CONSIDERAÇÕES ACERCA DA HISTÓRIA DA LITERATURA EM TEMPOS DE INTERNET Márcia Regina Schwertner (PUCRS) A busca pelo passado é parte do processo de desenvolvimento humano, manifestando-se de diferentes modos, conforme as técnicas existentes e o espaço social onde técnicas e pesquisador estiverem inseridos. Às vezes, ocorre de maneira coletiva, outras, por atuações mais individualizadas; por vezes, como análise e interpretação, em outros momentos, coleção e guarda de objetos. Flutuando entre o ser um item colecionável guardado no fundo de um armário e uma narrativa, esse material vai formando um conjunto de elementos cobiçados pelo olhar mais atento de quem procura uma história, não raro a sua própria. O presente texto, tendo como base principal o artigo “A operação historiográfica”, de Michel de Certeau (2002), aborda modificações verificadas no processo de (re)construção do passado, decorrentes, dentre outras causas, do advento da informática. Pesquisas na área da história da literatura seguiram caminhos similares, constituindo-se ações que, como destaca Certeau, se iniciam com “o gesto de separar, de reunir, de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira”. Dessa forma, esses materiais mudam de objetivo e de “estatuto”, são transformados em elementos do presente que se destinam a contar o passado. Em termos historiográficos, passos importantes ocorreram no momento em que coleções se transformaram em bibliotecas, construídas e mantidas por governos ou particulares, onde se divulgava, se produzia e se reproduzia o conhecimento. Era um sistema caracterizado pela criação de centros culturais limitados a áreas físicas específicas. Participar exigia aceitação pelo grupo e seguia um ritual de iniciação não acessível a muitos. Também, o processo de ampliação do conhecimento nesses centros não era fácil, pois a movimentação de eruditos ou a aquisição de novos produtos representava custos elevados e logísticas complicadas e demoradas. Como alternativa, observa-se uma produção local, desenvolvida a partir dos recursos já existentes, com criadores e linhas de pensamento similares ao entorno social habitado, assumindo um caráter mais restrito e regional. Para pesquisar uma fonte, o estudioso deslocava-se até essa fonte. Tal procedimento envolvia viagens contínuas e horas de trabalho em arquivos pesados, não raro em ambientes insalubres, fechados, com pouca ventilação e conforto. Caracterizava-se pelo contato manual, pela concretização da presença do objeto. Hoje, com o emprego dos computadores, mudanças radicais ocorreram, não apenas na parte técnica, quanto aos instrumentos com que conta o historiador, mas também em termos de percepção do mundo e flexibilização de conceitos, de conscientização quanto aos novos limites (ou falta de limites) decorrentes da facilidade do compartilhamento. Compartilhar implica entrega e retorno, comparação de diferentes pontos de vista, ampliação de olhares e percepções. E, ao mesmo tempo, no caso de projetos online, um distanciamento físico do objeto estudado, que se torna elemento virtual, perde sua forma concreta. Distanciar procedimentos antes efetuados de forma unificada representou uma ruptura profunda. O cientista não é mais, necessariamente, responsável por todas as etapas do processo de coleta, classificação e interpretação de dados. A separação físico-espacial entre pesquisador e objeto de pesquisa não ocorre de forma isolada, encontra-se inserida em um contexto de alteração de mentalidades e questionamentos acerca dos meios e do sentido do fazer histórico. Desde o início do século XX, a história vem sendo relativizada como “verdade” única e imutável, com a percepção de ter sido ela, antes de tudo, a história dos vencedores, marcada por escolhas, inclusões e exclusões dependentes do espaço onde foi construída. Novos campos de pesquisa são abertos e amplia-se o leque das fontes e informações, consolidando-se a ideia de que a narrativa feita a partir dessas fontes mescla o fato e a criação do fato, engloba uma interpretação que, por mais que se proponha a um distanciamento imparcial, contém em si a impossibilidade de ser imparcial. A consciência de não ser “a verdade” e de não poder abranger todo o universo das “verdades” colaborou para um novo olhar, que procura não mais apenas a