UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS MESTRADO EM PSICOLOGIA Valéria Maria da Conceição Mota O exercício da docência e a preservação da saúde mental do professor: um estudo a partir de suas condições de trabalho e existência Belo Horizonte 2011 II Valéria Maria da Conceição Mota O exercício da docência e a preservação da saúde mental do professor: um estudo a partir de suas condições de trabalho e existência Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Área de Concentração: Psicologia Social Linha de pesquisa: Trabalho, saúde e sociabilidade. Orientadora: Profª. Dra. Maria Elizabeth Antunes Lima Belo Horizonte 2011 III 150 Mota, Valéria Maria da Conceição M917e O exercício da docência e a preservação da saúde mental do 2011 professor [manuscrito] : um estudo a partir de suas condições de Trabalho e existência / Valéria Maria da Conceição Mota.-2011. 131 f. Orientadora: Maria Elizabeth Antunes Lima. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. . 1. Psicologia - Teses. 2. Saúde - Teses 3. Trabalho – Teses.4. Professores – Teses. I. Lima, Maria Elizabeth Antunes. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título IV O homem é são na medida em que é normativo em relação às flutuações de seu meio. Georges Canguilhem V Dedico e ofereço aos meus pais todo o esforço empreendido na realização desse trabalho, assim como os frutos que, porventura, nascerão a partir dele. VI Agradecimentos Aos meus pais, que acreditaram em mim, me incentivaram e me compreenderam nos momentos de inquietude. Ao meu irmão André, que me acolheu com a palavra certa nas minhas incertezas. A Profª. Draª. Maria Elizabeth Antunes Lima, minha orientadora nesse trabalho, pela generosidade, disposição em ajudar-me e pelos ensinamentos importantes no curso e na minha vida profissional. Aos docentes, que, generosamente, colaboraram com a realização dessa pesquisa e dispuseram o seu tempo, gentilmente, cedendo suas experiências e relatos, permitindo-me conhecer um pouco mais do seu trabalho. Aos Professores Antônia Vitória Soares Aranha e Wanderley Codo, por aceitarem o convite para serem membros da banca e pelas valiosas contribuições a esse estudo. Ao Colegiado da Pós-Graduação em Psicologia da UFMG, pela oportunidade de cursar e concluir o Mestrado. Aos funcionários da Secretaria do Colegiado de Pós-Graduação em Psicologia, pelo auxílio no decorrer do curso. À Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Ensino Superior – CAPES, pela concessão da bolsa. A todos que, de alguma forma, colaboraram para a realização e finalização desse trabalho. VII Resumo A presente pesquisa teve o propósito inicial de investigar possíveis relações entre as condições do trabalho docente e o adoecimento mental dos professores. Seu ponto de partida foi um levantamento de cunho epidemiológico realizado em prontuários de pacientes do Hospital Espírita André Luiz. Os resultados desse levantamento apontavam para uma possível relação entre o trabalho docente e o adoecimento mental. Em um segundo momento, foi realizado um estudo de caso em uma escola municipal de Belo Horizonte, visando não apenas conhecer uma experiência bem-sucedida, como aprofundar no conhecimento a respeito das causas do alto índice de adoecimento verificado nessa categoria profissional. Na segunda etapa, foram utilizados observações clínicas do trabalho e o método biográfico proposto por Louis Le Guillant (2006). Os resultados apontam que a preservação da saúde do professor depende da associação entre suas características individuais e uma determinada forma de organização do trabalho que lhe permita criar formas inovadoras de realizar o seu trabalho a partir dos meios disponíveis e estabelecer trocas de experiências com seus pares. Palavras-chave: saúde, trabalho, experiências, professores. Abstract The initial aim of the current work was the investigation of the possible relations between the conditions of teaching and teachers' mental illness. Its starting point was an analysis based on epidemiologic data from the patients of the André Luiz Hospital. The results of this research suggested the possibility of the relationship between the teaching conditions and teachers' mental illness pointed above. In a second step, we performed a case study in a municipal school in the city of Belo Horizonte, not only to know a successful experience, but also to go deeper on the knowledge about the causes of high rates of illness observed in this professional. In this stage, we used the clinical observations of the teachers’ work and the biographical method proposed by Louis Le Guillant (2006). The results indicate that preserving the teachers’ health depends on the association between individual characteristics and a particular way of work organization that allows the creation, from the available resources and the establishment of exchanges of experiences with their peers, of innovative ways to conduct their work. Keywords: health, work, experiences, teachers. VIII Lista de siglas AVALIA BH Avaliação do Conhecimento Aprendido de Belo Horizonte CID Código de Doenças CNTE Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação EJA Educação de Jovens e Adultos HEAL Hospital Espírita André Luiz IDEB Índice de Desenvolvimento da Educação básica INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira MTE Ministério do Trabalho e Emprego PDDE Programa Dinheiro Direto na Escola PROALFA Programa de Avaliação da Alfabetização RME/BH Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte SIMAVE Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública SMED Secretaria Municipal de Educação SIMPRO-MG Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais UMEI Unidade Municipal de Educação Infantil IX Sumário Introdução 10 1 A abordagem metodológica 14 1.1 O método biográfico 17 1.2 Observações clínicas do trabalho 19 Capítulo I 22 1 A origem da pesquisa 22 1.1 A análise dos prontuários do HEAL 22 1.1.1 Análise descritiva dos prontuários do Hospital E. André Luiz 22 1.1.1.1 Principais resultados 25 1.1.2 Os professores na amostra do HEAL 28 1.1.2.1 Aspectos descritivos da população 28 1.1.2.2 Aspectos qualitativos da população 29 1.2 A história de Jandira 34 1.2.1 O trabalho como professora 35 1.2.2 A relação com o trabalho 36 1.2.3 O adoecimento 39 1.2.4 Os sintomas 41 1.2.5 A aposentadoria 42 1.2.6 Análise do caso 44 Capítulo II 49 2 O exercício da docência 49 2 1 O trabalho docente - breve histórico 49 2.2 Um trabalho a partir das interações entre pessoas 51 2.3 As pesquisas em torno do trabalho do professor 53 2.4 Outros estudos sobre a docência 59 Capítulo III 65 3 A escola EMBRA 65 3.1 O cotidiano da EMBRA 68 3.1.1 A coordenação pedagógica 70 3.1.2 A direção da escola 71 3.1.3 A implantação da Escola Plural na EMBRA 74 X 3.1.4 A sala de aula 80 3.1.5 Algumas considerações sobre a escola 84 Capítulo IV 86 4 Caso clínico 86 4.1 A história de Cristina 86 4.1.1 O início da carreira profissional 86 4.1.2 A reação diante da Escola Plural 89 4.1.3 Mãe, esposa e professora 91 4.1.4 A escala de valores pessoais 93 4.1.5 As tarefas e o ambiente de trabalho 94 4.1.6 O comprometimento com o trabalho 97 4.1.7 Experimentar novos meios de trabalho 99 4.1.8 Respeitar e ser respeitada 100 4.1.9 O dado e o recebido no trabalho 103 4.1.10 A escola e o grupo de trabalho 105 4.1.11 Estratégias para preservar a saúde 108 4.2 Análise do caso 110 Capítulo V 119 5 Considerações finais 117 Referências 128 10 INTRODUÇÃO Este estudo originou-se do nosso interesse em identificar evidências de possíveis nexos entre certos distúrbios mentais e o exercício da atividade do professor. Em 2009, com o objetivo de validar a nossa participação na disciplina Saúde Mental e Trabalho, ministrada pela Drª. Maria Elizabeth Antunes Lima do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG, realizamos o estudo de caso de uma professora que, então, nos relatou o processo de seu adoecimento em decorrência de sua ocupação profissional. Sua descrição despertou nosso interesse por pesquisar as características do trabalho docente que contribuem para o adoecimento mental do professor. Além disso, a análise descritiva dos dados coletados junto aos prontuários de pacientes do Hospital André Luiz (HEAL) que realizamos, na mesma ocasião, com o objetivo de identificar possíveis relações entre o adoecimento mental e o tipo de ocupação profissional exercida pelo sujeito revelou que a categoria dos professores é uma das que apresentavam considerável frequência de certos tipos de transtorno mental1, como apresentaremos adiante. Apesar dessas evidências, nosso propósito inicial, que consistia em investigar possíveis relações entre as condições do trabalho docente e adoecimento mental dos professores, mudou para o enfoque de uma experiência bem-sucedida ocorrida em uma escola na qual o professor encontrara possibilidades efetivas de preservação da saúde. Consideramos que, por meio desse novo enfoque, poderíamos aprofundar não apenas as causas do adoecimento desses profissionais, mas também a compreensão dos fatores que permitem a preservação da saúde deles. Assim, ao entrarmos em contato com o campo, observamos que as experiências bem-sucedidas em docência não são tão raras, embora ainda tenham pouca visibilidade. Apesar de estarem submetidos a condições de trabalho cada vez mais exigentes, sendo também pouco valorizados em termos financeiros, é possível encontrar profissionais em docência que permaneçam por longo período de tempo no exercício de suas atividades, sem adoecer. 