Marco Antônio Barros Guimarães A FENOMENOLOGIA DO JULGAMENTO JUDICIÁRIO JUSTO EM PAUL RICŒUR Dissertação de Mestrado em Filosofia Orientador: Prof. Ulpiano Vázquez Moro Apo io CAPES BELO HORIZONTE Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia-FAJE 2014 Marco Antônio Barros Guimarães A FENOMENOLOGIA DO JULGAMENTO JUDICIÁRIO JUSTO EM PAUL RICŒUR Dissert ação apresent ad a ao Depart amen to de Filo so fia da Facu ldade Jesu ít a de Filo so fia e Teo lo g ia, co mo requ isit o parcia l à o bt enção do t ít u lo de Mest re em Filo so fia. Área de Co ncent ração : Ét ica Or ient ado r: Pro f. Ulp iano Vázqu ez Mo ro Apo io CAPES BELO HORIZONTE Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia-FAJE 2014 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia G963f Guimarães, Marco Antônio Barros A fenomenologia do julgamento judiciário justo em Paul Ricœur / Marco Antônio Barros Guimarães. - Belo Horizonte, 2014. 98 f. Orientador: Prof. Dr. Ulpiano Vázquez Moro Dissertação (mestrado) – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Departamento de Filosofia. 1. Ética. 2. Julgamento. 3. Judiciário. 4. Reconhecimento. Intersubjetividade. 6. Ricœur, Paul. I. Vázquez Moro, Ulpiano. II. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Departamento de Filosofia. III. Título CDU 17 Dissertação d e M A R C O ANTÔNIO B A R R O S GUIMARÃES d e f e n d i d a e A P R O V A D A , J^^^- ^ ^ c o m a nota p e l a B a n c a E x a m i n a d o r a constituí^ p e l o s P r o f e s s o r e s : ~~~~~~ ^^''^'^^^'^^ P r o f D r . U l p i a i i o Vázquez M o r o / F A J E ( O r i e n t a d o r ) ^-^^o— ^^^^yVxoí. D r . C a r l o s R o b e r t o D r a w i n / F A J E Prof''' Dr.^ lylaria d a P e n h a Petit V i l leia de C a r v a l h o / Pesquisadora d o C N R S (Centre N a t i o n a l d e R e c h e r c h e s S c i e n t i f i q u e s ) , P a r i s , França ( V i s i t a n t e ) D e p a r t a m e n t o d e F i l o s o f i a - Pós-Graduação ( M e s t r a d o ) F A J E - F a c u l d a d e Jesuíta d e F i l o s o f i a e T e o l o g i a B e l o Horizonte. 0 7 de abril de 2014. Dedico este t rabalh o a Ana Luisa, Marina , Fernan da, Gabri el, enf im, a todos meus f amilia res e amigo s, de cujo con vívi o me privei por p recioso e irrecup erá vel tempo, necessário para sua conclu são. Agradeciment o Agradeço p rimei ra mente a Deu s e a meus pais, que me co ncederam a ben ção desta exist ência. E também a tod os aquel es que, de a lguma manei ra, p restaram sua cont ribui ção para torna r possí vel este p rojeto, em esp ecial à FAJE, na pessoa do Prof esso r Dr. Ul piano Vázquez Moro, orientado r da pesq uisa , que generosament e me acol heu. “Natureza da gent e não ca be em n enhu ma cert eza. [...] Quem sab e di reito o q ue u ma pessoa é? Antes sen do: julgamento é semp re d ef eituoso, po rque o q ue a gen te julga é o passado.” (Gui marães Ro sa) RESUMO O ju lgament o jud ic iár io est á present e em to da o rganização so cial co nst it u íd a so b a fo r ma de Est ado , especia lment e quando se fala em Est ado de d ireit o . Mas qual a finalid ade do ju lg ament o ju d iciár io ? Quais são seu s requ is it o s o bjet ivo s? Co mo se realiza o ju lgament o jud ic iár io ? Po der ia ele ser assi m caract er izado , mesmo que não t orne co ncret a a ju st iça? I nsp irada nessas pergu nt as é que a present e pesqu isa t em co mo o bjet ivo exp lic it ar o ju lg ament o jud iciár io , qualificado co mo ju st o, a part ir de seus requ isit o s o bjet ivo s e suas finalid ades, para, a part ir de u ma pré-co mpreensão , invest igar quais são suas co nd içõ es d e po ssib ilid ad e, per mit indo assim at ing ir sua d efin ição . A pesqu isa p art e de u ma espécie d e feno meno lo g ia do at o de ju lg ar, desenvo lv ida p elo filó so fo Pau l Ricœur, e pro cura art icu lá- la co m a id ent ificação do lugar filo só fico do ju st o – t ambém empr eend id a pelo mesmo filó so fo – de fo r ma a se per mit ir o desenvo lv iment o daquela mesma espécie de feno meno lo g ia, ago ra especificamen t e do ju lgament o ju d iciár io ju st o, segu id a pela sua defin ição e p elo q ue se deno mino u a ident ificação de seu nú cleo essencia l int ang íve l. A id ent ificação desse núcleo t em a finalid ade d e desvelar o po nt o que se po de afir mar rep resent at ivo do essencia l p ara qu e o ju lg ament o jud iciár io seja ju st o , o que o to rna int ang ível po rque deve ser preser vado , po is, sem ele não se realizarão ju lg ament o s jud iciár io s, qualificado s co mo just o s. A pesqu isa t em nat ureza bib lio gr áfica e revela co mo co nclu sõ es, em gr andes linhas, que o ju lg ament o jud ic iár io just o co nst it u i u m ag ir pró pr io do ser hu man o , po rt ant o , co nfo r mado à ét ica, e enco nt ra co mo co nd içõ es d e po ssib ilidade a ado ção , pelo ju iz, d e relaçõ es int ersu bjet ivas fu nd adas na cat ego r ia filo só fica do reco nheciment o , no seu t rato co m as “p art es” e demais at o res do pro cesso , além da ident ificação do ju st o – no caso em sit u ação – co mo sendo u m po nt o int er méd io ent re o legal e o bom, que se relacio nam, respect ivament e, co m a ét ica d eo nt o ló g ica e a ét ica t eleo ló g ica. Classificado o ju lgament o jud iciár io co mo at o da razão , pro priament e hu mano , o que recla ma a sua realização po r u m ho mem qu e encar ne a inst it u ição da ju st iça (o ju iz) , o núcleo essencia l int ang íve l do ju lg ament o ju d iciár io ju st o é ident ificado co m a ind ependência desse ho memju iz, co mo at r ibut o necessár io para asseg urar que po ssa po sicio nar-se a ju st a d ist ância d as part es, do co nflit o e de si mesmo , id ent ificando ent ão o just o e relacio nando -se co m o s at o res do pro cesso , especialment e as “part es” a part ir do reco nheciment o recípro co . Palavras-Chave: Independ ência. Ét ica. Ju lgament o . Jud iciár io . Ju st o . Reco nheciment o . RÉSUMÉ Le jugement ju d icia ir e ex ist e en t o ut e o rganisat io n so ciale co nst it uée en t ant qu’Ét at , to ut spécialement lo r squ ’il est quest io n d ’u n Ét at de dro it . Quelle est , cepend ant , la finalit é d ’u n ju gement jud icia ire ? Quelles en so nt les co nd it io ns préalab les o bject ives ? Co mment advient - il ? Peut -il êt re qualifié de ‘jud ic iaire’ même sans po ur aut ant rendre la ju st ice co ncrèt e ? S ’insp irant de ces quest io ns, la présent e recherche a po ur o bject if d ’exp licit er le jug ement jud icia ire, qu alifié co mme just e, a part ir d e ses co nd it io ns préalables o bject ives et de ses finalit és, et , part ant ainsi d ’u ne préco mpréhensio n, ét ud ier quelles so nt les co nd it io ns qu i le r endent po ss ib le, afin de po uvo ir le d éfin ir. No t re recherche s’ap pu ie sur u ne cert aine phéno méno lo g ie de l’act e de ju ger d évelo ppée p ar le p hilo so phe Pau l Ricœur, qu’e lle cherche à art icu ler avec l’ ident ific at io n du lieu p hilo so p hique du ju st e – t hème ég alement ét ud ié par Ricœur – d e faço n à per met t re le d évelo ppement de la d it e p héno méno lo g ie, mais co ncernant déso r mais spécifiq uement le jug ement jud iciair e ju st e; elle po ursu it avec sa défin it io n et ce que l’o n a appelé l’ ident ificat io n de so n no yau essent iel int ang ib le. L’id ent ificat io n d e ce no yau a po ur but de dévo iler le po int que l’o n peut affir mer représent at if de l’essent iel po ur que le jugement ju d iciaire so it just e, ce qu i le rend int ang ib le p arce qu ’il do it êt re préser vé. Sans lu i, en effet , ne po urro nt exist er de juge ment s jud iciair es qualifié s d e ju st es. No t re recherche est de nat ure bib lio grap hiqu e et co nclut – à grand s t rait s – que le jugement jud ic iaire ju st e co nst it ue u n ag ir pro pre de l’êt re hu main, et do nc e n co nfo r mit é avec l’ét hiq ue, qu ’il renco nt re co mme co nd it io n po ur exist er l’ado pt io n, par le juge, de relat io ns int er su bject ives fo ndées sur la cat égo r ie philo so p hique de la reco nnaissance d ans le t rait ement des d iver ses « part ies » et aut res act eurs du pro cès, o ut re l’id ent ificat io n d u ju st e – maint enant en u ne sit uat io n do nnée – co mme ét ant un po int int er méd iaire ent re le lég al et le bon, en relat io n avec l’ét hiqu e déo nt o lo g iq ue po ur le premier, et l’ét hiqu e t éléo lo g ique po ur le seco nd. Une fo is classifié le jugement jud ic iaire co mme act e de raiso n, pro pre de l’êt re hu main, ce qu i ex ige qu ’il so it exécut é par une perso nne qu i incar ne l’inst it ut io n jud iciair e ( le ju ge), le no yau essent ie l int ang ib le du jugement ju d iciair e just e est ident ifié co mme ét ant l’ ind épend ance de cet ho mme- jug e, attr ibut nécessaire qu i gar ant it qu’i l pu isse se po sit io nner à just e d ist ance des part ies, du co nflit et de lu i- mê me, id ent ifiant ains i le ju st e et ent rant en relat io n avec les act eurs du pro cès, e n part icu lier avec les « part ies », sur la base de la reco nnaissance récipro que. Mo t s-clé : Ét hiqu e. Indépend ance. Ju gement . Jud icia ire. Just e. Reco nnaissance. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 9 1. JULGAMENTO JUDICI ÁRIO ................................................................................ 17 1.1 O ju lgament o co mo at ribut o hu mano .............................................................. 18 1.2 Ju lgament o jud iciár io em su a feno meno lo g ia ............................................... 25 1.2.1 Um Co rpo de leis escr it as ........................................................................... 26 1.2.2 O ju iz ............................................................................................................... 28 1.2.3 A sent ença ...................................................................................................... 28 1.3 Co nd içõ es de po ssib ilid ade do ju lga ment o jud iciár io ................................ 31 1.3.1 Co rpo so cial o rganizado em fo r ma d e Est ado ........................................ 32 1.3.2 O ser hu mano invest ido das fu nçõ es de ju lg ar ...................................... 33 1.3.3 O pro cesso co mo curso de u ma ação ........................................................ 34 1.3.4 A exist ência de u m co nflit o ........................................................................ 35 2. LUGAR FI LOSÓFICO DO JUSTO ........................................................................ 37 2.1 Prepo nderânc ia da visada ét ica so bre a no r ma mo ral.................................. 39 2.1.1 “Visar à ‘v ida bo a’ ...” ................................................................................ 39 2.1.2 “... co m e para o o ut ro ...” .......................................................................... 41 2.1.3 “... nas inst it u içõ es ju st as” ......................................................................... 46 2.2 A visada ét ica e sua referência na no rma mo ra l ........................................... 49 2.2.1 A perspect iva da “vid a bo a” e a o br igação ............................................. 49 2.2.2 A so lic it ude e a no r ma ................................................................................. 52 2.2.3 Do senso de just iça ao s “pr incíp io s de ju st iça” .................................... 54 2.3 O recurso da no r ma mo ral à visad a ét ica ....................................................... 56 2.3.1 Inst it u ição e co nflit o .................................................................................... 56 2.3.2 Respe it o e co nflit o ........................................................................................ 59 2.3.3 Aut o no mia e co nflit o ................................................................................... 60 3. JULGAMENTO JUDICI ÁRIO JUSTO .................................................................. 64 3.1 Ju lgament o jud iciár io just o em sua feno meno lo g ia ..................................... 65 3.1.1 O ju iz ............................................................................................................... 68 3.1.2 O pro cesso ...................................................................................................... 73 3.1.3 A sent ença ...................................................................................................... 75 3.2 Co nd içõ es de po ssib ilid ade do ju lga ment o jud iciár io just o ...................... 78 3.3 Núcleo essencia l int ang íve l do ju lgament o jud iciár io just o ...................... 86 CONCLUS ÃO .................................................................................................................. 92 REFERÊNCI A BIBLIOGRÁFI CA .............................................................................. 97 INTRODUÇÃO Remo nt a a P lat ão e Ar ist ó t eles a classificação básica da razão e m t rês espécies d ist int as: razão po iét ica, razão prát ica e r azão t eó rica 1. A mais básica – po iét ica – t em co mo o bjet ivo a pro dução e ut ilização de o bjet o s, e surg iu no s pr imó rd io s d a hist ó r ia do ho mem, vo lt ada p ara a fabr icação de seu s inst ru ment o s de caça, suas ar mas e ut ensílio s. Reu n ido s o s ho mens e m grupament o s que po ssib ilit avam a so ma de fo rças, necessár ia à pró pr ia so brevivência em u m me io nat ural ho st il, fo ram co nst it u indo u m mo ld e so cial, desenvo lvendo ent ão u ma fo r ma d iversa de razão para viabilizar a manut enção desse co nvív io , prevenin do e so lucio nando os co nflit o s nat uralment e surg ido s: nascia a razão prát ica. Só mais t arde vir ia a r azão t eórica, vo lt ada para a invest ig ação e exp licação do mu ndo . Dessa d ist inção , clássica, cabe salient ar a necessidade da ut ilização de d ifer ent es t ipo s de razão para abo rdagem d e o bjet o s d iver so s. Assim é qu e a razão po iét ica, que se esgo t a no o bjet o , se sat isfaz co m u ma abo rdag e m mais pr imár ia, enqu ant o que o agir hu mano – co mo at o co mp lexo exercit ado nu m u niver so de relaçõ es mu ndanas e int erpesso ais, e sempre vo lt ado para u m o ut ro , pressupo ndo u m r eco nheciment o recípro co desse o ut ro , em seu co nt ext o pró prio e em suas part icu lar idad es ind iv idu ais – precisa refer ir-se a u ma razão igu alment e mais co mp lexa, co mo a ho je co nhecida razão prát ica. Não po r o ut ro mo t ivo a razão prát ica, d esde ent ão e ao lo ngo do s sécu lo s que t est emu nham a evo lu ção d o pensament o o cident al, t o rno u-se o bjet o da ciência Ét ica, reco nhecida no âmb it o filo só fico co mo a ad equada para refer ir o ag ir ét ico do ser hu mano . E nesse u niverso do ag ir hu mano dest aca- se u ma fo r ma esp ecífica de int eresse à reflexão aqu i pro po st a, que é o 1 VAZ, 2004, p. 68-69 9 at o de ju lgar. Hu mano po r excelência – po st o que at ribut o da razão – co nst it u i at it ude co rr iq ueira d a exist ência hu mana, exercit ada co t id ianament e po r to do s quant o s viva m em so ciedad e. Na est rut ura so cial mais básica – a família – seu s me mbro s se jul gam r ecípro ca e co nst ant ement e; na pr imeir a amp liação do ho rizo nt e so cial do ho mem, ele é jul gado pelo s seu s pro fesso res e seu s pares na esco la, cu jo s co mpo rt ament o s t ambém julga ; po st er io r ment e no t rabalho , e simu lt aneament e pelo s seu s vizinho s, enfim, o ju lg ament o recípro co – aqu i no p lano mo ral – é per manent e e co mu m a t o do s co m qu e m se relacio ne o ho mem. Esse at o de ju lgar, na per spect iva d e Pau l Ricœur, perco rre o que ele deno mina nívei s de den sidad e crescente, na med ida em que deixa de ser simp les man ifest ação desco mpro missada d e o p inião , para at ing ir p at amares d e reco nheciment o e mesmo vincu lação recípro ca, e at inge seu níve l ma is fo rt e no ju lgament o jud ic iár io , em q ue se esp ecializa esse ag ir hu mano na bu sca pela expr essão do ju st o , co mo valo r ét ico de u ma específica inst it u ição so cial, co m a fina lidad e de se est abelecer a cert eza jur íd ica e a p acificação so cial. Oco rre que o ato de ju lgar, qualificado pela fina lidade específica d e realização da just iça inst it ucio nal, so ment e ser á ét ico quando alcançar su a finalid ad e ú lt ima, e po r se t rat ar de u m at o da razão , t em nas resp ect ivas co nd içõ es de po ssib ilid ade a chave par a sua ident ificação , bem co mo do s requ isit o s necessár io s à sua efet ivação rad ical e co nsequ ent e defin ição . Nesse co nt ext o é que se acha s it uado o o bjet ivo cent ral da present e d issert ação : part indo da premissa de que há ju lgamen to s just o s, eles necessar iament e são po ssíveis, lo go , pro põ e-se a id ent ificação de suas co nd içõ es de po ssib ilid ad e para se exp lic it ar r acio nalment e a d efin ição e fo r ma d e realização do ju lg ament o jud ic iár io qu e, po r se revelar ju st o , efet ivament e po ssa expressar u m ag ir hu mano de nat ureza ét ica. E xp lic it ad a racio nalment e a fo r ma d e realização do ju lg ament o jud iciár io justo , po der-se-á, co mo co nsequência desse o bjet ivo cent ral, delimit ar o que aqu i se deno mina, nu ma pr ime ira apro ximação , o núcleo essen cial intangí vel do ato de ju lg ar. Para que se ja alcançado esse objetivo central, no ent ant o , to rna-se ind isp ensável alcançar, co mo pressupo st o s, o s objetivos secund ário s: i ) est abelecer a feno meno lo g ia do ju lg amento jud iciár io , segu ndo Pau l Ricœur ; 10 ii) expo r as co nd içõ es de po ssib ilid ad e do ju lgament o jud iciár io ; e iii) exp licit ar o lug ar filo só fico do ju st o , no pensa ment o de Pau l Ricœur. Cu ida- se de pro blemát ica cu ja at ualidade far-se- á present e enquant o ho uver sist emas jud ic iár io s efet ivando ju lg ament o s, co mo at o s hu mano s resu lt ant es do u so da r azão , já que, essencia l ao fu ncio nament o do est ado demo crát ico de d ireit o , o aparelho ju d iciár io ser á sempre alvo d e at ençõ es: seja po rque seu adequado fu ncio nament o pro vo cará reaçõ es do s donos do po der, qu e limit ado s po r u ma ju st iça efet iva mo bilizar- se-ão para frust rar a at uação dela; o u ainda po rque, falt ando a just iça co m seu p ape l inst it u cio nal – essencial – t al o missão fará bro t ar reiv ind icaçõ es t endent es à sua ad equada at uação . O t ema g anha relevo em no ssa q u adra hist ó r ica, d iant e, exemp lificat ivament e, d as so luçõ es at ualment e pro po st as para a no tó ria cr ít ica qu e se abat e so br e o sist ema ju d iciár io naqu ilo qu e mais t em afet ado sua cred ib ilid ade: a mo ro sidad e da t ramit ação pro cessual, levando à pro crast inação da so lu ção do s lit íg io s e co nt r ibu indo para a fru st ração da pacificação so cial. É que no afã d e d ar pro nt a respo st a às co branças – ju st ificadas – da so ciedad e, so lu çõ es são pro po st as, nem sempr e refer idas na razão prát ica, pró pr ia do ag ir hu mano , mas, mu it as vezes, refer id as na razão po iét ica, ensejando o risco de co mpro met iment o do ato de ju lgar, em sua essênc ia, que se t raduz na mat er ialização da ju st iça. Exemp lifica- se t al r isco na so lu ção fr equ ent ement e ent abu lad a no sent ido de buscar a so lu ção para o pro ble ma do acú mu lo d e causas, no s escaninho s do jud ic iár io , po r meio do increment o da pro dut ivid ade, t endo co mo no rt e o s mero s reflexo s est at íst ico s da in ic iat iva, que exibe sua face vis ível na pu blic idad e do s nú mero s de elevad a grand eza q ue expr essam a quant idade d e co nflit o s aparent ement e so lucio nado s em t ais in iciat ivas, t endent es à r edução do acer vo pro cessual. Tais so lu çõ es, caract er íst icas d e u ma épo ca d eno minada po r Bau man (2 0 09, p.114) de líq uido-mod ern a, na qual se t o rnaram flu idas as relaçõ es do ho mem, em u ma per spect iva que t udo encara co mo mero o bjet o (e descart ável) – inclu sive as pesso as, o s sent iment o s e as r elaçõ es – recla mam u ma invest ig ação cét ica q ue id ent ifiqu e 11 racio nalment e o s limit es d e su a ad equação , t arefa pró pr ia da filo so fia, em su a vert ent e ét ica. Isso po rque a razão po iét ica po de se valer exclu sivament e d e nú mero s e est at íst icas p ara increment ar a pro dução de prego s o u parafuso s, o u de qualq uer o ut ro pro duto da indúst r ia. Mas se a mesma r azão é t razida para o âmb it o da so lu ção de u m pro blema que é afet o ao agir hu mano , co mo o ju lg ament o jud iciár io , t o rna-se t ênue a linha int erpo st a ent re a ut ilização da ciência est at íst ica, co mo impo rt ant e inst rument o o rient ado r da ado ção de prát icas de gerenciament o , e o reducio n ismo d e t rat ar o ju lgament o co mo u m at o repet it ivo , mecânico mesmo , em qu e a pro dução de sent enças – par a sat isfação do s nú mero s est at íst ico s – ap esar de revest id as das fo r malid ades do at o, serão , no ent ant o , vazias em sua essência mat er ial; mero pro duto de descart e (do s co nflit o s) de u ma épo ca líqu ido-moderna. Po r o utro lado , u m fenô meno pró prio t ambém da era co nt empo rânea, dent re inú mero s o ut ro s, é a relevância que se t em empr est ado à fo r mação educacio na l co mo fo r ma de aper feiço ar a prát ica pro fissio nal e inst it ucio nal, o que levo u o Brasil a inst it u ir, no ano de 200 4, a Esco la Nacio nal d e Fo r mação e Aper feiço ament o de Mag ist rado s-Enfam, co m o o bjet ivo inst it u cio nal d e regu la ment ar o s curso s o ficia is para o ingr esso e pro mo ção na carreira 2. Aqu i se revela a impo rt ant e relação do t ema pro po sto co m a pro blemát ica filo só fica e cu lt ur al d a at ualid ade, fr ut o da t ensão ver ificad a ent re a necessid ade p er manent e de aper feiço ament o e adapt ação inst it ucio na l ao s no vo s t empo s e às no vas demandas so ciais, de u m lado , e, de o ut ro, a necess idad e de se preser var a realização mat er ial d a just iça, t udo isso à luz d a ét ica co nt empo rânea, que t em no recon hecimento a mar ca do respeit o ao o utro co mo su jeit o , e não o bjet o . A defin ição e exp licit ação racio nal da fo r ma de se pro ced er ao ju lg ament o jud ic iár io just o abr ir ão ao mag ist rado , a part ir d a reflexão so br e seu pró pr io co nt eúdo , a perspect iva de u m po nt o racio nal de part ida qu e co nt r ibua par a a co nfiguração ét ica, não apenas de sua co t id iana relação hu mana co m o s dema is at o res do pro cesso jud ic ial, co mo as part es, o s 2 Constitu ição da Repú blica, art. 105, par ágr af o único, incis o I, da com a r edaçã o da E menda C onst ituciona l nº 45, de 08.12.20 04. 12 ad vo gado s, membro s do min ist ér io p ú blico e aut o ridad es po licia is, lançando lu zes na nat ureza int ersu bjet iva de t ais relaçõ es, mas t ambém, e fu nd ament alment e, no aper feiço ament o de sua at iv idad e ju d icant e, na busca não apenas po r fazer aqu ilo a que se pro põ e, mas po r fazê- lo bem. Po r isso ganha relevo u m aspect o do o bjet ivo dest a pesqu isa, relat ivament e à ident ificação daquele deno minado núcleo essencia l intangível, po is, u ma vez abst raído , revelará t o do o univer so cir cu nd ant e co mo o bjet o passível das mudanças t end ent es ao ap er feiço ament o inst it u cio nal, em cu jo â mb it o , delimit ad o pela abst ração daqu ele essencia l imut ável, po derão ser livr ement e debat id as quaisquer pro po st as de mud ança, co njurando -se assim o r isco de co mpro met iment o da essência mat er ial d a ju st iça, pela preser vação de seu núcleo essencia l. Po r o utro lado , as co nclu sõ es ext raíd as co nst it u irão mat er ial que po derá ser de grande ut ilidad e no debat e relat ivo ao co nt eúdo curr icu lar da fo r mação e aper feiço ament o do s mag ist rado s. Ident ificado o ato de ju lgar co mo uma pr át ica eminent ement e hu mana, inev it avelment e encerrada no campo da int ersu b jet ivid ade, su a relevância filo só fica se revela, de saída, po r enco nt rar-se co nseq uent ement e inser ido no u niver so da Ét ica, co nsid erad a co mo a ciência do ag ir hu mano e que o st ent a, co mo co nt eúdo , uma das p ergu nt as fu ndament ais da filo so fia: como d eve o ho mem agir? Cabe aqu i a refo rmu lação da pergu nt a: co mo d eve o homem-jui z julga r? Dado que o s ju lg ament o s ju st o s são co nt ingent es, impõ ese a pergu nt a so bre co mo deve ser a ação hu mana para ju lg ar de fo r ma ju st a, o que acarret a a necessid ade de id ent ificação das co nd içõ es de po ssib ilid ad e do s ju lgament o s just o s, na busca pela respo st a à pergunt a filo só fica de co mo deve o homem-jui z julga r, para fazê- lo bem. Pau l Ricœur fo i o filó so fo co nt emp o râneo que se debru ço u especifica ment e so bre o t ema – não sem ant es pen it enciar-se po r fazê- lo t ardiament e – a part ir da ênfase no co nceit o de ju st iça co mo element o necessár io do bem a ser per segu ido p elo ho mem. D ialo g ando ent ão co m o s parad ig mas ar ist ot élico e k ant iano da ét ica, pro põ e u ma ide ia d e ju sto est abelecido ent re o legal e o bom, co nclu indo ser o ju lgament o não apenas u m at o de t eo r ló g ico , mas t ambém mo ral, que t em co mo pressupo st o 13 necessár io u m aut ênt ico pro ced iment o her menêut ico , co mo alt er nat iva ao fo r malis mo puro e simp les. O que se bu sca nessa pesqu isa é a t emat ização do ato de ju lg ar enquant o fenô meno hu mano reflexivo , qualificado , no caso , por se t rat ar de u m ju lgament o inst it ucio nal qu e impõ e deliber adament e o d iálo go co mo alt er nat iva à vio lênc ia, co m vist as à pacificação so cial. To rna-se o po rt una a t ranscr ição de excert o da just ificat iva de Pau l Ricœur no seu vo lt ar o s o lho s para o t ema em quest ão : Foi entã o com a int ençã o de r es istir à t endência incent iva da p elo esp ír it o do t emp o qu e me pr opus, des de algu ns anos, agir dir eit o com o dir eit o, fazer just iça à just iça. (...) Na Écol e nationa le de la ma gistr atur e eu encontr ava, r ealment e, o jurídico na f eição pr ecisa do ju diciár io, com suas leis escr itas, s eus tr ibu na is, s eus ju ízes, s eu cer imonia l do pr ocess o e, cor oa ndo tu do, o pr onu ncia ment o da s ent ença na qua l o direit o é dito nas cir cu nstâncias de u ma caus a, de u m cas o, emin ent ement e s ingular . Ass im, fu i leva do a acr editar qu e o jur ídico, apr eendido s ob os tr aços do ju diciár io, of er ecia a o filós of o a op or tunida de de r ef letir sobr e a esp ecif icida de d o dir eit o, em s eu lu gar pr ópr io, a meio ca minho entr e a mor a l ( ou a ética: já qu e os matizes qu e s epar am as duas expr ess ões nã o imp or ta m nest e está gio pr eliminar de nossa r eflexã o) e a polít ica. Para impr imir u m t om dr a mático à op os ição qu e faç o aqu i entr e u ma f ilos of ia p olít ica, na qual a qu estão do dir eit o é ocu ltada p ela obs essão da pr es ença incoer cível do ma l na hist ór ia, e u ma f ilos of ia em qu e o dir eit o s er ia r econhecido em sua esp ecif icida de nã o violenta, pr oponho dizer qu e a guerra é o t ema lancina nt e da f ilos ofia p olít ica, e a paz o da filos of ia do dir eit o. Ist o p or qu e, a inda qu e o conf lito – p or tant o, d e cer to modo a violência – continu e da ndo oca sião à int er vençã o ju diciár ia, esta s e pr esta a ser def inida p elo conju nt o dos disp os it ivos p or meio dos quais o conf lit o é eleva do ao nível de pr ocess o, esta ndo est e, p or sua vez, centr ado nu m debat e d e palavr as, cuja incer t eza inicial é f ina lment e decidida p or u ma palavr a qu e expr essa o dir eit o. Ex ist e, p ois, u m lugar da socieda de – p or mais violenta qu e esta cont inu e, p or or igem e costu me – onde a pa lavr a s obr epu ja a violência. (RICŒ UR, 2008a, p.34) Nesse co nt ext o é que se pro põ e o segu int e pro blema: co mo se po d e defin ir e realizar u m ju lg ament o jud iciár io q ue t o rne efet iva a ju st iça, co mo virt ude das inst it u içõ es, segu ndo a ét ica em Pau l Ricœur ? E a respo st a ao pro blema levant ado , buscada na ident ific ação das co nd içõ es de po ssib ilid ad e 14 do ju lg ament o jud ic iár io ju st o, se dará med iant e a segu int e tese: sendo a sent ença u m at o de ju lgament o hu mano , que t em co mo fim a pacificação so cial, será ela ét ica enquant o cu lminância de u m