ideia globalizante, o aspecto que unifica e insere a fonte em teorias já concebidas pelo historiador, mas se volta para o desvio, o detalhe diferenciador, ou, como chamadas por Certeau, para as “zonas silenciosas”. O que atrai é o que, pela história tradicional, não deveria estar aí. O objetivo não é mais a comprovação de um modelo, mas o treino do olhar em busca do desvio. E, também, o treino que permita seguir o rastro inicial, com o cuidado de não se perder em generalizações que prejudiquem a credibilidade do trabalho executado. “Seguir um rastro, remontá-lo” (RICOEUR, 1997: 204) é a tarefa do historiador. É a sua pesquisa, análise e interpretação que transformará esse rastro em um objeto histórico. O pesquisador da área de história da literatura assimilou em sua prática as modificações decorrentes dos caminhos abertos pelas ciências da informação, aproveitando o fértil campo de pesquisa que o armazenamento e a divulgação de dados por essa tecnologia é capaz de viabilizar. O compartilhamento tornou-se central para a prática historiográfica, não existe mais a crença em uma totalização sobre um tema e não se procura mais a totalização. É importante assinalar que esse interesse das ciências humanas pelo aspecto tecnológico resultou em adaptações nos formatos dos estudos, com aspectos positivos e negativos. Se, por um lado, facultou a ampliação dos dados, por outro, o armazenamento, em especial nos primeiros anos, teve que se adaptar à tecnologia nova que estava sendo introduzida, padronizando arquivos pessoais e, talvez, apagando rastros que poderiam receber pesquisas posteriores. Contudo, o próprio apagar de rastros termina sendo transformado em objeto de pesquisa. As maiores mudanças na relação história-tecnologia ocorrem a partir da década de 1980, com a introdução, pode-se dizer em massa, dos computadores pessoais. Mesmo antes, já em 1966, fundava-se, nos Estados Unidos, a Association for Computer and the Humanities, considerado um dos primeiros espaços de cunho internacional com o objetivo de divulgar e reunir trabalhos ligados às ciências humanas. No Brasil, a criação de um centro tecnológico ligado às ciências humanas ocorreu em 1991, quando surgiu a Associação Brasileira de História e Computação. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, essas associações possuíam, entre suas principais metas, a divulgação das possibilidades representadas pela informática, a criação de programas mais adequados à área e a instituição de cursos que preparassem os historiadores para o manejo desse novo instrumento não apenas de atuação, mas, inclusive de maneira cada vez mais acentuada, de divulgação. O historiador entra em contato com um processo que elimina o manuseio de documentação física em grande quantidade, ele lida agora com material predominantemente oriundo de bancos de dados, imagens e sons já catalogados e classificados por outros historiadores. Mais do que um objeto físico, existe um objeto virtual. O número mais expressivo de pesquisas historiográficas online no Brasil é verificado nos campos da História e da Arte. Contudo, a Literatura também tem recebido um aporte importante. Na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, o DELFOS – Espaço de Documentação e Memória Cultural –<http://www.pucrs.br/delfos/?p=capa>, inaugurado no ano de 2008, reúne acervos das áreas de Letras, Artes, Jornalismo, Cinema, História e Arquitetura, com parte do material já digitalizado e parte em processo de digitalização. O DELFOS é mencionado também por outro aspecto que caracteriza a historiografia atual: a quebra de fronteiras rígidas entre os diversos setores do conhecimento. Nesse site, encontramos material não apenas de escritores, mas acervos de jornalistas, artistas plásticos, historiadores e arquitetos, formando uma equipe que envolve profissionais com linhas de pensamento diferenciadas, o que, na atuação quotidiana, amplifica as possibilidades de observação, reduz os riscos de perda ou destruição e dinamiza o processo de produção do conhecimento. Os discursos, hoje, procuram um compartilhamento de conteúdos e, consequentemente, verifica-se uma influência, uma permeabilização entre esses conteúdos. Há uma maior pluralidade em termos de abordagem, de instrumentos de pesquisa e de pontos de vista. Como informado