1 Entre as cinco categorias profissionais com maior frequência na amostra do HEAL considerada, estão os servidores militares, os trabalhadores do comércio, os escriturários, os empresários e os professores. 11 Para o estudo dos processos saúde/doença relacionados ao trabalho, destacamos aqui a grande contribuição de Le Guillant (2006) um dos fundadores da Psiquiatria Social na França. Ele conseguiu perceber, por meio de suas investigações, que, nas diferentes formas de organização do trabalho de sua época, existiam fatores que poderiam ser relacionados com a incidência de alguns distúrbios mentais em certas categorias profissionais. Identificou também a relação entre as doenças mentais e as condições de vida, pois, quando observados em diferentes épocas da história, alguns distúrbios eram mais frequentes do que outros em determinadas populações. Esse autor verificou que alguns grupos sociais constituíam-se de objetos de estudo privilegiados, especialmente, aqueles expostos a conflitos decorrentes de contradições entre seus valores de origem e aqueles com os quais deviam entrar em contato, em decorrência de novos modos de vida. Desse modo, elaborou uma investigação dos distúrbios psicopatológicos identificados em pessoas da Bretanha que migravam para Paris. Essa pesquisa justificou-se a partir de um levantamento estatístico que revelou os números elevados de doentes mentais internados e que eram nascidos na Bretanha: em um grupo de 1500 pacientes, verificou-se a presença de 9,3% daqueles originários dessa região da França, enquanto na população total de Paris, os nascidos na Bretanha constituíam-se de 5% da população. Esse resultado indicava que o número de pacientes da Bretanha internados era 1,86 vezes maior que o número de pessoas originárias da Bretanha vivendo em Paris. Observou, finalmente, que esses pacientes vinham de meio homogêneo, apegados a tradições e que foram transferidos para Paris, em uma passagem brusca para condições de vida e relações sociais inteiramente novas e muitas vezes difíceis: profissões pouco valorizadas, moradias em bairros simples, situações de exploração e humilhação decorrentes de uma baixa condição socioeconômica e educacional. Além disso, o baixo nível cultural desses pacientes e a persistência de uma prática religiosa, impregnada da ideologia da região natal, permitiam apenas uma tomada de consciência superficial e impediam uma imersão na nova cultura que permitisse a expressão da subjetividade por meio das novas condutas sociais. A nova realidade entrava em conflito com as antigas estruturas morais, sociais e religiosas e as novas condutas eram experimentadas com sentimento de culpa. Desse modo, a perplexidade e a ansiedade dos pacientes originários da Bretanha, diante dessa contradição, pareciam estar associadas à eclosão dos distúrbios mentais. 12 Outro fato que chamou a atenção de Le Guillant (2006) era uma espécie de imunidade psiquiátrica das pessoas oriundas do litoral da Bretanha e que se explicava justamente pelas diferenças profissionais e de estilo de vida entre pescadores e agricultores nascidos no interior dessa mesma região francesa, indicando que as diferenças nas condições de trabalho e de vida podem ter influência na incidência de distúrbios mentais. Mas esta não constituirá a relação de causalidade simples e direta entre o adoecimento mental e as dificuldades vividas no trabalho. Recordemos que a proposta de Le Guillant (2006) era de uma psicopatologia social, que ultrapassasse um sociologismo que atribua somente aos fatores sociais, as causas de distúrbios tais como alcoolismo, criminalidade, alterações de caráter, delinquência entre jovens, atentados contra a própria vida, atos de violência contra terceiros, dentre outros. Os dados individuais não devem ser considerados em separado dos dados sociais, pois estão em contínua interação e transitividade. As condições do meio e os acontecimentos cotidianos têm um significado singular para cada indivíduo e, para que possamos apreender o papel das contradições sociais, é necessário conhecer bem as situações morais e materiais do presente e as experiências vivenciadas no passado pelo sujeito. Em suas investigações, Le Guillant (2006) observou que algumas atividades profissionais constituíam fatores patogênicos indiscutíveis, mostrando que as predisposições do sujeito não eram capazes de explicar a eclosão de alguns distúrbios mentais em determinadas profissões: Qualquer trabalho insere-se em um conjunto mais amplo de condições de vida, mais ou menos satisfatórias ou penosas, que podem ou não aumentar a fadiga que ele acarreta [...] o aspecto psicológico deste trabalho desempenha um papel considerável que aparece claramente em todos os estudos dedicados à psicologia do trabalho. No plano psicopatológico algumas situações parecem singularmente patogênicas. (LE GUILLANT, 2006, p. 72). Nas situações patogênicas estudadas por esse autor, as contradições e os conflitos eram particularmente intensos. Desse modo, sua proposta foi a de empreender uma nova clínica baseada em situações concretas, identificadas na origem dos distúrbios mentais. Para isso, era necessária uma investigação aprofundada do desenvolvimento da personalidade do sujeito, assim como eram fundamentais os estudos que permitissem a 13 apreensão das tensões existentes em grupos de pessoas que vivessem em condições semelhantes. Enfim, Le Guillant (2006) considerava que uma psicopatologia objetiva só seria possível a partir do estudo das situações e acontecimentos vivenciados de forma concreta pelo sujeito e que os fatos deveriam ser abordados não somente em relação às suas implicações nas condições sociais mais gerais, mas também nas suas repercussões em nível individual. Da mesma forma, os estudos em saúde mental e trabalho, desenvolvidos por Clot (2010), com o objetivo de compreender como o trabalho pode “cumprir o papel de operador da saúde” 2 são norteadores da nossa investigação. Ao abordar a possível interseção entre o trabalho e o adoecimento mental, esse autor destaca que o trabalho perde o sentido para o homem quando não permite a realização das metas vitais que o sujeito extrai de todos os domínios de sua vida pessoal. Quando o trabalho leva o sujeito a duvidar de seu próprio valor, também os valores cultivados em todas as esferas de sua existência são atingidos, podendo favorecer ao adoecimento. Clot (2007) apoia-se em Canguilhem para concluir que ter saúde implica a possibilidade de obter certo domínio sobre as coisas, ou seja, depende da possibilidade de perceber-se na origem de certos fenômenos, de ser criador de normas, de ser responsável pelos seus próprios atos, de ter condições para criar relações na realidade objetiva que não poderiam ocorrer sem a intervenção do sujeito. Enfim, possuir autonomia sobre o seu fazer. Além disso, para o autor, o trabalho é muito mais que uma reação do trabalhador às suas necessidades imediatas. Ele não é somente previsto pelos projetistas, pelas diretrizes e pelo enquadramento das prescrições. Ele é, sobretudo, organizado por aqueles que o realizam e é nessa possibilidade maior ou menor de organizar sua própria atividade que