pro cesso jud ic ial efet ivado co mo d ialó g ico e que encerre o just o , co mo expressão do legal e do bom. A d issert ação co nst it u i resu lt ado de pesqu isa bib lio gráfica co mo mét o do de sua elabo ração , co m a leit ura analít ica d e o br as do filó so fo Pau l Ricœur, fu ndament alment e “O Si-Mesmo Como um Ou tro”, cu jo s est udo s sét imo , o it avo e no no apresent am a “peq uena ét ica” po r ele co nsid erada su a co nt r ibu ição para a filo so fia mo r al e “ O Justo 1” e “ O Ju sto 2” em qu e desenvo lve suas reflexõ es acerca do ju lgament o jud ic iár io , po r o casião de est udo s e palest ras levado s a efeit o na Esco la de Mag ist rat ura francesa. O t ema se desenvo lve em t rês cap ít u lo s, sendo o prime iro dest inado a apresent ar o ju lgament o co mo at r ibut o hu mano , demo nst rando seu s níve is crescent es d e densid ade, desde sua fo r ma mais s imp les, so lit ár ia e mo ral, at é at ing ir a co mp lexid ade do ju lgament o ju d iciár io , passando ant es p elo po lít ico e o so cial. Desenvo lvid a o que se po de deno minar u ma feno meno lo g ia do ju lg ament o jud iciár io , a part ir d e seus r equ isit o s e su a finalid ade imed iat a, id ent ificam- se suas co nd içõ es de po ss ib ilid ade, alcançando assim a d efin ição do ju lg ament o jud ic iár io . O segu ndo cap ít u lo bu sca ident ificar o lug ar filo só fico do ju st o na perspect iva do s do is eixo s arqu it et ô nico s da “pequena ét ica” de Pau l Ricœur, id ent ificado ra do legal e do bom co mo a sínt ese do s parad ig mas deo nt o ló g ico e t eleo ló g ico , sit uando -o na int erseção daqueles eixo s co mo resu lt ado de u m pro cesso d ialó gico ent re a visad a ét ica e a no r ma mo ral qu e, amalgamadas pela sabedo r ia prát ica, aliment am a co nsciência mo ral, e mprest ando ao ju st o a co nd ição de qualificado r máx imo da decisão singu lar t o mada d iant e d e u m co nflit o enquant o pred icado do ju lg ament o mo ral em sit uação , o que ensejar á a t ranspo sição de t al pred icado para aquela esfera da mo ralid ade alçada à nat ureza jur íd ica, po r meio da lei – jur íd ica, co ercit iva – emprest ando a qualificação de ju st o ao ju lg ament o jud ic iár io , co mo ato ét ico de ju lgament o po r excelência. O t erceiro cap ít u lo expõ e a feno meno lo g ia do ju lg ament o jud ic iár io ju st o , co mo resu lt ado da art icu lação da defin ição do ju lga ment o jud ic iár io 15 co m a ident ificação do lugar filo só fico d o just o , expo ndo su as co nd içõ es d e po ssib ilidade e est abelecendo sua defin iç ão , bem co mo a delimit ação do que se po de d eno minar nú cleo essencial i ntan gível d o julga mento judiciári o ju sto. Opo rt uno esclar ecer que a feno meno lo gia apresent ada na p esqu isa se id ent ifica co m aquela d esenvo lvid a e assim deno minad a pelo pró pr io filó so fo in “O at o de ju lgar” ( RICŒUR, 200 8a, p.175) e à qual se acresceu aqu i – d iant e do desafio de se pro po r uma definição para o ju lg ament o jud iciár io ju st o – a busca p elas suas co nd içõ es de po ssib ilidade. Diant e desse enfo qu e específico , pro curo u-se o r ient ar a pesqu isa so b u ma per spect iva da nat ureza hu mana e co mp lexa do ju lgament o ju d iciár io , no t adament e na su a co nfo r mação int ersu bjet iva, de enco nt ro de seres hu mano s. Apr esent ado s que fo ram o pro blema e a t ese pro po sto s, o s o bjet ivo s da pesqu isa e o percurso t r ilhado para su a co nsecução , cabe esclarecer o qu e não co nst it u i seu o bjet o : em pr imeiro lugar, não co nst it u i o bjet ivo d a pesqu isa o apro fu ndament o da her menêu t ica jur íd ica enqu ant o fo r ma de se bu scar precisão , t anto quant o po ssível, na t arefa de id ent ificar o lug ar filo só fico do just o , ent re o legal e o bom. Mas t al o pção não deco rre de u m desprezo do filó so fo pelo t ema. Ao cont rár io , é co m d est emo r que ele o enfrent a in “Interp reta ção e/ou argument ação” ( RICŒUR, 2008a, p.153-173) revelando u ma vez mais seu ad mirável pendo r à co nciliação de ideias, pró pr ia do s que o st ent am a no t ável capacidade e argú cia de se po sicio nar – so branceiro s – às ideias do s qu e lhes ant ecederam o u co m o s quais d ia lo gam, em seu t empo , co m o o lhar vo lt ado não para as ant ino mias, que separam, mas para o s po nt o s de id ent idad e, que pro p icia m a u nião . No campo da her menêut ica jur íd ica, sua pro po st a é da co nciliação ent re o s pensa ment o s de Dwo rkin, de u m lado , e Alexy e At ienza, de o ut ro , o que recla ma incursão necessár ia no campo da filo so fia do d ir eit o , nu m apro fu ndament o que d esbo rda do s limit es preliminares d a pesqu isa, que se pro põ e à id ent ificação das co nd içõ es de po ssibilid ad e do ju lg ament o jud ic iár io ju st o e sua co nsequ ent e defin ição . 16 1. JULGAMENTO JUDICIÁRIO O percurso t endent e ao desenvo lv imento da feno meno lo g ia do ju lg ament o ju d iciár io ju st o inicia-se co m a feno meno lo g ia do ju lg ament o jud ic iár io , aind a não qualificado co mo justo, razão pela qual se o bjet iva, no desenvo lv iment o do present e cap ít u lo , demo nst rar apenas a feno meno lo g ia do ju lg ament o jud iciár io , o qual, acr escido da ident ificação do lug ar filo só fico do ju st o , no cap ít u lo segu int e, abr irá caminho p ara o o bjet ivo final que é a feno meno lo g ia do ju lg ament o ju d iciár io just o , co mp let ad a no cap ít u lo t erceiro . Para alcançar o ju lg ament o jud ic iár io em sua feno meno lo g ia, no ent ant o , faz- se necessár io sit uar o ju lg ament o no co nt ext o da vid a hu mana, o que se faz no present e cap ít u lo a part ir d a demo nst ração do at o de ju lg ar, e m sua acepção gera l, nu m cr escendo de nív eis d e d ensid ade que vai desde su a caract er ização co mo ato pro priament e hu mano , passando pelo ju lgament o da pró pria vida, efet ivado pelo ho mem cap az, na avaliação de su a narrat iva, alcançando o s ju lg ament o s mo rais em suas relaçõ es int ersu bjet ivas, so ciais e po lít icas, at é at ing ir a cu lminância d a co mp lex id ade do ato de ju lgar, qu e co nsist e no ju lgament o jud iciár io e se r evela ind ispensável à int erd ição d a vio lência deco rrent e do co nv ív io em so ciedad e, quando po st a em r isco a o rdem necessár ia à est ab ilidad e de t al co nvivência e da pró pr ia so cied ade. Da vio lência gerado ra do co nflit o e da necessid ade de sua so lu ção , quando at ing ido s bens e valo res d e grandeza t al que fo r am alçado s à esfera do jur íd ico , passa- se à feno meno lo g ia do ju lg ament o jud iciár io , po r meio d a id ent ificação de su as co nd içõ es o bjet ivas, assim co nsid eradas u m co rpo de leis escr it as, o s ju ízes, t ribu nais e co rt es de ju st iça, alé m do curso de u m pro cesso . Co nt r ibu i d e fo r ma essencial a id ent ificação da finalid ade imed iat a do ju lga ment o jud iciár io , que é po r fim a u ma sit uação de incert eza po r meio da palavra qu e pro fere o d ireit o . 17 Ao final, pro cura-se det er minar as co nd içõ es de po ssib ilid ade do ju lg ament o jud ic iár io , assim co nsideradas aquelas sem as q uais po der-se- ia falar em ju lg ament o , mas aind a não qualificado co mo jud iciár io . O o bjet ivo da ident ificação dest as co nd içõ es de po ssib ilidad e é alicerçar o desenvo lv iment o fina l, no ú lt imo cap ít u lo , do o bjet ivo pr incip al, qu e se co nst it u i na defin ição do que seja ju lg ament o jud iciár io ju st o , a part ir da id ent ificação de suas co nd içõ es d e po ssib ilid ade, o que será po ssib ilit ado apó s ident ificação do lu gar filo só fico do just o . É co m o s o lho s po st o s nest a evo lução que o percur so t em in ício co m a exp lic it ação básica do ju lg ament o , enquant o ato pro priament e hu mano . 1.1 O julgamento como atributo humano Pau l Ricœur ident ifica, no sent ido co ns iderado usual da expressão julgar, u ma d iver sidad e de sig nificaçõ es pr incipais q ue classifica co mo u ma ordem de den sidad e crescente. Nu m pr imeiro níve l, d it o assim mais fraco , julgar é apenas emit ir o p inião acerca d e algo , opinar. Nu m segu ndo nível, a o pin ião emit ida g anha u m qualificat ivo de apreciação e evo lu i p ara u m avalia r. E nu m t erceiro nível, mais fo r t e, a avaliação , por sua vez, ve m impreg nad a p ela adesão que revela d ist inção nít ida ent re do is aspect o s do ju lg ament o : u m o bjet ivo (em q ue a lguém co nsidera u ma pro po sição veraz, co rret a e verdadeir a) e o ut ro subjet ivo (em qu e adere a ela). (RICŒUR, 2008a, p.175). Mas o ju lg ament o , em seu níve l mais fo rt e, é alcançado não apenas pela expressão desses do is aspect o s (objet ivo e su bjet ivo ), e sim na sua efet iva co njugação (ent end iment o e vo nt ade), que resu lt a na tomad a de uma posição. Esse, em nível mais pro fu ndo , o sent ido usual de julg ar que po de ser to mado co mo po nt o de part ida p ara co mp reensão do ju lg ament o , inclusive no seu sent ido jud iciár io . Mas co nvém que se per maneça, po r o ra, no ju lgament o ainda não qualificado co mo judiciário. Para t rat ar do ato de ju lg ar prat icado pelo ser hu mano – po rt ant o passível de analise no âmb it o da ét ica, enqu ant o ciência do ag ir do ho mem – 18 impõ e-se o ret o rno ao âmbit o da ant ro po lo gia filo só fica, que bu sca a respo st a acerca de q uem seja o ho mem. P au l Ricœur d esenvo lve o que se po de deno minar u ma ant ropolo gia f ilosóf ica no percurso que vai do pr imeiro ao sext o cap ít u lo de “O Si-mesmo co mo u m outro”, paviment ando o camin ho para chegar ao que deno mino u su a peq u ena éti ca, que será, aqu i, o b jet o de reflexão quando da bu sca p ela ident ificação do lu gar filo só fico do just o . A id ent ificação do que seja o est rut ural do ser hu mano , em “O Simesmo como um o utro”, r epo usa basicament e nas ca pacida des qu e t em o ho mem de f alar, de agir e de se na rra r, o que lhe p er mit e t raduzir est e ser co mo o homem capa z. Nessa t r íade de capacidades, mais esp ecificament e na de se na rrar, enco nt ra-se imp líc it a a ideia do ju lgament o avaliat ivo e apreciat ivo q uant o a u ma v ida, qu e é a su a pró pr ia. Há po r o ut ro lado a id eia de adesão quando , no deco rrer de su a exist ênc ia, se eng aja em no vo s pro pó sit o s cu jo ag ir co nst it u irá a co nst rução de sua narrat iva fut ura. Trat a-se de u ma facu ld ade que se po de afir mar pro pr iament e hu mana à luz d a análise co mp arat iva em r elação ao s anima is, qu e se mo st ram encerrado s nu m amb ient e fechado , já que ligado s ao s seu s inst int o s e ao seu pró prio amb ient e. Os animais r eage m a est ímu lo s segu ndo sua percepção de ameaça a seu a mb ient e e ao s seu s inst int o s, cu ja sat isfação lhes bast a. Para que vivam em t ais amb ient es e sat isfaçam o s resp ect ivo s inst int o s, já nasce m co m as caract er íst icas bio ló g icas necessár ias, de t al fo r ma qu e u m anima l aquát ico já apresent a, desde a t enra id ade, o inst ru ment al co rpó reo necessár io à vid a naquele amb ient e, o mesmo o co rrendo co m o s p ássaro s, qu e já nascem co m as asas que lhes per mit em, ao crescer , buscar o s céus. Difer ent ement e, o ho me m, do po nt o de vist a bio ló g ico , nasce se m qualquer “especialização ”, mas lo gra so brev iver o u t ransit ar p elo s d iver so s amb ient es po rque é capa z d e cr iar med iaçõ es que supre m a ausência daqu ele inst ru ment al bio ló g ico pró prio de u m amb ient e específico , co nqu ist ando espaço s e se adapt ando em amb ient es que, a priori, mo st rar-se- ia m inó sp it o s e inapro pr iado s à su a espécie. Mercê d a abertura radi cal co mo fenô meno revelado r de seu ser est rut ural, é o ho mem, po r meio do at ribut o da razão , capaz de d ist ingu ir- se e saber-se u m ser ent re o ut ro s seres. E ma is, de ser u m ser human o ent re o utro s seres humanos, co m o s quais su a co nv ivência (ser19 co m-o s-o ut ro s) é co nst it ut iva de si pró prio . É ele, igu alment e, capaz de ser sempre ma is do que é, no percurso incessant e cu mpr ido na busca de u m sent ido visado no ho r izo nt e u niversal q ue lhe pro po rcio na aquela ab ert ura radical. E o exercício d essas cap acidad es se d á no âmb it o da ra zão, nu m pro cesso de p er manent e e missão de ju ízo s relat ivo s a t o do s o s níve is d e densid ade, desd e o mais element ar at é at ing ir o po nto em que se tomam posições em su cessivas esco lhas de po ssibilid ades co m as quais se defro nt a, ao lo ngo de sua camin hada p ela vida. É ilu st rat iva d a o rig em dessas capacid ades, e d e sua at r ibu ição pro priament e hu mana, a análise d e Bat t ist a Mo nd in qu ando t rat a do co nheciment o int elect ivo , o rig inado da mente, ra zã o o u intelecto, po r ele refer ido s em sino nímia: A ex ist ência na ment e hu ma na dessa outr a for ma de conhecer é docu menta da por mu it os fatos. Ant es de tu do p ela p oss e d e ideias u niver sa is. O homem, p or ex emp lo, não conhece ap ena s esta ou aqu ela maçã, est e ou aqu ele livr o, est e ou aqu el e pinheir o, mas a maçã enqua nt o tal; o livr o enqua nt o tal; o pinheir o enqua nt o tal. Além diss o, o homem poss ui a ideia da bonda de, da vir tude, do esp or t e, do tr abalho, da s ocieda de, et c. T odas são ideias qu e nã o s e r ef er em a nada de mat er ial ou de concr et o, mas s im a algo u niver sal e abs tr ato. O conhecer int elect ivo é docu menta do, ta mb ém, p ela ca pacida de de ju lgar e de r aciocinar . O homem f or mula ju ízos, pr op os ições univer sais, leis ger ais, como “ os cor pos p esados ca em”, “ o f ogo qu eima ”, “o vidr o, ta mb ém s e é tr anspar ent e, é imp enetr ável” etc. O homem r aciocina: chega a cer tas ideia s r ef let indo s obr e outr as, chega à ex ist ência de algo p ela exist ência de outr a coisa. Como ú ltimo docu ment o do conhecer int elect ivo r ecor da mos a ciência. O homem sabe coor denar os conheciment os de f or ma s ist emát ica; divide- os, class if ica- os s egu ndo os s eus ar gu ment os e obt ém, ass im, t eor ias ger ais par a as vár ias esf er as da r ealida de, como o qu er a ciência. (MOND IM, 2008, p.76) Vist o o ato de ju lgar co mo especificament e hu mano , percebe-se q ue, segu ndo o s níveis de densid ade, ele se dá desd e o co nt ext o da int erpret ação da pró pria vid a e das esco lhas que vão co nst ru indo a narrat iva dest a mesma vid a. Tal se dá nu ma espécie de círcu lo her menêut ico da int erpret ação de si e 20 de suas pró pr ias açõ es, no pap el qu e desemp enha o ho mem co mo self interp reti ng animal 1: A emoçã o hu ma na é emoçã o int er pr etada, nu ma int er pr etaçã o qu e busca sua f or ma adequada. É o qu e está envolvido na visã o do homem como a nima l autoint er pr etativo. Iss o signif ica qu e ele nã o pode s er ent endido s imp les ment e como u m ob jet o entr e outr os ob jet os, p ois sua vida constitu i u ma int er pr etaçã o, u ma expr essã o do qu e nã o p ode ex ist ir s em s er expr essa do, por qu e o s er qu e está para ser int er pr eta do é ess encia lment e aqu ele qu e s e aut oint er pr eta. Na conclusã o qu er o listar em f or ma de su már io aqu elas qu e cons ider o minhas cinc o r eivindicações. São elas : 1. Qu e algu mas de nossas emoções envolvem i mport-as criptions; 2. Qu e a lgu ns dess es import s são r ef er ências sub jetivas; 3. Qu e nossas impr ess ões acer ca das r ef er ências sub jet ivas const itu em a base do nossa compr eensã o do qu e é ser hu ma no; 4 ) qu e essas impr ess ões são const itu ídas p elas ar ticu lações qu e dela s aceita mos; e 5 . Qu e essas ar ticulações, as quais p odem s er p ensadas co mo int er pr etações, r equ er em lingua gem. E m conju nt o, essas cinc o r eivindicações, ca da u ma f u ndada nas s uas ant ecedent es, of er ecem u ma ima gem do homem como s er autoint er pr etat ivo. Essa é u ma ima gem na qual a int er pr etaçã o nã o ex er ce pap el s ecu ndár io ou op ciona l, mas ess encial p ara a ex ist ência hu ma na. (T AYLOR, 1985, p.75-76 – tr adução nossa) Esse pro cesso de aut o int erpret ação – e co nsequent ement e d e aut o ju lg ament o – acarret a avaliaçõ es acerca do curso da “v ida bo a” qu e po dem inclu sive ensejar t o mad as de po sição que acarret em mudanças d e ru mo , revisão de ideais e readequ ação d as maneiras de at uação que levem à 1 Hu man emotion is int er pr et ed emot ion, which is never t heless s eeking its adequat e f or m. T his is what is involved in s eeing ma n as a self- int er pr et ing a nima l. It mea ns that the ca nnot b e u nder st ood s imp ly as an ob ject a mong ob jects, f or his lif e incor p or ates a n int er pr etation, an expr ess ion of what cannot ex ist u nexpr ess ed, b ecaus e t he s elf t hat is t o b e int er pr et ed is ess ent ia lly t hat of a b eing who s elf int er pr ets. I want at the clos e t o list in su mmar y f or m my f ive claims. T hey ar e: 1. that som e of f our emot ions involve imp or t-ascr iptions; 2. that some of thes e imp or ts ar e subject-r ef er r img; 3. t hat our sub ject-r ef er r img f eelings ar e t he bas ic of our under sa nding of what it is t o b e hu ma n; 4. that thes e f eelings ar e const itut ed b y t h e ar ticulat ions we come t o accept of t hem; a nd 5. t hat thes e ar ticu lations, which w e can t hink of as int er pr etat ions, r equ ir e la ngu age. T oget her t hes e f ive claims, each of which bu ilds on its pr edecess or s, off er a p ictur e of ma n as a sef - int er pr eting b eing. T his is a Pictur e in which int er pr etation pla ys no s econdar y, opt iona l r ole, but is ess encial t o hu ma n ex ist ence. (T AYLOR, 1985, p.75-76) 21 co ncret ização daquela fo r ma de v ida bu scad a, nu m mo ment o que se po de d izer da estima de si. Mas dá- se t ambém, e fu ndament alment e, na co nst rução dest a “vid a bo a” qu e so ment e se efet iva co m e pa ra os out ros, no enco nt ro – co m o espaço e a ind iv id ualid ade d esse out ro que per manent ement e int ercept a a t rajet ó ria do curso da vida em co nst rução – fu ndado na virt ude da amizad e que o rig ina u ma relação int ersu b jet iva paut ada pela soli citude. Esse âmb it o int ersu bjet ivo das relaçõ es, em qu e o ag ir do si int er fere na esfer a do outro, abre esp aço pot encial p ara o fenô meno da violência, co mo resu lt ado do po der que u ma vo nt ade exerce sob re o ut ra vo nt ade. A v io lência se man ifest a desd e a mera in flu ência – “f orma d oce d o poder sob re” (RICŒUR, 1991, p.257) – at é a t ort ura, no ext remo do abuso . No campo da vio lência fís ica co mo resu lt ado do uso abu sivo da fo rça, o ma l se apresent a desde u ma simp les ameaça, “passando por todo s o s graus d e const rang iment o, até a mo rte” (id, p. 25 8), nu ma equ ivalência à d iminu ição o u dest ruição do poder f azer d e o ut rem. Mas a t o rt ura, no ext remo da vio lência, apresent a-se co mo fo r ma q ualificada do mal: ali, o que o carrasco pro cura at ing ir – às vezes dest ru indo p o r co mp let o – é a estima d e si d a vít ima, po r meio da hu milhação – “caricatura horrível da humildade” (id., ibid) – que leva, p ara alé m d a dest ruição do poder f azer d a vít ima, à dest ru ição do pró prio respeito de si. Mas não se limit a a esse o campo de apar ição po t encia l d a vio lência, nas r elaçõ es int ersu bjet ivas. Po de ela d issimu lar- se t ambém na ling uage m co mo at o de d iscurso , e co nsequent ement e co mo ação hu mana. É nas fo r mas da falsa pro messa e da ast úcia que a vio lência, a u m só t empo , vu lnera a co nfiança do o ut ro , depo sit ár io da pro messa, e a pró pr ia cred ib ilid ade da ling uag em, enqu ant o fo rma de ent end iment o co mu nicacio nal. E nesse percurso que se po de d izer sin ist r o – mas não exaust ivo – das fig uras do mal, há de se mencio nar aind a a p er sist ência obst inada das f or mas de violência s exua l, des de a opr essã o das mu lher es at é o estupr o, passando p elo calvár i o das mu lher es qu e apanha m e das cr ianças ma ltr atadas [...] 22 N essa int imida de do cor p o-a- cor p o, ins inu am-s e as f or mas diss imu ladas da t or tur a.” (RICŒUR, 1991, p.258). Naquele crescendo das d iver sas o rdens d o ato de ju lg ar at inge-se a co nst rução das in stituiçõ es ju sta s 2 enqu ant o espaço de co nst rução da “v ida bo a” com e pa ra o s outro s e que co mp let a a visad a ét ica de Pau l Ricœur, no po nt o em que o ag ir em relação co m o s terceiros, d ist ant es, t raz para o lugar que a ami zade o cupa, em r elação ao o ut ro , a virt ude da justiça. Just iça qu e não se refere aind a necessar iament e ao jur íd ico , mas q ue se sit ua no campo do ju lg ament o mo ral. Aqu i a vio lência emerge co mo cau sa do surg iment o de co nflit o s, mas não se afigura co mo cau sa única. É que nesse aspect o do viver co m-o s- o ut ro s deco rre o co nflit o t ambém da d ist r ibu ição do s benefício s e do s encargo s nu ma d et er minad a co mu nidade hist ó r ica, quando ent ra em cena a id eia d e d ist r ibu ição just a, o u ju st iça d ist r ibut iva. Bast a d izer, no mo ment o , que a het ero geneid ade do s o bjet o s da d ist r ibu ição leva a um co nflit o ent re universalismo e co nt ext ualis mo , cu ja ar bit rag em deságu a nu ma no ção já ago ra de âmb it o so cial (id, p.296). Nesse âmb it o so cial do co nflit o est á em cau sa a d isput a ent re as esferas de ju st iça 3 e a usurpação de u ma pela o ut ra. 2 I mp or ta lembr ar qu e inst ituições aqu i ass u mem o s ignif ica do de estruturas d o viver junto d uradouro e co eso em u ma comunidad e histórica caract erizada fundamentalm ente pelos costumes e tradi ções (RICŒUR, 1991, p.227). 3 Com ap oio em M icha el Walzer (Spher es o f Justice, a defens e of pluralism and equality, N ova I or qu e, Bas ic Books, 1983 ) Ricœur (1995, p.295-296 ) pr ocur a esclar ecer qu e “ na ação de levar em cons ider açã o essa r ea l diver s idade dos b ens, apoiada sobr e a das est ima ções ou ava liaçõ es qu e det er mina m as coisas a dividir [ nu ma s ocieda de] como os b ens, t er mina nu m ver da deir o des membr a ment o da ideia unitár ia de justiça em b enef ício da ideia de ‘ esf er as de just iça’. C onst itu em u ma esf er a distinta as r egr as qu e r egem a cida da nia ( memb ership) e tr atam p or ex emp lo das condições de sua a qu is içã o ou de s ua p er da, do dir eit o dos r es ident es estr angeir os, dos emigr a nt es, dos ex ila dos p olít icos et c. Muit os debates em cur so, até nas democr acias avançadas, atesta m qu e não cessa m de sur gir pr ob lemas qu e r emet em f ina lment e a toma das de p os ição de natur eza ét ica s obr e a natur eza polít ica, às quais voltar emos ma is a diant e. Outr a é a es f er a da s egur ança e da assist ência púb lica ( welfar e) , qu e r esp on de às necess idades (n eeds ) est ima das como ta is nas nossas s ocieda des, qu e eles cha ma m legit ima ment e a pr ot eçã o e o auxílio do p oder púb lico. Outr a é ainda a esf er a do dinheir o e das mer cador ias delimita da p ela qu estão em sab er o qu e, p ela sua natur eza de b em, p ode s er compr ado ou vendido. Nã o é, p or tant o, su ficient e distingu ir maciça ment e entr e as p ess oas, qu e t êm u m valor , e as coisas, qu e t êm u m pr eço; a cat egor ia d e mer ca dor ias t em suas ex igências pr ópr ias e s eus limit es. Outr a é ainda a esf er a dos empr egos (offi ce), cu ja distr ibu ição r ep ousa nã o na her editar ieda de ou na f or tu na 23 Nessa linha de racio cín io chega- se à ideia de um Est ado co nst it ucio nal no qual devem ser part ilhado s o s po deres p ara defin ição daquela o rdem de prio ridad e necessár ia à part ilha do s bens e encargo s d a so ciedad e. Aqu i surg e o conf lito político, marcado pela pressu po sição de qu e a defin ição da o rdem de pr io r id ades r equer co mo ant ecedent e o pró prio ju lg ament o do que se po de co nsid erar u m “bo m” go ver no , bem co mo a avaliação da leg it imidade desse mesmo go verno . Nesse per curso ascendent e fica marcada a evo lução da nat ureza do s co nflit o s, que vão desde a ind iv idua lidade da narrat iva de u ma vid a e d a necess idad e de t o mad a d e po sição acerca de seu ru mo , ant e as incert ezas acerca das po ssib ilid ades que se abrem no ho r izo nt e de abert ura rad ical, passando pela int er su bjet iv idad e da r elação co m o o ut ro , em q ue o poder sob re per mit e as mais d iversas fo r mas de vio lência, at é chegar à co mp lexid ade do s co nflit o s so cia is e po lít ico s, qu e abrangem u ma p luralid ad e de ind iv íd uo s, po dendo cheg ar mesmo à sua u niversalidad e, em t empo s d e co mu nicação e eco no mia g lo balizadas, qu ando as q uest õ es relat ivas ao meio amb ient e, e.g, gera co nflit o s passíveis de co mpro met er a manut enção das co nd içõ es d e vid a do pró prio ho mem em seu p lanet a. É d iant e de t ais co nflit o s, e da ind ig nação que deles emer ge par a u m de seus pro t ago nist as, quando não para ambo s, que surge o br ado “É in ju st o !” reg ist rado pelo filó so fo (RICŒUR, 2008a, p.5) na evo cação das remin iscências da in fância e ju vent ude ( RICŒUR, 1997, p.15), co mo a fo r ma pr imeir a de ingr esso na reg ião do d ireit o . Evidencia- se já a í a ind ig nação pelas d iv isõ es d esig uais e/o u despro po rcio nais (de afet o s, reco nheciment o s e pun içõ es) p elas pro messas não cu mpr id as, abalando pela pr imeir a vez a co nfiança na palavra, em que se assent am fu ndament alment e t o das as t ro cas, co nt rato s e pact o s. Nesse mo ment o da reflexão – acerca da v io lência qu e gera o co nflit o , que po r sua vez se eleva do s co nt o rno s int ersu bjet ivo s para a lcançar o âmbit o so cial e po lít ico , na qual já se defro nt avam imp lic it ament e ju st o e mas nas qua lif icações devida ment e a valiada s por pr ocess os púb licos ( encontr amos aqu i a qu estã o da igua ldade de op or tu nidades e da ab er tur a a todos os lu gar es ou pos ições, s egu ndo o pr incípio de just iça de R awls).” 24 in ju st o – acent ua-se a necessid ade do ju lg ament o , que desde o in icio per meo u a escalad a da vio lência e do s respect ivo s co nflit o s, nu m â mb it o que se po d e d izer do ju lg ament o mo ral. Mas o ato de ju lg ar – na med ida em que o s co nflit o s emergem d aquela reg ião da mo ralid ade qu e abarca bens e valo re s sensíveis, ind isp ensáveis à manut enção da o rdem e da pró pr ia vida e m so ciedad e, po r isso mesmo elevado s à t ut ela jur íd ica – at inge seu níve l d e densid ade mais elevado quando caract er izado pela t o mad a de po sição que seja capaz de int erd it ar a v io lência p ara o cupar o espaço que, de o ut ra fo r ma, ser ia mar cado pela vingança. Chega-se ao espaço inst it ucio nal o nd e “a justiça se f az reconh ecer como p rimei ra virtu de da s in stituições so ciais”, na fig ura do ju iz (RICŒUR, 2008a, p.9). Ent ra em cena o ju lgament o qualificado co mo jud iciár io , deco rrência do mo no pó lio do Est ado para a prát ica d a vio lência, a part ir d e ent ão inst it ucio nalizada. Diz- se vio lência inst it ucio nalizada po rque não se há de negar t al carát er ao at o de fo rça qu e, exemp lificat ivament e, pr iva algu é m de su a liber dade o u de seus bens, o u que lhe impõ e a o br igação de fazer o u deixar d e fazer algo . Mas t rat a-se de vio lência ad mit ida pelo pact o so cial, exercit ada segu ndo cr it ér io s ad mit ido s no s est r it o s e necessár io s limit es p ara manut enção o u reco mpo sição da o rdem da vida em so ciedad e. 1.2 Julgamento judiciário em sua fenomenologia Vist o o surg iment o do co nflit o nu ma esfera da mo ralid ade abarcad a pelo jur íd ico , t endo co mo pano de fu ndo a vio lência – nas suas mais d iver sa s fo r mas – co mo causa da int er venção jud ic iár ia, po de ela ser exp licada p elo conju nt o dos disp os it ivos p or meio dos qua is o conf lit o é eleva do ao nível do pr ocess o, estando es te, p or sua vez, centr ado nu m debat e de pa lavr as, cuja incer t eza inicial é fina lment e des linda da por u ma pala vr a qu e expr essa o dir eit o (RICŒUR, 1998, p.3-4). Tal int er venção se dá po r meio d a inst it u ição jud iciár ia, alicerçad a em requ is it o s que po dem ser co nsider ado s o bjet ivo s: “um co rpo d e lei s 25 escrita s; tribun ais ou co rtes de justi ça in vesti dos da f unção de pro nuncia r o direito; juízes, vale dizer, indi víduo s co mo nó s, reputado s ind ependent es e enca rregado s de p ronun ciar a sentença [...]” (RICŒUR, 1995, p.89). 