na sua página inicial, o DELFOS origina seu nome do famoso oráculo grego. Mais do que as previsões do oráculo (o que representaria uma conotação de “verdade”, quando o sentido é o de busca de conhecimento), lembra as capelas que o integravam, onde se reuniam as doações dos que iam em busca de consolo junto aos deuses. Os acervos e coleções seriam, dessa forma, tesouros culturais a serem preservados. Outro espaço de interesse é a Brasiliana USP, <http://www.brasiliana.usp.br/pt-br>, online desde o ano de 2009. Constitui-se de uma rede envolvendo instituições públicas e privadas e que possui como política de atuação, como destacado na página de apresentação do site, a difusão de conhecimento e a busca por “tornar irrestrito o acesso aos fundos públicos de informação e documentação científica sob sua guarda”. A Brasiliana USP é reconhecida como um dos projetos mais abrangentes em termos de digitalização de acervos públicos. Atua em diferentes áreas, promovendo não apenas a entrega do material final, mas garantindo o suporte e instrumentalizando os pesquisadores para o uso adequado desse suporte. Nesse sentido, a Plataforma Corisco <http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/corisco>, que integra o sistema, atua na produção de aplicativos a serem disponibilizados para uso do público, na produção de imagens digitais, no tratamento e processamento, na padronização dos dados e na assessoria no referente aos aspectos legais, em especial quanto à garantia e preservação dos direitos do autor. Como exemplo da sua importância, vale destacar que a Brasiliana USP, por meio de seu Centro de Referência Paulo Freire, desenvolve, desde o ano de 2011, o projeto “Paulo Freire Memória e Presença: preservação e democratização do acesso ao patrimônio cultural brasileiro”, cujo objetivo é a disponibilização de acervo digital relativo à obra desse educador. Não apenas livros de sua autoria, mas vídeos de aulas, conferências, palestras, entrevistas, artigos, fotografias. Parte já se encontra liberado para uso e, até o final do projeto, serão cinquenta mil páginas de texto, mais de três mil fotos, duzentos vídeos e cerca de duas mil páginas de obras em áudio. Para a área de literatura, mais um site a ser referido é o da Biblioteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional <http://bndigital.bn.br/apresentacao.htm>, onde encontramos um acervo extenso e atuação conjunta com instituições nacionais e internacionais voltada à digitalização de material de pesquisa. Informações textuais, sonoras e viagens virtuais por espaços de cultura são proporcionadas de maneira gratuita e com acesso mesmo por meio de equipamentos simples, computadores pessoais sem maiores recursos. O ingresso facilitado, a ampliação, a inclusão constante de dados, a sua atualização quase simultânea ao trabalho, inviável pelo meio impresso, leva a um pensar mais complexo no momento da escolha dos objetivos da pesquisa, de forma acentuada quando o material visa a uma publicação posterior. São alterações que repercutem de forma direta em aspectos atinentes às fontes, aos métodos e à divulgação dos resultados. Por exemplo, histórias das literaturas de um determinado país ou região contendo apenas relações de autores com currículos básicos. Por maior que seja o número de escritores incluídos, esse tipo de obra perdeu muito do sentido que possuía antes do advento da informática. Hoje, consultas são feitas rapidamente em sites especializados. Assim, as demandas observadas em pesquisas ligadas à historia da literatura soam próximas da crítica literária, exigindo, porém, um cuidado constante dos profissionais que ali atuam para que essas fronteiras não sejam ultrapassadas ou, mesmo, para que sejam ultrapassadas de forma consciente, quando isso for benéfico para o resultado pretendido. Cabe destacar as possibilidades decorrentes da inclusão de elementos sonoros e visuais, o que se mostra especialmente positivo em projetos de recuperação de literaturas orais ou de produção restrita, de regiões mais fechadas, de contato difícil. Ainda, o uso de hipertextos permite ao leitor o acesso a uma infinidade de informações ligadas ao entorno da obra, que, em um texto impresso, ocupariam espaços extensos e poderiam representar a perda do conteúdo central. Pelo meio