pode ocorrer o encontro ou a perda de sentido para o sujeito. Por esse motivo, Clot (2006) aborda a questão do adoecimento no trabalho considerando que quando o destino da atividade no qual se está colocado já é conhecido previamente, temos uma organização de trabalho opressora, pois não permite ao sujeito a criação de possibilidades diversas daquelas que lhe são impostas. Para esse autor, nesse caso a atividade, pode ser considerada como impedida, uma atividade contrariada, 2 Palestra proferida durante o I Colóquio Internacional de Clínica da Atividade em Outubro de 2010, Universidade Federal de São João Del Rei - MG. 14 reprimida, pois “trata-se de uma amputação do poder de agir que proíbe os sujeitos de dispor de suas ações, que não os deixa transformar seu vivido em recurso de vivência de uma nova experiência.” (CLOT, 2006 p. 10). Assim, as condições de trabalho que impedem a realização da atividade ou que impõem um enorme esforço para se realizar a tarefa da forma que se considera adequada podem contribuir para o adoecimento. Clot (2006, p. 18) ressalta que “o trabalho só preenche sua função psicológica para o sujeito se lhe permite entrar num mundo social cujas regras sejam tais que ele possa ater-se a elas.” Caso contrário, o desenvolvimento da vida pessoal e social do sujeito, através de seu trabalho, estará comprometido. 1 A abordagem metodológica O ponto de partida de nossa escolha metodológica consistiu na aproximação do docente para conhecermos sua atividade profissional. Essa etapa foi fundamental na medida em que nos permitiu compreender melhor o significado dos resultados estatísticos obtidos na primeira fase da pesquisa, conforme veremos mais adiante. De acordo com Codo et alii (2002, p. 93) em um estudo sobre a docência, não podemos negligenciar o fato de que “quem faz a educação é o educador”. Assim, é importante considerarmos o dia a dia do professor em seu ambiente de trabalho. Para esse autor “qualquer debate, por mais profícuo, por mais ilustrado que seja, ou leva em conta as condições de trabalho na escola, as condições dos trabalhadores que o realizam, ou estará fadado a engordar as estantes de nossas bibliotecas apenas.” (CODO, 2002, p. 93). Desse modo, como nossa proposta partiu da escolha de uma forma mais adequada de aproximação do objeto a ser pesquisado, foi necessário que obtivéssemos maior clareza sobre esse objeto, sobre os aspectos a serem considerados e sobre o tipo de informação que pretendíamos obter. A questão sobre o método que nos permitiria a apreensão da realidade estudada tornou-se então, crucial, pois é a orientação teórica subjacente à investigação que deve direcionar essa escolha. Para conhecermos, de forma mais detalhada possível, as condições materiais do trabalho, o tipo de relação que os indivíduos estabelecem com tais condições, o sentido 15 que atribuem às atividades que realizam, as pressões psicológicas que sofrem para realizá-lo e como reagem a elas, consideramos importante contextualizar a atividade profissional e tentar compreendê-la em seus determinantes históricos, sociais, econômicos e culturais. Buscamos compreender mais amplamente as dimensões concretas da situação de trabalho e seus impactos sobre o indivíduo. Para isso, foi fundamental adequarmos o método ao nosso objeto de modo a obtermos maior aproximação da realidade. Dentro da perspectiva adotada, consideramos importante dirigir nossa atenção ao objeto, tentando deixar de lado qualquer ideia preconcebida a seu respeito. O conhecimento sobre o objeto de estudo deve ser constituído a partir da compreensão de como ele se constitui e não dos pressupostos que o pesquisador tem a seu respeito. Lima se inspira em Chasin (1995) para concluir que Só é possível falar de um método se este se basear no respeito à integridade ontológica das coisas e dos sujeitos, oferecendo apenas uma indicação genérica dos passos da atividade mental da escavação das coisas e alcançando o máximo de autonomia em relação àquilo que pretendemos examinar. (LIMA, 2002, p. 3). A partir desses parâmetros, a escolha do método para a investigação a que nos propusemos foi norteada pela questão: qual abordagem facilitaria a apreensão do objeto de maneira mais adequada? Desse modo, nossa opção foi pela abordagem multidimensional, proposta por Louis Le Guillant (2006), segundo a qual todas as perspectivas possíveis a respeito do objeto devem ser investigadas, desde que seja respeitada sua integridade ontológica. Assim, um levantamento inicial de cunho epidemiológico nos direcionou para a elaboração de um estudo qualitativo que complementasse seus resultados numéricos. Os dados quantitativos revelaram indícios de possíveis nexos entre o trabalho docente e o adoecimento mental do professor e nos despertaram para a necessidade de acompanharmos o cotidiano de uma escola municipal de Belo Horizonte, de conhecer o dia a dia do trabalho docente. Desse modo, adotamos como instrumentos da etapa qualitativa, as observações clínicas do trabalho e o estudo de caso associando-os, pois uma apreensão fidedigna a respeito do trabalho do professor somente seria possível se transitássemos entre os dados obtidos na análise das condições objetivas da docência e aqueles coletados na história do sujeito, num “ir e vir” constante de uma perspectiva à outra. Lima (2004, p. 16 144), expõe, assim, a ideia de que, numa investigação multidimensional, os dados estatísticos nos remetem aos dados coletados nas entrevistas e aos estudos de casos e que estes, por sua vez, nos fazem retornar aos resultados quantitativos permitindo sua elucidação. Assim como Le Guillant (2006), pensamos não haver motivos para um dilema entre a pertinência das abordagens quantitativas ou qualitativas no estudo do adoecimento mental. Valendo-se de todos os instrumentos disponíveis para a busca de informações tais como questionários, entrevistas, observações, esse autor também recorreu aos sindicatos, aos serviços de saúde, aos setores de acompanhamento da medicina do trabalho nas empresas, aos livros técnicos e até mesmo aos romances literários. Ao estudar as domésticas, ele disse “a ajuda dos romancistas e poetas foi tão importante quanto a contribuição dos exames clínicos, questionários e números.” (LE GUILLANT, 2006, p. 245). Entretanto, em seus estudos sobre os impactos do meio e do trabalho na saúde mental, esse autor não desconsiderou os aspectos do universo subjetivo do indivíduo. Para Lima (2010), baseando-se em Chasin, é impossível compreender os aspectos singulares do trabalho sem nos remeter ao coletivo, pois os indivíduos se comportam de modos diferentes durante o curso de suas vidas, conforme os tempos e lugares onde se encontram. O conhecimento efetivo sobre o homem não pode se restringir às leis gerais. A realidade expressa nas experiências individuais é reveladora do contexto de uma época e os estudos de caso são instrumentos que facilitam a apreensão de aspectos particulares da vida do sujeito que muito dizem da realidade do coletivo. Conforme Vieira, Lima & Lima (2010) o estudo de caso individual permite a apreensão dos dados objetivos e subjetivos que se entrecruzam na experiência do sujeito. A obtenção do conhecimento objetivo é possível apenas quando o pesquisador propicia a articulação entre as análises quantitativas e qualitativas, de modo que não seja definida a prioridade de uma em relação à outra. Esses autores defendem uma reflexão constante sobre a realidade que se revela no decorrer da pesquisa. Desse modo, em nosso estudo, as particularidades do trabalho docente foram mais bem apreendidas a partir do resgate da trajetória biográfica das professoras, nos dois casos que acompanhamos. A coleta das impressões pessoais das professoras a respeito de seu trabalho, por meio das entrevistas em profundidade, minimizou as chances de estabelecermos conclusões prematuras e equivocadas em nosso estudo e por esse 17 motivo, esses instrumentos foram fundamentais para complementarmos as informações obtidas nas observações clínicas. Enfim, não ficamos limitados a um único recurso para coleta de dados em nossa investigação. Do caso clínico inicial que nos sugeriu a necessidade de estudarmos os possíveis nexos entre as formas de organização do trabalho docente e o adoecimento mental, passamos à análise dos prontuários do HEAL, cujos resultados revelaram indícios da importância de se pesquisar o adoecimento do professor. Para compreender essa questão, concluímos ser necessário conhecer uma experiência bem-sucedida, uma vez que esta permitiria ter acesso às duas faces do problema: o adoecimento e a preservação da saúde. Além disso, conforme veremos mais adiante, a maioria dos estudos tem como objeto apenas o adoecimento dos docentes, o que por si só justifica nosso duplo enfoque. Para ampliarmos a compreensão sobre o trabalho, docente optamos por não seguir uma trajetória linear em relação aos dados coletados. Sempre que julgamos ser pertinente, retornamos aos dados quantitativos antes de prosseguirmos a busca dos aspectos qualitativos. Entendemos que nossa investigação não seria bem realizada se não tivéssemos a disposição de retornarmos aos dados obtidos sempre que necessário, procurando assim verificar a sua validade a partir do que a realidade concreta nos apresentava. 