União Européia: ampliação e Tratado Constitucional. Hugo Sarubbi Cysneiros* Muito se tem falado acerca dos primeiros reflexos da recente ampliação da União Européia. Como se sabe, desde 1o de maio passado, dez novos países aderiram às Comunidades, formando assim o maior bloco econômico mundial – com um PIB de 12,5 trilhões de dólares, e que a partir de agora pretende também ser um referencial na condução dos temas da política internacional. Agora, testemunhamos mais um passo da Europa unificada, no sentido de integrar os seus cidadãos, desta vez regidos por um diploma legal único que, mesmo não significando exatamente uma inovação completa do ordenamento vigente, possui o condão simbólico de “constitucionalizar” supranacionalmente princípios, objetivos, valores, assim como todas as regras que já direcionam a marcha do continente. Ampliação e Tratado Constitucional: dois temas que merecem ser contemplados e de onde podemos extrair muitos ensinamentos se quisermos, de fato, alavancar o nosso bloco sul-americano, senão vejamos. Sobre a ampliação, penso que aqueles que já procuram, a esta altura dos fatos, rotular tal processo de bem ou mal sucedido incorrem numa atitude precipitada, na medida em que, por um lado, simploriamente esperam da data de início de vigência do Tratado de Adesão a concretização imediata de mudanças efetivas e, por outro, ignoram que estamos diante de uma cadeia de providências que já vêm sendo tomadas há alguns anos e que ainda perdurarão ao longo dos tempos. Explico-me: historicamente, a integração na Europa obedece ao chamado princípio da progressividade, pelo qual as Comunidades Européias e, logo mais, a União Européia – já como organização internacional – procura impor aos seus passos um ritmo constante de evolução, cuja organização – ora mais rapidamente, ora mais pausadamente - vai construindo e consolidando ações e, ao mesmo tempo, estabelecendo e projetando metas. Tal lógica não foi distinta no caso dos recém chegados. A aproximação da União Européia em relação aos antigos países integrantes da Cortina de Ferro data do início da década de noventa, quando, caído o Muro, já se sabia que a expansão em direção ao leste era inevitável e que, para tanto, seria necessário estabelecer um ambiente sólido o suficiente para recepcionar Estados tão distintos dos já integrados. Desde a assinatura do Tratado de Maastricht, pelo qual se sintetizou as políticas de união econômica e monetária e a união política, a Europa unida já delineava seus pilares de cooperação intergovernamental e de competência comunitária propriamente dita, definido assim as áreas de cessão de soberania e atuação conjunta entre os Estados, enquanto entes internacionais autônomos. Embora menos relevantes, Amsterdã, Nice e Laeken ajudaram a lastrear tudo o que entendemos pelo atual marco institucional europeu. Não pensemos que tais mudanças ocorreram sem maiores percalços. É bom lembrar que, seja por ocasião das ampliações, seja quando se tentou alterar os textos fundacionais, toda a organização sentiu na própria pele o peso da crise (aqui entendido como fenômeno de mudança), despertando na opinião pública dúvidas acerca da capacidade de caminhar com a velocidade que se pretendia. Atualmente, aqueles que mais alardeiam os riscos da expansão concentram suas inquietudes no fato de que se trouxe para o bloco paises com realidades políticas, sociais e econômicas muito díspares. Constantemente, argumenta-se que estaríamos diante de um acordo imposto unilateralmente ou que testemunhamos, na realidade, a construção de um novo Muro, desta vez, invisível, mas que congregaria danos potencialmente mais graves que os decorrentes da divisão forçada. Primeiramente, faz-se mister recordar que casos como o da Grécia, Portugal e Espanha também representaram, à época, a recepção de Estados com patamares de desenvolvimento bastante distanciados dos seus congêneres; em segundo lugar, não se deve olvidar que os novos membros ainda passarão por um período de transição que se estende por quase uma década, dirigindo-se a níveis que permitam a convivência com as pesadas exigências das normas comunitárias. A história nos mostra exemplos de países que responderam de formas diversas às regras abraçadas. O desenvolvimento dos países ibéricos é patente; o caso Irlandês é emblemático (em cerca de 30 anos, saltou da marca de 62% da média da renda per capta do bloco, para ostentar a incrível cifra de 121%); a Grécia, por sua vez, ainda procura formas de melhor equacionar sua realidade interna aos padrões comunitários. Pois bem, não por um acaso a própria união Européia desenvolveu variados métodos que intentam atender as particularidades e potencialidades de seus integrantes: os mecanismos da “cooperação reforçada”, da “Europa a la carte” e dos “sistemas de várias velocidades” não