DIREITO À CIDADE – UM EXEMPLO FRANCÊS Por Adriana Vacare Tezine, Promotora de Justiça (MP/SP) e Mestranda em Direito Urbanístico na PUC/SP I – Introdução A determinação do governo francês de proibir veículos mais poluentes de circular em áreas centrais de oito grandes cidades do país, como Paris, Lyon, Nice, Grenoble e Bordeaux, provoca a reflexão acerca da importância da cooperação de todos os governos, organismos internacionais e entes federados na realização dos direitos humanos fundamentais. Sem adentrar no mérito da política a ser implementada naquele país, em especial porque recebeu críticas no sentido de que o projeto do governo francês não levou em conta o grau de emissão de gás carbônico ao excluir da lista os veículos grandes de luxo e os 4x4, o presente estudo aborda em breves linhas a implementação do direito à cidade na ordem jurídica brasileira e a sua vinculação com a efetividade dos direitos fundamentais. II – A realização dos direitos fundamentais nas cidades O exemplo francês evidencia que as políticas públicas devem objetivar o desenvolvimento sustentável, nos aspectos econômico, social e ambiental. A indústria automobilística desempenha relevante função estabilizadora na economia européia, sobretudo na França, nacionalidade de grandes montadoras de veículos. Estima-se que um quarto da frota de veículos será afetada pelas medidas governamentais, que deverão entrar em vigor a partir do ano que vem. Organizar o sistema de transportes e a emissão de poluentes mediante a restrição da circulação de veículos implica em interferir diretamente na liberdade de escolha na aquisição de bens de consumo e de ir e vir dos cidadãos franceses. De todo modo, a medida é elogiável porque, ante o embate de interesses, preponderou o direito ao meio ambiente sadio, direito fundamental de terceira geração. A ministra francesa do Meio Ambiente e dos Transportes, Nathalie Kosciusko-Morizet, justificou que o "futuro nas grandes cidades será para os carros pequenos e os veículos elétricos". Segundo os noticiários, as prefeituras que participarem do projeto deverão determinar a área geográfica da cidade onde serão criadas as Zonas de Ações Prioritárias para o Ar (Zapa), as categorias de automóveis que serão excluídas nesses locais e os critérios de fiscalização, como aplicação de multas aos infratores. O projeto foi lançado em esfera nacional por um Ministério de Estado, depois de receber recomendação da Comissão Européia para o respeito às normas sobre limites de emissões de partículas finas, sob pena de multa de até 300 mil euros por dia. A Comissão Europeia é o órgão executivo da União Européia, que representa e defende os interesses da Europa no seu conjunto. A Comissão elabora propostas de leis e assume a gestão da aplicação das políticas e da atribuição dos fundos da Uniao Européia, bem como é responsável por garantir o cumprimento dos Tratados e da legislação européia. A supremacia do direito ao meio ambiente foi garantida pela firme atuação dos organismos internacionais, que cobraram do Estado francês, pessoa jurídica sujeito de direitos e obrigações no plano internacional, a tomada de providências para a diminuição da poluição. A partir da esfera nacional foram delineadas as diretrizes para os municípios, que terão autonomia para o estabelecimento das áreas, critérios e fiscalização. III – A ordem jurídica brasileira A população urbana mundial vem se organizando em movimentos cujas bandeiras culminaram no documento político recente, denominado “Carta Mundial pelo Direito à Cidade”, fruto de processo de debates realizados no V Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2005, em que se estabelecem compromissos e medidas que devem ser assumidos pela sociedade, governos, parlamentares e organismos internacionais. Esse documento, enfatiza Nelson Saule Jr.1, contém a compreensão e estabelece os princípios do direito à cidade, como um novo direito fundamental inerente a todas as pessoas que vivem nas cidades. Edésio Fernandes defende que a ordem jurídica brasileira reconhece o direito à cidade2. A Constituição Federal assegura a cidadania, a participação popular, o bem estar de todos, os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, à educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, previdência social, proteção à maternidade, infância, assistência aos desamparados, sem prejuízo de outros direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição e dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. A Carta Magna também reconhece o direito à cidade ao garantir, no capítulo sobre política urbana, as funções sociais da cidade e o bem estar dos seus habitantes. O Estatuto da Cidade – Lei 10.257/01, no mesmo sentido, reforça que as normas são de ordem pública e interesse social e que a política urbana tem por objetivo ordenar o desenvolvimento das funções sociais da cidade mediante diretrizes da garantia do direito a cidades sustentáveis, da gestão democrática, do planejamento e da cooperação entre os governos, iniciativa privada e demais setores da sociedade no processo de urbanização. Proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 23, VI da Constituição Federal), mas compete exclusivamente 1 Direito Urbanístico-vias jurídicas das políticas urbanas, p. 38 Política urbana na Constituição Federal de 1988 e além, p. 52 2 aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I), de forma a garantir a sua autonomia (art. 18, caput). No que diz respeito a competência legislativa, as diretrizes da política nacional de transportes e trânsito competem privativamente à União, mas os entes federados podem legislar de forma concorrente sobre direito urbanístico e proteção do meio ambiente e controle da poluição (art. 24, I e VI da Constituição Federal). IV – Os direitos fundamentais e a sua hermenêutica Consoante Paulo Bonavides, os direitos de terceira dimensão são dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, não se destinam especificamente a proteção dos interesses de um indivíduo, um grupo ou Estado e têm por destinatário o gênero humano.3 O autor enfatiza que, contrariamente à globalização econômica, há uma globalização política, antítese da ideologia neoliberal, que é justamente a teoria dos direitos fundamentais, “a única verdadeiramente que interessa aos povos da periferia”, num processo que denomina de “nova universalidade dos direitos fundamentais”.4 Isto só é passível de realização no Estado social, opção do Estado brasileiro que, no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, compromete-se a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social, tendo como principais fundamentos a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. José Afonso da Silva insere a Carta Magna brasileira no rol de constituições transformistas, ante seu conteúdo social e lembra que foi a 3 4 Curso de Direito Constitucional, p. 569 Op. cit., p. 571 Constituição do Império, de 1824, a primeira constituição no mundo a subjetivar e positivar os direitos do homem, dando-lhes concreção jurídica efetiva.5 Para a interpretação dos direitos fundamentais, deve-se lançar mão da Nova Hermenêutica, na lição de Paulo Bonavides.6 Isto quer dizer que a interpretação dos direitos fundamentais implica em decisões de prioridade ou primazia, mediante recurso ao princípio da proporcionalidade, trazido dos publicistas alemães, assim como ao princípio da efetividade dos direitos fundamentais, segundo o qual esses direitos vinculam as tarefas do Estado, em todas as esferas de poderes. A plena eficácia dos direitos fundamentais, portanto, deve balizar as decisões políticas do Poder Executivo, o processo legislativo e as decisões judiciais. Na lição de Paulo Bonavides, “coartado o Judiciário, a República se desintegra, o fantasma da ditadura desponta, a Federação se desnatura e a sociedade, humilhada, começa de descrer na Justiça, que sempre foi, é e será a mais poderosa das garantias sociais e a maior força auxiliar da liberdade.”7 V - Conclusão A experiência francesa demonstra como a atuação política de várias instâncias governamentais, em cooperação, pode contribuir para a plena realização dos direitos fundamentais. Desponta imprescindível, ademais, a coexistência dos poderes do Estado, de forma equilibrada e harmônica, para a plena efetividade desses direitos. Referências Bibliográficas AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7 ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. 5 Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 169-170 Curso de Direito Constitucional, p. 607. 7 Op. cit., p. 591 6 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 26ª. edição. São Paulo: Malheiros, 2011. FERNANDES, Edésio. Política urbana na Constituição Federal de 1988 e além: implementando a agenda da reforma urbana no Brasil. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 7, n. 42, p. 48-57, nov/dez 2008.