1.1 O método biográfico Sistematizado por Le Guillant (2006), o método biográfico consiste no resgate da trajetória pessoal e profissional do sujeito. Busca-se tornar explícitas as formas com que o sujeito se julga e se conduz. Aprofunda-se, de modo, o nosso conhecimento sobre o sujeito. A explicação para os conflitos do sujeito, quando se trata da psicopatologia do trabalho, não se encontra nem nos dados de sua personalidade, nem no contexto social vistos isoladamente, mas nas formas pelas quais eles se articulam, revelando o enredo que se traduz na trajetória individual. Na tentativa de apreender os fenômenos na sua realidade concreta, o esforço de Le Guillant (2006) foi direcionado para a compreensão das determinações sociais dos distúrbios mentais admitindo, inclusive, a primazia ontológica do meio sobre os indivíduos. Nessa abordagem, o pesquisador analisa o 18 material recolhido de forma a privilegiar os aspectos que considera fundamentais para atingir os objetivos de sua pesquisa. Consideramos oportuno lembrar aqui o caso Marie L, no qual o autor expôs como as experiências de vida da paciente se articulavam com seu adoecimento, revelando, então, a relação existente entre os acontecimentos importantes de sua vida pessoal e a eclosão ou intensificação dos sintomas apresentados por ela. Conforme palavras de Le Guillant, Para descrevê-la, utilizei, propositalmente, na medida do possível, as próprias expressões da paciente, anotadas ao pé da letra. Esta linguagem popular, fruto de uma experiência individual e coletiva, direta e insubstituível, parece-me ser mais adequada do que outra descrição que viesse a ser feita do exterior ou em termos mais científicos suscetíveis de evocar a realidade, para tornar perceptíveis os aspectos sensíveis de situações que escapam sempre, em parte, àqueles que não as vivenciaram. Assim, em meu entender, tal linguagem é a forma mais adaptada a um estudo objetivo das condições de vida de nossas pacientes. (LE GUILLANT, p. 332). Para Lima (2006), a proposta de Le Guillant (2006), a partir do método biográfico, é a de tentar “estabelecer possibilidades de compreensão e de intervenção no plano de conhecimento prático do homem, da história dos pacientes e de suas condições concretas de existência”. Desse modo, as condições sociais, culturais, econômicas e ideológicas, presentes na história em que o sujeito se encontra inserido, devem ser compreendidas de forma integrada à sua vida pessoal. O indivíduo experimenta de modo particular os acontecimentos da história, de acordo com o seu modo próprio de compreender e significar o mundo. Conforme Sève (1969), a maneira como cada sujeito experimenta o mundo é menos determinado pela biologia do que pelas dinâmicas sócio-pessoais de sua biografia, ou seja, a personalidade do sujeito não é resultante de vivências infantis ou mesmo da bagagem genética do indivíduo. Para ele, a personalidade continua se desenvolvendo no decorrer de toda a vida do sujeito sempre em relação com o contexto histórico-social. Trata-se daquilo que esse autor denominou personalidade biográfica. Estando submetida à passagem do tempo, ela deve ser compreendida a partir de sua inserção em uma história coletiva e deve ser abordada como o conjunto de atividades que vão influenciar a trajetória da vida particular do indivíduo, na sua realidade social concreta. Por esse motivo concluímos que o meio mais fidedigno de conhecermos o trabalho docente seria a partir do relato do próprio sujeito, dentro da sucessão cronológica dos fatos, no curso de sua vida. 19 É preciso que estejamos atentos aos mediadores que se instalam entre os dados do cotidiano do indivíduo e os aspectos ligados à sua subjetividade. Assim, quando privilegiamos o método biográfico para conhecermos as condições de trabalho e existência do professor, devemos estar atentos à cronologia dos acontecimentos em sua vida, aos seus hábitos cotidianos, aos dados referentes à sua educação e ao seu meio cultural, ao emprego de seu tempo, àquilo que ele privilegia em sua vida como sendo prioridade, sem nos esquecermos, entretanto, que os indivíduos são autores da própria história. Desse modo, optamos por realizar entrevistas em profundidade com os sujeitos de nossa investigação baseando-nos no método biográfico concebido por Le Guillant (2006). O sujeito teve, então, oportunidade de expor sobre sua experiência profissional e suas experiências de vida, revelando como elas se entrelaçavam. Conforme Lhuilier (2007), a narrativa da atividade e das experiências pessoais permite sua elaboração pelo sujeito que a descreve, pois, ao pensar sobre seu gesto e na tentativa de explicar os motivos de suas ações a um terceiro, o sujeito pode conseguir um entendimento sobre suas decisões. As entrevistas foram realizadas de maneira livre e informal, com a intenção de coletar o maior número de informações possíveis sobre a história ocupacional, além de dados sobre a história pessoal do sujeito que, assim, teve a possibilidade de relatar situações conforme seu interesse e de acordo com a ordem cronológica que preferiu seguir. Em alguns momentos, realizamos intervenções apenas para lhe solicitar detalhes. Além disso, as entrevistas foram gravadas mediante autorização dos sujeitos e, posteriormente transcritas para facilitar uma fidedigna apreensão de seu relato. 1.2 Observações clínicas do trabalho Para complementar as informações que coletávamos nos casos clínicos, concomitantemente realizávamos também observações sobre o dia a dia da escola. Para isso, contamos com a permissão e concordância dos professores e da direção da instituição escolar. Tivemos oportunidade de acompanhar algumas reuniões entre a direção, a coordenação da escola e alguns docentes. Participamos também de momentos de descontração na sala dos professores, além de conversarmos com funcionários da área administrativa a fim de obter maiores informações sobre o funcionamento 20 operacional daquele estabelecimento de ensino. A oportunidade de entrar em contato com o trabalhador no ambiente escolar, nos possibilitou uma apreensão realista do contexto em que atualmente o trabalho docente se efetiva. Essas observações foram utilizadas para facilitar nossa compreensão de como o professor realiza sua atividade no cotidiano, de quais são as dificuldades que encontra e de quais estratégias adota para enfrentá-las. O trabalhador é quem mais conhece sobre sua atividade profissional, e por isso, consideramos que seria importante estabelecer um contato direto com os sujeitos da pesquisa, valorizando seus depoimentos e suas opiniões espontâneas. Para Lhuilier (2007), o recurso da observação clínica no estudo da atividade profissional pode facilitar a apreensão minuciosa da narrativa do sujeito a respeito de seu trabalho e daquilo que escapa à sua verbalização. Trata-se daquilo que o sujeito pretendia fazer e não foi possível, daquilo que gostaria de fazer e não lhe é permitido, daquilo que deveria realizar e que decidiu não fazer, enfim, daquilo que Clot (2006) denominou como o real da atividade. Nesse caso, as observações não devem ser realizadas à distância, pelo contrário, é necessário que o pesquisador esteja em contato direto com a situação observada. Estando o mais próximo possível da realidade concreta da atividade é possível coletar informações que são comunicadas por outros meios diferentes da fala do sujeito, ou seja, seus gestos, sua postura física, suas expressões faciais, suas exclamações e suas escolhas ou omissões diante das tarefas a realizar. As observações clínicas e os estudos de caso, utilizados como recursos que se complementam na nossa investigação, possibilitaram o resgate da história profissional do professor, enriquecida com detalhes de sua experiência pessoal, revelando também que esses aspectos não se apresentam separadamente em sua vida. Desse modo, a apresentação de nosso estudo se organiza a partir da exposição, no primeiro capítulo dessa dissertação, dos resultados da análise descritiva dos prontuários do HEAL de modo geral para, em seguida, passarmos à apresentação dos aspectos específicos da categoria dos professores na referida amostra, tanto no que diz respeito aos dados quantitativos quanto aos resultados qualitativos. Apresentamos também nesse capítulo o caso de uma professora que adoeceu no exercício de suas atividades profissionais, com o objetivo de tornar ainda mais evidente o nosso interesse em aprofundar o conhecimento sobre os possíveis nexos entre o trabalho docente e o adoecimento mental do professor. 