desaparecerem, considerando que estamos entrando numa nova era de alterações dos padrões histórico-culturais. Dessa forma, ao se mudar essa visão discriminatória, podese, num futuro próximo, buscar uma forma igualitária para a solução dos conflitos de violência familiar. Os microssistemas vêm para proteger a parte mais fraca e vulnerável de determinados grupos na sociedade. Assim, temos o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso e, agora, a Lei Maria da Penha, que é especificamente protetiva à mulher por ser a vítima principal da violência doméstica. O que se espera é que essa condição de inferioridade se extingua com a mudança sociocultural que a sociedade está sofrendo. Emerson Garcia se posiciona ao dizer que o tratamento diferenciado por razões de gênero somente deva ser admitido nos casos em que encontre ressonância em situações de discriminação preexistentes, e nunca como mola propulsora dessas discriminações, como observa: Considerando que as ações afirmativas têm por objetivo reduzir ou suprimir desigualdades sociais e regionais, que se manifestam entre pessoas do mesmo âmbito social ou entre sociedades de distintas regiões do país, é intuitivo que cessarão ou serão paulatinamente reduzidas tão logo as desigualdades sejam eliminadas ou atenuadas. Ressalvadas as hipóteses em que alicerçadas em situações de inferioridade inerentes à própria espécie humana, invariáveis e imutáveis, como se verifica com a fragilidade de crianças e idosos, as ações afirmativas sempre serão temporárias, isto é sob pena de se inaugurar um novo quadro de desigualdade, com atores diversos, tão logo cresce a desigualdade que, de início, se buscava combater. Daí a relevância dos estudos e dados estatísticos referidos na Lei n.11.340/06, permitindo seja acompanhada a situação da mulher enquanto vítima de violência doméstica, o que pode justificar, ou não, a manutenção da sistemática inaugurada por esse 4 diploma legal. Sendo assim, o referido autor argumenta que a situação da mulher, enquanto vítima de violência doméstica, somente será modificada mediante a alteração dos padrões histórico-culturais, que exigirá a implementação de políticas públicas voltada 4 GARCIA, Emerson. Proteção e inserção da mulher no Estado de Direito: a Lei Maria da Penha. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister, Belo Horizonte: IBDFAM, n. 8, p. 29, fev./mar. 2009. ao esclarecimento e à formação das novas gerações, para que a mulher não mantenha a triste condição de estereótipo da violência doméstica.5 Várias são as críticas contra a referida lei, que é caracterizada como indevida e inconstitucional. Em outras palavras, ela é considerada por alguns como um verdadeiro retrocesso legislativo. Tais críticas fazem coro para a sua não-aplicação. Isso se dá, principalmente, em razão da adoção de uma postura de gênero diante do princípio da igualdade proclamado pela Constituição Federal, haja vista que a Lei Maria da Penha adota postura desigual entre sexos no momento em que dispensa à mulher mecanismos de proteção mais eficientes quando comparados aos mecanismos oferecidos ao homem em igual situação de violência doméstica. Destaque-se, por exemplo, o aspecto contraditório existente entre o art. 44 da Lei n.11.340/06 e o art.129 do Código Penal, em seu parágrafo 9º, que não faz distinção entre homens e mulheres.6 Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias defendem a proteção diferenciada concedida à mulher contra a violência doméstica e familiar, considerando um histórico intenso de registros de violência de ordem física, psíquica, sexual, profissional, moral e patrimonial que é imposto às mulheres, sendo necessário e justificável, portanto, a edição de uma legislação protetiva, conferindo tutela especial a quem ainda se encontra em situação vulnerável. 7 3.ASPECTOS PROCEDIMENTAIS Antes da Lei Maria da Penha ser aplicada em nosso ordenamento jurídico, a violência doméstica e familiar contra a mulher tinha sua competência nos Juizados Especiais Criminais (Lei n. 9.099/95), que julgava esses crimes com pena de até dois anos (menor potencial ofensivo) e permitia a aplicação de penas pecuniárias e multas. 5 GARCIA, Emerson. Proteção e inserção da mulher no Estado de Direito: a Lei Maria da Penha. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister, Belo Horizonte: IBDFAM, n. 8, p. 29, fev./mar. 2009. 