eletrônico, o hipertexto garante dados que ampliam e enriquecem a leitura. Mas o meio digital mostra-se particularmente transformador por representar um desvio do eixo cultural central, propiciando não apenas um primeiro olhar sobre uma determinada cultura, como ocorre em alguns casos, mas também um novo olhar a partir de um outro ponto de observação. O espaço geográfico de produção do conhecimento, tão importante nos primeiros momentos da historiografia, começa a se diluir. Ressalvados os aspectos econômicos, sociais, políticos, etc., envolvidos na questão, é inegável que observamos uma renovação nos estudos em ciências humanas. Em séculos anteriores, o deslocamento até o centro científico (europeu) era exigência básica, significando um afastamento do historiador de sua realidade e um envolvimento físico na realidade do país que, na maioria dos casos, era seu “colonizador”. A ciência acontecia na Europa. As linhas que o historiador possui para agir e a aceitação dos resultados dependem em grande parte de sua aceitação pela academia. O estudo historiográfico, diz Certeau, “é o produto de um lugar”. Esse lugar é muito mais do que um espaço geográfico, claro, mas, em especial no período de auge da dominação colonial, ele era também um espaço geográfico. O surgimento de historiadores ligados por uma rede virtual permite a gradativa (e cada vez mais rápida) alteração desse quadro. Novos personagens ou grupos vão apresentando seus trabalhos e sendo reconhecidos, a periferia já fala a partir da periferia e com um ponto de vista não mais mero espelho do ponto de vista de um grupo central. Culturas distintas interagem, influenciando umas as outras. É o momento em que a alteridade aparece como palavra-chave. Olhar o outro, ouvir, interagir com esse outro, torna-se exercício não apenas de curiosidade exótica, mas aptidão essencial para a transformação. Centro e periferia mostram-se conceitos cada vez mais difusos, com respostas políticas de amplo alcance. Descentralização e descolonização possuem pontos de contato que não devem ser subestimados. Inclusive, em literatura, descentralização e periferia levantam questões complexas que se subjetivam, invadem outras fronteiras, atentam para a fragilidade de limites conceituais quando mencionamos termos como, por exemplo, cânones, clássicos, paraliteratura e multilinguagem. Contudo, se o desenvolvimento da informática aparece como elemento básico para formação desse quadro, também oferece riscos que se ampliam a partir do momento em que o acesso a um número infinito de dados aproxima perigosamente da generalização e do anuviamento de responsabilidades. A inexistência do objeto concreto em mãos dificulta conferências completas de parte do historiador, originando teorias embasadas em dados parciais que podem ter sido manipulados pela fonte. Da mesma forma, a possibilidade de comunicação rápida a longas distâncias acarreta uma movimentação similar em todos os âmbitos da sociedade. Frente às expectativas do público pelo imediato, o pesquisador se vê pressionado a ponto de a velocidade passar do estatuto de possibilidade para o de exigência. Isso, se é positivo em alguns casos, em outros pode ser sinônimo de prazos demasiado curtos para a verificação responsável das hipóteses levantadas. Também, a partir do momento em que uma resposta é fornecida para alimentação da rede, é repetida continuadamente, resultando em um efeito dominó negativo que, por sua vez, acarreta questionamentos severos quanto à confiabilidade do mundo virtual. E não devemos esquecer que as pessoas que hoje trabalham com o computador são, em grande parte, aquelas que antes tinham acesso ao livro. Ou seja, a mudança ocorreu, sem dúvida, mas em que intensidade e para quem? Como nos primeiros passos do desenvolvimento científico, a base é o homem, continua sendo o homem. A ética do pesquisador e a confiabilidade das fontes permanecem requisitos essenciais à historiografia, elementos sem os quais a cooperação internacional não corresponderá aos anseios criados, mas representará desnorteamento, manipulação e transitoriedade do conhecimento. REFERÊNCIAS CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: ______. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 65-119. 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