21 No segundo capítulo, de um breve histórico da docência, passamos a uma reflexão sobre o trabalho do professor com pretensão de lançar luz sobre a posição que essa categoria profissional ocupa na sociedade atual. Prosseguindo em nossa exposição, apresentamos também uma revisão bibliográfica dos estudos sobre o trabalho docente que foram referências importantes em nossa investigação. Eles expõem as dificuldades presentes no cotidiano do professor bem como os possíveis nexos existentes entre as condições de trabalho adversas e o adoecimento mental desse profissional. Alguns desses estudos apresentam a síndrome de burnout como um dos principais transtornos mentais3 que atualmente estão associados ao trabalho do professor. O terceiro capítulo consiste na apresentação do nosso campo de estudo, ou seja, a escola pública onde realizamos as observações sobre o trabalho do professor e onde também realizamos as entrevistas. No quarto capítulo, passamos à apresentação do caso clínico de uma professora que sempre trabalhou com a educação e leciona, há mais de dez anos, na escola onde realizamos esse estudo. Apresentamos a análise desse caso considerando que a professora estudada conseguiu superar, em grande medida, as dificuldades que se apresentavam no seu cotidiano. O quinto capítulo expõe nossas considerações finais, ou seja, uma análise global dos resultados, sendo proposta uma discussão sobre quais as alternativas possíveis para a realização do trabalho docente. Refletimos, a partir das teorias que nortearam essa investigação, sobre o papel da instituição escolar, do grupo de professores e da direção da escola, bem como da sociedade em geral, no sentido de colaborar na preservação da saúde mental dessa categoria profissional. Enfim, nesse capítulo destacamos nossas principais conclusões a partir deste estudo, propondo alternativas para alguns dos problemas identificados e expondo as questões que surgiram durante essa pesquisa que, a nosso ver, merecem atenção em investigações posteriores. 3 Conforme o capítulo X, do Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde do Ministério da Saúde do Brasil (2001), a síndrome de burnout está incluída entre os transtornos mentais e do comportamento relacionados ao trabalho. 22 CAPÍTULO I 1 A origem da pesquisa 1.1 A análise dos prontuários do HEAL A investigação que serviu de ponto de partida para nosso estudo foi realizada pelo Núcleo de Pesquisa em Saúde Mental e Trabalho da UFMG e coordenada pela profª. Maria Elizabeth Antunes Lima a partir da análise de 3.912 prontuários de pacientes de clínicas e hospitais psiquiátricos de Barbacena, MG, que revelou evidências significativas de possíveis nexos entre alguns distúrbios mentais e certas atividades profissionais4. Posteriormente, essa pesquisa teve continuidade por meio de um levantamento realizado nos prontuários do pacientes do Hospital Espírita André Luiz (HEAL). Esta etapa veio complementar os resultados obtidos na primeira investigação, uma vez que essa instituição atende a um perfil socioeconômico diferente dos contemplados na etapa anterior5. Desse modo, nossa proposta inicial foi a de dar prosseguimento à primeira pesquisa elaborando a análise descritiva dos dados coletados junto aos prontuários de pacientes do HEAL para, em seguida, realizar um estudo qualitativo em torno da categoria de professores por ser uma das mais frequentes entre aquelas identificadas nos prontuários dessa instituição, além de apresentar grande diversidade de diagnósticos. 1.1.1 Análise descritiva dos prontuários do Hospital Espírita André Luiz A primeira etapa de nossa pesquisa consistiu na análise de 516 prontuários de pacientes do Hospital Espírita André Luiz (HEAL). Esta é uma instituição hospitalar filantrópica com 38 anos de existência, localizada em Belo Horizonte, MG, que oferece serviços de diagnóstico, tratamento e reabilitação nos casos de distúrbios mentais. 4 Ver Lima, M.E.A. (2004). A relação entre distúrbio mental e trabalho – evidências epidemiológicas recentes. In Codo, W. (org.) O trabalho enlouquece? Um encontro entre a clínica e o trabalho. Petrópolis: Vozes. 5 Ressaltamos que os pacientes das clínicas e hospitais de Barbacena eram essencialmente oriundos do Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto o HEAL atende em especial a uma clientela de classe média. 23 O objetivo inicial da análise estatística foi caracterizar a amostra de 516 prontuários de pacientes do Hospital Espírita André Luiz - HEAL, a partir da descrição da porcentagem das principais variáveis que compõem essa base de dados. Com esse mapeamento, buscamos a identificação dos distúrbios mentais mais frequentes por categoria profissional na referida amostra. Os dados coletados nesses prontuários foram organizados conforme as seguintes variáveis: proporção de pacientes atendidos por filantropia, convênios; proporção de pacientes com atendimento particular, data de nascimento, cidade onde reside, naturalidade, sexo, estado civil, quantidade de filhos, pessoa com quem o paciente reside, escolaridade, idade de início da patologia, antecedentes na família, ocupação principal, outras atividades exercidas e idade de início da patologia. O mapeamento estatístico que realizamos foi baseado em formulários preenchidos por funcionários da instituição. Por esse motivo, muitos itens foram desconsiderados e não foram respondidos, gerando a ausência de algumas informações. Desse modo, o cálculo das porcentagens foi realizado a partir das respostas válidas, ou seja, das respostas que atestavam a presença ou mesmo a ausência da variável. O banco de dados analisado foi dividido em duas partes, sendo a primeira formada pelas variáveis relativas ao perfil do paciente e a segunda parte relativa aos sintomas. Não há informações precisas da data de coleta e digitação dos dados, o que tornou pouco útil a data de nascimento dos pacientes, uma vez que não foi possível utilizá-la para estimar a idade dos pacientes na época do atendimento. Com relação ao perfil dos pacientes, as variáveis com maior número de dados faltantes foram: • Número de filhos, não informado para 65,1% (336) dos pacientes; • Com quem o paciente residia, não foi informado para 33,1% (171) dos pacientes; • Nível de escolaridade, não informado para 60,1% (310) dos pacientes; • Idade no início da patologia, não informado para 40,6% dos pacientes; • Presença de antecedentes da doença na família, não informado para 64,2% (331) dos pacientes; Apenas 36 pacientes não apresentaram informações a respeito das cinco variáveis citadas. Além disso, 82 pacientes não apresentaram informações para a intercessão das 24 variáveis “número de filhos”, “nível de escolaridade”, “idade no início da patologia” e “presença de antecedentes na família”, sendo que 162 (31,4% do total) não apresentaram informações para a intercessão das variáveis “número de filhos”, “nível de escolaridade” e “presença de antecedentes na família”. Os 336 pacientes que não tiveram o número de filhos informado são em sua grande maioria homens (70%); 64,3% (216) também não tiveram a escolaridade informada, 37,8% (127) não informaram com quem moram; e 65,8% (221) não informaram a presença de antecedentes da doença na família. Entre os 251 