1.2.1 Um Corpo de leis escri tas A apar ição do corpo d e lei s escrita s co mo requ is it o o bjet ivo d a inst it u ição jud ic iár ia deco rre da necessidad e de u ma no r ma vincu lant e, impreg nad a do carát er de univer salid ade, cu ja preexist ência ao pró prio fat o o bjet o de ju lg ament o em sit u ação co njur a o risco de se incid ir em casu ísmo s. Est as leis est abelecem a prio ri não apenas a no r ma a inc id ir so br e det er minado fat o , mas ig ualment e a ident ificação do ju iz co mpet ent e par a ju lg ament o daquele mesmo fat o, segu ndo crit ér io s igu alment e o bjet ivo s. Co nst it u i, ademais, o t raço dist int ivo que marca a t ransição do ju lgament o mo ral par a o ju lgament o jud icia l, vist o o d ireit o co mo u m rest r it o campo qu e int egra a mo r alidad e. De fat o , sendo a le i mo ral q ue baliza o ag ir do ho mem, em g eral, é cert o que o faz sem impo sição co ercit iva. To rna-se, po r isso mesmo , necessár io u m inst ru ment o de fo rça que garant a a prát ica de u ma co ndut a det er minada – o u u ma respo st a do corpo so cial ao s que não a cu mpram, t al co mo se espera – qu ando em jo go valo res essenciais à viab ilidade do co nv ív io em so cied ade. Su rge aí o d ir eit o , t razendo a le i co m t al fo rça co ercit iva qu e empr est a valo r ju r íd ico a u m campo qu e, não so fr esse t al pro cesso de elevação ao campo da no r mat ização leg is lat iva, do t ado de efeit o sancio nado r, per manecer ia rest r it o à mo ralidad e st ricto sen su. É o su ficient e p ara se ident ificar acima da inst it u ição ju d iciár ia u ma inst ância q ue lhe é super io r: o pró pr io Est ado . Cu mpre a essa inst ância super io r não apenas pro ver a inst it u ição ju d iciár ia de t o do s o s me io s necessár io s à su a ret a e indep endent e at uação , mas igualment e decid ir p ela via leg is lat iva a o rdem de pr io r id ades d ent re as cat ego r ias d e bens e encargo s a serem part ilhado s no espaço pú blico d elimit ado e so b sua jur isd ição . Trat ase d e inequ ívo ca med iação do po lít ico p ara alcance d a prát ica d a ju st iça e m suas inst it u içõ es respect ivas. 26 Mas se o filó so fo (RICŒUR, 1995, p.10 4-105) afir ma a exist ência dessa inst ância sup er io r, que é o pró pr io Est ado, co mo med iado r po lít ico , id ent ifica u ma o ut ra inst ância, sit uad a na base, co nst it u ída pelo que se deno mina “so ciedad e civ il”, em cu jo espaço o co rre a po nd eração das avaliaçõ es qu e co nfer em a sig nificação de bens e encargo s e o s resp ect ivo s papéis d ist r ibu ído s e at r ibu ído s ao s po rt ado res de d ir eit o s. De fat o , é a p art ir desse âmb it o de d iscu ssão que emerg e a necess idad e e co nven iência po lít ic a de se est abelecer em le is escr it as aqueles bens classificado s co mo valo res e a sua r esp ect iva o rdem de pr io r idad e, nu m pro cesso que po de ser descr it o , de fo r ma analó g ica co m a mo ralid ad e, pela cir cu lar id ade do etho s 4, co m o t raço d ist int ivo de qu e, naqu ele fenô meno , o plano da no r ma mo ral é o mo d ificado pela p ráxi s, enquant o que, na hipó t ese aq u i descr it a, est a práxi s o u o debat e desenvo lv ido na so cied ade civ il vai pro vo car alt eraçõ es no p lano jur íd ico , po r meio da mo d ificação leg islat iva. Refere- se aind a (RI CŒUR, 20 08a, p.16 5 ) a u ma inst ância que se po sicio na p aralela ment e à jud ic iár ia, co nst it u íd a pelo s jur ist as que fo r mu la m a do ut rina jur íd ica, acrescent ando mais o que ele d eno mina “aud it ó r io universal”, palco da d iscu ssão acerca d as do ut rinas do s jur ist as, das leis pro mu lg adas na inst ância leg is lat iva, das sent enças pro fer idas p elo s ju ízes e 4 [...] (ethos) ost enta dupla s ignif icação, or a par a r ef er ir -s e a os costu mes ver if icados nu ma det er mina da r ealida de hist ór ico-s ocial, como pr incíp ios e nor ma s det er mina nt es dos atos dos indivídu os ins er idos naqu ela r ealida de, or a como háb it o constr uído p ela r ep et ição individua l dos atos da qu eles mes mos indivídu os, em conf or mida de com os pr incíp ios e nor mas constitut ivos do ethos como costu me. Ass im é qu e a pr ática (pra xis) hu ma na ex er ce pap el fu nda mental de mediaçã o entr e os mo ment os constitut ivos do ethos como costu me e háb it o, nu m movi ment o d e cir cu lar ida de causal qu e fu nda a r eflexã o ét ica: o ethos como costu me estab elece as nor mas e pr incípios de convivência, qu e, obs er va dos concr eta ment e p elos indivídu os em sua praxis cot idiana, indu z à for ma ção do ethos como háb it o, qu e, u ma vez estab elecido, r ef or ça o ethos como costu me. Essa cir cu lar ida de inst itu i valor es, expr ess os em pr incíp ios e nor mas, que sã o tr ans mitidos às futur as ger ações, e nã o r ar as vezes inf lu encia m cultur as outr as, for ma ndo assim a hist or icidade do homem. E vident e qu e tal movi ment o nã o s e r evela estático, mas int egr ado à dinâ mica qu e p er meia a pr ópr ia evolu ção hu ma na. Estr utur alment e aber to e livr e, o homem é o s er qu e p ode s empr e s er ma is do qu e é, e s ua evoluçã o r ep er cutir á, necessar ia ment e, na mu dança de sua praxis, a inda qu e tal mu da nça r epr es ent e r omp iment o com o ethos estab elecido como costu me. T endo a alt er ação da praxis, em casos qu e tais, a for ça de a r r ebatament o das mu ltidões, levar á à tr ansfor ma ção do ethos como háb it o, alt er ando cons equ ent ement e o ethos como costu me, r estab elecendo-s e assim a cir cu larida de apar ent ement e r ompida, mas em novo patamar , na hip ót es e a qu i dada, ma is eleva do. ( VAZ, 2009, p. 35-43 a pud G UIM AR ÃES, 2013, p. 281). 27 co rt es ju d iciár ias. Essa inst ância t em papel fu nd ament al no exer cício d a cr ít ica acerca d a co nst rução das decisõ es jud ic iár ias, co nquant o co nt ribuam para o debat e e a fo r mação da jur isprud ência. 1.2.2 O juiz Acerca do ju iz, est e ind iv íduo co mo nó s – na feliz ad vert ência d e Pau l Ricœur, já refer id a – percebe-se alg u ém que co m o s d emais se ident ifica, na su a d imensão hu mana, mas d iferenc iad o do po nto de vist a so cial, já que a ele a so cied ade at r ibu i o po der de exercer a vio lência inst it ucio nal cu ja face vis ível é a impo sição co ercit iva da fo rça do d ireit o em u ma sit uação po st a. A ad vert ência é relevant e para não se perd er de vist a a d imensão hu mana qu e habit a o inst it ucio nal, simbo lizado pela t o ga. Ser o ju iz um in divídu o como nós sig nifica q ue no seu enco nt ro co m o jur isd icio nado é est abelecid a, ant es mesmo da relação inst it ucio na l, u ma relação int ersu b jet iva. É preciso reg ist rar ainda q ue não po de o ju iz abst er-se de d ecid ir , u ma vez pro vo cado . Sua deliberação se impõ e co mo dever leg al inalienável, co mo represent ant e qualificado do Est ado que chamo u a si o mo no pó lio d a decisão acerca do s co nflit o s jur íd ico s. Po r o ut ro lado , a o bed iência das part es do pro cesso à deliber ação jud ic iár ia deco rre do pró prio pact o so cia l e do mo no pó lio da jur isd ição pelo Est ado , bast ando para t anto que o ju iz qu e pro fira a d ecisão est eja invest ido regu lar ment e de suas fu nçõ es e su a decisão se t o rne defin it iva ( vale d izer, não seja revist a pelo s t r ibu nais). Opo rt una t ambém a lembrança de q ue as inst it u içõ es jud ic iár ias, que Pau l Ricœur inclu i na cat ego ria de canai s da justiça: o s t ribu nais e as co rt es de ju st iça, co nst it uem- se a p rio ri mer as ficçõ es que so ment e se t o rna m efet ivas na at ivid ade racio nal do ju iz ind epend ent e, que lhes impr ime vida e perenidade, levando à caract er ização rad ical do ju lgament o ju d iciár io – aind a que inst it ucio nal – co mo ato da razão e pro priament e hu mano . 1.2.3 A sentença 28 Dent re o s requ isit o s o bjet ivo s do ju lg ament o jud ic iár io , apo nt ado s po r Pau l Ricœur, rest a t rat ar da senten ça – pro nu nciada no caso em sit u ação co mo po nt o t erminal do p rocesso como curso de uma ação – qu e põ e fim à co nt ro vérsia. A sent ença co mo expressão mat er ial d a d eliberação jud iciár ia é resu lt ado desse p rocesso, como cu rso d e uma ação, qu e se revela co mp lexo , po r envo lver duas vias imbr icadas d e int erpret ação : po r u m lado , a reco nst it u ição fát ica da “ histó ria plau sível e vero ssímil d a hist ória, o u melho r, da imbrica ção de hist ória s con stitutivas daquil o que se den omin a caso [...].” (RICŒUR, 2008a, p.207), missão esp inho sa qu e se t raduz na bu sca pela u nivo cidade verdadeira da versão ext raída do co nfro nt o ent re as d iversas versõ es do mesmo fat o apresent ada pelas part es que se co nfro nt am e suas t est emu nhas respect ivas. Po r o ut ro lado , e não meno s d ifícil, o t rabalho de su bsu nção do fat o à no r ma, ident ificando para t ant o a no r ma adequ ada ao enquadr ament o daquele fat o cu ja hist ó r ia se reco nst it u iu o ma is pró ximo , po ssível, da verd ade real. O curso dest as vias int erpret at ivas so ment e se viab iliza no debat e que se desen volve entre o mom ento de incert eza característico d a abertura do pro cesso e o mom ento do pr onunciam ento d a senten ça, quando se põe fim a essa incertez a inicial com um a palavra que profer e o direito (RICŒUR, 200 8a, p.153). Nesse po nt o , a pro po st a de Pau l Ricœur é afast ar-se d a ant ino mia est abelecida na po lar idade int erpret ação /argu ment ação para elabo rar u ma d ia lét ica dessa po lar id ade, fu ndando assim u ma her menêut ica jur íd ica cent rada na t emát ica do debat e. Diant e do que at é aq u i se viu, r esu lt a co mo co ro lár io aqu ilo que se po de deno minar a fina lidad e imed iat a do ju lg ament o jud ic iár io , que é a int errupção da incert eza. Nesse pr imeir o plano , o pro cesso jud iciár io se desenro la de u ma fo r ma qu e se po de d izer análo g a à de u ma part id a d e xadrez: ant es d e seu in ício , as regras são co nhecidas, mas é preciso ir at é o fim para se co nhecer o resu lt ado . Essa a sit uação indefin id a a q ue a deliberação põ e fim. Nesse aspect o , a decisão jud ic ial, para alé m d e 29 simp lesment e eliminar aquele indesejado est ado de incert eza, ap lica o d ire it o nu ma sit u ação singu lar, em relação às chamadas “part es” do pro cesso . Mas pela relação que mant ém co m a lei, o ju lgament o jud ic iár io veicu lado pela sent ença expressa a fo rça do direit o . Pela via int erpr et at iva da lei – inexo rável d iant e do fat o de que nenhu m caso será a exemp lificação lit eral de u ma regr a – cr ia-se u m precedent e. Nesse aspect o do ju lgament o revela- se a po rt a que se abre p ara a co nst rução de u ma t rajet ó ria jur isprudencial. Não se po de ent ão ident ificar no ju lgament o jud ic iár io apena s aquela facet a int errupt iva da incert eza, po is seu sent ido se ins inu a mais amp lo . É qu e a jur isprudência co nst it u ída pela reit er ação de precedent es t erá u m p apel r elevant e na co nfigur ação da co erência co mo pressupo sição de u ma co ncepção de just iça. É po r meio dest a co erência qu e se t ransmit e cert a est abilidad e ao co rpo so cial, na med id a em q ue caso s no vo s, u ma vez decid ido s, p assam a se co nst it u ir em no rt e para a decisão d e caso s o ut ro s super venient es, id ênt ico s o u assemelha do s, pela ext ração do s pr incíp io s ut ilizado s no s pr ime iro s e que ser ia m ap licáveis ao s segu ndo s. Os pr ecedent es que co nst it uem a jur isprudência t êm sua ap licação co mo o br igat ó ria, a depend er do sist ema jud icia l co nfo r me previst o na Co nst it u ição de cad a Est ado . É co gent e, no s Est ado s que adot am a common la w, po dendo ser relat ivament e co gent es, a d epender d e cr it ér io s o bjet ivo s, o u simp lesment e ind icat ivo s para no vas d ecisõ es, mas serão sempre, no mín imo , u m refer encia l que viabiliza a co nst rução da co erência. Co erência qu e, ant es de exercer u m papel de mera preser vação , exerce o de co nst rução , para a qual se revela ind isp ensável a ed ificação de fo rt es alicer ces. Aind a a pro pó sit o do ato de ju lg ar, acrescent a o filó so fo : É s ob a égide da ideia de just iça distr ibut iva qu e o ato d e ju lgar se deixa r epr es entar ; dada socieda de des envolve u m es qu ema de distr ibu içã o de par tes, nem t odas medidas em ter mos monetár ios atr ibuíveis à or dem mer ca ntil. Da da socieda de distr ibu i b ens de t odas as esp écies, mer cant is ou nã o. T oma do em s ent ido lato, o ato de ju lgar cons ist e em apar tar esf er as de ativida de, de- limitar as pr et ens ões de u m e a s pr et ens ões de outr o e, fina lment e, em cor r igir as distr ibuições injustas, qua ndo a ativida de de u ma p ar te cons ist e na usur pação do ca mp o de ex er cício das outr as par tes. [...] tr atas e r ealment e de estab elecer a par te de u m e a par te do outr o. O 30 ato de ju lgar , por tant o, é a qu ele qu e a-par ta, s e-par a. Com iss o nã o est ou dizendo na da de mu it o extr aor dinár io, u ma vez qu e a antiga definiçã o r oma na suum cuique tribuer e – atr ibui a cada u m qu e é s eu – or ienta va imp licita ment e p ara a anális e a qu i pr op osta. (RICŒUR, 2008a, p. 178) Essa p ersp ect iva do at o de ju lgar, no sent ido de sep arar, co nt r ibu i para fo rçar passagem à fina lidade med iat a do ju lg ament o jud ic iár io , qu e co nsist e e m co njurar a vio lência lat ent e no co nflit o que inst aura o pro cesso . No ângu lo d e u m E st ado que su bt raiu d o s ind iv íd uo s o exercíc io d iret o da ju st iça, no t adament e da just iça- ving ança, po de-se afir mar qu e o “hori zont e d o ato de julga r está mai s na paz so cial do q ue na segura nça” ( RICŒUR, 2008a, p.180). Essa finalid ade med iat a do ju lg ament o jud iciár io será abo rdada, po r u ma quest ão met o do ló g ica, no t erceiro cap ít u lo , em que desenvo lv ida a feno meno lo g ia do ju lga ment o jud ic iár io j usto. Revelado o julgamento judiciá rio co mo sendo aquele t o mado po r alguém in vestido social ment e do pod er de diri mir o s co nf litos surg ido s no seio d a so cied ade – em deco rrência da vio lência so fr ida, e m qualq uer de sua s d iversas fo r mas – po r meio da ap lic ação do corpo de leis v igent es, mat er ializado nu ma senten ça co mo at o fo rmal cu lminant e do pro cesso co mo curso de uma ação, co m a fina lidade imed iat a de po r fim a u m est ado de incert eza, abre-se espaço para ident ificação de su as co nd içõ es de po ssib ilidade, co m o o bjet ivo de alcançar a defin ição do que seja u m ju lg ament o ju d iciár io . 1.3 Condições de possibilidade do julgamento judiciário Descr it a essa que po de ser deno minad a u ma feno meno lo g ia do ju lg ament o jud ic iár io , surge a pergu nt a acerca de co mo é po ssíve l esse at o do ag ir hu mano , vale d izer, as co nd içõ es de po ssib ilid ade sem as quais não se po der ia realizar a prát ica de t al at o . A relevância da indagação reside na pro priedad e que encerra, a respo st a respect iva, d e ind icar o que seja efet ivament e o ju lg ament o jud ic iár io . T ais co nd içõ es d e po ssib ilid ade são id ent ificadas a part ir da pré- co mpreensão que se t em acerca do ju lgament o 31 jud ic iár io , seg u ndo seus requ is it o s o bjet ivo s e a finalid ade imed iat a, at é aqu i expo st o s. 1.3.1 Corpo social orga nizado em forma de Estado Já se viu a necessidad e da prév ia cr iação de inst it u içõ es específica s co m a co mpet ência d e ju lg ar o s co nflit o s surg ido s naq uele esp aço da mo ralid ad e qu e se d elibero u reser var ao p lano jur íd ico . Já se viu ig ualment e a necess idad e da exist ência de le is escr it as que defina m previa ment e o s caso s su bmet ido s à jur isd ição , bem co mo a ind icação do ju iz co mpet ent e para o respect ivo ju lg ament o . Oco rre que a preexist ência de t ais le is supõ e u m grupo de pesso as o rganizadas d e fo r ma a est abelecer u m debat e acerca do espaço , dent ro da mo ralidad e, cu ja t ut ela ser á d est inada ao jur íd ico , segu ndo seu grau d e imprescind ib ilid ade de o bser vância, p ara qu e não se veja em r isco a pró pria so brev ivência do grupo que fo rma o co rpo so cial r esp ect ivo . Há ainda a necessid ade de leis que prescr evam as no r mas acerca do pro cesso , co mo curso de u ma ação , no qual serão debat ido s o s fat o s o bjet o da deliberação jud icial, de t al fo r ma que o s co nt endo res po ssam saber, ant es mesmo do in ício de seu curso , quais são as reg ra s do jog o. Po r o ut ro lado , e t endo present e a nat ureza co ercit iva d as de liberaçõ es jud ic iár ias, que se impõ em pela fo rça, mais u ma vez d espo nt a a necessidad e de cr iação d e inst it u içõ es encarreg adas d e impo r a vo nt ade da co let ivid ad e, inclu sive po r meio de co erção fís ica, quando necessár ia. A pro mu lg ação dessas leis q ue delimit am o esp aço jur íd ico , cr iam as inst it u içõ es jud iciár ias, definem as regras do pro cesso , cr iam as inst it u içõ es po lic iais – necessár ias ao exercício da fo rça necessár ia à co erção pró pria das decisõ es est at ais – so ment e se t o rna po ssível co m a exist ência d e u m espaço p úblico d e d iscu ssão represent ado po r u m co rpo social o rgani zad o em f orma de Estado. Isso po rque esse co rpo social organi za do eng lo ba não apenas o Est ado , stricto sen su, mas igualment e a so ciedad e civ il, co mo esp aço de 32 d iscu ssão que leg it ima aqu ele Est ad o enquant o inst it u ição po lít ico - ad min ist rat iva, leg is lat iva e jur íd ica. Sem t al o rganização não se po de falar na exist ência das inst it u içõ es jud iciár ias. 1.3.2 O ser humano investido das funções de julgar Vist a a preexist ência do corpo social organi zado em f orma de Estado co mo co nd ição de po ss ib ilidade do ju lg ament o jud ic iár io , fu nd ament alment e pela necessid ade d e cr iação das med iaçõ es inst it uc io nais, dent ro do co nsenso po ssível, revela- se evident e a necessidade de se viv ificarem t ais inst it u içõ es, sem o que serão ficçõ es inert es. S urge ent ão co mo co nd ição de po ssib ilid ade do ju lgament o jud iciár io a figura de u m homem q ue co nsequência enca rne t al necessár ia instituiçã o, da o ju iz. caract er ização É do o que deco rre ju lgament o co mo co mo at o pro priament e hu mano , frut o da razão . Esse ho mem, previament e invest ido do s po deres d e ju lg ar em no me d a co let ivid ade, segu ndo cr it ér io s e requ is it o s var iáveis, est abelecido s d e aco rdo co m a fo rma d e o rganização do Est ado , t em acrescida à su a nat ural co nd ição humana – que o iguala ao s demais – u ma o ut ra co nd ição , social, que o dif erencia em relação ao s o utro s pelo po der que lhe é co nfer ido de pro fer ir o d ireit o nas co nt endas est abelecidas ent re aquele s nat urais co m o s quais se mant ém, nat uralment e, igualado . Mas enqu ant o esse ho mem qu e encar na a inst it u ição jud ic iár ia é dif erente so cialmente e per manece igu al n aturalmente, não bast a qu e t o me ele u ma decisão para qu e seja qu alificada co mo jud ic iár ia. So ment e se po de caract er izar co mo t al aquela t o mad a no amb ient e inst it ucio nal, na análise de u m co nflit o levado a decisão po r uma d as part es envo lv idas. É preciso que esse Ho mem aja no espaço de at uação so cia lment e d iferenciado do ju iz, qualificando seu ju lg ament o co mo inst it ucio nal e, po rt ant o , jud iciár io . To do s o s demais ju lga ment o s po r ele realizado s, fo ra desse amb ient e inst it u cio nal, serão de nat ureza o ut ra, co mo de rest o o são aqueles t o mado s po r to do e qualquer ser hu mano : mo r al, ad min ist r at iva, pesso al, familiar, mas não jud ic iár ia. 33 Diant e de t al afir mat iva, surge a per gunt a so bre o qu e seja especifica ment e esse esp aço inst it ucio nal qu e qu alifica o ju lgament o do ho mem- ju iz co mo sendo ju d iciár io , e não de o ut ra nat ureza. Não se t rat a, à evidência, do mero espaço físico o cupad o pela inst it u ição jud iciár ia, mas d e um espaço jur íd ico , est abelecido em lei, cu ja o cupação se t orna imprescind ível à at uação inst it ucio nal do ju iz: fala-se aqu i do pro cesso . 1.3.3 O processo como curs o de uma ação O pro cesso enqu ant o curso de u ma ação caract er iza- se co mo sequ ência d e at o s em pro ced iment o fo rmal mar cado pela part icip ação das part es envo lv id as no co nflit o , que devem d ispo r de ig ualdade de ar mas e o po rt unidad es para man ifest ação e at uação vo lt ad a para a pro dução das pro vas necessár ias ao co nvenciment o acerca de suas resp ect ivas ver sõ es par a o fat o t razido a ju lg ament o . Co mo fo r mal, necessit a de d iscip lina previament e defin ida, de fo r ma a não trazer surpresa ao s lit igant es, to rnando -se necessár io o est abeleciment o das regras para co nsecução do s ato s respect ivo s po r meio de lei, co mo pro dução resu lt ant e do debat e nas inst âncias qua lificad as d a so ciedad e e cu ja ap licação seja u niver sa l, no espaço em que inc ident es. É a su bmissão da qu eixa apresent ada ao rit o do devido pro cesso legal, o respeit o às regras par a ele est abelecid as e o cu mpr iment o de to do o r it o que caract er izar á o esp aço de at uação do ho mem- ju iz que lhe p er mit irá, ao fina l, pro fer ir u ma d ecisão qualificad a co mo jud iciár ia, pró pr ia do papel so cial qu e exerce, a p art ir do mo ment o em que se invest e nas fu nçõ es d e t a l encargo . Sem o curso do pro cesso , sua event ual d eliber ação – não é mu it o repet ir – po rque to mada fo ra do esp aço inst it ucio nal ind ispensável à caract er ização da decisão de nat ureza jud iciár ia, não o st ent ará a nat ureza qu e lhe empr est a a t o ga, per manecendo no campo do exclu siva ment e nat ural, po rt ant o , alheia ao âmbit o so cia l q ue é o pró prio do ju iz. Defin ido o pro cesso co mo u m pro ced iment o co nst it u ído pela sequ ência de at o s t endent es a pro p iciar a pro lação da sent ença, t orna-se o po rt una a pergu nt a so bre co mo se o deflagra. 34 1.3.4 A existência de um confli to Co mo a int ervenção jud iciár ia t em po r fin alid ade imed iat a po r fim a u ma incert eza, abert a co m a o co rrênc ia de u ma vio lência, em qualq uer de sua s fo r mas, a exi stên cia d e um conf lito – qu e co nst it ua o o bjet o da queixa levad a po r uma das part es int eressadas à deliber ação da inst it u ição jud ic iár ia, po ssib ilit ando a inst auração do pro cesso – surge co mo co nd ição de po ssib ilidade do ju lgament o jud iciár io . A vio lência qu e e m u ma d e suas vár ias fo r mas se faz sent ir p elo queixo so d iant e do co nflit o em q ue se envo lv e é o mó vel que o induz à bu sca pela so lu ção est at al, em lug ar de valer-se d e seu pró pr io desfo rço para fazer prevalecer sua ra zão. Sua queixa co nst it u irá o mo t ivo para inst auração do pro cesso respect ivo . Daí se co nclu ir que à inst it u ição jud iciá r ia não cabe u ma at uação po r hipó t ese, co mo que nu m carát er co nsu lt ivo , a prio ri. Sua at uação será sempre a po sterio ri, ainda qu ando at ua de fo r ma prevent iva, po is há de se ent remo st rar a exist ência de u m co nflit o o u sua iminência, co mo fat o s ant ecedent es à at uação jud ic iár ia. É aq u ilo a qu e se deno mina o caso e m sit uação , o u o caso co ncret o submet ido à deliberação jud iciár ia: aqu ele caso o corrent e no qual a v io lência su sc it a o conflit o . É d iant e da apresent ação do co nflit o ao ju iz qu e a inst it u ição po r ele viv ificada se mo viment a p ara alcançar u ma deliberação que pro fir a o d ireit o , eliminando a incert eza, qu e po r sua vez t raz a insegurança. Mas essa mo viment ação , t al co mo a part ida de xadrez, deve se desenro lar segu ndo regras pró pr ias e co nhecid as d e ant emão . Evidenciam- se ent ão co mo co nd içõ es de po ssib ilid ade do ju lg ament o jud ic iár io : i) o co rpo so cial o rgani zado em f orma de Estad o; ii) o ser humano in vestido da s f unções d e juiz; iii) o processo co mo cu rso de uma ação; e iv) a exi stên cia d e um conf lito submetido à in stituiçã o da j usti ça. At end id as t ais co nd içõ es, to rna-se po ssível u m ju lg ament o jud ic iár io , qu e será d efin ido co mo sendo a delib eração t omada po r um ser hu mano in vestid o das f unções de juiz, em no me de um co rpo so cial o rgani zado em f orma de 35 Estado, ao f im de um p ro cesso co mo cu rso de uma açã o, e que põe f im ao estad o de incert eza gerado pel o conf lito tra zido a julga mento n um ca so concreto. Cu mpr ida est a pr ime ir a et apa do percurso pro po st o, surge co mo inexo rável no va indag ação , ago ra acerca da qualificação de t al ju lg ament o : ju st o o u inju st o ? I sso po rque, o ju lg ament o revelado po r meio da defin ição aqu i apresent ada não será necessar ia ment e ju st o, ant es, t al car át er, na defin ição enco nt rada, revela- se abso lut ament e co nt ingent e. To rna-se necessár io in ic iar ent ão no vo p ercurso , ago ra t endent e ao o bjet ivo final q ue é a ident ificação do ju lg ament o jud ic iár io ju sto, po st o que apenas o ju lgament o jud ic iár io , co m t al qualificação ad icio nal, po derá ser co nsid erado apt o ao at end iment o de t o das as finalid ades inst it u cio nais d a ju st iça. Para t ant o há necessid ade d e se id ent ificar o lugar filo só fico do justo. 