6 CASTANHO, Maria Amélia Belomo. Questões de gênero no processo de exclusão social: a violência doméstica contra a mulher e o acesso à justiça. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister, Belo Horizonte: IBDFAM, n. 3, p. 35, abr./mar. 2008. 7 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 47-48. Os Juizados Especiais Criminais tratavam somente do crime, sendo que a mulher vítima da violência doméstica precisava procurar um advogado para que o agressor saísse da residência, por meio de uma ação de separação de corpos ajuizada nas Varas de Família. Algumas vezes, essa medida era indeferida liminarmente, sendo designada uma audiência de justificação posto que o boletim de ocorrência era prova unilateral, cabendo ao convencimento do Juiz o seu deferimento. Portanto, as mulheres retornavam para a casa e tinham de conviver com o agressor ao mesmo tempo em que aguardavam a audiência, com medo de sofrer nova ameaça. Com a vigência da Lei Maria da Penha os procedimentos mudaram. A mulher vítima de violência doméstica comparece à delegacia, sendo assegurada, de imediato, proteção policial.8 Após a realização do registro da ocorrência, deverá a autoridade policial ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada. Requerendo a vítima a adoção de medidas protetivas de urgência, a autoridade policial deverá formar expediente apartado contendo a qualificação da ofendida, do agressor e dos dependentes, bem como a descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas. O procedimento é, então, remetido ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM).9 Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao Juiz, no prazo de 48 horas, conhecer do expediente e do pedido para assim decidir 8 sobre as medidas protetivas de urgência,10 determinando ainda o Art. 11 da Lei n. 11.340/2006: No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências: I – garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário; II – encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; III – fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; IV – se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar; V – informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis. 9 Art. 14 da Lei n.11.340/2006: Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos de Justiça Ordinária com competência civil e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo e julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. 10 Art. 22 da Lei n.11.340/2006: Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei n.10.826, de 22 de dezembro de 2003; encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso. Finalmente, deve-se comunicar ao Ministério Público para que este adote as providências cabíveis. Enquanto não estruturados os JVDFM, o pedido das medidas protetivas será distribuído às Varas Criminais, como analisaremos no próximo tópico. Com o advento da Lei Maria da Penha, o crime de lesão corporal qualificada, previsto no art.129, §9º é apurado mediante ação penal pública incondicionada, conforme posicionamento do STJ.11 4. CONTROVÉRSIAS ACERCA DA COMPETÊNCIA Um dos grandes avanços promovidos pela Lei Maria da Penha foi a retirada dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95)12 da competência para julgar os crimes de violência doméstica contra a mulher,13 determinando, assim, a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM), com competência cível e criminal. Maria Berenice Dias argumenta que ficou nítida a intenção do legislador de deixar claro que a violência contra a mulher não é crime de pequeno potencial ofensivo. II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III – proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe multidisciplinar ou serviço similar; V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios. 11 HABEAS CORPUS.LEI MARIA DA PENHA.LEI N.11.340/2006.LESÃO CORPORAL QUALIFICADA.ART.129, § 9º,DO CÓDIGO PENAL.DELITO QUE SE PROCESSA MEDIANTE AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA.1. Com o advento da Lei n.11.340/2006, a chamada Lei Maria da Penha, o crime de lesão corporal qualificada, previsto no art.129, § 9º, do Código Penal, cometido contra mulher no âmbito doméstico ou familiar,é apurado mediante ação penal pública incondicionada.2.O crime de lesão corporal qualificada, imputado ao paciente, prescinde de representação da vítima, motivo porque o acórdão que determinou o recebimento da denúncia não lhe está a causar qualquer constrangimento ilegal.3.ordem denegada.STJ.Habeas Corpus n.2008/0124400-1,6ª Turma, Relator Ministro Paulo Gallotti, julgado 23/09/2008. 