pacientes que não tiveram a idade do início da patologia informada, 63,3% também não tiveram a presença de antecedentes na família e 57,4% não tiveram a escolaridade informada. As variáveis relacionadas à modalidade de financiamento do atendimento tais como filantropia, convênio e atendimento particular, que isoladamente apresentam grande número de dados faltantes, foram agrupadas em uma nova variável denominada “tipo de atendimento”, sendo que, dessa forma, não verificamos informações de apenas 4 pacientes. Desse modo, os pacientes, por vínculo de atendimento, estão assim distribuídos: • 69 atendimentos por filantropia; • 297 por convênio; • 142 atendimentos como particular; • 2 atendimentos por convênio e particular; • 1 atendimento por filantropia e convênio; • 1 atendimento por filantropia e particular. A base de dados resultante dos prontuários do HEAL trouxe uma listagem prévia dos sintomas característicos das patologias que, então se apresentavam assinalados ou não, conforme sua presença ou ausência no diagnóstico do paciente. A partir de nossa análise, verificamos que dos 194 sintomas listados, 2,9% (15) não foram encontrados em nenhum paciente, e os demais foram identificados em pelo menos um paciente. Apresentamos, a seguir, um resumo dos resultados obtidos conforme as informações válidas, ou seja, as que efetivamente foram preenchidas nos prontuários. 25 1.1.1.1 Principais resultados: A partir da análise descritiva realizada nos 516 prontuários que compõem a amostra do HEAL, verificamos que entre os pacientes: 21,9% são servidores militares; 8,33% trabalham no comércio; 6,01% são escriturários; 5,81% são empresários; 5,43% são professores; 4,65% são profissionais da saúde com escolaridade superior; 4,07% são trabalhadores da construção civil. As demais profissões apresentaram freqüências inferiores a 4%. QUADRO 1 Ocupação principal dos pacientes OCUPAÇÃO PRINCIPAL APOSENTADO ARTISTA AUTÔNOMO COBRADOR DE TRANSPORTE URBANO COMÉRCIO CONSTRUÇÃO CIVIL EMPRESÁRIO ESCRITURÁRIO ESTUDANTE INFORMÁTICA MECÂNICO METALÚRGICO MOTORISTA NR OUTROS PROFESSOR SEGURANÇA SERVIÇOS GERAIS SERVIDOR MILITAR SERVIDOR PÚBLICO SUPERIOR DE HUMANAS SUPERIOR DE SAÚDE SUPERIOR EXATAS TÉCNICO DE SAÚDE TRABALHADOR RURAL TOTAL FREQUÊNCIA 6 8 17 PERCENTUAL PERCENTUAL ACUMULADO (%) (%) 1,16 1,55 3,29 1,16 2,71 6,01 SEXO FEMININO MASCULINO 33,33 37,50 58,82 66,67 50,00 41,18 NR 0,00 12,50 0,00 3 0,58 6,59 33,33 66,67 0,00 43 21 30 31 5 7 12 18 31 2 32 28 5 17 113 11 11 24 16 11 14 516 8,33 4,07 5,81 6,01 0,97 1,36 2,33 3,49 6,01 0,39 6,20 5,43 0,97 3,29 21,90 2,13 2,13 4,65 3,10 2,13 2,71 100,00 14,92 18,99 24,81 30,81 31,78 33,14 35,47 38,95 44,96 45,35 51,55 56,98 57,95 61,24 83,14 85,27 87,40 92,05 95,16 97,29 100,00 30,23 0,00 26,67 54,84 40,00 28,57 0,00 0,00 0,00 0,00 31,25 82,14 0,00 17,65 3,54 45,45 45,45 45,83 31,25 72,73 0,00 132 65,12 100,00 73,33 45,16 60,00 71,43 100,00 94,44 100,00 50,00 68,75 17,86 100,00 82,35 95,58 54,55 54,55 54,17 68,75 27,27 100,00 378 4,65 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 5,56 0,00 50,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,88 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 6 Figura 1 – Frequência de ocupação principal 26 GRÁFICO 1 Distribuição da Ocupação Fonte: MOTA, V.M.C. & LIMA, M.E.A. A análise quantitativa dos dados coletados também revelou que: • 50% dos diagnósticos de transtornos mentais orgânicos (CID F0 a 9) são apresentados pelos servidores militares; • Os transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de substâncias psicoativas (CID F10 a 19), esquizofrenia (CID F20 a 29), transtornos de humor (CID F30 a 39) e transtornos neuróticos (CID F40 a 49) foram diagnosticados em quase todos os tipos de ocupações, porém a maior frequência foi entre os servidores militares; • Os dois casos de síndromes comportamentais associadas a disfunções fisiológicas e a fatores físicos (CID F50 a 59) foram diagnosticados entre os professores e pacientes com curso superior na área da saúde; • A classificação que corresponde às disfunções da personalidade do adulto (CID F60 a 69) teve a maior proporção entre os servidores militares, embora esteja presente em quase todas as ocupações; • Foram diagnosticados apenas dois casos de retardo mental (CID F70 a 79), um caso entre os pacientes que não tiveram a ocupação informada e outro entre os servidores públicos; 27 • Os professores e os pacientes com curso superior que trabalham na área de saúde apresentaram maior diversidade de diagnósticos (transtornos mentais orgânicos, transtornos mentais decorrentes do uso de substâncias psicoativas, transtornos psicóticos/esquizofrenias, transtornos de humor, neuroses e transtornos somatoformes, transtornos do comportamento associados aos fatores fisiológicos ou físicos, distorções da personalidade e do comportamento). Na amostra do HEAL aqui considerada, destacamos que entre as cinco categorias que apresentam maior frequência e um percentual superior a 5% do total da amostra estão os servidores militares, os trabalhadores do comércio, os escriturários, os empresários e os professores6. Os docentes apresentaram maior diversidade de diagnósticos conforme o CID-10 e representam 5,43% da amostra estudada. Estabelecendo uma comparação dessa categoria na nossa amostra com a população economicamente ativa (PEA) de Belo Horizonte, encontramos resultados que revelam que a amostra de professores do HEAL foi proporcionalmente maior que a PEA da região: os professores correspondem a 0,83% da PEA de Belo Horizonte, indicando que esses profissionais são, proporcionalmente, 6,5 vezes mais numerosos nessa amostra do que na PEA de Belo Horizonte. Além disso, considerando que 96,4% dos professores de nossa amostra residem em Minas Gerais, verificamos que o número de docentes nesse Estado corresponde a 2,4% da PEA de Minas Gerais. Realizando uma comparação desse resultado com o número de 28 professores na amostra do HEAL, que significa 5,43% do total de 516 prontuários analisados, verificamos que o número de trabalhadores dessa categoria profissional é 2,3 vezes maior na amostra estudada do que na PEA de Minas Gerais. Esses resultados nos pareceram ser indicadores importantes a respeito do caráter patogênico do trabalho do professor. Entretanto, somente os resultados estatísticos são insuficientes para obtermos conclusões consistentes a esse respeito. Uma reflexão mais 6 Outras categorias profissionais que também emergiram nessa etapa de nosso estudo deverão ser objeto de investigações posteriores, assim como já ocorreu com a categoria dos militares a partir de uma investigação dos fatores que contribuem para o alcoolismo entre policiais usuários dos serviços do HEAL. Esse estudo foi desenvolvido por Valéria R. Gischewski, sob orientação da Profª. Maria Elizabeth Antunes Lima, da UFMG. 28 detalhada sobre a atividade profissional do professor torna-se necessária para que possamos compreender o significado desses números. 1.1.2 Os professores na amostra do HEAL 1.1.2.1 Aspectos descritivos da população Privilegiamos, em nosso estudo, os professores que trabalham no ensino fundamental7, pois representam 44% do total de docentes de Belo Horizonte conforme o Censo Educacional 2007. Apresentaremos a seguir os principais resultados quantitativos a respeito dos profissionais em docência na amostra do HEAL. No total de 516 prontuários analisados, identificamos que 28 eram professores sendo que 10 foram atendidos por meio de convênio com a UNIMED (35,71%), 12 como paciente particular (42,86%), um por filantropia (3,57%) e os restantes foram atendidos por meio de diversos convênios (17,86%). Quanto ao sexo, temos 23 mulheres e cinco homens. O sexo feminino corresponde a 82,1% do total de 28 docentes da amostra do HEAL, ou seja, a maioria. A respeito do estado civil, entre os professores da referida amostra verificamos que 16 são casados, oito solteiros, três divorciados/desquitados e uma viúva, ou seja, a maioria (57,1 %) dos professores na amostra estudada é de casados. Em relação à naturalidade verificamos que, entre os 28 professores, 25 (89,3%) são nascidos em Minas Gerais, enquanto três nasceram em cidades de outros Estados brasileiros. Entre os mineiros, sete são naturais de Belo Horizonte (28%) e os 18 restantes nasceram em diversas cidades de Minas Gerais (72%). A média entre as idades dos docentes na amostra do HEAL é 47,64. A mediana é igual a 44 e a moda corresponde a 428. O intervalo entre as idades é de 30 a 82 anos. 7 O ensino fundamental corresponde ao anteriormente chamado ensino de primeiro grau. As funções do professor consistem em: desenvolver nos alunos a capacidade de comunicação e expressão, além de ministrar outros conhecimentos básicos para a formação do aluno tais como integração social e iniciação às ciências, transmitindo os conteúdos pertinentes de forma integrada no sentido de proporcionar aos discentes os princípios elementares de comunicação e instruí-los sobre os fundamentos básicos da conduta científica e social, conforme o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Veja mais em http://www.mte.gov.br/empregador/CBO/procuracbo/conteudo 8 A média entre as idades corresponde à soma de todas as idades da amostra dividida pelo número de parcelas desse conjunto. Isso nos dá uma indicação do escore típico da amostra. A mediana é o valor que está no meio da amostra, ou seja, que apresenta o mesmo número de valores acima e abaixo dela. A moda é o valor mais repetido, isto é, a idade que mais se repete. 