36 2. LUGAR FILOSÓFICO DO JUSTO Ad mit ido o justo co mo qualificado r de u m ju lgament o singu lar to mado em clima d e co nflit o e incert eza, co m o o bjet ivo de defin ir, so b o po nt o de vist a ét ico , o que seja u m ju lg ament o jud iciár io just o , po r meio da id ent ificação de suas co nd içõ es de po ssib ilid ade, mo st ra-se ind isp ensável, po r pr imeiro , a id ent ificação do lugar filo só fico desse pred icado justo, qualificado r daquele específico ag ir hu mano . Pret ende- se cu mpr ir est e o bjet ivo a part ir do s t rês est udo s empreend ido s po r Pau l Ricœur naq uela q ue deno mino u su a peq uena ética, e m que sit ua o justo na int erseção de do is eixo s – u m ho r izo nt al e o ut ro vert ica l – que co nt emp lam, respect ivament e, a co nst rução d ialó g ica do si ( nas pesso as do si-mesmo, out ro e cada um) e a co nst it u ição hierárqu ica do s pred icado s que qualificam a ação hu mana em t er mo s de mo ralidad e (bom e obri gató rio). A part ir do s pred icado s bom e obrigat óri o po de-se id ent ificar dua s heranças filo só ficas d ist int as: ar ist o t élica e kant iana, a pr ime ira t eleo ló g ica e a segu nda deo nt o ló g ica, em r elação às quais – Pau l R icœur faz qu est ão de esclarecer – não há espaço , em seu pensament o filo só fico , para o reducio nis mo d e u ma o po sição , ant es, seu o bjet ivo é demo nst rar a relação d e depend ência e co mp le ment ar iedad e que ent re elas se revela. Cabe aqu i u ma ad vert ência d e carát er et imo ló g ico relat ivament e do vo cábu lo éti ca e sua relação co m o s co ng êneres mo ral o u mo ralidad e, e seu s respect ivo s uso s na filo so fia par a demo nst rar que etho s, o r igem grega do vo cábu lo ét ica, o st ent a du p la sig nificação , o ra para refer ir-se ao s co st u mes ver ificado s nu ma det er minad a realidade hist ó r ico -so cial, co mo princíp io s e no r mas d et er minant es do s at o s do s ind iv íd uo s inser ido s naquela r ealid ade, o ra co mo háb it o co nst ru ído pela rep et ição ind ivid ual do s at o s daqueles mesmo s 37 ind iv íduo s, em co nfo r midade co m o s pr inc íp io s e no r mas co nst it ut ivo s do ethos co mo co st u me. Já o vo cábu lo mora l, de o rigem d iver sa ( lat ina) e co m caract er íst icas po lissêmicas, o st ent a, em ú lt ima análise, a sig n ificação de costu mes (VAZ, 2009, p.12-16). Diant e de t al sino nímia, é u sual o emprego de ambo s o s vo cábu lo s co m a mesma sig nificação , havendo aut o res que dão pr imazia ao emprego do t ermo ética p ela sua pr eced ência hist ó rica. Mas não se po de o lv idar, no ent ant o , u ma t endência super ven ient e d e se empr egar o vo cábu lo mo ral para o t erreno da prát ica ind iv idu al, enqu ant o que ética ficar ia reser vado par a refer ir-se à ciência, ao campo da realid ade – hist ó r ica e so cial – do s co st umes. Pau l Ricœur, d iferent ement e e d e fo r ma pro po sit ada, reser va o vo cábu lo “ét ica” par a a persp ect iva o pt at iva, t eleo ló g ica, d e u ma vid a co nclu íd a, e o “mo ral”, d eo nt o ló g ico , para a art icu lação daquela per spect iv a em no r mas a u m só t empo pela pret ensão de u niversalidad e e po r u m efeit o d e co nst rang iment o . Assim é qu e co nst ró i seu pensament o ét ico nu ma cir cu lar id ade que faz co m qu e a v isada ét ica, co nsist ent e na bu sca pela “v id a bo a”, necessit e d a no r ma mo ral p ara afast ar a vio lência pró pr ia do s co nflit o s que as int eraçõ es hu manas fazem surg ir, no r ma mo ral cu jo fo r malis mo deco rrent e de seu carát er u niver sal faz su rg ir no vo s co nflit o s, deco rrent es d a não co nsid eração das pecu liar idades do s caso s co mp lexo s, a ex ig ir o recurso da visad a ét ica na fo r ma da sabedo r ia prát ica. Daí a demar cação do lugar filo só fico do justo ent re o legal e o bom. Cabe aqu i o reg ist ro de que essa est rut ura, o rig ina lment e d ispo st a em sua peq uena ét ica, so fre u ma reescr it a, espec ialment e no t o cant e à orde m de abo rdagem, a part ir do art igo int it u lad o “Da moral à éti ca e à s éti cas” 1 e m que in icia seu p ercurso pela mo ral, dad o que a exist ência das no r mas na so ciedad e co nst it u i u ma exper iência emp ír ica ino lv id ável. Nessa reescr it a, o p lano mo ral p er manece co mo int er med iár io ao que ent ão passa a deno minar u ma ética a mo ntante da mo ral e as éti cas a jusa nte, mas o mo v iment o se in ic ia po r est e p lano . A ét ica a mo nt ant e se co nst it u i pelas ética s f undamentais, co mo a ar ist o t élica, enquant o que as éti cas a jusante ser iam o 1 In O Justo 2, 2008b, p.49-62 38 que ele pró pr io censura co mo sendo u m uso abusivo do vo cábu lo ética par a desig nar aqu elas éti cas regionai s, ap licadas, co mo a ét ica méd ica, jur íd ica, do s negó cio s, et c. Ao co nt rár io da p equena ét ica o r ig ina l, q ue se in icia pela bu sca po r u ma “v ida bo a” e passa ao p lano mo ral d iant e da irrupção do co nflit o , que necess it a ser ar bit r ado para viab ilizar aquela “v ida bo a” co m o s o ut ro s, a reescr it a t o ma a exist ênc ia d as no r mas co mo fat o emp ír ico d ado , a est abelecer a d imensão do ser o br ig ado . Mas co mo esse ser hu mano o br igado amp lia essa sua d imensão para o sentimento d e ser o br ig ado , esse sent iment o co nst it u i a po rt a de ent rada p ara o campo da ét ica fund ament al, co nst it u ída p elo d esejo da “vida bo a”. E m q ue pese a super veniência da reescr it a, pelo pró pr io Pau l Ricœur reco nhecid a co mo sendo “um pou co mai s do qu e escla recimento e u m pouco meno s do que retra ctatio, como t eriam dito os escrit ores l atino s d a Antiguidade tardia” (RI CŒUR, 20 08 b, p. 49) o percurso para ident ificação do lug ar filo só fico do ju st o será empreend id o aqu i em sua o rdem o r ig ina l, pelo fat o de que a t emát ica final, aq u i, o bjet iva a defin ição do ju lgament o jud ic iár io ju st o enquant o at o ét ico , cu ja o rigem deco rre do surg iment o do co nflit o , que igualment e fo rça a passag em, na peq uena ét ica o r ig ina l, do campo ét ico ao mo ral. 2.1 Preponderância da visada ética sobre a norma moral A visad a ét ica de Pau l Ricœur art icu la-se na segu int e defin ição : “a perspectiva d e uma vida bo a com e pa ra os out ro s em i nstit uições ju sta s” (RICŒUR, 1991, p.202) e co nst it u i- se de três mo ment o s fo rt es analisado s de fo r ma d ist int a, e que co nst it u irão a base de apo io para reflexão , nu m segu ndo mo ment o , acerca da no r ma mo ral em relação à visada ét ica. 2.1.1 “Visar à ‘vida boa’ ...” 39 Na per spect iva d e Pau l Ricœur, o pr imeiro co mpo nent e de u ma visad a ét ica ser ia o que Ar ist ó t eles deno mina viver u ma “vid a bo a”, equ ivalent e, em Pro ust , a u ma “vid a verd adeira”, o que to rna ind ispensável o enfo que t eleo ló g ico para a co nst rução de seu pensament o ét ico . Independ ent ement e da ideia de que cada u m é po rt ador, em relação ao qu e seja u ma vid a realizada, p ara essa d ireção é que apo nt a o fim ú lt imo d e suas açõ es. A palavr a “vid a” é t o mada não no sent ido purament e bio ló g ico , ma s nu ma abr angência ét ico -cu lt ural, eng lo bando o que o s grego s já co nhecia m co mo vid a de prazer, v ida at iva no sent ido po lít ico , v ida co nt emp lat iva. Trat a-se de u ma acep ção que, desig nando o ho mem co mp let o , co nt rapõ e-se às prát icas frag ment adas. Daí a indag ação so bre a ex ist ência d e u m ergo n – u ma vo cação nat ural; fu nção ; t arefa qu e seja pró pria – do ho mem, t al co mo se po de falar do ergon co mo a t arefa qu e é pró pria do mú sico , do méd ico , do arqu it et o . “Vida” t o ma aq u i u ma d imensão avaliat iva do erg on qu e qu alifica o ho mem enqu ant o t al. A ligação ent re esse erg on do ho mem, a que se d eno mina “p lano d e vid a”, e o s padrõ es de excelência ident ificado s em cada prát ica, decifra o segredo do encaixe das fina lidades, p ermit indo que u ma vo cação , quando esco lh ida, co nfir a ao s gest o s que a empregam o carát er de “fim em s i mesmo ”. O ergon co rrespo nder ia, na vid a to mada em seu co nju nt o , ao que, nu ma prát ica part icu lar, po de-se d eno min ar co mo padrã o de excelên cia. É em MacI nt yr e que Pau l Ricœur, at ent o ao desenvo lv iment o das apreciaçõ es de carát er avaliat ivo ligadas ao s preceit o s do be m- fazer, just ific a a qualificação pro priament e ét ica d esses preceit o s no s “p adrõ es de excelência”, co nsider ado s regras de co mp aração ap licadas em fu nção de id eais d e p er feição co mu ns a u ma cert a co let ivid ade de execut ant es, int er io r izado s p elo s mest res e virt uo so s da prát ica co ns iderad a. Tais prát icas co nst it uem-se em at ivid ades co o perat ivas deco rrent es de regras est abelecid as so cialment e, o que ind ica que os p adrõ es de excelência respect ivo s ext rapo la m a so lid ão do execut ant e, para deit ar su as raízes na co let iv idad e. A no ção de “v ida bo a”, co nsid erada para cada u m a fusão de idea is e so nho s cu ja realização per mit e co nsid erar u ma vid a mais o u meno s realizad a 40 o u irrea lizad a, encerra u m ho r izo nt e cu jo est at uto epist êmico resid e no t rabalho incessant e de int erpret ação da ação e de si mes mo , desaguando na análise acerca da ad equação ent re o que se apar ent a melho r para o co nju nt o de no ssa vid a e as esco lhas que go ver nam no ssas prát icas. Esse “movimento ref lexivo p elo qual a avalia ção de certa s ações esti mada s como bo as repo rtase ao auto r dessa s ações” (RICŒUR, 1991, p.202) dá uma pr ime ir a sig nificação à esti ma de si co mo sendo o aspect o reflexivo da visada ét ica. Trat a-se do ju lgament o enq uant o at ribut o pro priament e hu mano , e m sua acepção meno s fo rt e, no sent ido da avaliação da narrat iva de su a pró pr ia vid a, cu ja co nc lusão po derá event ualment e ensejar adesão a u ma no va fo r ma de v ida e ação , u ma mud ança d e curso para readequação da fo r ma d e v id a àquela efet ivament e alme jad a co mo “vid a bo a”. 2.1.2 “... com e para o ou tro ...” A p er manent e int erpret ação da ação e de si mesmo co nst it u i mecanis mo essencial na busca p ela “v ida bo a”, fazendo co m que a reflex iv idade q ue lhe é iner ent e t raga o aparent e r isco da co ncent ração so bre si, u m verdad eiro encerrament o co nt rár io à amp lit ud e qu e suger e o ho r izo nt e da “vid a bo a”. É nessa p erspect iva que ent ra em cena a soli citud e, co mo segu nda co mpo nent e da v isada ét ica de Pau l Ricœur, cu ja relação d ialó g ica co m a estima de si co nst it u i a chave para o alcance do outro co mo si-mesmo, necessár io ao est abeleciment o das relaçõ es ét icas. É que a necessidad e de co nsid eração do outro co mo d ig no de est ima deco rre da exist ência d e su as cap acid ad es. Se so u capaz de avaliar minhas açõ es e est imar bo ns o s fins d e algu mas d elas, so u capaz d e avaliar- me a mi m pró prio , de est imar- me bo m. Trat a-se de u m d iscur so na pr ime ir a p esso a do singu lar – eu, que no p lano ét ico co rrespo nde ao po der-ju lgar. Surge ent ão a dúv ida so bre se a med iação do o ut ro não ser ia necessár ia no t rajet o que leva da capacidad e à efet uação . É em Ar ist ó t eles que Ricœur enco nt ra esse papel de med iado r, mais especifica ment e na amizade, qu e faz a t ransição ent re a per spect iva d a “vid a 41 bo a”, em sua aparência de reflexiv id ade so lit ár ia, e a ju st iça, co mo virt ud e p lur al, d e carát er po lít ico . Amizade que, t id a co mo co nceit o equ ívo co , deve ser esclar ecid a a part ir da indag ação acerca da espécie de co isas q ue a po ssib ilit a, seu “o bjet o ”. Dist ing ue-se a amizad e, nest a perspect iva, segu ndo o “bo m”, segu ndo o “út il” e seg u ndo o “agradável”. Na amizade o r ig inada da ut ilid ade, u m não ama o out ro po r ele mesmo , senão po r u m bem qu e dele ret ira, enquant o dispo n ível e/o u necessár io . O mesmo se d ig a da amizad e agradável, igualment e ut ilit ar ist a po r visar a agradar o o utro a to do custo , e mesmo qu ando dever ia ser desagradado . A amizade virt uo sa, ao co nt rár io , su põ e u ma mut ualid ade d e sent iment o s d e benevo lência em que ca da um ama e é amado pelo outro co mo o que ele é. A semelhança do s ho mens vir t uo so s, na virt ude, é que caract er iza a per feit a amizade, po is os amigo s, nest a circu nst ância, deseja m- se igu alment e bem u ns ao s o utro s enquant o são eles bo ns, e são eles bo ns po r eles mesmo s. Mas a amizade, ainda que verdadeira, virt uo sa, co nst it u i frág il e hipo t ét ico po nt o de equ ilíbr io ent re o dar e o receber, nela pressupo st o s po r hipó t ese. É que a amizade pr essupõ e a recipro cidade qu e não se apresent a na int erpelação de um outro, est ranho , que chama o si à sua respo nsabilid ade. Co mo na hipó t ese do ju iz de d ireit o que inst ru i e co mand a imp erat ivament e a ju st iça, co brando do outro sua r espo nsabilidade nu ma relação de in ju nção . Surge evid ent e o co nt rast e ent re a recipro cidade d a amizad e e a d iss imet r ia da in ju nção . Co mo ent ão inscrever a in ju nção na d ialét ica do dar e receber, o nde a cap acidade de dar em t ro ca não se efet iva po r in iciat iva do o ut ro ? A r espo st a de P au l Ricœur repo usa no s recurso s da bondade, co nsid erada, a u m só t empo , como qu alidad e ét ica do s fins da ação e o rient ação da pesso a para o o ut ro , co mo se u ma ação não fo sse co nsid erad a bo a se não fe it a em co nsid eração e em fav o r de o ut rem. Nessa sit uação , a dissimet r ia da in ju nção reso lve- se po r meio do reco nheciment o , pelo si, da su per io r idade d a aut o r idad e do o ut ro , que lh e prescreve ag ir segu ndo a ju st iça. Nesse po nt o , é em Gadamer que P au l Ricœur 42 bu sca o s fu nd ament o s da r elação ent re aut o rid ade e r eco nheciment o da super io r id ade, que surge co mo at o da liberdade e da razão 2. E m o ut ro ext remo da soli citud e, e de fo rma inver sa da in ju nção , dest aca- se o sof rimento co mo no va fo r ma de desigu aldad e que r eclama co mpensação . So fr iment o aqu i ident ificado pela grad at iva d iminu ição de su a capacidad e de ag ir, at é o alcance d a dest ruição dessa cap acid ade do po derfazer, que o at inge co mo u m go lpe na sua int egr id ade. Uma inst rução realizada so b a fo r ma da in ju nção , a r ig o r, ro mper ia co m a t ro ca do dar e receber, exclu indo a so licit u de. Mu it o embo ra seja apar ent ement e impo ssíve l u ma t ro ca em t a l sit uação , em qu e ap enas o so fr edo r ser ia dest inat ár io da co mp aixão do o ut ro , a igualação ent re ambo s, o r ig inada daqu ele so fredo r, deco rre de u ma simpat ia desp ert ada – q ue não se co nfu nde co m a simp les p iedad e, em que o o ut ro se sabe, no ínt imo , po upado do so fr iment o – pela co nsciência da fr ag ilidade e mo rt alidad e co mo at r ibut o s inexo ravelment e part ilhado s pelo s do is seres e m relação int ersu b jet iva. O fenô meno da igu alação vem assim exp licit ado : 2 De fato, a difa maçã o de t oda autor ida de não é o único pr econceit o cons olida d o p ela Aufklärung. Ela levou ta mb ém a u ma gr ave def or mação do pr ópr io conceit o d e autor ida de. Sobr e a base de u m esclar ecedor conceit o de r azão e lib er da de, o conceit o de autor idade acabou s endo r ef er ido a o op ost o de r azão e lib er da de, a saber , ao conceit o da ob ediência cega. C onhecemos ess e s ignif icado a par tir da cr ít ica às dita dur as moder nas. T oda via, a ess ência da autor ida de não é iss o. Na ver da de, a autor ida de é, em pr imeir o lu gar , uma atr ibuiçã o a p ess oas. Mas a autor ida de das p ess oas não t em o s eu f u nda ment o ú lt imo nu m ato de s ub missã o e d e abdicaçã o da r azão, mas nu m at o de r econheciment o e de conheciment o: r econheces e qu e o outr o está acima de nós em ju ízo e visão e qu e, p or cons equ ência, seu ju ízo pr ocede, ou s eja, t em pr imazia em r elação a o noss o pr ópr io ju ízo. Iss o imp lica qu e, s e a lgu ém t em pr et ens ões à autor ida de, esta nã o deve s er - lh e out or gada; ant es, autor ida de é e deve s er a lca nça da. Ela r ep ousa s obr e o r econheciment o e, por tant o, sobr e u ma ação da pr ópr ia r azão qu e, t or na ndo-s e conscient e de s eus pr ópr ios limit es, atr ibui ao outr o u ma visão ma is acer tada. A compr eensã o cor r eta dess e s ent ido de autor idade não t em a ver com ob ediência, mas com conh eci mento. Nã o r esta dú vida de qu e a autor ida de imp lica necessar ia ment e poder dar or dens e encontr ar obediência . Mas isso pr ovém u nica ment e da autor ida de qu e algu ém t em. A pr ópr ia autor ida de anônima e imp ess oal do sup er ior qu e der iva das or dens não pr ocede, em ú lt ima instância, dessas or dens, mas tor na-as poss íveis. Seu ver da deir o fu nda ment o é, tamb ém aqu i, u m ato da lib er dade e da r azão, qu e conced e autor ida de ao sup er ior basica ment e p or qu e est e p ossu i u ma visã o ma is a mp la ou é mais exp er t o, ou s eja, por qu e sab e melhor . (G AD AMER, 2008, p.370-371) 43 Na ver da deir a simpatia o s i, cu ja pot ência de agir é no começ o ma ior qu e a de s eu outr o, encontr a-se af etado p or tudo o qu e o outr o s ofr edor lhe of er ece em tr oca. Por qu e pr ocede do outr o sofr edor u m dar qu e já não é pr ecisa men te tir ado da sua pot ência de a gir e de ex istir , mas da sua pr ópr ia fr aqu eza. T alvez est eja aí a pr ova supr ema da s olicitu de, qu e a desigualda de da p ot ência venha a s er comp ensada p or u ma autênt ica r ecipr ocida de na tr oca, a qual, na hor a da agonia, r efu gia-s e no mur múr io dividido das vozes ou no ap er to déb i l das mã os qu e s e cu mpr imenta m. (RICŒ UR, 1991, p.223/224) É no cho que da solicitud e co m a estima de si qu e o si se co mpreende co mo u m out ro ent re outro s. A so licit u de t raz u ma d imensão de valo r que t o rna cad a pesso a insu bst it u ív el na no ssa afeição e est ima, de t a l mo do qu e p assam a se equ ivaler fu nd ament alment e a est ima do out ro co mo um si-mesmo e a est ima de si- mesmo como um out ro. Ent ra em cena a cat ego ria filo só fica do reconh ecimento, co mo mar ca cent ral da int ersu bjet iv id ade. Reco nheciment o do o ut ro co mo ser de igu al d ig nid ade à de si-mesmo. Cabe aqu i, pela relevânc ia do reconh ecimento co mo cat ego ria filo só fica e mais esp ecificament e u m do s p ilar es da pr esent e pesqu isa, co nfer ir o t rat ament o que a ela é d ispensado pelo filó so fo 3. Co m o o bjet ivo co nfessado de do t ar as o corrências filo só ficas do vo cábu lo reconh ecimento da co erência de u ma po lissemia regrad a, est abelece co mo hipó t eses de t rabalho a dinâ mica qu e gu ia, em pr imeir o lu gar , a pr omoção d o r econheciment o- ident if icação, em s egu ndo lugar , a transiçã o qu e condu z da ident if icaçã o de a lgo em ger a l a o r econheciment o p or s i mes mas de ent ida des esp ecif ica das p ela ips eida de e, p or f im, do r econheciment o de s i mes mo a o r econheciment o mútu o, até a últ ima equaçã o entr e r econheciment o e gr atidão, qu e a língua fr ancesa é u ma da s r ar as a honr ar . (RICŒUR, 2006, p.10) 3 Paul Ricœur dedica ao t ema u m ensa io pr ovenient e de tr ês conf er ências p or el e r ealizadas no I nst itut für die W iss enschaft en des M ens chens de Viena, r et oma das nos Huss er l- Ar chiv de Fr ibur go ( Alema nha), publicado nu ma ver são fr ancesa da qu elas conf er ências, r etr abalha das e enr iqu ecidas, int itu lado “ Per curso d o reconh ecim ento” (RICŒ UR, 2006) 44 Esse percur so , que vai do u so do vo cábu lo reconh ecimento na vo z at iva at é seu u so na vo z p assiva, t em in ício p ela qu est ão da ident idade, po st o que reco nhecer, nu m pr ime iro mo ment o , nada mais é q ue ident ificar alg u ma co isa em geral. Mas a quest ão da ident id ade per manece – t ransfo r mando -se – at é o fina l, po r ser na id ent idade aut ênt ica, pró pria, que algu ém r eiv ind ica ser reco nhecido , e, em o bt endo t al reco nheciment o , sua gr at idão t erá co mo dest inat ár io aqueles qu e reco nheceram sua id ent idad e, ao reco nhecê- lo . Est abelece- se u ma co rrespo ndência ent re o verbo reco nhecer, na vo z at iva, e o ser reconh ecido d a vo z passiva, po r meio de u ma p assagem int er med iár ia que leva do reco nheciment o -ident ificação para o reco nheciment o mút uo . Ident ificam- se t rês linhas d ist int as na elabo ração do ensa io , cu ja so brepo sição co nst it u i o encadeament o pró prio do que se deno mino u percurso: a pr ime ir a co nst it u íd a pela pro gressão da t emát ica relat iva à id ent idade; a segu nd a pela alt er idad e, que aco mpanha a pro gressão da pr imeir a ( ident idade) ; e a t erceira co nst it u ída pela d ialét ica ent re reco nheciment o e desconh ecimento. No campo da identida de, evo lu i- se da id ent ificação de alguma coi sa em g eral para u m algu ém que, ao final, at inge o si-mesmo co mo algué m ind iv idualizado , do t ado de capacid ades reco nhecidas. Parale lament e perco rrese o t erreno da alteridade, que o st ent a co mo áp ice a mut ualid ade, cu jo s ant ecedent es deit a m raízes no reco nhec iment o de si, em su as cap acid ades, já que o sent ido do reco nheciment o mút uo resid e no desenvo lv iment o das capacidad es d e ag ir, do s agent es, em relaçõ es de recipro cid ade. Relat iva ment e à d ialét ica do reco nheciment o e do desco nhecimento, enco nt ra-se fu ndada na id eia d e qu e o po t encial reconhecimen t o, na vo z at iva, faz-se aco mpanhar sempre d a po ssib ilid ade do equ ívo co , de se t o mar u ma co isa, o u pesso a, pelo que ela efet ivament e não é – mesmo po rque, a t o da cap acid ade co rrespo nd e u ma incapacid ade esp ecífica, que o bscur ece o aut o co nheciment o e o pró prio po der de ag ir, afet ando a identida de e a al terida de. De t al fo r ma que A invest igaçã o do r econheciment o mútu o p ode s er r esu mid a como u ma luta entr e o des conheciment o de outr em e a o mes mo temp o como u ma luta p elo r econheciment o de s i mes mo p elo s outr os. [...] Ousar -se-ia a qu i falar do tr abalho d o 45 desconheciment o na conqu ista do r econheciment o. É ness a imp licaçã o do des conheciment o no r econheciment o qu e s e or ganiza a expr essão de luta p elo r econheciment o: a conf litualida de é sua alma. (RICŒ UR, 2006, p.269-270) Fina lment e é na grat idão que se enco nt ra o desaguado uro do reco nheciment o, u ma vez p erco rr ido o caminho qu e leva at é ele. E m sendo cat ego ria específica da ant ro po lo g ia filo só fica, co nst it u i-se co mo est rut ural do ser hu mano , cu ja busca se faz d e fo r ma incessant e e u niversal pelo ho mem, em sua sing u lar idad e. Daí qu e o enco nt ro co m algo t ão incessant ement e bu scado acarret a sent iment o t ão elevado , que se po de afir mar co nst it u ir-se verdadeir a virt ude. 2.1.3 “... nas institui ções justas” Da apar ent e so lidão da estima d e si q ue o rient a o desejo pela “v id a “bo a”, passo u-se à int ersu b jet ivid ade ma rcada pe la solicitu de, ínsit a à id eia de vid a verd adeira e a u ma no ção do o utro que, reco nhecido co mo po rt ado r da mesma d ig nidade qu e o si-mesmo, já imp lica a id eia de ju st iça. Mas co mo o co nvív io hu mano não se limit a ao face a face, é chegado o mo ment o de examinar est e co nvív io em co let ivid ade, o u, dit o de fo r ma mais precisa, e m u ma comunid ade históri ca. Esse o sent ido de inst it u ição qualificada co mo ju st a em que, na visad a ét ica aqu i t rat ada, o ho mem busca sua vid a bo a, co m e para o s o ut ro s. Surge ent ão a inst it u ição co mo po nt o de ap licação da ju st iça, e a igu aldad e co mo co nt eúdo ét ico do sent ido da just iça, do que resu lt a no va det er minação do si, qu e é a do cada um (a cada u m o seu d ire it o ). To rna-se impo rt ant e dest acar qu e a ideia d e inst it u ição não se car act er iza ainda, nesse po nt o, pelas regras co nst rang edo ras e impo sit ivas, pró pr ias das inst it u içõ es jud ic iár ias. Trat a-se ainda d e u ma per spect iva ét ica em que as inst it u içõ es – vale a rep et ição – são as est rut uras do v iver ju nt o durado uro e co eso em u ma co mu nidade hist ó r ica caract er izad a fu nd ament alment e pelo s co st u mes e t radiçõ es. 46 Essa co mu nid ade hist ó r ica caract er izada p elo s co st u mes e t rad içõ es, a qu e se deno mina inst it u ição , leva- no s ao ethos de que se o r ig ina a p alavr a ét ica 4. E é co m o recurso a Hannah Arendt que Pau l Ricœur enco nt ra a melho r maneira de su blinhar a pr imazia ét ica, do viver- ju nt o , so bre o co nst rang iment o deco rrent e do s sist emas jur íd ico s e po lít ico s: mar cando a d ist ância que se ver ifica ent re o poder- em-comu m e a do minação. O po der o rig ina-se da cat ego ria da ação t o mada nu ma sig n ificação po lít ica, lato sen su, em vist a d a p luralidade que caract er iza a ext ensão das relaçõ es int er su bjet ivas ao s t erceiro s int egrant es das inst it u içõ es. A p luralid ade faz surg ir t erceiro s que, mesmo não sendo ro sto s present es, co nst it u irão a per spect iva de u ma vid a verdadeir a, po st o que as açõ es prát icas ev idenciam- se no deno minado espa ço pú blico de a pari ção, co mu m a t o do s, e não apenas ao s envo lv ido s na int er su bjet iv idad e binár ia. O poder- em-comum enquant o querer ag ir e viver ju nt o é que emprest a à perspect iva ét ica a ind ispensável d imensão da ju st iça, virt ude ét ica celebrad a em Ar ist ó t eles. Mas o senso de ju st iça, so b o pr isma do bo m, surge pela sua falt a. É na queixa q uant o às in ju st iças, q ue mar cam o mu ndo do ho mem e às qu ais ele é sensível, qu e surge a carência do ju st o . É mais u ma vez em Ar ist ó t eles q ue Pau l Ricœur busca o realce da ju st iça co mo virt ude co nso lid ada na mediani a – med ida ju st a, meio -t er mo – ent re do is ext remo s (de falt a e de excesso ). Não é ao acaso que a med iania, na ét ica ar ist ot élica, co nst it u i med ida co mu m às 4 Na língua filos óf ica gr ega, ethiqu e pr oced e do su bstant ivo ethos, qu e r eceb er á duas gr afias dist intas, des ignando mat izes dif er ent es da mes ma r ea lidade: etho s (com eta inicial) des igna o conju nt o de cost u mes nor mat ivos da vida de u m gr up o socia l, ao passo qu e ethos ( com épsilon) r ef er e-s e à constância do comp or ta ment o do indivídu o cu ja vida é r egida p elo ethos - costu me.É, p ois, a r ealida de hist ór icosocia l dos costu mes e sua pr es ença no comp or ta ment o dos indivídu os qu e é designa da p elas duas gr afias do t er mo ethos . N ess e s eu us o, qu e ir á pr eva lecer na lingua gem f ilos óf ica, ethos ( eta) é a tr ansp os ição metaf ór ica da signif icaçã o or igina l com qu e o vocábulo é empr ega do na língua gr ega usual e qu e denota a mor a da, covil ou abr igo dos animais, donde o t er mo moder no Etologia ou estu do d o comp or ta ment o anima l. A tr anspos ição meta f ór ica de ethos par a o mu ndo hu ma no dos costu mes é extr ema ment e s ignif icat iva e é fr ut o de u ma intu içã o pr ofu nda s obr e a natur eza e s obr e as condições de noss o agir (prá xis), ao qual fica m conf ia das a edif icaçã o e pr es er vação de nossa ver dadeir a r es idência no mu ndo como s er es int eligent es e livr es : a mor ada do ethos cu ja destr uição s ignif icar ia o f im de t odo s entido par a a vida pr opr ia ment e hu ma na. ( VAZ, 2009b, p.13) 47 virt udes. E é pela med ian ia, naqu ilo q ue per mit e d ist ingu ir o ju st o do inju st o, que se p assa do p lano int erpesso al ao p lano inst it ucio nal. Tal se d á na perspect iva d e u ma ju st iça d ist r ibut iva, na qu al a id eia de d ist r ibu ição não fica limit ada ao p lano mer ament e eco nô mico , mas co nst it u i- se em at r ibut o essencia l das in st it u içõ es, enquant o regu lado ras d a repa rtição de p apéis, t arefas, vant agens, desvant agens, reco nheciment o ent re o s seu s respect ivo s int egrant es. Nesse po nt o dá-se relevo à ideia d e repart ição : [...] expr ime a outr a face da ideia de par tilha, sendo a pr imeir a o fat o de t omar par te em u ma institu ição; a s egu nda face s er ia a dist inçã o das par tes dest inadas a cada u m no s ist ema d e distr ibu ição. “T er par te em” é u ma coisa, “r eceb er u ma par t e em” é u ma outr a. E os dois s e comp leta m. Por qu e é enquant o as par tes distr ibu ídas são coor dena das entr e elas qu e os por tador es de par t es p odem s er cha ma dos a par ticipar na socieda de consider a da, segu ndo a expr essã o de Rawls, como u ma empr esa de coop er açã o. (RICŒ UR, 1991, p. 234) Evidencia- se dessa repart ição – inexo rável no co nvív io hu mano – a necess idad e de t ransição do plano int erpesso al ao p lano so cial, do qual emergem as inst it u içõ es co mo int egrant es da per spect iva ét ica, já qu e co nst it uem o esp aço pú blico de d ist r ibu ição . E quando se fala em ju st iça d ist r ibut iva ( no p lano a p rio ri) o u reparado ra (no p lano a po sterio ri), so b o enfo que das inst it u içõ es enquant o espaço de repart ição , lato sen su, surge a id eia de igual dade co mo núcleo co mu m a ambas. É o desigual qu e se dep lo ra e co ndena. É mais u ma vez Ar ist ót eles quem id ent ifica co mo in just o aquele que, na part ilha, to ma para si excesso de vant agens relat ivament e às que lhe são devidas, o u insu ficiência de encargo s em r elação ao que lhe co mp et e. E não o faz sem o cu idado de at ent ar para a necess idad e de u ma ig ualdade pro porcion al, já que a iguald ade ar it mét ica não se amo ld a a u m sist ema d e d ist r ibu ição em que d iversa é a nat ureza das pesso as e das co isas d iv id idas. Pau l Ricœur não desco nhece as d ificu ld ades pró pr ias da id eia d e igu aldad e pro po rcio nal, nem mesmo a d ú vid a quant o a ser po ssível d efin ir a igu aldad e sempre em t er mo s d e med ian ia, mas não é seu int ent o enfr ent ar o u 48 afast ar t ais d ificu ld ades, senão marcar a fo rça da ligação ent re ju st iça e igu aldad e. Isso po rque no percurso de seu pensa ment o , a igualdade, seja qu a l a fo r ma em qu e mo du lada, represent a, p ara a vid a nas inst it u içõ es, o que a solicit ude r epresent a par a as r elaçõ es int ersu bjet ivas. Se a soli citud e t raz co mo si-mesmo u m out ro qu e se id ent ifica pelo ro st o, a igu aldade a ela se so ma para t razer, co mo co mp aração de si, o outro qu e é cada u m. O senso de ju st iça supõ e a so lic it ude, que t o rna o ou tro insu bst it u ível, o que, elevado ao cada um, t ranscend e o campo de ap licação da co mu nid ade para at ing ir t o da a hu man idade. Assim é qu e se ju st ifica a visada ét ica d e Pau l R icœur co mo sendo “a perspectiva de uma vida boa co m e pa ra o s outros em in stituições ju sta s”, em que cada u m do s mo ment o s fo r t es aqu i d emo nst rado s equ iva lem respect ivament e, no p lano reflex ivo , à t r íade da estima d e si, d a so licitud e e da iguald ade, essa ú lt ima co mo co nt eúdo da ju st iça, est abelecendo o primado da ét ica so bre a mo ral, na est eira do pred icado bom. 2.2 A visada ética e sua referência na norma moral Mas apesar d e afir mada a predo minânc ia da visada ét ica so br e a no r ma mo ral, não há esp aço para u ma d iminu ição dessa ú lt ima, ao co nt rário , sua grandeza – analisada igualment e so b a fo r ma t r ipart id a – avu lt a do carát er de passag em necessár ia da visada ét ica, que deve se su bmet er à pro va d a no r ma para t o rnar po ssível o ju lg ament o mo ral em sit u ação . Nesse p lano deo nt o ló g ico , a estima de si enco nt ra como co rrespo ndent e o respeito de si, que se expande co m respeit o a o ut rem e ao si-mesmo como um o utro, at é alcançar aq uele que se po sic io na co mo t it ular do d ireit o de esp erar sua ju st a part e nu ma part ilha equ it at iva (RI CŒUR, 1991, p.238). 