12 PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ART.129, § 9º, DO CÓDIGO PENAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. LEI MARIA DA PENHA. LEI N.9.099/95. INAPLICABILIDADE. A Lei n.11.340/06 é clara quanto a não-aplicabilidade dos institutos da Lei dos Juizados Especiais aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Ordem denegada. STJ. Habeas Corpus n.2007/0135839-3,5º Turma, Relator Ministro Felix Fischer, julgado 27/03/2008. 13 Art. 41 da Lei n.11.340/2006: Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independente da pena prevista, não se aplica a Lei n.9.099, de 26 de setembro de 1995. Assim, se a vítima for mulher e se a violência acontecer no ambiente doméstico e familiar, não pode esta violência ser considerada como pouco lesiva e, portanto, não mais sendo objeto de apreciação pelos Juizados Especiais Criminais. 14 No entanto, enquanto não estruturados os JVDFM, os pedidos para as medidas protetivas serão encaminhados às Varas Criminais 15 , mesmo que a maioria das providências a serem tomadas, como a fixação de alimentos, seja no âmbito das Varas de Família, conforme tem se posicionado a jurisprudência. A criação do JVDFM se faz necessária e urgente em todas as comarcas, para que não ocorram discussões polêmicas sobre a competência. A existência de juízos diversos com a mesma competência é algo desaconselhável, trazendo decisões conflitantes e insegurança jurídica. Mesmo que tenham sido conferidas ao Juízo da Vara Criminal competência cíveis e criminais para conhecer e julgar as demandas, somente os procedimentos oriundos das delegacias de polícia serão distribuídos às Varas Criminais. Permanecem na jurisdição cível os pedidos de medidas protetivas formulados por meio de demandas cautelares. Desta forma, nas comarcas que existem Varas de Família, estas continuam com competência para, por exemplo, decretar a separação de corpos, mesmo quando o pedido tenha por fundamento a prática de violência doméstica. 16 Aos Juizados especializados (JVDFM) foram atribuídos competência para o processo, julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência 14 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei n.11.340/2006 de combate à violência doméstica contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.61-62. 15 CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. CRIMINAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CONTRAVENÇÃO PENAL (VIAS DE FATO). ARTS.33 E 41 DA LEI MARIA DA PENHA.COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA VARA CRIMINAL.1. Apesar do art.41 da Lei 11.340/2006 dispor que “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n.9.099, de 26 de setembro de 1995”,a expressão “aos crimes” deve ser interpretada de forma mais dura, a conduta de quem comete violência doméstica contra a mulher, afastando de forma expressa a aplicação da Lei dos Juizados Especiais.2. Configurada a conduta praticada como violência doméstica contra a mulher, independentemente de sua classificação como crime ou contravenção, deve ser fixada a competência da Vara Criminal para apreciar e julgar o feito, enquanto não forem estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, consoante disposto nos arts.33 e 41 da Lei Maria da Penha.3.Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da Vara Criminal de Vespasiano/MG,o suscitado.STJ. Conflito de competência 2009/0010292-0,3ª Seção, Relator Ministro Jorge Mussi, julgado 13/05/2009. 16 DIAS, Maria Berenice. Os reflexos da Lei Maria da Penha nos direitos das famílias. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha; MADALENO, Rolf (Coords). Direito de família: processo, teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 53. doméstica e familiar contra a mulher.17 No entanto, não foi deferida competência executória às Varas Criminais enquanto não criados os JVDFM, causando, pois, certa incerteza na falta de uniformidade dos procedimentos. Vejamos um exemplo: a Lei determina que, constando a prática de violência doméstica, cabe ao Juiz a fixação de alimentos provisórios ou provisionais. De quem seria a competência para proceder com a execução de alimentos em comarca que ainda não tenha sido instalado o JVDFM, considerando que a Vara Criminal não tem competência executória? Neste caso as execuções deverão ser encaminhadas às Varas de Família, enquanto não criados os JVDFM. No tocante à competência recursal, mesmo que a medida protetiva tenha sido deferida pelo Juízo Criminal, mas dispondo esta de conteúdo cível, o recurso será apreciado nas Câmaras Cíveis ou Câmaras de Família. Entretanto, se a medida protetiva possuir natureza penal, será então competência das Câmaras Criminais o julgamento dos recursos. Quanto à competência territorial, esta será relativa, cabendo à vítima da violência doméstica escolher e optar pelo foro de seu domicílio ou residência, do lugar do fato em que se baseou a demanda ou no domicílio do agressor. O tratamento privilegiado conferido à mulher se justifica pela situação de fragilidade em que se encontra quando é vítima de violência doméstica, sendo necessário que a demandante afirme a ocorrência deste ilícito para que incida a hipótese legal e lhe permita a escolha dos foros. 18 A Lei determinou a aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Cível e Penal, bem como da legislação específica do Estatuto do Idoso e Estatuto da Criança e do Adolescente,19 mas desde que não conflitam com normas previstas na Lei 17 Art. 14 da Lei n. 11.340/2006: Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. 18 DIDIER JUNIOR, Fredie; OLIVEIRA,Rafael. Aspectos processuais civis da Lei Maria da Penha (Violência doméstica e familiar contra a mulher). Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, 2007, v. 4, p. 26, jun./jul. 2008. 19 Art. 13 da Lei n.11.340/2006: Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas do Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei. 11.340/2006. Alterou ainda o Código de Processo Penal para possibilitar ao juiz a decretação da prisão preventiva quando houver riscos à integridade física ou psicológica da mulher. Modificou também o art. 61 do Código Penal, para considerar esse tipo de violência como agravante da pena, alterando-se então o prazo da pena de 3 meses a 3 anos com o aumento em 1/3 se a violência for cometida contra a mulher portadora de deficiência. 5. RECONHECIMENTO LEGISLATIVO DAS UNIÕES HOMOSSEXUAIS A Lei Maria da Penha inovou quando garantiu a proteção da mulher no ambiente doméstico e familiar, independentemente de sua orientação sexual, incluindo assim as uniões homossexuais como forma de entidade familiar. Em seu art. 2º da referida Lei “Toda mulher, independente de classe, raça, etnia, orientação sexual (...) goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”. No parágrafo único do art. 5º dispôs que “As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”. Dessa forma, a lei federal ampliou taxativamente o conceito das entidades familiares, incluindo as formadas por pessoas do mesmo sexo. Não há mais, portanto, omissão legislativa sobre o tema. Assim, as uniões homossexuais devem receber proteção jurídica, uma vez que a família é a base da sociedade e merecedora da proteção estatal, garantindo-se a todos os membros de qualquer forma de entidade familiar a sua integridade física e psíquica. Maria Berenice Dias apresenta uma questão polêmica ao defender que está sob o amparo da lei a mulher sem a distinção de sua orientação sexual. Em outras palavras, tal proteção alcança tanto lésbicas como travestis, transexuais e transgêneros que mantêm relação íntima de afeto em ambiente familiar, sendo que em todos os relacionamentos as situações contra o gênero feminino justificam especial proteção.20 Pretendeu a lei proteger as mulheres vítimas de violência doméstica, podendo ser vítimas as mulheres idosas, crianças e adultas. Mas seu grande avanço foi 20 DIAS, Maria Berenice. Os reflexos da Lei Maria da Penha nos direitos das famílias. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha; MADALENO, Rolf (Coords). Direito de família: processo, teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 56. demonstrar as várias formas existentes de entidades familiares, sendo que todas devem ser tuteladas, como bem observa a melhor doutrina: Na construção das soluções para as demandas de uma sociedade em constante transformações, deve o papel do intérprete incluir tutela jurídica as realidades presentes no seio social, de modo a alcançar uma verdadeira abertura sistêmica. Nessa conjectura, busca-se a construção de um Direito de Família, sem excluídos, atentos aos direitos fundamentais, consoante com os Direitos Humanos e tutelador das diferentes formas de afeto.21 6. NOTAS CONCLUSIVAS Até que enfim chegou a Lei Maria da Penha, no momento em que a mulher não aguentava mais ser a principal vítima da violência doméstica. A mulher é marcada por uma trajetória histórica, de submissão e inferioridade em relação ao homem. A lei, neste aspecto, trouxe esperança para o fim de uma era de impunidades. No entanto, para ser efetivamente eficaz, a mulher vítima da violência doméstica precisa de apoio moral, psicológico e material, não sendo necessário apenas a efetividade da norma, mas também a operacionalidade do sistema, para que a mulher saia de uma vez por todas deste contexto de violência doméstica no qual está inserida. O Estado tem o dever de efetivar a lei, mas somente com políticas públicas de atendimento como, por exemplo, com a criação urgente dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em todas as comarcas. Tais juizados devem ter estrutura interdisciplinar para que todos os familiares sejam atendidos. Por consequência, fatalmente as Varas Criminais, bem como as de Família, serão desafogadas no sentido de se atender ao propósito da lei. O que se espera é que, num futuro bem próximo, as desigualdades existentes entre homens e mulheres no contexto doméstico terminem, considerando essa nova realidade da sociedade atual, em que a mulher se torna cada vez mais independente, sendo respeitada no mercado de trabalho e tendo iguais direitos e obrigações. Não discutiremos a inconstitucionalidade, pois mais eficaz concentrar na sua funcionalidade para que, nas próximas gerações da sociedade brasileira, a mulher não seja mais considerada a parte vulnerável da entidade familiar. Com a mudança dessa visão 21 MATOS, Ana Carla Harmatiuk. “Novas” entidades familiares e seus efeitos jurídicos. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (Coord.) Família e solidariedade. Trabalho apresentado no VI Congresso Brasileiro de Direito de Família. Rio de Janeiro: IBDFAM, Lúmen Júris, 2008, p. 48. discriminatória, será buscada, portanto, uma forma igualitária para a resolução dos conflitos de violência doméstica. REFERÊNCIAS AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Mulher: da submissão à libertação. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister, Belo Horizonte: IBDFAM, n. 8, fev./mar. 2009. CASTANHO, Maria Amélia Belomo. Questões de gênero no processo de exclusão social: a violência doméstica contra a mulher e o acesso à justiça. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister, Belo Horizonte: IBDFAM, n. 3, p.35, abr./mar. 2008. DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei n.11.340/2006 de combate à violência doméstica contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. DIAS, Maria Berenice. Os reflexos da Lei Maria da Penha nos Direitos das Famílias. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha; MADALENO, Rolf (Coords). Direito de família: processo, teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2008. DIDIER JUNIOR, Fredie; OLIVEIRA, Rafael. Aspectos processuais civis da Lei Maria da Penha (violência doméstica e familiar contra a mulher). Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, 2007, v. 4, jun./jul.2008. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Rio deJaneiro: Lúmen Júris, 2008. GARCIA, Emerson. Proteção e Inserção da Mulher no Estado de Direito: a lei Maria da Penha. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister, Belo Horizonte:IBDFAM, n.8, fev./mar. 2009. MATOS, Ana Carla Harmatiuk. “Novas” entidades familiares e seus efeitos jurídicos. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.) Família e solidariedade. Trabalhos apresentado no VI Congresso Brasileiro de Direito de Família. Rio de Janeiro: IBDFAM, Lúmen Júris, 2008. SILVA, José Ronemberg Travassos da. O Instituto da retratação na Lei Maria da Penha: Breve análise dogmática da norma disciplinada no art. 16 da Lei Federal n.11.340/2006. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister, Belo Horizonte: IBDFAM, n.10, jun./jul. 2009.