29 Considerando o local de residência, temos que 11 professores de nossa amostra moram em Belo Horizonte e isso corresponde a 39,2% do total de 28 docentes. Verificamos também que 57,1% residem em outras cidades mineiras e 3,7% ou seja, um paciente apenas, mora em cidade do Estado da Bahia. Portanto, verificamos que 96,3% dos 28 professores da amostra do HEAL moram em Minas Gerais. Não obtivemos informações precisas se são docentes de ensino superior, ensino médio, ensino fundamental ou pré-escola. Em apenas um caso existe a informação de que se trata de uma professora de escola primária. Além disso, os dados sobre a escolaridade desses profissionais não estão especificados em 71,4% dos casos e apenas 17,85% desses pacientes informaram que obtiveram escolaridade de 3° grau. Também não há informações se os profissionais com escolaridade superior têm pós-graduação ou capacitação para o ensino superior. Desse modo, tudo indica que, se há docentes do ensino superior, não são maioria nessa amostra. 1.1.2.2 Aspectos qualitativos da população O banco de dados sobre o qual nos debruçamos apresentou um grande número de variáveis, entretanto, por ter sido originado a partir dos prontuários médicos, há muitas lacunas, mas isso não compromete os resultados de nossa investigação, pois consideramos somente os dados presentes para a análise dos aspectos qualitativos. Em nossa análise privilegiamos o teste dos agrupamentos CID F10-19 (Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de substâncias psicoativas), CID F30-39 (Transtornos do humor/afetivos) e CID F40-48 (Transtornos neuróticos, transtornos relacionados ao estresse e transtornos somatoformes), conforme o Código Internacional de Doenças (CID–10). Nosso interesse em investigar se há associação entre a ocupação profissional e os transtornos somatoformes, surgiu a partir das indagações de Le Guillant (2006) a respeito da influência dos conflitos decorrentes da relação homem-meio social sobre a eclosão de transtornos psicossomáticos. Esse autor se interessava em demonstrar, de forma efetiva, como se dá a relação entre o meio em que sujeito vivia e a sua atividade psicofisiológica, pois considerava não haver uma rígida separação entre o psiquismo e a fisiologia humana. 30 Conforme o CID-10, os transtornos somatoformes (F45) caracterizam-se pela presença repetida de sintomas físicos, múltiplos, recorrentes e com duração variável no tempo, apesar de não se encontrarem uma base orgânica que justifique sua presença, sugerindo origem psicogênica. Nesse agrupamento encontramos também os transtornos de somatização (F45. 0), geralmente associados a uma alteração do comportamento social, interpessoal e familiar do sujeito. Ressaltamos ainda que, entre os distúrbios que fazem parte do agrupamento CID F40-48, encontramos os transtornos de despersonalização (F48.1) que, conforme Codo (2002), estão entre os principais fatores que caracterizam a síndrome de burnout9. Além disso, na análise epidemiológica dos prontuários de pacientes das clínicas e hospitais psiquiátricos de Barbacena, realizada por Lima (2004) foram identificados, entre os principais diagnósticos encontrados, os transtornos mentais relacionados ao uso do álcool e os transtornos de humor. Como nossa proposta consiste também em dar prosseguimento a essa investigação, justifica-se o nosso interesse em verificar como se apresentavam essas variáveis na nossa amostra. Desse modo, ainda na primeira etapa de nosso estudo - que consistiu da análise do banco de dados com o objetivo de identificarmos as ocupações que apresentassem maiores chances de diagnósticos em distúrbios mentais, foram calculadas as chances para a ocorrência dos distúrbios relacionados ao uso de substâncias psicoativas (CID 10 a 19), aos distúrbios de humor (CID F 30 a 39) e aos transtornos somatoformes (CID 40 a 48). Comparando os indivíduos de uma dada ocupação com todos os demais indivíduos da amostra, tentamos identificar se pertencer à profissão considerada poderia revelar alguma relação com os diagnósticos identificados nos prontuários, conforme o Código Internacional de Doenças (CID -10). Observamos que 82,1% (23 professores) apresentaram diagnósticos pertencentes ao agrupamento CID F30-39 e 28,6% (8 professores) apresentaram diagnósticos do agrupamento CID F40-49, reforçando o nosso interesse em estudar essa categoria profissional. 9 Codo (2002) considera a síndrome de burnout como um transtorno mental caracterizado por uma atitude de desistência do educador em relação a seu trabalho. 31 Tabela 1 - Percentual de pacientes com diagnóstico por agrupamento conforme o CID 10 e por ocupação Ocupação APOSENTADO ARTISTA AUTÔNOMO COBRADOR DE TRANSPORTE URBANO COMÉRCIO CONSTRUÇÃO CIVIL EMPRESÁRIO ESCRITURÁRIO ESTUDANTE INFORMÁTICA MECÂNICO METALÚRGICO MOTORISTA NR OUTROS PROFESSOR SEGURANÇA SERVIÇOS GERAIS SERVIDOR MILITAR SERVIDOR PÚBLICO SUPERIOR DE HUMANAS SUPERIOR DE SAÚDE SUPERIOR EXATAS TÉCNICO DE SAÚDE TRABALHADOR RURAL Total Grupos de CID10 F10-F19 F30-F39 F40-F49 0,0% 33,3% 0,0% 62,5% 37,5% 12,5% 29,4% 52,9% 23,5% 0,0% 66,7% 0,0% 48,8% 53,5% 7,0% 71,4% 23,8% 9,5% 53,3% 40,0% 16,7% 22,6% 41,9% 19,4% 20,0% 80,0% 0,0% 28,6% 28,6% 28,6% 41,7% 16,7% 16,7% 50,0% 44,4% 33,3% 51,6% 25,8% 3,2% 0,0% 0,0% 0,0% 40,6% 34,4% 9,4% 10,7% 82,1% 28,6% 20,0% 60,0% 20,0% 41,2% 5,9% 5,9% 50,4% 46,9% 22,1% 36,4% 45,5% 0,0% 27,3% 81,8% 0,0% 45,8% 58,3% 8,3% 37,5% 56,3% 6,3% 36,4% 27,3% 27,3% 35,7% 28,6% 0,0% 41,9% 44,2% 14,7% Ao realizarmos o teste qui-quadrado10 para a ocupação exercida e o CID F 30 a 39 verificamos que há associação entre essas variáveis, com p-valor indicando diferença 10 O teste qui-quadrado é um teste de hipóteses que se destina a comparar o valor da dispersão para duas variáveis qualitativas, avaliando a associação existente entre elas. Busca-se comparar as possíveis divergências entre as freqüências observadas e as freqüências esperadas para certo evento. Como hipótese a ser testada, temos que a hipótese nula é: as freqüências observadas não diferem das freqüências esperadas, ou seja, não existe associação entre os grupos. A hipótese alternativa é: as freqüências observadas diferem das freqüências esperadas, portanto existe diferença entre elas, ou seja, há associação entre os grupos. Pode-se dizer que dois grupos se comportam de forma semelhante se as diferenças entre as freqüências observadas e as esperadas em cada categoria forem muito pequenas, ou seja, próximas à zero. 32 significativa entre a frequência observada e a frequência esperada (p<0,001). Desse modo, calculamos o risco relativo11 (RR), comparando os professores com cada uma das outras categorias profissionais da amostra, a fim de identificar se o exercício da profissão tem relação com os diagnósticos do agrupamento CID F30-39. Os resultados do cálculo do risco relativo mostraram que os professores têm 77,17% de chances a mais de apresentar distúrbios com CID F 30 a 39 (transtornos de humor/afetivos) do que as outras categorias profissionais da amostra do HEAL. Além disso, o teste qui-quadrado para ocupação e o CID F 40 a 49 revelou que também existe associação entre essas variáveis, com p-valor indicando diferença