2.2.1 A perspectiva da “vida boa” e a obrigaçã o 49 Ap esar de ser fat o inco nt est ável que o fo rmalis mo kant iano ro mp e co m a grande t rad ição t eleo ló g ica, não se t rat a de u ma rupt ura abrupt a, já qu e se id ent ificam t raço s da t rad ição t eleo ló g ica em d ireção ao fo r malis mo , assi m co mo u ma ligação da co ncep ção deo nt oló g ica d a mo ral co m a co ncep ção t eleo ló g ica da ét ica. O carát er de universali dade co nst it u i o po nt o de t ransição ent re o s do is mo delo s, po is – já se d isse – a esti ma de si t em co mo o bjet o o reco nheciment o das cap acid ades, t ais co mo capacid ade de ação , esco lha, est imação e ava liação do s fins e da ação , capacid ades est as qu e ganha m co nt o rno s de u niver salid ade q uando co nsideradas est imáveis t ant o quant o nó s mesmo s. São capacidades em razão das quais no s reco nhecemo s, t o do s, membro s do gênero hu mano . Já a deo nt o lo gia mo ral est á fu ndad a na id eia do const rang iment o do dever, que reiv ind ica o mesmo carát er de universalidade, co ncret izado no imp erat ivo cat egó rico . Po r o utro lado , ligação rad ical da o br ig ação mo ral co m a perspect iva d a “v ida bo a”, id ent ifica- se no lugar qu e Kant dest ina ao co nceit o de bo a- vo nt ade: Não há nada em lu gar algu m, no mu ndo e até mes mo f or a dele, qu e s e p ossa p ensar como s endo ir r estr ita ment e b om, a não s er tão-s oment e u ma boa vo ntade. E nt endiment o, engenho, p oder de ju lgar e como qu er qu e s e p ossa m chamar , outr ossim, os talentos da ment e, ou cor agem, ou decisã o, p er s ist ência n o pr op ós it o, enqua nt o pr opr ieda des do t emp er amento, são, s e m dú vida, coisas boas e des ejá veis s ob vár ios asp ect os, ma s podem ta mb ém t or nar -se extr ema ment e más e nocivas, se nã o é boa a vonta de qu e dev e fazer uso dess es dons da natur eza e cuja qualida de p ecu liar se cha ma por iss o de caráter. (K ANT , 2003, p.101) Nessa afir mat iva int ro dutó ria da d eo nt olo g ia mo ral, Pau l Ricœu r evidencia duas co nclu sõ es fu ndament ais: i) “mo r alment e bo m” sig n ifica “irrest r it ament e bo m” o u “ [...] sem co nsideração pelas co nd içõ es int er io res e cir cu nst ânc ias ext er io res da ação ; enqu ant o o predicado ‘bo m’ co nser va a impressão t eleo ló g ica, a reser va ‘sem rest r ição ’ anu ncia a exclu são de t udo o que po de ret irar do uso do predicado bo m sua marca mo ral”; e ii) a vont ad e to rna-se, do ravant e, po rt ado ra do pred icad o “bo m”. 50 Ident ifica, ma is, a preser vação de u ma co nt inu idad e co m a perspect iva ét ica na co nsid eração ho mó lo ga do co nceit o kant iano de vo nt ade e do po der de in iciat iva, de se det er mina r pelas razõ es, pe lo qua l se deflagra u m pro cesso , se dá in íc io à efet iv idade, o que equ ivale às açõ es qu e co nst it uem o o bjet o da est ima d e si. Co m o t raço d iferencial da vo nt ade to mando , na mo ral kant iana, o lugar ant es dest inado ao desejo razo ável na ét ica ar ist o t élica. Enq uant o o desejar – inclusive a felicid ade – sit u a-se no s at o s de d iscurso pró pr io s do optativo, o querer expr ime-se no s at o s de d iscur so do t ipo impera tivo, po st o reconhecer- se o desejo em sua pró pr ia perspect iva, enq uant o a vo nt ade na sua relação co m a le i. Oco rre que a vo nt ade, co mu m a t o do s o s seres r acio nais, é emp ir icament e det er minada pelas inclinaçõ es sens íveis. Aí surge o pro blema do imper at ivo , det erminado pelo aspect o co nst rangedo r do dever. É a pergu nt a so bre se u m co mando t er ia sido emit ido de aco rdo co m as co nvençõ es q ue o aut o rizam, e, na hipó t ese afir mat iva, se esse co mando t er ia sido segu ido da obediência a ele inerent e. A relação ent re co mando e o bed iênc ia est abelece no va d ifer ença ent re a no r ma mo ral e a visad a ét ica. Nessa, o co mando e a o bed iência se fu nd am em relação de aut o r idad e reco nhecida, ent re o si e o outro. Naqu ela, o s po deres d e co mand ar e de o bed ecer (o u deso bedecer) são un ificado s no int er io r de u m si. Passa-se assim a definir a inclinação pelo seu po der de deso bed iência. Nesse po nt o surge a fig u ra da autono mia co mo element o de realce na ét ica kant iana. Aut o no mia co mpreend id a co mo a capacidad e d e det er minar- se a si a pró pr ia lei, reg ida pela u niversalização . Mo ral será a máx ima pass ível de u niversalização , de fo r ma inco nd icio nal. Mas Pau l Ricœur faz reparo s à aut o no mia kant iana, de fo r ma a qu e a at uação do si leg is lado r não se co nfu nda co m u ma po st ura ego ló g ica. Ao quest io nar a “auton omia da aut onomia” , reco nst it u i o sent ido da o po sição ent re auto no mia e het ero no mia, o que resu lt a na co nclu são de que Kant co nst it u i seu su jeit o prát ico nu ma d ime nsão passiva, het erô no ma. É qu e a aut o no mia kant iana se co nst ró i a part ir d o f ato da ra zão, da id eia de respeit o da lei e da propensã o ao mal, resu lt ant e do mal rad ical. Esse ú lt imo int er fer e 51 na capacidad e do ag ir po r dever, na efet ivação da liberdad e e, co nsequent ement e, na cap acid ade de ser autô no mo . Ap esar da cr ít ica ao fo r malis mo da aut ono mia kant iana, a segu nd a fo r mu lação do imp erat ivo cat egó r ico 5 – relat iva ao respe it o às pesso as co mo fim em si – est ar ia a resg at ar, na visão de Pau l Ricœur, a co ncreção necessár ia de u ma relação int ersu bjet iva fu ndad a na recípro ca co nsideração de u m si-mesmo co mo o outro. 2.2.2 A solicitude e a norma A co nseq uênc ia imed iat a da inexo rável o co rrência do mal na int eração hu mana impõ e a necessid ade de u ma passage m da so licit u de à no r ma de resp eit o . E essa t rans ição se d á po r meio da Regra d e Ouro, que est abelece u ma po nt e ent re a so lic it ude e a seg u nda fo r mu lação do imperat ivo cat egó rico . Pau l Ricœur ad vert e que a Regra de Ouro co nst it u i no ção recebid a das endoxas, qu e à filo so fia cu mpre apenas esclarecer e ju st ificar. E assi m fu nd ament a sua assert iva: Or a, que diz a R egr a de Our o? L emo- la em H illel, o mestr e ju deu de Sã o Paulo (T almu d de Bab ilônia, Shabbat, p. 31a): “Não fazes a t eu pr óx imo o qu e tu det esta r ias qu e t e f oss e f eit o. Está aí a lei comp leta; o r est o é comentár io”. A mes ma f ór mu la s e lê no E va ngelho: “O qu e você qu er qu e os homen s faça m par a você, faça- o s emelha nt ement e a eles” (Lc, 6,31) 6. Os mér it os r esp ect ivos da f ór mu la negativa ( nã o faças ...) e da f ór mu la p osit iva ( faça ...) equ ilibr a m-s e; a in ter diçã o deixa em aber to o lequ e das coisas não- def inidas, e as sim dá lu gar para a invenção mor al da or dem do p er mit ido; em comp ensaçã o, o coma ndo p os itivo des igna ma is clar amen te o mot ivo da b enevolência qu e leva a fazer a lgu ma coisa em fa vor d o pr óx imo. A ess e r esp eit o, a fór mu la pos it iva apr oxima-s e d o coma ndo qu e lemos no L evít ico 19,18 e qu e é r et oma do em M t 22,39: “T u amar ás teu pr óx imo como a ti mes mo”; essa últ ima f ór mu la mar ca talvez melhor qu e as pr ecedent es a f iliaçã o entr e a solicitu de e a nor ma. E m comp ensa ção, a fór mu la d e 5 Ass im s e expr essa a segu nda f or mu lação do imp er ativo cat egór ico ka nt ia no: “Ages de tal modo qu e tr ates a hu ma nidade, tant o na tua p ess oa, qua nt o na dos outr os, s empr e como f im e nu nca apenas como meio”. 6 Do mes mo modo em Mat eus : “assim, tudo o qu e você des eja qu e os outr os faça m a você, faça- o você mes mo a eles : eis aí a L ei e os Pr of etas” (Mt 7,12). 52 Hillel e s eus equ ivalent es eva ngélicos ex pr imem melhor a estr utur a comu m a todas essas ex pr ess ões, a saber , a enu nciaçã o de u ma norma de reciprocidad e. (RICŒ UR, 1991, p. 256) A recipro cidade impo st a pela Regra de Ouro pressupõ e u ma d iss imet r ia in icia l que co lo ca os pr ot ago nist as da ação em po sição , respect ivament e, de ag ent e e pacient e. Isso po rque a o co rrência do ma l acarret a a vio lência, o casio nada po r meio do poder que u m exerce sob re a vo nt ade do o ut ro . Pau l R icœur enco nt ra nesse p oder sob re a o casião po r excelência do mal da vio lência, assim t ão bem d escr it o : A inclinaçã o des cendent e é fácil par a balizar des de a inf lu ência, f or ma doce do poder sobre, at é a tor tur a, for ma extr ema do abuso. N o pr ópr io domínio da violência f ís ica como us o abusivo da f or ça contr a outr os, as f igur as do ma l sã o inú mer as, des de o simp les us o das a mea ças, passando p or todos os gr aus de constr angiment o, at é a mor te. D essas f or ma s diver sas, a violência equiva le à diminu ição ou à destr uição d o poder fazer de outr em. Mas ainda há o p ior : na t or tur a, o qu e o car rasco pr ocur a atingir , e às vezes – ah! – cons egu e destr uir , é a est ima de s i da vít ima, est ima qu e a passagem p ela nor ma levou à condiçã o de r esp eit o de s i. O qu e cha ma mo s hu milha ção – car icatur a hor r ível de hu mild ade – nã o é outr a coisa qu e a destr u içã o do r es p eit o de s i, acima da destr uiçã o do p oder fazer . (RICŒ UR, p. 257-258) Sem o lvid ar a vio lência d issimu lada na linguag em co mo at o do d iscur so , co m dest aque p ara as pro messas não cu mpr idas e a ast úcia, essa ú lt ima a abu sar dup la ment e da co nfiança do o ut ro , po r meio da iro nia e da habilidade, passando pela “persist ência obstina da da s f orma s d e violên cia sexu al, desde a o pressão d as mulheres at é o estup ro, passan do pelo calvári o das mulheres que apanha m e da s cria n ças malt ratada s” ( RICŒUR, 1991, p.258), o filó so fo assinala que o fo r malismo do pr incíp io da u niversalização co nt ido no imper at ivo cat egó rico kant iano 7, co mo cr it ér io t ranscend ent al d e universalização das máximas d e at uação , leva a u ma u niver sa lização abst rat a. 7 “Age de tal f or ma qu e a máxima de tua vont ade p ossa s empr e valer a o mes mo temp o como pr incíp io de legis laçã o u niver sa l” 53 E advert e que a pr imazia da id eia eng lo bant e de hu manid ade co mo dest inat ár ia fu ndament al do respeit o , em Kant , não po de o blit erar a p lur alidad e das p esso as e sua alt er id ade, impo st a pela so licit ud e. 2.2.3 Do senso de ju stiça aos “ princípios de jus tiça” Já se d isse que a id eia de di st ribui ção enco nt ra-se vincu lad a ao senso de just iça, na med ida e m que a ju st iça, co mo at ribut o das inst it u içõ es, co nsist e na d ist r ibu ição de vant agens e encargo s, nu ma visão mais amp la, além do pró pr io tomar p art e das p esso as no sist ema de part ilha, t udo isso so b o sig no da igualdade. Oco rre que a ideia de ju st a part e, co mo legado da ét ica à mo ral, apresent a-se marcad a p elas amb igu idades, seja quant o a ela pró pr ia, seja quant o à igua ldad e enquant o co nt eúdo da just iça. É d a t ent at iva d e esclarecer essas amb igu id ades que surg e a t ent at iva de impr imir à id eia de ju st iça u m est at uto est rit ament e deo nt o ló gico . Mas ad vert e (RICŒUR, 19 91, p.267) que u ma fo r malização semelhant e so ment e alcança suas fina lid ades se ado t ada u ma co ncepção purament e pro cessual da ju st iça. Daí a apro ximação deo nt o ló g ica co m a t radição co nt rat ualist a, em q ue a ficção de u m co nt rato so cial per mit e qu e u ma co let iv idad e supere o est ado de nat ureza para alcançar u m est ado de d ireit o . Co m t al ficção , o co nt rato t er ia o co ndão de gerar o s pr inc íp io s d e ju st iça. Esse co nt rato est aria a o cupar, no p lano das inst it u içõ es, o mesmo espaço da aut o no mia no p lano fu nd ament al d a mo ralidade. E é assu mindo a id eia de u m co nt rat o o rig inal que Rawls pro põ e uma t eo ria da just iça d e o rient ação ant it eleo ló g ica est r it a, co mo reação específica ao ut ilit ar is mo qu e havia pr edo minado no mu ndo de língu a ing lesa. Mas se a t eo ria rawls iana d a ju st iça é deo nt o ló g ica, Ricœur não reco nhece nela u ma fu ndament ação t ranscendent al, já qu e é do co nt rato so cial q ue se ext raem o s pr incíp io s d e ju st iça de u m pro ced iment o equ it at ivo , sem preo cupação co m qu alquer cr it ér io o bjet ivo de ju st o , para evit ar, deliberad ament e, a r eint ro dução de pressupo siçõ es referent es ao bem. 54 Pau l Ricœur (2 008a, p.67-6 8) arr isca afir mar que a ju st iça enquant o equ idad e pro ced iment al t em co mo fina lid ade co nst it u ir u ma so lu ção t errest re para o parado xo do leg is lado r em Ro usseau 8, po is p art e da alego r ia do véu d e ignorân cia, cu ja ap licação co nsist e na presu nção de qu e as pesso as e m relação desco nhecem seu lug ar na so ciedade, sua so rt e na d ist r ibu ição do s bens nat urais, sua int eligência, fo rça, e at é sua co ncepção de bem o u su as inc linaçõ es p sico ló g icas part icu lares. Esse pressupo st o garant ir ia a anu lação do s efeit o s d e co nt ingência, deco rrent es t ant o da nat ureza q uant o das cir cu nst ânc ias so ciais, ensejando u ma eq u id ade d a sit uação de part ida. Mas Pau l Ricœur insist e no carát er não hist ó rico e apenas hipo t ét ico dessa alego r ia, que não enco nt rará respaldo na r ealidad e emp ír ica. Po r o ut ro lado , o aspect o subjet ivo da o br ig ação mo ral k ant ian a reside no respeit o, co mo sent iment o racio nal a prio ri do ser o br ig ado . Mas para Pau l Ricœur (2 008 b, p.51) do po nt o de vist a do su jeit o o br igado , necessar iament e imput ável, há a necessidad e d e reco nheciment o de u ma leg it imidade da no r ma r egu lado ra d as co ndut as, co mo deco rrência nat ural d a aut o no mia (det er minação mút ua ent re no r ma e su je it o o br ig ado ). Difer ent ement e de Kant , apo nt a co mo asp ect o subjet ivo d a o br igação mo ral o senti mento de ser o br igado , que se int erp õ e ent re mo ral e ét ica. E são mu it o s – na est eira d e “Max S cheller, em su a Éthique matériell e des val eu rs”, to mada po r Ricœur – o s sent iment o s mo rais que po dem levar ao cu mpr iment o (o u não ) do dever, que não o respeit o , dent re eles “a vergo nha, o pudo r, a ad mir ação , a co ragem, o devo t ament o , o ent usiasmo , a veneração ”, dest acando -se ainda, dent re t ant o s, “a ind ignação ”. Co m a cr ít ica d ir ig ida à t ent at iva de fazer prevalecer u ma t eo ria purament e pro ced iment al d a ju st iça, Ric œur reco nhece a necessid ade de u ma refer ência da visada ét ica na d eo nt o lo g ia mo ral, t endo present e a ex ist ência 8 Ass im s e vê o par adox o, no C ontr ato S ocial: “Para descobr ir as melhor es r egr as d e socieda de qu e convêm às nações, s er ia pr eciso u ma int eligência sup er ior qu e viss e todas as paixões hu ma nas e qu e não s ent is s e nenhu ma; qu e nã o tivess e nenhu ma r elação com nossa natur eza e a conhecess e a fu ndo; cu ja f elicida de f oss e indep endent e de nós, mas qu e t ivess e a b oa vonta de de cu idar da nossa; enf im, qu e no pr ogr ess o dos t emp os t ivess e gr anjea do u ma glór ia longínqua, qu e pu dess e tr abalhar nu m s éculo e f olgar em outr o. S er ia pr ecis o qu e os D eus es cr iass em leis par a os homens. ” ROUSSE AU, J.J. Du contract social. Par is: Aub ier , ed. Montaigne, lvr o II, cap. I, p.179-80, apud RICŒUR, 2008a, p.68) 55 do mal e sua influ ência nas açõ es prát icas, bem co mo a necessid ade d e int erd it á- lo . 2.3 O recurso da norma moral à visada ética É fu ndament alment e o r igo r suscit ado pelo fo r malis mo qu e impr ime grav idad e ao ju lg ament o mo ral em sit uação , na med id a em que – já se viu – o s caso s co ncret o s, d iant e da sing u lar idade pró pr ia da vid a real, são impreg nado s de p ecu liar idad es qu e não per mit em u ma p er feit a su bsu nção à no r ma mo ral. Diant e de t al d ificu ldade para pro fer ir o ju lgament o , recurso não há senão buscar a insp ir ação da visad a ét ica, fu ndad a na bu sca pela “vid a bo a” co m e para o s o ut ro s, co mo caminho para fo r mar a co nvicção que levará ao ju lg ament o mo ral em sit uação , viv ificando a no r ma mo ral co m essa int egração que se po de deno minar sabed oria prática. 2.3.1 Instituiçã o e conflito Uma vez est abelecid a a regra mo ra l, co mo fo r ma d e int erd it ar a vio lência surg ida no s at o s int ersu b jet ivament e pr at icado s na busca p ela vid a bo a, no vo mo ment o surge nest a d inâmic a, que é o da so lução do co nflit o efet ivament e surg ido na ap licação d aquela regra. Esse co nflit o cu ja po ssib ilidade já se prenu nciava no po nt o em que enu nciada a ideia de ju st iça enquant o distribui ção. É que a mu lt ip lic idad e e d iver sid ade d as vant ag ens e encargo s, o bjet o da d ist r ibu ição , a dest inat ár io s t ambém d iversificado s, abre a po ssib ilidade de d iscó rd ia quant o ao valo r das co isas a d ist r ibu ir, bem assim à igu aldad e d as part es, seja ent re si o u en t re elas pró pr ias e suas respect ivas co nt r ibu içõ es ind iv id uais o u co let ivas. A pró pria nat ureza d iversa das co isas – que o st ent am u m preço – e as p esso as – t it u lar es de valo r – imp ed e u ma simp les d ist inção ent re t ais cat ego rias co mo fo r ma de so lução do co nflit o d ist r ibut ivo . 56 Essa mu lt ip licid ade e d iversid ade de vant agens e encargo s, dest inado s a int egrant es de u ma co let iv idade, na qu al t o mam p art e, remet e necessar iament e a u m pr ime iro co nflit o surg ido no âmb it o po lít ico , o que invo ca aquele poder em co mu m pró pr io das inst it u içõ es, e que se o põ e à dominaçã o. Quando a do minação o prime o po der em co mu m, mer cê da fo rça do s go ver nant es so bre o s go ver nado s, é à virt ude da ju st iça q ue cu mpre rest abelecer a ju st a equação , t razendo de vo lt a a do minação ao co nt ro le do poder e m co mu m. Na d ist ância ent re pod er e domin ação reside a po ssib ilid ad e d e defin ição da d ist r ibu ição p olítica do po der co mo co nju nt o po lít ico , seja das na prát icas relação o rganizadas ent re p ara go ver nant es e go ver nado s, o u mesmo ent re grupo s qu e se r iva lizam na d ist r ibu ição do po der. Surgem ent ão o s co nflit o s pró prio s dest as relaçõ es, qu e se po de m classificar em t rês níveis: i) nas regras de deliberação quant o à pr io r id ad e ent re o s bens d a part ilha; ii) no debat e acerca do s f ins do “bo m” go ver no ; e iii) no pro cesso de esco lha do s mo do s de pro ceder do go ver no demo crát ico . No pr imeiro nível, po de-se p erceber de saída q ue o est abeleciment o das pr io r id ades não será ja mais defin it iv o , mas limit ado a u ma d et er minad a co nju nt ura hist ó r ica, em q ue o s debat es público s respect ivo s se realizam, t razendo u ma defin ição do bem pú blico que nada t em d e cient ífico o u do g mát ico . Trat a-se de u m ju lg ament o em sit uação resu lt ant e – espera- se – de u ma bo a deliberação . No segu ndo n ível, ident ifica- se u ma co rrelação , ent re o “bo m” go ver no e a “vid a bo a” p ersegu id a pela visad a ét ica, po is, se a vid a bo a é perseg u ida nu m co nt ext o so cial, a ident ificação do “bo m” go ver no dest a co let ivid ade de it a su as in flu ências naquela asp iração ind iv idual, o que co lo ca o debat e acerca do co nflit o so bre o “bo m” go ver no no caminho de vo lt a d a mo ral à ét ica. A fu nção dest e debat e é a d e eleição de u ma fo r ma de Est ado . Mas o s fins a ser em p ersegu ido s po r um bo m go ver no alcançam u ma p lur alidad e qu e at inge as raias do indet er minável. Ricœur (1991, p.303) cit a, exemp lificat ivament e, “ palavra s-chave como segu rança, pro sperida de, liberd ade, iguald ade, solida riedad e, etc”. Essa mu lt ip lic idade de fins do “bo m” go ver no impõ e o sacr ifíc io de u ns em d et r iment o de o ut ro s, nu ma 57 avaliação que apenas a co nju nt ura do mo ment o per mit e, segu ndo a phrón esi s ar ist ot élica. No t erceiro n ível, q ue t rat a da leg it ima ção da d emo cr acia, ganha relevo a d ist inção já feit a, ent re poder em co mu m e domin ação, po is u m reg ime d emo cr át ico pressupõ e a do minação , mas no s est r it o s limit es do po der em co mu m, e o querer viver e ag ir de u m po vo se id ent ifica naqu ele esp aço púb lico de d iscu ssão que abr iga as t rad içõ es calcadas na hist ó r ia co mo fo nt e da t o ler ância e do p luralis mo . Dessas t radiçõ es é qu e se ext rai o “bo m co nselho ” qu e, equ iparado à phrónesis ar ist ot élica, resu lt a do debat e. Nesse po nt o é aind a em Ar ist ó t eles q ue Pau l Ricœur bu sca o resu lt ado da ap licação da phrónesi s: Não s er ia ocas ião de lembr ar a distinção qu e Ar ist ót eles faz, no f im de s eu estu do da vir tude de just iça, entr e just iça e equidade? “Ao ver if icar isso com atençã o, par ece qu e a just iça e a equida de nã o sã o nem abs oluta ment e idênt icas, n e m gener ica ment e dif er ent es (...) Com ef ei to, o equ itá vel [épiei kés ], s endo comp leta ment e sup er ior a u ma cer ta just iça, é ele pr ópr io just o e nã o é como p er t encent e a um gêner o qu e é sup er ior ao just o”. Qu e a dif er ença entr e a super ior ida de e equ idade com r elaçã o à just iça t enha u ma r elaçã o com a fu nçã o s ingu lar iza nt e da phrónesis, o pr ópr io Ar ist ót eles suger e: “ A r azão diss o é qu e a lei é s empr e algu ma coisa ger a l e qu e ex ist em casos de esp écie p elos quais não é p oss ível colocar u m enu ncia do ger a l qu e s e apliqu e aí com r etidã o”. A equ idade r emedia a just iça “lá onde o legis lador omit iu pr ever o cas o e p ecou p elo esp ír it o de s implif icação”. C or r igindo a omissão, o s oluciona dor público faz-s e o int ér pr et e do qu e ter ia dit o o pr ópr io legis la dor se ele est ives s e pr es ent e nes s e mo ment o e do qu e ele t er ia tr azido na sua lei s e ele tivess e conhecido o caso em qu estão. E Ar ist ót eles conclu i: “T al é a natur eza do equ itável: é de s er u m cor r etivo da lei, lá onde a lei falt ou estatuir devido à sua gener alida de”. (RICŒ UR, 1991, p.306) É nessa linha que Pau l Ricœur ( ib id.) se d iz inclinado a co nsiderar “o debate p úblico e a toma da de d eci sã o que del e result a [como] a úni ca instân cia habilita da a ‘corrigi r a omi ssão’ que chamamos hoj e ‘cri se d e legitima ção’.” E o co ro lár io desse pensament o é que equ idad e t orna-se o equ ivalent e do senso da ju st iça, u ma vez at ravessado s o s co nflit o s que su sc it a a ap licação da regra de just iça. 58 2.3.2 Respeito e confli to A qu est ão do respeit o faz ressurg ir, no campo da ap licação da no r ma mo ral nu ma sit u ação co ncret a, a cr ít ica acerca d a co ncepção abst rat a e fo r malist a d a ideia de hu man idad e na segu nda fo r mu lação do imp erat ivo cat egó rico . É que o elevado grau de abst ração da no r ma em sit uaçõ es d e co nflit o , t idas co mo ind ecid íve is, dá ensejo à po ssib ilid ade de u m co nflit o “já que a alteridad e das p essoa s, inerente à próp ria idei a de plu ralidad e human a most ra-se em universa lidade certas da s ci rcunst ância s reg ra s qu e notáveis, suben t endem a incoo rd enável id eia de com a h umanida de” (RICŒUR, 199 1, p.307). Cind e-se o respeit o em respeit o da le i e resp eit o das pesso as. É o nd e Ricœur enxerg a a po ssib ilid ade d a sabedo r ia prát ica dar pr imazia ao respeit o das p esso as em at end iment o ao chamado da soli citud e que se vo lt a para as pesso as na singu lar id ade que as t o rnam insu bst it u íve is. Um do s exemp lo s se d á no âmb it o do que Pau l Ricœur (199 1, p.314) deno mina “a vid a acabando ”, relat ivo à verdade dev ida ao s mo r ibu ndo s. E le id ent ifica d uas alt er nat ivas que se abrem: d izer a verdad e indep endent ement e da efet iva co nd ição do pacient e para recebê- la, em o bed iência ceg a ao respeit o devido à supo st a no r ma de fidelid ade, que não ad mit e exceção ; o u ment ir deliber adament e co mo fo r ma de evit ar a ent rega de u m ser a mado que reun iu suas fo rças na lut a co nt ra a mo rte. Ad vert e ainda que, nest es caso s amb íguo s, o que a sabedo r ia prát ica impõ e é u ma med ida ent re a felicid ade e o so fr iment o . Mas ent re as du as alt er nat ivas, qu e se po de d izer ext remas – d a verdade e da ment ira – aind a se po de enco nt rar açõ es qu e pro mo vam u ma gradação de ambo s o s valo res. Assim n as h ipó t eses alt er nat ivas em qu e se revela a do ença, seu grau de grav idade, a po uca pro babilid ade de so brevivência o u a verd ade clín ica co mo co ndenação à mo rt e. O d izer a verdade sempre, pelo respeit o devido à regra da fidelid ade, imp lica impo sição de so fr iment o desnecessár io , em det er minadas sit u açõ es, nas quais so ment e 59 co m a sabedo r ia prát ica se po de ident ific ar e aqu ilat ar a ext ensão da verdade po ssível, no caso em sit uação . Out ro exe mp lo se d á na fig ura d a p romessa não cu mpr id a, fo nt e gerado ra do sent iment o de inju st iça já na infância. É que ao se est abelecer u ma pro messa, t o rna-se leg ít ima a exp ect at iva d e seu dest inat ár io no sent ido de qu e seja ela cu mpr id a. Per sist ir no int ent o não sig nifica, po rt ant o, u m at o de o bst inação pesso al, mas o at end iment o à recip ro cidade naqu ilo qu e sig nifica co rrespo nd er à ju st a exp ect at iv a do o ut ro que co nfio u na palavra empenhada. Po r o ut ro lado , o descu mpr iment o da pro messa represent a t raição a est a expect at iva, em relação ao o ut ro , no p lano imed iat o , e, no med iat o , à inst it u ição da linguag em, que pressu põ e a co nfiança mút ua ent re su jeit o s falant es. O t raço que marca a sabedo r ia prát ica, na avaliação do caso e m sit uação , para ap licar o u não a regra mo r al, e em que ext ensão , respo nd e p elo no me da sol icitud e, qualificada ago ra co mo crítica, co m o o lhar vo lt ado para a alterid ade das pesso as. 2.3.3 Autonomia e conflito A essa alt ur a já deve est ar clara a id eia de que a pró pr ia mo ralid ade, po r meio do s co nflit o s que emanam d e seus respect ivo s pr essupo st o s, é que se remet e à visada ét ica, mais esp ecificament e pelo co nfro nt o da pret ensão universalist a, ligada às r egras, co m o reco nheciment o do s valo res po sit ivo s, relat ivo s ao s co nt ext o s hist ó rico s e co mu nit ár io s d e ap licação das d it as regras. E m rememo ração po de-se d izer que o pr imeiro quest io nament o que leva a est a co nclu são recai so bre a “p rioridad e reconhecida por Ka nt a o princí pio d e auto nomia com relaçã o ao respeito aplicado à plu ralidad e da s pessoa s e ao p rincí pio d e ju stiça pert inente ao plan o da s in stitui ções” (RICŒUR, 19 91, p.320). O segu ndo qu est io nament o recai so bre o sent ido rest r it ivo que emana da redu ção da pro va de universalização da máx ima à su a 60 não co nt rad ição int er na. O t erceiro quest io nament o sit ua- se no campo da reco nst rução do fo r malis mo pela ét ica do d iscur so , em Apel e Haber mas. Ganham relevo , no present e co nt ext o , o s do is ú lt imo s, em relação ao s quais parece co nvenient e u m apro fu ndament o . Relat ivament e ao segu ndo quest io nament o , t em ele co mo pano de fu ndo a co erência que se deve esper ar de u m sist ema mo r al, no sent ido de que, nu ma análise vert icalizad a, é do pr incíp io ma is elevado da mo ralid ade – exemp lificat ivament e a seg u nd a fo r mu lação do imp erat ivo cat egó r ico – que se ext raem u ma mu lt ip lic idad e d e deveres, t