nos deixam mentir. Enfim, encaramos a mais verdadeira e célebre expressão da isonomia: tratar os desiguais desigualmente na exata medida de sua desigualdade. Não é surpresa para ninguém o fato de que em relação aos novos aderentes espera-se um prazo maior para se aproximar da realidade vivida pelos membros mais antigos. Para eles, os novatos, cuja faixa de rendimento individual encontra-se em 45% da média centro-européia, estima-se que não menos de 20 anos serão suficientes para se chegar à marca de 75%. É fato que a fonte de financiamento dos fundos de investimento praticamente já alcançou o seu limite máximo de “vazão” e que, portanto, face ao aumento da demanda por aporte financeiro, a equação terá que ser refeita. É lógico também que não podemos ingenuamente ignorar o acesso mais fácil e mais barato a mão de obra qualificada, nem a “comunitarização” de novas fronteiras agrícolas, sonhos de qualquer metrópole industrializada, mas não creio que devemos empregar aqui expressões que indiquem exploração ou colonização. Impossível esperar homogeneidade de um bloco cada vez maior e mais complexo, situação, aliás, que já não existia. O cenário europeu assenta-se, como bem expressa seu lema, na unidade mediante a diferença. Gostaria, pois, de ressaltar um aspecto que não vem merecendo a atenção devida pela imprensa em nosso pais: a ascensão da união Européia como ator de considerável relevância para a conduções dos mais importantes temas da política internacional. O bloco que sempre foi conhecido como um gigante econômico e um anão político, anseia mostrar que finalmente atingiu a estatura capaz de lhe por em destaque no grande palco das relações internacionais. Os questionamentos não são escassos nem tampouco descabidos. Será que a união Européia logrará encontrar consenso para temas sensíveis como o terrorismo internacional? O que esperar da convivência e da necessidade de exposição de opiniões comuns de Estados como Reino Unido, Alemanha, França, Itália e Espanha? Como se comportarão os antigos socialistas, paises cuja regra no que tange a temas de política externa, ultimamente, foi o alinhamento à postura estadunidense? Pretende a união Européia se constituir num contraponto ao modus operandi norte-americano de condução das relações internacionais? Responder a qualquer desses questionamentos nesse momento parece-me exercício especulativo. Arriscome, entretanto, a considerar que, pelo menos internamente, a União Européia já desenha traços inovadores e que vêm constituindo um diferencial em seus métodos. Princípios que baseiam todo o funcionamento do bloco, como o da democracia, da solidariedade, do respeito aos direitos humanos, da identidade nacional e da transparência, mais do que meros instrumentos retóricos e normas de caráter alegórico, representam valores verdadeiramente perseguidos por um continente que, há não mais de cinqüenta ou sessenta anos, experimentava a barbárie da guerra, o drama da fome e a intolerância de regimes autoritários e que sabe, perfeitamente, que só respeitando sua heterogeneidade de culturas, alcançará seus objetivos. Cabe à Europa, de agora em diante, decidir como, quando, onde, por que e por quem tomar decisões conjuntas. O desenho geopolítico atual pede novos traços e cumpre ao velho continente assumir o seu papel. Para transpor muitos dos obstáculos, nada melhor do que caminhar firme em uma única direção, nada melhor do que ter como referência um documento, uma carta, um diploma com status e legitimidade suficiente para nortear esta nova empreitada. O projeto de Tratado Constitucional não poderia vir em melhor momento. Inicialmente, ressalto o fato de que devemos nos policiar a fim de não pronunciar neste caso o vocábulo Constituição. Não creio que haja compatibilidade entre o conceito de Carta Magna com a institucionalização de uma Organização Internacional. Superficialmente falando, o que se está criando é uma nova pessoa jurídica de direito público internacional, decorrente da junção das antigas Comunidades, mas que mantém seu perfil supranacional. Não há que se falar em Constituição, quando se prevê a hipótese de denúncia por suas partes contratantes. Talvez o presente texto não comporte explicações técnicas mais detalhadas sobre as mudanças legais que sobrevirão. De qualquer forma, mesmo que se diga que o Tratado Constitucional da União Européia não encerra mudanças substanciais no ordenamento jurídico já vigente e ainda que se considere que o ato encontre no simbolismo sua mais importante vertente, acredito ser emblemático que a Europa unificada está demonstrando definitivamente que o acaso não constitui sua mola mestra. * Hugo Sarubbi Cysneiros é advogado, doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca e membro de Fundação Orbis para o Estudo do Direito e das Relações Internacionais.