o do s d ir ecio nado s ao t rat ament o não apenas da hu manid ade, mas d e cada pesso a, co mo u m fim e nu nca co mo meio . Na análise de validad e de u ma máx ima, segu ndo sua co nfo r mação àquela fo r mu lação do imper at ivo cat egó rico , to rna-se necessár io aqu ilat ar não apenas acerca de event ual co nt rad ição int er na – co m o que se co nt ent a o fo r malis mo mo ral – mas, indo além, ver ificar se fica mant ida u ma co erência do co nju nt o das regr as. A r elevância da o bjeção se mo st ra no fat o de que o s deveres surgem no limit e espaço -t empo ral est abelecido pelo co nt ext o de u ma det er minada cu lt ur a hist ó r ica. Est abelece- se ent ão u ma analo g ia do sist ema mo ral co m o jur íd ico , no t o cant e à bu sca pela co erência, co m realce para o s aut o res de língu a ing lesa, qu e não desprezam a flexib ilid ade e a invent iv idade deco rrent es do pró prio sist ema d a common la w. É a hipó tese do ju lgament o de u ma pret ensão que recaia so bre fat o que não fo i ainda o bjet o de decisão . O ju iz buscar á ent ão o s preced ent es assemelhado s na busca da co nst rução de u m pr incíp io que t enha o r ient ado aqueles caso s já ju lg ado s, e q ue t ambém venha a se ap licar a o ut ro s co mo o que ent ão se apresent a a ju lgament o . Esse o mecanis mo pelo qual se preser va a co erência do sist ema jur íd ico . São mar cant es as p ecu liar id ades d ist int ivas do sist ema jur íd ico , co mo a no ção precisa que se t em do s precedent es enqu ant o ent end iment o s já co nsagrado s em ju lgament o s do s t ribu nais, co m fo rça co at iva de lei, alé m da aut o rização das inst âncias p ú blicas p ara co nst rução da no va co erência reclamada pelo s caso s no vo s. Po r fim, e igualment e impo rt ant e, o fat o de que a respo nsabilidade do ju iz, p ara co m a co erênc ia, expr ime u ma co nv icção co mu m de que ela co nvém ao bo m go ver no do s ho mens. 61 O que se espera, d iant e de t al cr ít ica, é q ue o sist ema mo ral se abr a para as per spect ivas co ncret as, de fo r ma a imp ed ir, co mo no sist ema jud icia l, que a impo sição do respeit o a u m dever não o br igu e o agent e ao descu mpr iment o de o utro , em no me de u m fo r malis mo her mét ico que fecha o s o lho s à r iqueza das mú lt ip las e in fin it as p o ssib ilidad es do co nt ext o fát ico . Rest a ent ão abo rdar o t erceiro quest io nament o , em qu e a cr ít ic a recai t ambém so bre u ma u n iver salid ad e que – embo ra fu ndament al p ara afast ar o s relat iv is mo s – t end e a mascarar o s co nflit o s d eco rrent es d a ap licação da no r ma. Nessa linha d e racio cín io é qu e Pau l Ricœur aco mp anha a t ese de que a so lução do s co nflit o s se dar ia na bu sca pelo melho r argu ment o , co m fo ro s de u niver salid ad e. Mas t o ma r u mo d iferent e a part ir do mo ment o em qu e reco nhece nas med iaçõ es prát icas u m requ is it o fu nd ament al à bo a ap licação da no r ma, requ is it o est e que, se não se po de imp lement ar po r meio das co nvençõ es, repelid as po r Haber mas, po derá sê- lo po r meio d e u ma d ialét ica ent re argu ment ação e co nvicção 9. Para exe mp lificar est a d ialét ica, que reflet e u m equ ilíbr io ent re universalismo e co nt ext ualis mo , refere-se à d iscu ssão co nt empo rânea acerca do s d ireit o s do ho mem, ca lcad a no t ext o que veicu la a declar ação do s d ireit o s hu mano s, co m pret ensõ es u n iver salist as. Mas é sab ido que so bre ele r ecai a cr ít ica do relat iv ismo po r se revelar fr ut o da cult ura est r it ament e o cident al, co m u ma de su as raízes deit ada no cr ist ian ismo . Pau l Ricœur se recusa a segu ir t al linha de racio cín io , o ferecendo u m d esvio qu e co ndu z ao p arado xo de mant er a pret ensão u niver sal v incu lada a valo res qu e po ssib ilit em o cruzament o do universal e do h ist ó rico , e o ferecer t al pret ensão à d iscu ssão , não apenas em t er mo s merament e fo r mais , mas co mo convi cções inser id as e m fo r mas de vida co ncret as, em que event ual co nsenso pro cede de u m reco nheciment o mút uo de recept ibilid ade. E assim arremat a: 9 Ricœur consider a essa convicção como ex pr essã o de “t oma das de p os ição da s qua is r esu lta m as s ignif icações, as int er pr et ações, as avaliações r elativas aos b ens mú lt ip los qu e baliza m a esca la da pra xis, desde as pr áticas e s eus b ens ima nent es, passando p elos p lanos de vida, p elas hist ór ias de vida, at é a concepçã o qu e os hu ma nos s e fazem s ozinhos ou em comu m do qu e s er ia u ma vida comp leta.” (1990, p.336) 62 Soment e u ma discussã o r ea l em qu e as convicções s eja m convidadas a s e elevar acima das convenções poder á dizer , n o fim de u ma longa hist ór ia ainda p or vir , quais u niver sa is pr et endidos t or nar -se-ão u niver sais r econhec idos p or “todas as p ess oas int er essa das” (Hab er mas ), ist o é, da qu i em diant e, p elas “p ess oas r epr es entat ivas” (Rawls ) de t odas as cultur as. A ess e r esp eit o, u ma das fis ionomias da sab edor ia pr ática qu e p er s egu imos a o longo dest e estu do é essa arte da conver saçã o em qu e a ética da ar gu mentaçã o s e pr ova no conf lit o das convicções. (RICŒ UR, 1991, p.338) Just ificad a a necessidad e do recurso da no rma mo ral à visad a ét ica, fecha-se o círcu lo que se in icio u co m a perspect iva ét ica, a revelar u ma ind isp ensável co nst rução d ia lét ica deco rrent e da at ração do pred icado just o para o lado t anto do bom quant o do legal. Esse o lugar filo só fico do justo em Pau l R icœur: u m po nt o sit uado ent re o bom e o legal, assim co mo – vale o reg ist ro pela feliz co incid ência – em Ar is tót eles, a virt ude da ju st iça sit u a-se nu m po nt o ent re o excesso do tomar-se d emais e a fa lt a de não contri buir o suf iciente para o s encargo s da cidade, po nt o esse qu e respo nd e pelo no me d e igualdade. 63 3. JULGAMENTO JUDICIÁRIO JUSTO Apó s d esenvo lver o que se po de co nsid erar u ma feno meno lo g ia do ju lg ament o jud iciár io , chego u-se a sua d efin ição co mo sendo a delib eraçã o tomada por um ser humano i nvestido da s f unções de j uiz, em nome de u m corpo so cial o rgani zado em f orma d e Estado, ao f im de um processo como curso d e uma açã o, e qu e põ e f im ao esta do de i ncerteza g erado p elo conf lito trazido a j ulgamento n um caso con creto. Alert o u-se, no ent ant o , para o fat o de qu e u m ju lgament o t o mado no âmbit o de t al defin ição não encerra necessar iament e o qualificado r justo, do que deco rre a ident ificação do lugar filo só fico do justo para que a defin ição do ato de ju lg ar, em su a feição jud ic iár ia, inco rpo re t al pred icado . O lu gar filo só fico do justo, no ju lg amen to mo ral em sit uação , fo i id ent ificado co mo u m po nt o ent re o bom e o legal, a p art ir de u m mo viment o inst aur ado co m a prepo nderância da visad a ét ica so bre a no r ma mo ra l, passando pelo recurso daquela a est a, e cu lminando co m o reto rno da no r ma mo ral à visad a ét ica, co mo fo r ma de preencher o vazio deixado pelo fo r malis mo . Tal se d eu no co nt ext o da visada ét ica d e Pau l Ricœur, qu e co nsist e em bu scar “uma vid a boa com e para os outros em in stituições justa s”, quando se deu a in stituições ju stas o sig nificado de “est rutu ra s do viver junto duradou ro e coeso em uma comunida de hi stó rica caracteri zad a f undamentalmente pelo s co stumes e t radições”. Para que se realize a t ransição do p lano mo ral p ara o jur íd ico , as institui ções justa s, do ravant e, abando nam a generalid ade qu e at é aqu i as mar co u e passam a assu mir a sig nificação específica das inst it u içõ es jud ic iár ias, aqu ilo q ue Ricœur deno mina canai s da justi ça co nst it u ído s pelo s tribunai s e co rtes d e ju stiça, com seus j uí zes. Nessa per spect iva, d e fo co mais fechado , a igual dade ant es co nst it ut iva do p lano reflex ivo , no âmb it o da 64 mo ralid ad e, assu me ago ra as feiçõ es da equidad e no espect ro jur íd ico . Não po r o utra razão o fo co no r mat ivo se fecha t ambém p ara aquele âmb it o d a mo ralid ad e qu e, pela relevância deco rrent e da necessid ade de preser vação do co nvív io so cial e d a pró pr ia so ciedad e, fo i alçado ao p lano da co ercit iv idad e, vale d izer, o nd e ant es se falava de lei moral e sua ap licação no caso e m sit uação , passa- se ago ra a falar em lei jurídi ca e su a ap licação no caso co ncret o , o u em sit uação . Nessa per spect iva é qu e se vê cheg ado o mo ment o de ad ic io nar ao ju lg ament o jud iciár io o pred icado justo, id ent ificado ent re o bom e o legal, co m o desenvo lv iment o de sua feno meno lo g ia, passando pela id ent ificação das respect ivas co nd içõ es d e po ssib ilidade para a lcançar sua defin ição . O percurso t raçado para cu mpr iment o desse o bjet ivo t em in íc io co m a ju st ificação da busca p ela q ualificação do justo, qu e resu lt a t ant o da presença ime mo r ial do sent ido da ju st iça na ex ist ência hu mana quant o na pacificação so cial co mo finalid ade ú lt ima do ju lgame nt o jud iciár io , o que indu z à id eia d e necess idad e do cu mpr iment o de seu ergo n para que t al ju lgament o se revele ét ico . E será no reconh ecimento co mo cat ego ria filo só fica que per me ia a t ríad e d a esti ma d e si, solici tude e i gualdade, ago ra represent ada pe la equidad e, que se revelará a chave para int erd ição da v io lência co mo fo r ma d e alcançar a almejada paz so cial. Será na q ualificação do ju iz, do pro cesso e da sent ença pelo s at o s de efet ivação do reco nheciment o que se alcançará o ju lgament o jud ic iár io co mo atr ibut o pro priament e hu mano e qualificado pelo pred icado ju st o . Mas será d emo nst rado que o reco nheciment o , em su a amp lit ude, imp ede q ue o ju lg ament o jud iciár io ju st o co mp let e seu ciclo co m a simp les pro lação d a sent ença, na med id a em que a int erd ição efet iva da vio lência so ment e se realizar á – em alg u ns caso s co mo o da cond enação penal – no mo ment o da su a pró pria execu ção , que acarret a int er ferência real na ó rbit a pesso al do co ndenado e da vít ima. 3.1 Julgamento judiciário justo em sua fenomenologia 65 O ju lgament o fo i t rat ado, inicia lment e, co mo at o de razão pro priament e hu mano , qu e assu me escala de d imensão crescent e, desde o exame da pró pr ia vida, no co nt ext o narrat ivo , em que se fazem esco lhas q ue det er minam o curso dessa mesma vid a, passando pelas relaçõ es int ersu bjet ivas e at ing indo o co nt ext o so cial e po lít ico , nas decisõ es acerca d a fo r ma d e d ist r ibu ição de bens e encargo s e da pró pr ia part icip ação de cada u m nesse sist e ma de part ilha. O fenô meno da v io lência co mo mat er ialização do mal, que t ambé m per meia aquela d ist r ibu ição , t raz a necessid ade d a no r ma mo ral para int erd it ála, e q uando assu me co nt o rno s de ameaça à pró pr ia so brev ivência do co rpo so cial, é t ransfo r mada em no r ma jur íd ica, elevando -se à su a fo r ma co ercit iva, dando ensejo assim ao ju lg ament o ju d iciár io , vist o co mo aquele t o mado pela s inst it u içõ es esp ecíficas – t r ibu nais e co rtes d e ju st iça – encar nad as na pesso a do ju iz, in divídu o co mo nó s – qu e pro nu ncia a sent ença apó s o cur so de u m pro cesso e põ e fim à incert eza, co nt r ibu in do para fo r mação e co nso lid ação de u ma jur isprud ência. Po de-se d izer co m isso que ao ju lgament o jud iciár io bast ar ia, enquant o t al, q ue pu sesse fim a u ma incert eza, fo sse emit ido po r ju iz invest ido de t al pap el, segu ndo as no r mas respect ivas, e que t al deliberação fo sse fo r malizada em u ma sent ença, co mo deco rrência do curso de u m pro cesso . Mas se a visada ét ica de Pau l Ricœur se co nst it u i na busca po r u ma “vida boa” co m e pa ra o s outros em institui ções just as, sendo a just iça pressupo st a já na co ncepção part icu lar de “vid a bo a”, e sendo o at o de ju lgar pro priament e hu mano – po rque fu ndado na razão , po rt anto u m ag ir ét ico – su a efet iva realização so ment e se dará, em p lenit ude, quando assu mir co nfo r mação justa. Ident ificado o lu gar filo só fico do just o ent re o bom e o legal – na med ida em que precisa at end er à regr a d a u niver salid ade, mas sem d eixar d e fo ra sua co nt ext ualização no caso em sit uação , r ico em part icu lar idades qu e escapam à generalidad e d a no r ma jur íd ica – impõ e-se a necessid ade d e id ent ificação do ju lg ament o ju d iciár io , já t rat ado no cap ít u lo pr imeiro , mas ago ra ad jet ivado pelo just o. 66 A necessid ade da busca p ela qualificação do justo ao ju lgament o jud ic iár io ju st ifica- se não apenas pela presença imemo r ia l do sent ido de ju st iça na exist ênc ia hu mana, desd e a filo so fia pr é-so crát ica, passando pelas t ragéd ias greg as, o sagr ado e at é as so ciedad es secu lar izadas, mas pr incipalment e pelo que aqu i já se t rato u relat ivament e à finalid ade med iat a do ju lg ament o ju d iciár io , que se co nst it u i na pa cif icação social. É que o ju lg ament o jud ic iár io , u ma vez po ndo fim à incert eza, ao d izer o d ir eit o , cu mpre a fina lidad e d e at ribu ir a cada u m o que é seu, e r eco mpõ e u ma sit uação que se mo st rava, no início do processo , desequ ilibr ada. Ret o ma- se aqu i a ideia ar ist o t élica para marcar a necessidade do ju lg ament o jud ic iár io cu mpr ir co m seu ergon, para que se r evele ét ico . E se a fu nção ú lt ima do ju lgament o jud ic iár io – já o d isse Pau l Ricœur – sit ua- se mais na pa z social do que na segu rança, co nclu i-se co mo ind ispensável o alcance de t al fina lidad e para que seja ju st o o ju lgament o jud ic iár io . Mas no que co nsist e pro pr iament e a pacificação buscada na deliberação que põ e fim à incert eza de u m caso em sit u ação ? A respo st a parece resid ir – po de-se d izer nu m n íve l d e pré- co mpreensão , ant e o que at é ago ra se viu – na efet iva int erd ição da vio lência que lhe d eu causa. Pau l Ricœur (2008a, p.180) vê nas ent relinhas d a pacificação so cia l “algo mais p rof undo ref erente a o reconheci mento mút uo; não diremo s reco ncilia ção; f alaremos muito meno s d e amo r e p erdã o, já que n ão são grand eza s ju rídica s; p ref erimo s f alar de reconh ecimento”. O reconh ecimento, co mo cat ego ria filo só fica, ensejar ia nesse co nt ext o a impr essão , no vencedo r, de que a o ut ra part e, adversár ia, é co mo si mesmo u m su jeit o de d ir eit o s, cu ja causa merecia igu al at enção , na anális e de seus argu ment o s, igua lment e p lausíveis. Mas a co mp let ude do reco nheciment o vir ia daqu ele qu e perd eu, ao reco nhecer no s argu ment o s d a sent ença a razão do o utro, vencedo r, o que lh e per mit ir ia id ent ificar, na d eliberação jud icial, não u m at o de vio lência inst it u cio nal, mas de reco nheciment o acerca do papel que a cada u m é dest inado no esq uema d e co o peração que é u ma so cied ade, ass im co mo a part e que t o ca a cada u m relat ivament e ao s bens e encargo s d ist r ibu ído s nest a mesma so ciedad e. 67 Evidencia- se aqu i u m co rt e em relação ao ju lg ament o jud ic iár io , tout co urt, vist o co mo aq uele que at end e ao s requ is it o s o bjet ivo s, d ir-se- ia mer ament e fo r mais: o r ig inar- se da auto ridad e co mpet ent e; mat er ializar-se nu ma sent ença; deco rrer de u m pro cesso fo r mal. To rna- se necessár io ago ra perqu ir ir acerca da qualificação dest es requ isit o s para que ao ju lgament o jud ic iár io po ssa se acrescer o qualificat ivo justo. Na perspect iva de que o ato de ju lgar, ainda qu e inst it ucio nal, é pro priament e hu mano , in icia- se a anális e a part ir do prot ago nist a de t al ju lg ament o . 3.1.1 O juiz Para qu e o ju lgament o jud iciár io seja classificado co mo t al, na perspect iva do ju iz, bast a que seja pro fer ido po r pesso a leg alment e invest id a de t al fu nção , ao cabo de u m pro cesso , segu ndo as no r mas d it adas no o rdenament o jur íd ico . Da invest idura nas fu nçõ es do cargo e de sua co mpet ência lega l para examinar o caso em sit u ação deco rre a aut o rid ade e execut o riedade de sua d ecisão . Nesse âmb it o do ju lg ament o , a po st ura daquele q ue perdeu a demanda po de – est á-se aqu i no campo da mer a co nt ingência – ident ificar na resp ect iva deliber ação final u m at o de reco nheciment o , abr indo caminho p ara a efet iva p acificação so cial o u, ao co nt rár io , co m ela não co nfo r mar- se, hipót ese em que nela ident ificará t ão so ment e u m at o de vio lência inst it ucio nal, hipó t ese em qu e o co nflit o rest ar ia abafado , mas não eliminado . Daí a relevância da invest igação acerca d a autorid ade do ju iz, nu ma abo rdagem q ue revela ident ificação com a leg itimidad e. A q uest ão da aut o ridad e não se limit a ao fenô meno ju d iciár io , nu ma q uadra hist ó r ica e m que se ident ifica verd adeira cr ise, deco rrent e da persist ência d as pesso as e m não reco nhecer super io r id ade d e que m q uer que est eja a lçado a u ma po sição de impo r a o bed iência, desde o ambient e familiar, passando pelo esco lar, at é 68 o das inst it u içõ es jur íd icas e po lít icas, fat o já co ns iderado co mo desapareciment o da autoridade no mu ndo mo d er no 1: Para evitar incompr eens ões, talvez f oss e mais apr opr iad o p er gu ntar no títu lo: o qu e f oi – e nã o o qu e é – aut or ida de? Minha t es e é de qu e cab e a nós sus citar essa qu estão acer ca da er r adicaçã o da autor ida de do mu ndo. Como nã o p odemos ma is r et or nar exp er iências aut ênt icas e indis pu táveis, comu ns a todos, o pr ópr io t er mo s e t or nou nebu los o. Pouco de su a natur eza s e mostr a autoevident e ou at é mes mo compr eens ível par a todos, excet o par a o cient ista p olít ico qu e p ode a inda s e lembr ar de qu e ess e conceit o u m dia f oi fu nda mental par a a teor ia p olít ica, ou concor dar á em gr ande par te qu e u ma constant e, cr es cent e e pr ofu nda cr is e de autor idade t e m acompa nhado o des envolvi ment o do mu ndo moder no do noss o s écu lo. Essa cr is e, apar ent e des de o início do s écu lo, é p olít ica em or igem e natur eza. O sur giment o de movi ment os p olít icos qu e busca m s ubstitu ir o s ist ema par tidár io e o des envolviment o d e u ma nova f or ma t otalitár ia de gover no, t êm como pa no d e fu ndo u m cenár io de deca dência r elativa ment e dr a mática e ger al das autor ida des tr adicionais. Essa decadência nã o f o i r esu ltado dir et o dos pr ópr ios r egimes ou moviment os; é ma is cor r et o afir mar qu e o t otalitar is mo, na for ma tanto de r egimes qua nt o de moviment os, foi a alt er nat iva qu e melhor s e apr oveit ou da p olít ica ger a l e da at mos f er a s ocial na qual o sist ema par tidár io ha via p er dido s eu pr est ígio e a autor ida d e do gover no não er a mais r econhecida. (ARENDT, reed. 1993, p. 9192) 1 I n or der t o avoid misu nder sta nding, it might ha ve wis er t o ask in t he t it le: W ha t was – a nd not what is – aut hor it y? For it is my cont ent ion t hat we ar e t empt ed a nd ent it led t o r ais e t his qu estion b ecaus e aut hor it y was vanis hed fr om t he moder n wor ld. Since we ca n no longer fa ll back up on aut hent ic a nd u ndisputab l e exp er iences common t o all, t he ver y t er m has become clou ded b y contr over s y and confus ion. L ittle ab out its natur e app ear s self- evident or even compr ehens ib le t o ever yb ody, except t hat the p olit ical scient is t may st ill r ememb er t hat t his concept was once fu nda mental t o polit ical t heor y, or that most will a gr ee t hat a constant, ever - widening a nd deep ening cr is is of aut hor ity has accompa nied t he develop ment of the mod er n wor ld in our centur y. T his cr is is, appar ent s ince t he incept ion of the centur y, is p olitical in or igin an d natur e. T he r is e of p olit ica l movements int en t up on r ep lacing t he par ty s yst em, a nd the develop ment of a new t otalitar ian f or of gover nment, took p lace a gainst a backgr ou nd of a ll tr adit ional aut hor it ies. N owher e was t his br ea kdown t he dir ect r esu lt of t he r egimes or movements t hems elves; it r ather s eemed as t hou g h totalitar ianis m, in t he f or m of mov ements as well as of r egimes, was b est f itt ed t o take a dvanta ge of a gener al p olit ical a nd socia l at mos p her e in which t he par t y syst em ha d lost its pr estige end t he gover nment ’s aut hor it y was no longer r ecognized. ( ARE NDT , r eed. 1993, p.91-92). 69 Pau l Ricœur abo rda a t emát ica em t er mo s de u m parado xo . Part e da sig nificação da palavra aut o ridade p ara d efin i- la co mo sendo u ma espécie d e d ireit o de mand ar, po der (reco nhecido ou não ) de impo r o bed iência, o que revela de saída u ma d issimet r ia e hierar qu ia ent re do is agent es em r elação , u m qu e mand a e o ut ro que o bedece. No caso que aqu i int er essa mais de pert o , a aut o ridade jud ic iár ia inclu i- se no ro l das deno minadas aut o r idad es co nst it u ídas, po is exerce o po der em no me d e u ma inst it u ição previament e est abelecida co m o d ir eit o de exercer est e poder de mando. Mas ind aga acer ca da o r igem d a aut o ridade, em u lt ima inst ância. É quando passa do su bst ant ivo autorid ade para o ver bo autoriza r, nu ma t ransição que enco nt ra o sinô nimo cred enci ar, cu ja essência enco nt ra-se asso ciada ao ver bo autoriza r. Enqu ant o se per manecia na sig nificação de aut o rid ade, o d ir eit o de po der mandar encerrava u ma relação mandar-o bedecer, da p art e de qu e m manda, e do o ut ro lado o reco nheciment o , pelo su bo rd inado , do direit o do super io r de mand ar. Cabe aqu i a ad vert ência de que a cláu su la co nd icio nal d e reco nheciment o o u não do po der do o ut ro no exercício do mando abre u ma dúv ida so br e se o po der é exercido co m leg it imação o u co m do minação , conf orme seja, respect ivament e, exercid o com o u sem o reco nheciment o . Passa-se ent ão à defin ição do ver bo aut orizar, q ue no sent ido de co nfer ir aut o ridad e, sig nifica investir de aut ori dade, credenci ar. O int eresse se deslo ca ago ra para a relação creden ci ar-da r crédito, t endo co mo eixo det er minant e a palavra crédito. Essa r elação cred enci ar-da r crédito encerra dup la referência: à cred ib ilid ade no t o cant e ao que manda e ao credenciament o no pert inent e àquele que o bed ece, q ue d á créd it o ao pr imeiro , per mit indo que se t race a d ist inção ent re aut oridade e vio lência o u mesmo per suasão . Isso po rque aut o ridad e e vio lência – enquant o po der (e não d ir eit o ) de impo r a o bed iência – co nfro nt am- se nu ma t ênu e lin ha d iv isó r ia, t endo co mo t raço d ist int ivo exat ament e a cr ed ib ilid ade a lhe co nfer ir leg it imid ade. É no reco nheciment o da hier arqu ia e, po rt ant o, da sup er io r idad e, que est á o t empero da do minação , d ist ingu indo -a da vio lência e da persu asão . A t ese de Pau l R icœur (2008 b, p.105) é qu e a aut o rid ade não fo i deixa da no passado , co mo t er ia sug er ido 70 Hannah Ar endt (op.cit), mas t er ia se t ransfo r mado , mant endo algo daqu ilo qu e fo i. Part e da ideia 2 de que a aut o rid ade t er ia d o is fo co s de leg it imação : u m deno minado aut o ridad e enun ciativa, co mo po der simbó lico que po de deco rrer t anto de um enu nciado r, um aut o r, co mo de u m t ext o , um enu nciado , u m po der p ersu asivo , de engendrar crença; o ut ra que se po de deno minar aut o ridad e in stitucional, co nsid erad a o po der leg ít imo d e qu e d ispõ e u m ind iv íduo o u grupo para impo r o bed iência a o ut ro s, e co nclu i q ue o aco nt ecido fo i, ao invés do desap arecimen to da aut o rid ade, “a sub stituição d e uma conf igu ração hist óri ca d eterminad a do par enu nciati vo-insti tucion al po r uma outra conf iguraçã o do mesmo pa r” . O po nt o cent ral da su bst it u ição dá- se no p lano da aut o rid ad e enu nciat iva, q ue não mais se fu nda, co mo no passado , na t ranscendência abso lut a do s t ext o s sagrado s, co mo que nu m verd adeiro do gma, mas ago ra na cred ib ilid ade do aut o r de det erminado d iscurso , segu ndo as ra zões em q ue se fu nd a. Para ju st ificar sua t ese bu sca r efo rço no ver bet e “Aut o ridad e” da Encyclop édie, co nsider ado po r Gérard Lecler c: Ent endo p or autor ida de no discur s o o dir eit o qu e t emos d e s er mos acr edita dos na qu ilo qu e dizemos: assim, quant o ma is dir eit o tiver mos de s er acr edita dos no qu e dizemos, ma is autor ida de t er emos. Ess e dir eito fu nda men ta-se no gr au d e conheciment o e b oa f é qu e s e r econheça na p ess oa qu e fa la. O conheciment o imp ede qu e essa pess oa enga ne e afasta o er r o qu e p oder ia nascer da ignor ância. A b oa- f é imp ede qu e ess a p ess oa enga ne os outr os e r epr ime a ment ir a qu e a ma lignida d e pr ocur ass e cr edenciar . Por tanto, é o esclar eciment o e a sincer ida de qu e const itu em a ver dadeir a med ida da autor ida d e no discur s o. Essas duas qua lidades sã o ess encialment e necessár ias. O ma is er u dit o e esclar ecido dos homens já nã o mer ece cr édit o quando é emb ust eir o; o mes mo ocor r e com o homem ma is p io e sant o, des de qu e fale da quilo qu e não sab e ... (p.215) (apud RICŒUR, 2008b, p.113-114 ) Transpo st a a id eia para o âmb it o do pro cesso jud ic ial, co mo at o t íp ico de d iscur so que envo lve d iverso s at ores, desde o ju iz, p assando pelas 2 In G er ar d Lecler c, Histoire de l’autorité. L’ assignation dês énoncés culturels et la généalogi e de la croyan ce, Paris, PUF, col. “Sociologie d’aujour d’ hui”, 1986, apud RICŒUR, 2008b, p.105. 71 deno minadas “part es”, seus respect ivo s ad vo gado s, membro s do min ist ér io púb lico , t est emu nhas, per it o s, evid encia-se que as qu alidad es do conheciment o e da boa-f é impõ em-se a t o do s o s ato res pro cessuais, mas são mesmo imprescind íveis ao ju iz, e precisam est ar espelhadas na sent ença, co mo ato que encerra t o do o pro cesso . Decid ir med iant e razõ es que po ssa m ser reco nhec idas pelas p art es co mo fu nd adas no co nheciment o do t ema e do co nt eúdo do pró prio pro cesso , co m fidelidad e ao qu e nele se co nt ém, co nst it u i- se requ is it o necessár io ao reco nheciment o do ju lg ament o veicu lado naquela sent ença, e não apenas à o bed iência ao seu co mando , pela fo rça co ercit iva que encerra. A mesma co nclu são ext rai- se em Gad amer, no t exto de excert o já t ranscr it o alhures 3: Na ver da de, a autor ida de é, em pr imeir o lu gar , uma atr ibuiçã o a pess oas. Mas a autor idade das p ess oas nã o t em o s eu fu nda ment o ú lt imo nu m ato de sub missão e de abdicação da r azão, mas nu m at o de r econheciment o e de conheciment o : r econhece- s e qu e o outr o está acima de nós em ju ízo e visã o e qu e, p or cons equ ência, s eu ju ízo pr ocede, ou s eja, t em pr imazia em r elaçã o ao noss o pr ópr io ju ízo. Isso imp lica qu e, s e algu ém t em pr et ens ões à autor idade, esta não deve s er - lh e out or gada; ant es, autor ida de é e deve s er alcança da. Ela r ep ousa s obr e o r econheciment o e, p or tant o, sobr e u ma açã o da pr ópr ia r azão qu e, t or nando-s e cons cient e de s eus pr ópr ios limit es, atr ibu i a o outr o u ma visã o mais acer tada. A compr eensã o cor r eta dess e s ent ido de aut or idade não t em a ver com ob ediência, mas com conhecim ento. Não r esta dú vida d e qu e a autor ida de imp lica necessar ia ment e p oder dar or dens e encontr ar ob ediência. Mas iss o pr ovém unica ment e da autor ida de qu e algu ém t em. A pr ópr ia autor ida de anônima e imp ess oa l do sup er ior qu e der iva das or dens não pr ocede, em últ ima instâ ncia, dessas or dens, mas t or na-as poss íveis. S eu ver da deir o fu nda ment o é, tamb ém aqui, u m ato da lib er da de e da r azão, qu e conced e aut or ida de a o sup er ior basica ment e por qu e est e p oss ui u ma visã o mais a mp la ou é ma is exp er t o, ou s eja, por qu e sab e melhor .” ( G AD AM ER, 2008, p.370-371) Out ra não é a origem da necessid ade legal d e fu ndament ação da decisão jud ic ial 4, que se d eve co nsid er ar não co mo mer a ind icação do s d ispo sit ivo s leg ais ut ilizado s par a ju lgament o do caso em sit u ação , mas d e 3 Nota 6, r etr o No Br asil a funda mentaçã o const itu i-s e r equ is it o const ituciona l de valida de das decis ões ju diciais, sob p ena de nu lida de, s egundo s e extr ai do disp ost o no ar t. 93, IX, da Const itu içã o da R epúb lica. 4 72 u ma fu ndament ação que co nfir a leg it imid ade àquela mesma d ecisão , no sent ido de po derem as part es do pro cesso reco nhecer sua aut o rid ade co mo at o de d iscur so fu ndado , ló g ico e co erent e, seja em seus pró pr io s t er mo s, seja e m relação às pro vas co lhid as na inst rução pro cessua l, na co nst rução da verd ad e unívo ca de u ma hist ó r ia que se ext rai das hist ó r ias t razid as em versõ es d ist int as pelas pró pr ias part es e suas resp ect ivas t est emu nhas. A bo a- fé, po r o utro lado , in icia- se pelo d ever de imparcia lidade qu e se impõ e ao ju iz 5, cu ja o bser vância não po de ser o lvid ada sem que se veja co mpro met id a a aut o rid ade de sua d ecisão , e pro ssegue na lealdade co m qu e so pesa o s fat o s em qu e se last reia a pret ensão em cau sa, para at ing ir igu alment e a fid elidad e de suas razõ es de decid ir em relação ao co nt eúdo efet ivo do que se co nst ru iu no s aut o s do pro cesso . 3.1.2 O processo É na est rut ura do pro cesso jud icia l q ue Pau l R icœur bu sca o pr incíp io da separação ent re ving ança e just iça. Ad vert e, censurando a expressão de se “f azer ju stiça com a s p rópria s mão s” qu e a p alavra j usti ça jama is dever ia se inser ir em qu alquer d efin ição de vingança, salvo aque la ju st iça arcaica, ving at iva, que não enco nt ra espaço no Est ado de dir eit o . Pro cura assim car act er izar o pro cesso co mo sendo u m debat e, que co nsist e: em estab elecer u ma justa distância ent r e o delit o qu e des encadeia a cóler a pr iva da e púb lica e a punição inf ligida p ela inst itu içã o ju diciár ia. Enqua nt o a vinga nça cr ia u m cur tocir cu it o entr e dois s ofr iment os, o da vítima e o inf ligido p el o vinga dor , o pr ocess o s e int er p õe entr e os dois, inst ituindo a justa distância de qu e acaba mos de falar . ( RICŒUR, 2008a, p.184) 5 Os ar ts. 134 e 135 do Código de Pr ocess o Civil br asileir o cont emp la m os cas os d e vício de capa cidade subjeti va do juiz, qu e r esu lta m na sua par cialida de, imp oss ib ilitando de atuar nu m det er mina do caso em s ituaçã o. São as hip ót es es d e imp ediment o e susp eiçã o, cuja ocor r ência ca r acter iza m pr oximida de do ju iz com o conf lit o. 73 Co mo pr ime iro element o est rut ural do debat e despo nt a a fig ura d e u m t erceiro , que não sendo part e no debat e qua lifica- se para abr ir o espaço de d iscu ssão . Esse terceiro apresent a-se em t rês inst âncias d ist int as, qu e são a institui ção do Estad o, enquant o det ent o r da vio lência leg ít ima, po rque inst it u cio nalizad a; a i nstit uição judici ária, d ist int a do s o ut ro s po deres do Est ado ; e fina lment e o jui z, nat uralment e u m ind iv íduo co mo o s d emais, mas elevado so cialment e, em r elação a esses, pelo po der de decid ir o s co nflit o s ent re eles surg ido s. O segu ndo element o est rut ural é o sist ema jurídico, qualificado r do terceiro est at al co mo Est ado de d ireit o , que co nfere àqu ele terceiro su a co nd ição apart idár ia. Trat a-se essencia lment e das leis escr it as q ue, a exemp lo da esfera cr iminal, cu id a de defin ir as co ndut as qu e se co nsideram delit ivas, est abelecendo penas nu ma relação pro po rcio nal ent re cr ime e cast igo . E m t erceiro lug ar vem o co mpo nent e co nsider ado essencial, co nst it u ído pelo pró pr io debate, cu ja fu nção é co ndu zir a causa inst aurada, das ág uas t urbu lent as do seu est ado de in cert eza, at é o po rto seguro do est ado de cert eza. Para isso to rna-se ind isp ensável o co ncurso de to do s o s prot ago nist as do pro cesso , cu ja p art icipação de bo a- fé co nt r ibu i par a a inst aur ação do que se d eno mino u just a d ist ância, ago ra ent re aut o r e réu. Vít ima de car ne e o sso e presu mido cu lp ado são t ransfo r mado s em “part es” do pro cesso , demand ant e e acu sado . Desenvo lvido nu ma ar ena em qu e as regr as do pro ced iment o respect ivo são previa ment e defin idas, co nhecidas e impo st as igu alment e a t o do s o s prot ago nist as, o debat e precisa ser mat er ialment e 6 co nt rad it ó rio , caract er izando -se co mo u m co mbat e ver bal em qu e argu ment o se o põ e co nt ra argu ment o , co m ig uald ade de ar mas cu ja d ispo nib ilid ade deve ser assegurada igu alment e a ambas as part es. Co mo quart o e ú lt imo e lement o est rut ural t em- se a sent ença, co ro lár io do debat e desenvo lv ido no curso do pro cesso . É po r meio dela qu e 6 O qualif icativo materialm ente t em a função de mar car a necess ida de de u m contr adit ór io qu e s eja ef et ivo, qu e s oment e p ode s er cons ider ado como ta l s e o ju iz toma em conta as p onder ações de ca da u ma das par tes, no ex er cício dialét ico qu e constr uir á a delib er açã o f inal. Pr ocur a-s e mar car a dist inçã o com u m contr adit ór i o mer a ment e f or ma l, em qu e a op or tunida de de ma nif estação de a lgu m ou de a mb os os cont endor es s e faz como mer a obs er vâ ncia de u m r equ isit o de va lidade do pr ocess o, mas sem qu e s eja ef et iva ment e s op esada no pr ocess o decis ór io. 74 se est abelece a cu lpa, mu dando o est at uto jur íd ico do réu, que de presu mido ino cent e é declar ado cu lp ado . A palavra q ue pro fer e o direit o , fo r malizada na sent ença tem mú lt ip los ef eit os : p õe f im à incer t eza; atr ibui às par tes d o pr ocess o os lu gar es qu e det er mina m a just a distâ ncia entr e vinga nça e just iça; p or fim – e talvez pr incipalment e – r econhece como at or es exatament e a qu eles qu e comet er a m a of ensa e s ofr er ão a p ena. N ess e ef eit o cons iste a r ép lica ma is signif icativa dada p ela just iça à violência. N ela se r esu me a susp ensão da vinga nça. (RICŒ UR, 2008a, p.187) Para que se po ssa afir mar just o o pro cesso jud iciár io , não se po de prescind ir de u m efet ivo co nt rad it ó r io , em qu e as p esso as pesem t ant o quant o as no r mas, co m ig uais o po rt unidades de man ifest ação , argu ment ação e pro va, e cu ja co ndução em t ais co nd içõ es ensejará ao ju iz, na po sição de ju st a d ist ância ent re as part es e o co nflit o , fo rmar su a co nvicção para o ju lg ament o em sit uação , que se faz po r meio da sent ença. 3.1.3 A sentença Da sent ença, co mo element o est rut ural do pró pr io pro cesso e t ambém do ju lgament o jud iciár io , po r se co nst it u ir no ato mat er ial qu e veicu la a deliber ação do ju iz, que põ e fim à incert eza e o bjet iva a pacificação so cial, po de-se d izer que necessit a t ransparecer a aut o ridad e pró pr ia do ju lg ament o que nela se encerra. Aut or idade não apenas deco rrent e da co ercit ivid ade qu e é pró pr ia do sist ema jur íd ico , mas fu ndament alment e do reco nheciment o , pelas p art es, de que a decisão nela co nt ida co nst it u i frut o de análise est abelecid a a u ma ju st a d ist ânc ia. Just a d ist ância q ue t enha p er mit ido ao ju iz t o mar em co nsider ação , de fo r ma ig ualit ár ia, a man ifest ação de cada u ma das p art es na co nst rução do racio cín io ló g ico que reco nst it u i o s fat o s o bjet o do ju lg ament o . E que a mesma ju st a d ist ância seja ev idenciad a na id ent ificação das no r mas leg ais à s quais se su bsu me m o s fat o s em ju lg ament o , int erpret ando t ais no r mas co m sabedo r ia, segu ndo sua ínt ima co nvicção na bu sca p elo melho r aparent e 75 naquela circu nst ância. Co nvicção que deco rre do jo go cruzado ent re argu ment ação e int erpret ação e que lhe per mit a pro fer ir o melhor o u o mal meno r, à luz d a equ id ad e. Aqu i a equ idad e co nst it u i a chave par a ingresso no t erreno do just o , ent re o bom e o legal que co nst it u i o seu lugar filo só fico . Assim decid indo , especia lment e o s deno minado s hard cases, po dese qu alificar o ju lg ament o jud iciár io co mo justo ? Tendo já d it o que a pa z se evidencia co m prepo nderância so bre a segura nça, enqu ant o finalid ades do ju lg ament o jud iciár io , a respo st a será negat iva, po is, em qu e pese bast ar a sent ença par a se alcançar a segurança – u ma vez pro fer ida, a incert eza in icia l to rna-se d iss ipad a co m a d eliberação final – não é su ficient e p ara cicat r izar a s chagas da vio lência encerrada no co nflit o que gero u o pro cesso . É to mando po r emprést imo o exemp lo d e u ma co ndenação penal qu e Pau l Ricœur (200 8a, p.187), co m o o bjet ivo d e expo r a insu ficiência d a sent ença, para rest abelecer a paz, indag a a qu em a co nd enação ser ia devid a, quais são seus d est inat ár io s. Afir ma qu e a co nd enação , em pr imeiro lugar, é devida à lei, na med id a em que rest abelece o pr imado do d ireit o cu ja finalid ad e é a manut enção do co nsenso mín imo do co rpo po lít ico , que se t raduz na ideia de o rdem. A co ndenação é devida t ambém à víti ma, e não no sent ido de sat isfação de u ma ving ança, mas d e reco nheciment o pú blico , nu m pr ime iro mo ment o , da vít ima co mo ser o fend ido e hu milhado : exclu ído do r egime de r ecipr ocidade p or aqu ilo qu e faz d o cr ime a instaur ação de u ma injusta distâ ncia. Ess e r econheciment o púb lico é a lgu ma coisa : a socieda de declar a o qu eix os o como vítima ao declar ar o acusado como cu lpa do. Mas o r econheciment o p ode s eguir u m p er cur so ma is íntimo , ligado à auto- estima. Pode-s e dizer a qu i qu e a lgu ma coisa é r estab elecida, com nomes dif er ent es, como honr a, r eputação, auto-r esp eit o e – gost o de ins istir no t er mo – auto- est ima, ou s eja, a dignida de vincu la da à qualida de mor a l da p ess oa hu ma na. (RICŒ UR, 2008a, p.189) E pro ssegu e sug er indo que esse reco nheciment o ínt imo é cap az d e co nt r ibu ir para o t rabalho de lut o necessár io à reco nciliação da alma fer id a co nsigo mesma, nu m pro cesso de int er io r ização da figura do o bjet o amado 76 que fo i perd ido . Reco nheciment o que se est end e, nas grandes cat ást ro fes, t ant o às vít imas qu ant o a seus descend ent es, parent es e aliado s, cu ja do r mer ece ser ho nrad a. Mas surge co mo dest inat ár ia da co nd enação t ambém a opiniã o pública que exerce o s papéis de veícu lo , amp lificado r e po rt a-vo z do desejo de vingança. Daí resu lt a a relevância q ue assu me o carát er de pu blic idad e emprest ado à cer imô nia do pro cesso e à pro mu lg ação das penas, inc lusive pelo s me io s de co mu nicação , po is a ind ig nação deco rrent e da vio lência d a in fração po de ser med id a t ant o pelo sent ido da lei q uant o pela pert urbação púb lica po r ela pro vo cada, na med id a em q ue u ne a emo ção causada pelo espet ácu lo da lei lesad a à emo ção provo cad a pelo espet ácu lo d a pesso a hu milhad a. Nessa med id a é qu e a pu b licid ade do ato de ju st iça enseja à o pin ião púb lica u ma cat arse q ue, de o utra maneira, ser ia bu scada med iant e ving ança. Mas Pau l Ricœur p ergu nt a em que e até que pon to a co ndenação é devida t ambém ao cu lpado , o u co nd enado . E a respo st a enco nt ra no reco nheciment o, co mo id eia regu lado ra, a chave para esclarecer a dú vida. Reco nheciment o que se in icia na co nsider ação da pesso a d ele co mo prot ago nist a, e mais especificament e co mo cu lp ado nu ma simet r ia co m a vít ima, que fo i reco nhecid a co mo t al. Est a simet r ia se est ende d e alg u ma fo r ma à reparação da aut o est ima do co ndenado , t al co mo já se falo u acerca dela em relação à vít ima. Tal se co nclu i na linha d e pensament o que t em a co nd ição de ser racio nal, do dest inat ár io da pena, co mo necessár ia p ara qu e t al penalid ade o at inja. Lo go , para qu e t al aco nt eça, d eve o co ndenado reco nhecer co mo razo ável a co ndenação que se lhe impõ e. É que o fracasso de t al r eco nhecime nt o da co ndenação , pelo co ndenado , reme mo ra a ideia de just a d is t ância, já que a co ndenação , em t a l cir cu nst ânc ia, será “ recebida como excesso de d istâ ncia [já] rep resenta do, f ísica e geo graf icamente, pel a cond içã o de det ento cuja p risã o ma rca a exclu são da cidad e” ( RICŒUR, 2008 a, p.191). E nt ra em cena, co mo co mpo nent e necessár io à efet iva pacificação so cial, a fig ura d a reabili taçã o co mo fo r ma de rest abeleciment o da just a d ist ância, d iant e do excesso represent ado , simbo licament e, p elas co nsequ ências da co nd enação , co mo a 77 perda de est ima p ú blica e pr ivada, p erda de cap acid ades d iversas, jur íd ica e cív ica. Mas fala- se aqu i de u ma reabilit ação p lena, “exp ressa p ela s locuçõ es apaga r i ncapa cidad es, resta belecer direito s, ou seja, enf im, restitui r uma ca pacida de h umana f undamental, a cap acidad e d e ci dadã o portado r de direito s cívicos e jurí dico s.” (id, p.192). Trat a-se de verdadeiro pro jet o de reabilit ação do co nd enado no curso da execução da pena, ao fim do qual ele po ssa recuperar a co nd ição de cid adão int egral, eliminando assim a exclu são fís ica e simbó lica qu e o at ing iu no encarcerament o . Essa a co nd ição para qu e à vio lência po r ele pr at icada, e que o levo u à co ndenação , não se so me a vio lência ( vingança) de u m excesso de d ist ância que so mará à vio lência ant er io r a vio lência ago ra inst it ucio nal do cu mpr iment o desu mano da co ndenação . E co mo co ro lár io dessa linha de racio cínio P au l Ricœur man ifest a sua preo cupação não apenas co m o t rat ament o que se d isp ensa ao det ent o na execu ção das penas, mas t ambém co m a sua duração , na med id a em qu e o excesso , que se po de pro jet ar at é a pr isão perpét ua, co nst it u i- se negação flagr ant e à id eia d e reab ilit ação , na med ida em que a exclu são defin it iva do det ent o em relação à so cied ade nega o rest abelec iment o da just a d ist ância ent re u m e o ut ra. O filó so fo mencio na est udo s so bre p sico lo g ia do pr isio neiro para revelar que a v ivência d a pena o co rre seg u ndo mo dalidades d iferent es d e t empo , seja co nsider ando o seg ment o t empo ral mais pró ximo do pro cesso , e m que o det ent o fica o bcecado pela lembr ança d a pro va, o u pelo per ío do méd io da pena, em q ue a nego ciação co m o meio carcerár io co nst it u i sua o cupação cent ral, seja aind a no per ío do final d a pena, quando a per spect iva d e libert ação t ende a o cupar seu espaço ment al. É no excesso que deseq u ilibr a t ais lap so s t empo rais que se ident ifica um pro cesso aceler ado de desso cialização , que at inge seu ext remo na perpet u idad e da p ena, ao et ernizar a et apa int er med iár ia em det r iment o da ú lt ima, so lap ando a esperança. 3.2 Condições de possibilidade do julgamento judiciário justo 78 Ao d isco rrer so bre o ju lgament o ju st o , fico u assent ado que t rês ser iam as co nd içõ es d e po ssib ilid ad e do ju lg ament o jud iciár io : i) o corpo social o rgani zad o em f orma de Est ado; ii) o ser hu mano investi do da s f unções de julga r; iii) a exi stên cia de um conf lito submetido à in stituição da ju stiça ; e iv) o curso de um p rocesso no qual se prof ere o julgamento. Co mo o ju lg ament o jud iciár io just o se apresent a em pr inc íp io co mo u m ju lgament o jud ic iár io , mas qualificado co mo justo, as co nd içõ es de po ssib ilid ad e do ju lg ament o jud iciár io o serão , ig ualment e, do ju lg ament o jud iciár io just o , mas t ambém igualment e qu alificadas. Co m relação à co nd ição pr ime ir a de po ssib ilidade, relat iva à exist ência de u m co rpo so cial o rgani zado em f orma de Estado, t o rna-se necessár io que t al co rpo so cial se o rganize de fo r ma qu e asp ir e a ju st iça. So ment e ado t ando a ju st iça co mo u m t elos po de det er minad a o rganização so cial t o mar decisõ es po lít icas e leg is lat ivas q ue pro p iciem amb ient e e meio s favo ráveis ao seu d esenvo lviment o , inclusive no p lano inst it ucio nal. Ganha relevo aqu i a quest ão já expo st a, relat iv ament e à auto ridad e, na med ida em que u m E st ado no qual se bu sca o exercício da domi nação a ju st iça não se apresent a co mo telos, mas valo r secu nd ár io , mera fo r malid ade q ue se prat ica em benefício do pró prio po der, e não do s cidadão s. E m sendo a just iça u ma fina lidad e do Est ado , a organização da ju st iça inst it ucio nal se faz segu ndo esse telos, d iscip linando o pro cesso co m as garant ias necessár ias ao seu alcance, e fu nd ament alment e buscando selecio nar o s seres hu mano s que serão invest ido s na fu nção de ju lgar qu e t enham o p er fil necessár io à co nsecução do s fins almejado s pelo ju lg ament o jud ic iár io ( just o ). Mas se o s fins a que alme ja o ju lg ament o ju d iciár io ju st o são po r fim nu m est ado de incert eza e, fu nd ament alment e, est ancar a vio lência, rest abelecendo e mant endo a p az so cial, qual será o per fil ind icado ao ho mem a quem se incu mb ir á t al missão ? Vo lt a à cena a cat ego ria filo só fica do reconh ecimento, refer id a co mo chave para acesso ao o ut ro em qu em se bu sca int erd it ar a ving ança. Esse reco nheciment o se mo st ra ind ispensável d iant e da nat ureza hu mana d e que se r evest e nat uralment e o ju iz – ver ificação pro po sit adament e r epet id a ao lo ngo de to do o percurso aqu i empr eend ido – não apenas p ela caract er íst ica 79 int r ínseca às relaçõ es hu manas, est abelecidas na fu nção jud icant e, mas t ambém pelo co nt ext o hist ó rico co nt empo râneo . É que o ju iz co nst it u i- se – vale a repet ição – nu m ho me m nat uralment e ig ual àqu eles co m q uem se r elacio na – d ifer enciado , no ent ant o , po r fo rça do pacto so cial qu e, além de at r ibu ir- lhe o po der-dever de ar bit rar o s co nflit o s surg ido s ent re seus semelhant es, o u ent re eles e suas inst it u içõ es, leg it ima t ambém a vio lência pró pr ia d o cumpr iment o de suas sent enças. Sendo ele, po rt ant o , nu ma pr imeir a apr o ximação , u m ind iv íduo co mo nó s (RICŒUR, 1995, p.89) e sendo o ato de ju lg ar eminent ement e hu mano , co mo t ambém o é a relação do ju iz co m o s demais at o res do sist ema ju d icial, seu ag ir deve se co nfo r mar a u ma mo r alidad e co mo , de r est o , espera-se qu e se co nfo r me o ag ir d e t o do ser hu mano , co ro lár io de sua no t a est rut ural d ist int iva que é a racio nalid ade. Sendo a Ét ica a ciência da p raxi s, o u do ag ir hu mano, não há co mo falar- se em Ét ica – co mo ciência do ag ir do ho mem – sem ant es não se pro curar co nhecer q uem é esse homem. Quem é o homem qu e ju lg a, qu em é o ho mem cu jo s at o s são ju lg ado s pelo h omem-juiz? Aqu i, no co nheciment o do pró prio ho mem, enco nt ra-se a chave p ara decifrar o ag ir hu mano . Esse o pensament o o rient ado r de Só crat es, que – persegu indo o ideal co nt ido no afo r ismo inscr it o no s pó rt ico s do Orácu lo de Delfo s: Con hece-te a ti mesmo – id ent ifico u no esp ír it o a nat ureza do ho mem, enquant o t al, int ent o em que não lo gr aram êxit o o s So fist as, na mesma épo ca (RE ALE, 2009, p.82). Nesse po nt o, releva at ent ar para a int ensa rede d e relaçõ es int erpesso ais est abelecid a a part ir d aq ueles que d emand am a ju st iça: as deno minadas “part es” do pro cesso , o s ad vo gado s, membro s do min ist ér io púb lico , defenso res pú blico s, ser vido res d a ju st iça, per it o s, represent ant es d as mais d iver sas inst it u içõ es, pú blicas e p r ivadas, agent es po lic iais, e t o das essas pesso as, no cenár io do pro cesso , co nverg indo para a pesso a do homemjuiz. Evidencia- se aqu i, na pró pr ia cent ralid ad e at r ibu íd a ao homem-j ui z nest a rede de relaçõ es int erpesso ais, a imprescind ível necessid ade de qu e esse at or, para cu jo papel co nverge o de t odo s o s o ut ro s int egrant es d a cena pro cessu al, d et enha ineq u ívo ca co mpreensão acerca do ser do ho mem e so br e 80 a ciência do ag ir hu mano (Ét ica), vist o est e ag ir não apenas so b o pr is ma o bjet ivo (co m o mu ndo , o s o bjet o s, as inst it u içõ es) mas, fu nd ament alment e, seu ag ir co m o o ut ro ser hu mano que p er manent ement e o int erpela, demand ando sua at enção . O t ema ganha at ualidad e qu ando se ver ifica o mo de lo predo minant e nu ma quadr a da hist ó r ia qu e se po de deno minar líquido-moderna (BAUMAN, 2009, p.114) na qual se to rnaram flu id as as relaçõ es do ho mem, em u ma perspect iva qu e t udo encara co mo mero o bjet o (e descart ável) – inclu sive as pesso as, o s sent iment o s e as relaçõ es hu manas – e que co nsequent ement e acarret a a t end ência ao descart e de t udo – de cu jo âmb it o não escap am, aind a que po t encia lment e, o s co nflit o s (qu e devem, ant es d e d escart ado s, ser so lucio nado s, nu m co nt ext o em que se bu sca a paz so cia l). E a p ercep ção do que se ja o hu mano co nst it u irá o amálg ama necessár io à ap licação de t o do o co nheciment o jur íd ico nu ma d imensão pro priament e hu mana, o que se revela co mo necessid ade na med id a e m qu e d ireit o , pro cesso , ju iz e inst it u içõ es jud ic iár ias gr avit am em t o rno do homem; em razão dele são cr iado s e su st ent am su a exist ência, sem ja mais encerrare m fins em si mesmo s. Cu id a-se de ident ificar no ju iz o co nheciment o racio na l acerca da “mat ér ia-pr ima” d e seu o fício co t id iano (o ho mem) p ara que co m ela po ssa bem r elacio nar-se, nu m pro cesso t ambém de aut o cresciment o , pelo co nheciment o de si mesmo . Diant e da evident e e inequ ívo ca cent ralid ade do homem, no co nt ext o da fu nção jud icant e, to rna-se necessár io que o ju iz po ssa cu mpr ir o adág io : “Conh ece-t e a ti mesmo”. Trat a-se de quest ão inaugur ada, no âmbit o filo só fico , na épo ca d e Só crat es e do s So fist as, que pr ime iro desviar am o o lhar, da reflexão hu mana, para o pró pr io ho mem, quando at é ent ão t inha t a l reflexão , co mo alvo , o mu ndo . Ao lo ngo de t o da a hist ó r ia d a filo so fia, t a l quest ão fo i o bjet o de at enção e d iscussão , em cada épo ca à luz das perspect ivas pró pr ias do s t empo s resp ect ivo s, sendo ela co smo cênt r ica, na filo so fia greg a clássica; t eo cênt r ica, mo d er nidad e perspect iva e na co nt empo raneid ade ant ro po cênt r ica, quando na filo so fia cr ist ã; e apenas passa surge, a co m ser t al invest ig ada na nu ma deno minação , a Ant ro po lo g ia Filo só fica. 81 Quat ro são as pergu nt as básicas d e t o do o pensar filo só fico : O qu e po sso saber ? O que devo fazer ? Quem é o ho mem? O que po sso esperar ? Na pr imeir a delas, vo lt ad a à ep ist emo lo g ia, pergu nt a-se o que po de o homem co nhecer. Na seg u nda, relat iva à Ét ica, ind aga- se co mo deve o homem ag ir. Na t erceira, a pergu nt a recai so bre o própr io ser do homem, enq uant o que na quart a, relat iva à filo so fia d a relig ião , a indag ação bu sca ident ificar a racio nalid ade d a crença do homem. Present e o mesmo ho mem em t o das as pergu nt as, evid encia-se a cent ralidad e da Ant ro po lo g ia Filo só fica na pró pr ia filo so fia, essencial à racio nalização da bu sca pela respo st a às dema is pergu nt as. Não é o ut ra a razão para que a mes ma cent ralid ade se reflit a no cabed al de co nheciment o s que se d eve esperar do ju iz, po is, co mo já d it o , será ho mem aquele cu jo s at o s serão ju lg ad o s pelo ho mem- ju iz. É preciso que co nheça “E l pro ble ma del ho mbr e” (GEVAERT, 1991 ) co mo sendo o desafio d e, nu ma so cied ad e espec ializada, q ue t udo frag ment a, inc lusive o pró prio ho mem, reco nhecido – aqu i de fo r ma exemp lificat iva – co mo u m co rpo que ado ece e que almeja sua saúd e ( visão méd ica) ; u ma psyché que r evela pu lsõ es e qu e se angu st ia ( visão p sicanalít ica) ; u m ser d e necess idad es que precisam ser su pr idas (visão eco nô mica) ; u m su je it o de d ireit o s e o br ig açõ es ( visão jur íd ica), enco nt rar a u nidade d est e ho mem qu e se mo st ra em t ant as mu lt ip licid ad es. S im, po rque, mu it o embo ra q ualqu er ser hu mano se reco nheça nessas visõ es fr ag ment adas e em o ut ras ma is, não se id ent ifica apenas no que represent a cada u ma delas, de fo r ma iso lad a, e ne m no simp les so mat ó rio de to das elas. O ho mem se reco nhece co mo u ma ind iv idualid ade co mp lexa em que se fu nd em t o das est as mu lt ifacet adas visõ es acerca de s i pró pr io , co nst it ut iva de sua unid ade, qu e se revela ao lo ngo de to da u ma exist ência. Ident ificar est a u nid ade pré-co mpr eend ida po r to do homem é o pro blema so bre o qual d eve o ju iz reflet ir, nu m p ercur so que revela lo go de in íc io – part indo est rut uralment e um do homem ser em co mo relação ser de co m lingu agem – o marcado o ut ro , qu e é ele pela int ersu bjet iv id ade. Trat a-se, em o ut ras palavras, de abando nar a reflexão fu nd ada no mo delo da relação su jeit o -objet o , present e co m mu it a fo rça na filo so fia mo d er na, t ão bem d ifu nd ido na célebr e afir mat iva at r ibu íd a ao 82 perso nagem Garcin, u m ex- co mbat ent e fu zilado po r deserção e que p adece su a pena nu m in fer no amb ient ado em peq ueno cô mo do burguês, para que m “ o inf erno são o s outro s” (S ARTRE, 2007, p .23) 7. Ora, se pressupo nho que o infer no é o o ut ro , que surge em meu ho r izo nt e, limit ando - me, t endo a t rat á-lo co mo o bst ácu lo (o bjet o ), o u – apro pr iando - me met afo r icament e da ideia drummon diana – co mo u ma pedr a no meio do caminho ( ANDRADE, 1983, p.15). Afina l, se me deparo co m u ma pedra no caminho , qu e me embaraça o passo , co nvém que a chut e, se fo r pequena; qu e a afast e, deixando -a à beira da est rada, se fo r u m po uco maio r ; que invo que o co ncur so de o ut ras pesso as p ara ajudar- me a remo vê- la, se so zinho não fo r capaz; o u at é mesmo q ue a exp lo d a, se grande dema is para ser remo vida. Essa a visão pró pr ia da mo d er nidad e, que impu nha a relação hu mana no mo de lo su jeit o -o bjet o , em q ue o o ut ro é t o rnado o bjet o da minha vo nt ade. Evident e qu e o o ut ro não se ident ifica co mo o b jet o , mas su je it o , e a simp le s falt a d e seu recon heci mento co mo su jeit o é su fic ient e ao surg iment o do co nflit o , pot encializado quando esse mesmo su jeit o , t rat ado co mo o bjet o , reso lve t rat ar, recipro cament e, aquele pr imeiro t ambém co mo o bjet o . Quando o prot ago nist a dest a relação int ersu bjet iva no mo delo sujeito-ob jeto é id ent ificado co mo o ho mem qu e encar na a inst it u ição da just iça, co m a missão de ju lg ar o o ut ro , nat uralment e seu igu al (o ju iz), est abelece- se u m parado xo , po is aqu ele encarreg ado de int erd it ar a vio lência est ará, em verdade, prat icando no va vio lência – co nsist ent e no t rat ament o das “p art es” do pro cesso co mo o bjet o – que se so mará à pr ime ira, o bst acu lizando o cu mpr iment o do ergon do ju lg ament o jud iciár io e imp ed indo sua qu alificação co mo justo. Co m o ad vent o da virad a ling u íst ica – que de saída reve la a int ersu bjet iv id ade deco rrent e da co mpreensão co mu nicat iva e da fo r mação do co nsenso so bre algo no mu ndo , po r meio do d iscurso (HERRERO, 1997) – impõ e-se a elevação das relaçõ es int ersu bjet ivas par a o mo delo sujeitosujeito, em q ue se t o rna necessár io o reconheci mento do o utro co mo su jeit o 7 Sem a qu i adentr ar a polêmica acer ca do qu e ef et iva ment e qu is dizer Sar tr e, mas toma ndo ap enas o s ent ido com qu e s e notabilizou tal expr essão. 83 de igu al d ig nid ade e de d ireit o s, o que faz t o da a difer ença na prát ica co t id iana do ho mem- ju iz, nas relaçõ es int erpesso ais mú lt ip las do cenár io jud ic ial, em qu e, co mo se viu, assu me cent ralid ade – qu e se po de afir mar mo d elado ra de co mpo rt ament o s, na med id a em q ue a at uação de t o do s o s (o ut ro s) ato res lhe é co nvergent e. A int er su bjet iv idad e nesse mo delo suj eito-suj eito é que t o rna po ssível o reco nheciment o , co mo cat ego ria filo só fica fu ndament al int egrant e da liberd ade hu mana, e que d eve no rt ear as relaçõ es int erpesso ais nu ma co nd ição recípro ca, o que equ ivale a d izer que assim co mo cada u m de nó s pro cura o reco nheciment o não apenas p elo s seu s feit o s e pelo seu pró pr io ser, mas fu ndament alment e pela su a d ig n idad e hu mana, o o ut ro que se r elacio na co m o si-mesmo surge d iant e dele co m a mesma pr et ensão de ser reco nhecido , na mesma d imensão hu mana, impo ndo -se nat uralment e u ma relação necessár ia de recipro cidade. Na perspect iva da r elação int er su bjet iva, fu ndad a no reco nheciment o, o o ut ro que surge no ho r izo nt e do si-mesmo, mu it o ant es d e limit á- lo , po ssib ilit a- lhe a o po rt unidad e p ara cresc iment o na escalada de u ma “v ida bo a” que se pro po nha ao crescimen to ind iv id ual enqu ant o ser hu mano , em relação co m-o s-o ut ro s-no -mu ndo , nu m co nst ant e aprend izado desse co nvív io p elo exercíc io co t id iano das v irt udes, per mit indo a co nst rução da perso nalidad e mo ral co mo cu lminânc ia de u ma vid a ét ica (VAZ, 2 004, pp.231-242). At ing ido esse est ág io da reflexão , evidencia- se a rela çã o intersubj etiva no model o sujeito- sujei to, estabel ecid a pel o jui z com os demai s atores do p rocesso, co mo co nd ição de po ssib ilidade do reconheciment o – enquant o cat ego ria filo só fica qu e d eve p er mear não apenas a co nd ut a desse mesmo ju iz na co ndução do pro cesso , co mo curso de u ma ação , de fo r ma d ialó g ica, mas a pró pr ia pro lação da sent ença e sua execução – e co nsequent ement e co mo co nd ição de po ssib ilid ad e que se acresce àq uelas id ent ificadas par a o pró pr io ju lg ament o ju d iciár io , qu e ago ra se qualifica pelo pred icado just o. É que so ment e nessa per spect iva, de u ma relação int ersu bjet iva q ue reco nhece no o ut ro alg uém co m sua mesma d ig n idade, ser á po ssível o recurso da visada ét ica de u ma vida boa com e pa ra os out ro s – e m que sit u ado o bom co mo telos da co nv ivência em so cied ade – para t emp erar o 84 fo r malis mo d a no r ma jur íd ica, incap az de d escrever na sua fr ieza as po ssib ilidades ( infin it as) que impr ime m r iqu eza, co r e vida no s caso s e m sit uação , submet ido s a ju lgament o . Po r o ut ro lado , será t ambém essa mesma rela ção intersubjeti va n o modelo sujeito- sujei to, estab elecida pel o juiz com o s demais ato res d o processo qu e pro p iciará a visão das “part es” do pro cesso nu ma persp ect iva d e d ig n idad e qu e impõ e d isp ensar a elas o reconh ecimento necessár io ao resgat e de sua aut o est ima, no pro cesso de cicat r ização da fer id a abert a pela vio lência que as co nduziu às barras do t ribu nal. Não será o ut ra, po r fim, a co nd ição de po ssib ilidade da leg it imação da deliberação ju d iciár ia encerrada na sent ença, elabo rada de fo r ma a espelhar a ju st a d ist ância do ju iz, em r elação às part es e ao co nflit o , além da lo g icid ade de su a co nst rução co mo frut o de u m exame ind ependent e e fie l à hist ó r ia repro duzida no pro cesso , apó s co nclu ído o debat e de argu ment o s que o caract er iza enquant o pro ced iment o fo r mal. Mas não é só . Também a identif icação do justo no ca so em situa ção, encont rado naqu ele po nto int ermédio entre o legal e o bom co nst it u i-se co nd ição de po ssib ilid ade do ju lg ament o jud iciár io ju st o – co mo expr essão da ju st iça pro priament e d it a – enqu ant o ato que co ns ist e no a-par tar esf er as de ativida de, de- limitar as pr et ens ões de u m e as pr et ens ões de outr o e, f inalment e, em cor r igir as distr ibu ições injustas, quando a ativida de de u ma par t e cons ist e na usur pação do ca mp o de ex er cício das outr as par tes. [...] estab elecer a par te de u m e a par te do outr o (RICŒ UR, 2008a, p.178). Esse est abeleciment o da part e de um e d e outro nad a mais é qu e o rest abelec iment o do equ ilíbr io d esfe it o quando da inst alação do est ado de incert eza q ue ensejo u a q ueixa ao ju iz e qu e o co rre co m a sent ença qu e pro fere o d ireit o . Acrescidas ambas co nd içõ es d e po ssib ilidade do pred icado ju st o – relat ivo ao ju lg ament o jud iciár io , que já havia enco nt rado sua defin ição ao final do cap ít u lo pr ime iro – o ju lg amento jud ic iár io ju st o se define co mo sendo a delib era ção que identif ica o ju st o no caso em sit uação, encontrado naquele pont o int ermédio ent re o b om e o legal, tomada po r u m ser h uman o 85 investido da s f unções de j uiz, em nome de um co rpo so cial o rgani zado em f orma de Est ado, ao f im do p ro cesso como curso de u ma açã o no q ual o j ui z tenha sido capaz d e estab elecer uma relação int ersubj etiva no mod elo sujeito- sujeito com o s demai s atores do pro cesso, pondo f im ao estad o d e incerteza gerado p elo conf lito tra zido a julgamento e restab elecendo a p a z social com a interdição da violên cia. Cu mpr ido o o bjet ivo pr incipa l d a pesq u isa empr eend id a, co m a id ent ificação das co nd içõ es de po ssib ilid ade do ju lg ament o jud iciár io ju st o e sua respect iva defin ição , viabiliza-se a bu sca pelo o ut ro aspect o desse o bjet ivo , que se co nst it u i na ident ificação do núcleo essencia l d essa espéc ie de ju lg ament o , que, em sendo inst it ucio nal, necessit a cercar-se das g arant ia s necessár ias a sua efet ivação emp ír ica, o que se po de alcançar po r meio da viab ilização e preser vação daqu elas co nd içõ es de po ssib ilid ade, ensejando o alcance p er manent e d a ju st iça co mo co mp o nent e da “v ida bo a” co m e p ara o s o ut ro s em inst it u içõ es ju st as, seg u ndo a visada ét ica d e Pau l Ricœur. 3.3 Núcleo essencial intangível do julgamento judiciário justo Co m a expr essão núcl eo essen cial pret ende-se refer ir àq u ilo qu e o ju lg ament o jud ic iár io ju st o apresent a de rad ical na sua defin ição , cu jo carát er se apresent a co mo fu ndament al. Daí po rque co nsid erado intangível, d iant e da necess idad e de ser po st o a salvo de int er ferências co m po t encia l de imp ed ir sua realização no caso em sit uação , fru st rando a realização do ideal d e ju st iça que deve ser persegu ido pela inst it u ição jud iciár ia. De t udo quant o at é aqu i se expô s, não rest a dúvid a relat ivament e ao carát er hu mano d e que se revest e o at o de ju lg ament o ju d iciár io ju st o , na med ida em que encerra at ivid ade d a razão exercit ada pe lo hu mano que encar na a inst it u ição da ju st iça, co nd ição que remet e a lo calização do seu núcle o essencia l ao âmbit o daquele ser hu mano que pro fer e t al ju lgament o . Ser hu mano que – t ambém já se viu – necessit a mant er just a d ist ância em relação às “part es” do pro cesso e ao pró pr io co nflit o , ao t empo 86 em qu e t ambém precisa est abelecer u ma relação int ersu bjet iva no mo delo su jeit o -su je it o co m aquelas mesmas “part es” do pro cesso , decid indo o co nflit o co m a ident ificação do ju st o no po nto int er méd io ent re o bom e o legal. To rna-se necessár io ident ificar o at ribut o desse hu mano que lh e per mit a, em qua lquer circu nst ância e em qu alquer co nflit o que se lhe apresent e a ju lg ament o , ag ir imp lement ando aqu elas co nd içõ es de po ssib ilidade do ju lgament o jud ic iár io ju sto . Esse at r ibut o enco nt ra-se ret rat ado na qualificação que se espera do ju iz e respo nde pelo no me da indep endên cia (RICŒUR, 1995, p.90) e que se deve apresent ar de fo r ma p lena. So ment e u m ser hu mano do t ado de t al pred icado , inclu sive po r meio d as prerro gat ivas e g arant ias necessár ias especialment e à pr eservação de sua int egr id ade e d ig n idad e ser á cap az d e est abelecer a ju st a d ist ância e p erseg u ir d iut urnament e a efet ivação do ju lg ament o co m a o bser vância da imp le ment ação das co nd içõ es de po ssib ilidade apo nt adas. E qu ando se fala em ind epend ência p lena t em- se o o bjet ivo de alcançar t ant o aquela obj etiva quant o – e fu ndament alment e – a subjeti va. A objeti va co nst it u i b lindagem às invest idas ext er io res, o r ig inad as do po der, em t o das as suas fo r mas: p o lít ico , eco nô mico , hierárqu ico , da o pin ião pú blica. É a mais co mu ment e falada, po r se t rat ar da vis íve l, e par a sua preser vação são inst it u ídas garant ias jur íd icas co mo as da vi talici edade, da inamo vibilida de e da i rredutibili dade dos venci mento s. São prerro gat iva s iner ent es ao cargo , as quais não se co nst it uem – co mo po dem apar ent ar e é co mu m se co nfu nd ir – pr iv ilég io s pesso ais. A prerro gat iva d a vitalici edad e co nst it u i u ma garant ia de que o ju iz não perderá o cargo , senão po r meio de sent ença jud iciár ia passad a e m ju lg ado , va le d izer, co m r elação à qual não caiba mais qua lquer recurso . Evit a- se co m isso a exclusão , do s quadros da mag ist rat ura, de u m ju iz q ue – exat ament e po r ser indep endent e – venha a co nt rar iar int eresses de po dero so s em event ual d ecisão , sem qu e seja m p erco rrido s o s rigo res do pro cesso jud ic ial, co m as car act er íst icas aqu i já t rat adas, de cur so de u ma ação calcad a em pro ced iment o s legais, co m o exercício da amp la e par it ár ia defesa, co nduzid a po r ju iz imp arcia l. É que o reg ime do s ser vido res pú blico s, em 87 geral, prevê o d ir eit o à estabil idade no cargo , a qual, d iferent ement e d a vitalici edade do s ju ízes e do s membro s d o Min ist ér io Púb lico , ad mit e a perd a do cargo med iant e simp les pro cesso ad minist rat ivo d iscip linar. Mas d iant e d a relevância e grav idad e d a fu nção de ju lg ar jud ic ialment e, pr inc ipalment e po rque fá- lo o ju iz em carát er de d efin it ivid ade – co nst it u i lu gar co mu m a afir mat iva de que ao po der jud iciár io cabe errar po r ú lt imo – à mag ist rat ura é defer ida a g arant ia de u ma est abilid ade – po de-se assim d izer – q ualificada, que é a vitaliciedad e. A prerro gat iva da inamo vibilida de co nsist e na gar ant ia d e qu e o ju iz, alçado à co nd ição de respo nsável pela co nd ução de u ma det er minad a unid ade jud ic iár ia e de seu s resp ect ivo s pro cesso s, de t al co ndu ção não po de ser afast ado , o u t ransfer ido para o ut ra, salvo a seu ped ido o u pela prát ica de in fração devid ament e ap urada em pro cesso regu lar e, no Brasil, apenas po r deliberação t o mad a p elo vo t o da maio r ia abso lut a do s membro s do t ribu nal a que est eja ele vincu lado o u do Co nselho Nacio nal d e Ju st iça, ó rgão encarreg ado do co nt ro le ext erno do Po der Jud iciár io 8. Co mo reflexo dest a garant ia imp ede- se, igualment e, que se avo que o u exclu a de sua apr eciação pro cesso que a ele co mpet e pro cessar e ju lg ar, segu ndo o s cr it ér io s o bjet ivo s de fixação de su a co mpet ência, vigent es quando da d ist r ibu ição da cau sa per ant e a inst it u ição jud ic iár ia. O qu e equ ivale a d izer que, in iciado o pro cesso so b a co ndução de u m det er minado ju iz, p ara ele co mp et ent e, ser á ele respo nsável p elo seu pro cessament o e ju lg ament o fina l, salvo se po r sua in iciat iva pró pr ia dele d ecid ir deso br igarse, o que po de o co rrer dir et ament e med ian t e man ifest ação de u m do s víc io s de sua capacidade su bjet iva: imp ed iment o o u suspeição ; o u, ind ir et ament e, co mo co nsequência de u m p ed ido de remo ção para o ut ra unid ade jud ic iár ia, pro mo ção o u apo sent ado r ia, hipó t eses em que o ut ro ju iz assu mirá o pro cesso respect ivo . Já a prerro gat iva da i rredutib ilidad e dos venci mento s pro cura garant ir que co nt ra o ju iz não se ut ilize o art ifíc io eco nô mico para afast á- lo da ju st a d ist ância necessár ia ao seu ret o at uar. Há – especialment e no Brasil – u m nú mero super lat ivo de açõ es jud icia is mo vidas co nt ra o pró prio po der 8 Constitu ição da Repú blica, arts. 93, VII I e 92, I-A 88 púb lico , em razão da vio lência de seus ato s, a gerar co nflit o s que impõ em a vio lência ao s cidad ão s. Ora, se o Estado – que mant ém as inst it u içõ es jud ic iár ias e co nseq uent ement e paga a remu neração de seus ju ízes – é o mesmo q ue g era o s co nflit o s a ser em ju lg ado s pelo s ju ízes po r ele remu nerado s, ident ifica-se aqu i u ma po ssib ilid ade co ncret a do s det ent o res do po der reco rrerem ao embargo financeiro , diminu indo o u supr imindo a remu neração do ju iz – que ger alment e so fre sever as rest r içõ es ao exer cício d e qualquer o ut ra at ivid ade, no t adament e eco nô mica, não sendo po ssível, no Brasil, exercer qualq uer o ut ra at iv idad e, salvo a do mag ist ér io 9 – co mo fo r ma de exer cer so bre ele ileg ít ima pressão , co nt ra a qual surg e a g arant ia co nst it ucio nal da irr edut ibilid ade do s venciment o s. Tais prerro gat ivas visam à g arant ia da indep endência aqu i deno minada objet iva e vo lt am-se co nt ra ameaças ext ernas, relat ivament e vis íveis. Mas há o que aqu i se deno mino u ind ep endência subj etiva , relacio nada co m as pressõ es int er nas d aq uele ju iz que – já se d isse rep et idas vezes, mas vale a ins ist ência – nat uralment e é ho mem co mo o s demais, co m inegável po t encial d e fr ag ilidade na sua est rut ura mo ral e p sico ló g ica. Essa face da ind ep endência, imbr icada co m a pró pria liberdade, po de assim ser expo st a co m prec isão : [...[ a per s onalida de do juiz p ode s er plas ma da p el o apr oveita ment o de suas vir tu des p ess oais, muita vez s op itada s p ela er r ônea compr eensão do dever fu ncional e da conduta. Ser vidor da lei e nã o s imp les ment e s eu es cr avo, nã o há de o ju iz p er der de vista qu e a s ocieda de lhe comet e a fu nçã o d e ju lgar , conta ndo com sua int eligência e s ua sens ib ilida de, contando, a demais, com a indep endência qu e começa p or lib er tar -s e de s eus pr ópr ios impu ls os e paix õ es. [...] O ju iz livr e nã o é aqu ele a qu em s e gar ante a lib er da de; é aqu ele qu e vence a si pr ópr io par a usá-la. As pr ess ões do mei o são, mu ita vez, inexpr ess ivas em confr ont o com as de sua s fr aqu ezas; nascem do r eceio infu ndido, do int er ess e, da vaida de, do ódio e da s impatia. Com ess as dist or ções d o car áter e do s ent iment o de qu e a lei [ o] t or na livr e par a ser ju iz, est e s e es cr avizar á até o p ont o de aviltar a função qu e dever ia dignif icar . 9 Constitu ição da Repú blica, art. 95, par ágr afo ú nico, incis os I a V 89 A indep end ência – é ainda R ou llet qu em o af ir ma – ass egur a a indisp ensável lib er da de de consciência. Pode o ju iz s er cha mado a decidir contr ar ia ment e às suas pr edileções; a condenar mes mo os atos de sua es colha. D eve o ma gistr ado es qu ecer -s e de s i, par a fazer r esp eitar os dir eit os de qu e é guar diã o. (BIT T ENCOURT , 2002, p.17 e 123) Trat a-se aqu i da independ ência do ju iz em relação a si mesmo, po is relacio nada a pressõ es surg id as de seu ín t imo , po r isso que sub jetiva. Co nt ra t ais pr essõ es não há prerro gat iva jur íd ica po ssíve l, senão a seleção r igo ro sa do s cand id at o s ao cargo e u ma fo r mação e ap er feiço ament o pro fissio na l per manent es do ju iz qu e o co nscient ize de t al asp ect o , seus r isco s e d ificu ldad es, est imu lando -o a per manent e aut o rreflexão . Para t ant o se afig ura necessár ia u ma fo r mação e aper feiço ament o que t enham na ét ica – em su a abrangência cient ífica 10 – o aspect o enfát ico e no rt eado r de to do o pro cesso de ensino e aprend izado , per meando o s demais co nt eúdo s relat ivo s ao s campo s deo nt o ló g ico , jur íd ico , p sico ló g ico , eco nô mico , t ecno ló g ico , so cio ló g ico , de ad min ist ração , et c. Daí co nclu ir- se qu e a independ ênci a se con stitui no núcl eo essencial intangí vel do julg ament o judici ário ju sto, dado que so ment e ela, e m suas vert ent es objeti va e subjeti va, per mit irá ao ho mem- ju iz est abelecer a necessár ia just a d ist ância q ue lhe per mit a relacio nar-se int ersu bjet ivament e gu iado pelo reco nheciment o recípro co e ident ificar o ju st o no caso e m sit uação , ent re o legal e o bom, como co nd içõ es d e po ssib ilid ade do ju lg ament o ju d iciár io ju st o . O pro cesso de busca d iut urna pela co ncr et ização da indep endência objetiva, mas fu nd ament alment e da subj etiva, imp lica verdad eiro exercíc io – e co t id iano – da virt ude, t arefa d e u ma vi da que se pro põ e ded icada a carreir a 10 Falar em abr angência cient íf ica da ét ica p ode par ecer r edu nda nt e, qua ndo s e sa b e qu e ét ica nada ma is é qu e a ciência do agir hu mano. Mas nu ma qua dr a hist ór ica em qu e a r elat ivizaçã o s e imp õe de f or ma imp ensada, e qu e a ética vem s endo tr atada – nota da ment e no meio jur ídico e de s eu ens ino r esp ectivo – nu ma p er sp ect iva r edu cionista, qu e a limita a u ma s imp les deont ologia pr ofiss iona l, t or na-s e imp er iosa tal qualif icaçã o, como qu e a expr essar o ób vio qu e necess ita s er dit o: a ét ica aqu i r ef er ida é a da ciência, qu e como ta l envolve u m hu ma nis mo qu e a pr essup õe – tr adu zido no conheciment o do homem p or meio da a ntr op ologia filos óf ica – e os par adigmas ét icos do ocident e, constitu ídos p ela ét ica ar istot élica e p ela ét ica ka nt iana, além, agor a sim, da deont ologia do ma gistr ado, invest igada e aplicada à luz da ética, pr opr ia ment e dita. 90 pro fissio nal que não ao acaso o st ent a a garant ia da vita licied ade. Po de-se d izer desse pro cesso – parafraseando o filó so fo – t rat ar-se da co nst rução da perso nalidad e mo ral [do jui z] co mo cu lminância de u ma v ida ét ica (VAZ, 2004, pp.231-242). 91 CONCLUSÃO O pro blema po st o é o de co mo defin ir u m ju lgament o jud iciár io qu e to rne efet iva a ju st iça, enquant o virt ude das inst it u içõ es, segu ndo a ét ica e m Pau l Ricœur. Para se o bt er a so lu ção do pro blema deline iam- se o s o bjet ivo s do t rabalho na ident ificação das co nd içõ es de po ssib ilid ade do ju lgament o jud ic iár io ju st o , bem assim do lugar filo só fico do just o , e secu ndar ia ment e a id ent ificação do nú cleo essencial int ang ível do ju lgament o jud ic iár io : aqu ele po nt o essencial cu ja preser vação se impõ e para se assegurar a po ssib ilid ad e de que o ju lg ament o jud ic iár io seja qu alificado pelo pr ed icado ju st o . Levant ase co mo hipó t ese de respo st a a segu int e tese: sendo a sent ença u m at o de ju lg ament o hu mano , que t em co mo fim a pacificação so cial, será ela ét ica enquant o cu lminância d e u m pro cesso jud icia l efet ivado co mo d ialó g ico e qu e encerre o ju st o, co mo expressão do legal e do bom. O percurso de so lução do pro blema inic ia-se no que se po de deno minar u ma feno meno lo g ia do ju lg ament o jud ic iár io , a p art ir da caract er ização do ju lg ament o co mo at o pro priament e hu mano , po rque fu ndado na razão , apresent ando -o em níveis de densidade crescent e, desd e o nível q u e exercit a a estima de si, na avaliação narrat iva de u ma vid a, passando pelo ju lg ament o nas relaçõ es int er su bjet ivas, per meada p ela solicit ude, at é o ju lg ament o po lít ico e so cial, marcado pela igu aldade. A escalada crescent e do s níveis cu lmina no ju lgament o jud iciár io , co mo at o hu mano co mp lexo e mar cado , ao co nt rár io do s d emais, pe lo carát er co ercit ivo q ue lhe emprest a a lei jur íd ica. Desenvo lvid a a feno meno lo g ia que enco nt ra co mo requ isit o s do ju lg ament o jud iciár io as fig uras do o rdenament o jur íd ico , das inst it u içõ es jud ic iár ias e d a sent ença co mo cu lmi nância de u m pro cesso , e co mo 92 finalid ad e imed iat a a necessid ade d e se p o r fim ao est ado de incert eza gerado pelo co nflit o levado a ju lg ament o , alcançaram- se as co nd içõ es de po ssib ilidade do ju lgament o jud iciár io , ident ificado s co mo sendo um corp o social organi zado em f orma de Est ado, u m ser h umano i nvestido da s f unções de julga r, o p ro cesso como cu rso de uma ação e a exi stên cia d e um conf lito. Alcançadas as co nd içõ es de po ssib ilid ade, seu s requ is it o s e fina lidad e imed iat a, to rna-se po ssível d efin ir o ju lg ament o jud ic iár io co mo “a deliberaçã o toma da po r um ser hu mano investido d as f unçõ es d e jui z, em nome de um co rpo social o rgani zad o em f orma de Estado, ao f im de um processo co mo cu rso de uma a ção, e q ue põe f im ao esta do de incerteza gerad o pelo conf lito tra zido a julga mento num caso concreto. Tal defin ição não t raz em si o ju sto q ue qu alifica o ju lgament o jud ic iár io co mo at o ét ico , o que leva a crer que as co nd içõ es d e po ssib ilid ad e aqu i enco nt radas, se imp lement adas, p o ssib ilit am u m ju lg ament o que se classifica co mo jud ic iár io , mesmo po rque su ficient e p ara at ender à su a finalid ad e imed iat a: po r fim ao est ado de incert eza. Mas per cebe- se q ue u m ju lg ament o , at end id as apenas t ais co nd içõ es, e cu mpr id a t al fina lidad e, t raz o pred icado do justo co mo mera co nt in gência, razão pela qua l t o rna-se necessár io pro ssegu ir no percurso , pr imeirament e defin indo o lug ar filo só fico do justo, que ao ju lgament o jud iciár io deve ser acr escido para qualificá- lo co mo t al. Essa id ent ificação se faz a p art ir da vis ada ét ica d e Pau l Ricœur, que co nsist e na bu sca po r uma “vid a boa” com e para os out ro s em institui ções just as co mo expr essão do anseio hu mano na su a t rajet ó ria de vid a. Na bu sca po r essa vida bo a, co mp ar t ilhada co m o ut ro s seres hu mano s, o si-mesmo exer cit a a est ima d e si na id ent ificação do bo m para no rt ear sua “v ida bo a”, e no co mpart ilha ment o da vida enco nt ra o outro que, merecedo r da mesma est ima, ago ra rot ulada po r solicitud e, passa a ser vist o e co nsid erado co mo o si-mesmo, d e t al maneir a qu e o bom p ara o si-mesmo seja igu alment e o bom para o o ut ro . Evo lu ind o nest a relação , de enco nt ro co m o terceiro, que não guard a a pro ximid ade daquele out ro, cheg a-se à i gualda de co mo fo r ma de r elação equ ivalent e à esti ma de si e à soli citude, fechando o cír cu lo das relaçõ es hu manas na u niversalid ade. 93 Mas essa visada ét ica, ao co nt emp lar as relaçõ es do si-mesmo na bu sca pela “vid a bo a”, leva ao ag ir hu mano que, int er fer indo na ó rbit a do o ut ro , não raro incid e em u ma das in ú meras fo r mas d e vio lência, fo nt e gerado ra do co nflit o . Surge aí a no r ma mo ral co mo fo r ma de su b met er a visad a ét ica a u m co nt ro le que per mit a o respeit o do espaço , t ant o daquele outro, pró ximo , quant o do tercei ro, d ist ant e. Se a visad a ét ica, na bu sca pela “v ida bo a” sit u a-se no campo do o pt at ivo , sua p assag em pelo cr ivo da no r ma mo ral revela o campo do o br igat ó rio . Mas a no r ma mo ral, dado seu carát er de fo r malis mo – necessár io a u ma prescr ição que se pret enda u niversal – acarret a o surg iment o de no vo s co nflit o s, ago ra deco rrent es da pró pr ia ap licação de t al no r ma sem se at ent ar para as p ecu liar id ades do caso em sit uação , que geralment e não se su bsu me d e fo r ma abso lut ament e p er feit a à pr escr ição no r mat iva. Surge assim a necess idad e de u m r ecur so da no r ma mo ral à visada ét ica, u m r et o rno à perspect iva da “ vida boa” com e pa ra o s out ro s em in stituiçõ es ju stas par a insp irar o ju lg ament o do caso em sit u ação co m o so pro de vid a que o aliment a, per mit indo qu e ao final desse mo viment o , em t rês t empo s, seja id ent ificado o just o co mo est ando sit uad o naqu ele po nt o int er méd io ent re o bom e o legal. Dado que o lug ar filo só fico fo i id ent ificado em relação ao ju lg ament o mo ral d e u m caso em sit u ação , sua t ranspo sição para o jur íd ico to rna-se po ssíve l a part ir da su bst it u ição da no r ma mo ral pela no r ma jur íd ica, dot ada do po der co ercit ivo qu e co nst it u i o t raço d ist int ivo t alvez mais no t áve l ent re ambas, e fazendo -se su bst it u ir, a ig ualdade da relação do si-mesmo co m o tercei ro, p ela equida de. Desenvo lve-se ent ão a feno meno lo g ia do ju lg ament o jud iciár io , ago ra qualificado co mo just o , a part ir da fina lidad e med iat a do ju lg ament o jud ic iár io , em g eral, qu e é a int erd ição da vio lência que gero u o co nflit o . Para t ant o , o bser va-se q ue não é a dec isão jud ic iár ia, co mo ato iso lado , que alcançará t al o bje t ivo , mas a pró pr ia fo r ma co mo se desenvo lve o pro cesso que cu lmina naquela d eliber ação , que deve ser co nst ru ído de fo r ma d ialó g ica e no qual o ju iz exercit e a estima d e si, a solicit ude, a i gualda de e a equidad e, em relação a si pró pr io , ao s at o res do pro cesso e ao s t erceiro s event ualment e at ing ido s po r sua deliber ação , além d e 94 decid ir ident ificando , no caso em sit uação , aquele po nt o int er méd io o nde se sit ua o justo. É nesse po nt o que são ident ificad as co mo co nd ição de po ssib ilidad e do ju lg ament o ju d iciár io ju st o : uma rela ção intersubj etiva no mod elo suj eitosujeito, est abelecida pelo j uiz com os demai s ato res d o p rocesso e a identif icação do ju sto no caso em sit uação, encont rado naqu ele pont o intermédio entre o bom e o legal. Essas co nd içõ es de po ssib ilid ade, acrescidas àqu elas id ent ificadas p ara o ju lgament o jud iciár io , ju st o co mo co nt ingência, per mit em a defin ição do ju lgament o jud iciár io ju st o co mo sendo a deliberação que id entif ica o justo no ca so em situação, encont rad o naquel e ponto intermédio entre o bo m e o legal, t omada po r um ser h umano investid o das f unções de juiz, em no me de um co rpo so cial o rgani zado em f orma de Estado, ao f im do processo como curso de uma ação no qual o jui z tenha sid o capaz de esta belecer uma relação intersubjeti va no mod elo sujeito- sujeit o com os demais ato res do processo, pond o f im ao estado de incerteza gerado pelo conf lito tra zido a julg ament o e restab elecendo a pa z social com a interdi ção da viol ênci a. Po r fim, co mo núcleo essencial int ang íve l do ju lga ment o jud iciár io ju st o , po nto essencial cu ja preser vação deve ser buscad a para qu e as co nd içõ es de po ssib ilid ade do ju lgament o jud iciár io ju st o po ssam ser imp le ment adas pelo ju iz, no ju lgament o de cada caso em sit uação , enco nt ra-se o at ribut o da independência. Só um jui z indepen dent e, cercado das gar ant ias necessár ias à preser vação de sua d ig nid ade e int egr idade po derá mant er a ju st a d ist ância em r elação às part es e ao pró prio co nflit o , que lhe per mit a id ent ificar o ju st o naquele caso co ncr et o, e est abelecer a ind ispensáve l relação int er su bjet iva no mo delo su jeit o -su jeit o , em que exercit ada a estima de si, a solicitude e a eq uidad e. Dada u ma respo st a ao pro blema su scit ado na present e p esq u isa – que pela sua pró pr ia nat ureza não busca ser exaust iva – parece abert o o campo para seu event ual pro ssegu iment o , part icu lar ment e em do is aspect o s sig nificat ivo s: i) o da her menêut ica jur íd ica, nu m âmb it o que fo rça passage m para abert ura do diálo go co m a filo so fia do direit o , na p art e em que se t em a id ent ificação do lug ar filo só fico do ju st o enquant o co nd ição de po ssib ilid ad e 95 do ju lgament o jud iciár io ju st o , em vist a das nu mero sas t eo r ias acerca d a argu ment ação e int erpret ação jur íd icas; o apro fu ndament o do t ema das relaçõ es int er su bjet ivas na mo dalid ad e su jeit o -su jeit o so b a cat ego ria filo só fica do reco nheciment o e event ual relação ent re essas e a pró pr ia her menêut ica jur íd ica; e ii) a reflexão acerca da impo sição t empo ral, pró pr ia das deliberaçõ es jud icia is, cu jo carát er de imed iat ismo , não raro , é ind isp ensável à necessidade pr ement e d e se po r fim ao est ado de incert eza, mas ao mesmo t empo co nst it u i ó b ice à efet iva pacificação so cial, po ndo e m cho que a esco lha pelo at end iment o de u ma d as fina lidades do ato de ju lgar, em d et r iment o da o utra. 96 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ANDR ADE, Car los Dr u mmond. 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