significativa entre a frequência observada e a frequência esperada (p<0,049). Desse modo, a partir do cálculo do risco relativo, observamos que os docentes apresentam 87,63% de chances a mais de serem diagnosticados com distúrbios que compõem o agrupamento CID F40 a 48 (transtornos neuróticos, transtornos relacionados com o estresse e transtornos somatoformes). Vale ressaltar que, na amostra estudada, os professores não aparecem entre os profissonais que teriam chance significativa para os transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas (CID F 10 a 19), apesar do teste de hipóteses ter revelado que existe associação entre as variáveis ocupação e CID 10 a 19 (p<0,003). Os prontuários analisados também contêm informações a respeito dos principais sintomas apresentados pelos pacientes. Alguns desses sintomas podem ser destacados uma vez que são mais presentes em determinadas categorias profissionais. Como nosso objetivo, nesse estudo, é conhecer o trabalho do professor, ressaltamos os sintomas cuja frequência é igual ou maior que 10% na amostra da categoria dos professores. Verificamos, após análise do banco de dados, que 100% dos docentes de nossa amostra apresentaram sintomatologia de atenção dispersa, sugerindo indícios de alterações qualitativas na atividade mental dos sujeitos. Esses resultados também reforçam as evidências do caráter patogênico do trabalho em docência, conforme podemos verificar no quadro a seguir. 11 Medida de associação que se baseia na observação de que nem todos os sujeitos têm a mesma probabilidade (risco) de sofrer um dano e que para alguns, esta probabilidade é maior do que para outros. Desse modo, permite também avaliarmos a chance de risco para um dado dano nos indivíduos expostos ao fator de risco, comparado com os que não estão expostos a ele. 33 QUADRO 2 Frequência dos sintomas na amostra Sintoma Frequencia Alterações de humor 10,13% Ansiedade 22,20% Atenção dispersa 100,00% Atos compulsivos 16,67% Delírios de grandeza 11,76% Desadaptado 12,50% sócio-afetivo- emocional Desmaios 18,18% Desorientado emocionalmente 10,00% Despersonalização 14,29% Discurso acelerado 22,22% Discurso pobre 16,67% Hipotimia 33,33% Impaciência 16,67% Impulsividade 10,00% Incoerente 25% Insegurança 33,33% Libido exacerbada 12,50% Idéias negativas 11,11% Pensamento acelerado 16,67% Pensamento lentificado 20% Poliqueixoso 33,33% Prolixo 50% Quadro psicotiforme 14,29% Repetitivo 25,00% Sentimentos de culpa 11,11% Timidez 14,29% Traços neuróticos 11,11% Fonte: MOTA, V.M.C. & LIMA, M.E.A. Além dos resultados dessa análise quantitativa, outro fator também reforçou nosso interesse a respeito do trabalho em docência e suas relações com a saúde do professor. Conforme já dissemos, ao mesmo tempo em que trabalhávamos com os dados do HEAL, colhemos o relato de uma professora – por meio da realização de entrevistas em profundidade – com o objetivo de elaboração de um trabalho de finalização de uma disciplina do mestrado. Tratava-se do caso de uma professora 34 acometida por uma grave disfonia12 que, evidentemente, causava muitas dificuldades em sua vida profissional e pessoal. A aposentadoria precoce foi a única saída para essa professora, pois nem mesmo o desvio de função, ou seja, sua transferência para a biblioteca, foi suficiente para suprimir os sintomas. Apresentamos a seguir o seu caso clínico com o objetivo de reforçar a justificativa pelo nosso interesse em aprofundarmos o conhecimento sobre os possíveis nexos entre o trabalho docente e o adoecimento mental do professor. 1.2 A história de Jandira Jandira tem 52 anos de idade, é casada e atualmente tem uma filha adotiva. É a terceira entre cinco irmãos, sendo quatro mulheres e um homem. Seu pai é metalúrgico aposentado e sua mãe, já falecida, era dona de casa. Cursou magistério na mesma instituição em que, posteriormente, foi trabalhar como professora desde que se formou aos 18 anos. Este sempre foi o seu trabalho, pois nunca exerceu outra atividade diferente da docência. Além disso, ela afirma que não saberia fazer outra coisa, por não ter exercido outra atividade profissional. Trabalhou tanto com turmas de alfabetização como também com adolescentes. Sua experiência como professora inclui atividades na escola pública, situada em zona rural, e em escola particular, considerada como a melhor instituição de ensino de sua cidade. Nascida em uma cidade do interior de Minas Gerais, distante 60 km de Belo Horizonte, Jandira foi educada na religião católica e procura seguir os preceitos de sua crença religiosa. Em sua cidade natal, não teve muitas possibilidades de escolher uma carreira, na época de sua juventude. Havia somente formação para a profissão de professora ou de contabilista, mas preferiu cursar o magistério. Seu pai não concordava com a idéia de suas filhas estudarem ou mesmo trabalharem em outras cidades e ao mesmo tempo, era complicado sair para estudar fora, pois pertencendo a uma família numerosa, seus pais não dispunham de recursos para financiar seus estudos e sua estadia numa cidade que oferecesse outras opções de carreira profissional. 12 Dificuldades para emitir os sons da fala que, no caso dessa professora, resultava numa perda total da voz em algumas ocasiões. 35 Jandira demonstra ter muito respeito e admiração pelos pais, especialmente por sua mãe. Relatou que, em sua casa, nunca teve como obrigação realizar as tarefas domésticas, pois sua mãe cuidava de tudo. Às vezes, ajudava apenas em alguns cuidados da casa, mas a prioridade deveria ser os seus estudos e o trabalho. Seu pai garantia o sustento da casa sozinho e seus filhos trabalhavam apenas para suas próprias necessidades. Nunca lhe foi exigida uma contribuição nas despesas da família. Embora, seus pais não fossem pessoas com elevado grau de instrução, Jandira sempre os considerou como pessoas muito sábias, especialmente sua mãe. Em seu relato, ela se revela uma pessoa exigente e perfeccionista tanto no trabalho como em sua vida pessoal e caracteriza-se como alguém preocupada com os resultados de seu trabalho, que é o aprendizado de seus alunos. Também ressaltou que ser rigorosa consigo, pois se preocupava em seguir fielmente aquilo que considerava correto, a ponto de se sentir ansiosa por conseguir cumprir todas as prescrições em seu trabalho. Quando criança, também era comprometida com os resultados de seus estudos, pois temia ser reprovada e não gostava da ideia de ficar retida, enquanto seus colegas prosseguissem. Além disso, sempre foi muito nervosa e exigente, mesmo em suas relações pessoais, revelando-se uma pessoa pouco paciente e muito detalhista, inclusive em seu relacionamento conjugal. Quando sabe que vai receber uma visita em sua casa, não consegue dormir na véspera de sua chegada, por se sentir preocupada em preparar a casa para receber aos convidados e desse modo, causar-lhes boa impressão. Entretanto, assim que o visitante se despede, apressa-se em novamente ajeitar sua casa e recolocar tudo no seu devido lugar. Mas Jandira não se sente confortável com essa postura, percebe que, agindo assim, fica muito mais cansada fisicamente. 1.2.1 O trabalho como professora Jandira fez o magistério na mesma escola particular em que, posteriormente, foi trabalhar. Logo que se formou começou a lecionar como contratada em uma escola do Estado, onde trabalhou durante 10 anos. Entretanto, teve que deixar esse trabalho porque uma professora efetiva deveria assumir o cargo. Em alguns momentos, trabalhou paralelamente tanto na escola pública, situada em zona rural próxima à sua cidade, como na escola privada. 36 Durante 15 anos exerceu a docência concomitantemente na escola pública e na escola particular, o que lhe causava enorme desgaste físico e mental, mas percebeu diferenças importantes em seu trabalho em cada uma das instituições de ensino. Para ela, a escola particular oferecia maiores recursos materiais para que o aluno ampliasse o seu conhecimento, além disso, os pais dos estudantes tinham maior interesse pela formação de seus filhos. Dizia: Os pais acompanham mais. Eles acompanham e até atrapalham. Mas a escola particular... Eu acredito que é uma escola que dá mais condições de uma criança passar no vestibular. A escola pública, em sua opinião, também tinha alunos que atingiam resultados satisfatórios na aprendizagem. Mas Jandira considerava que, se tivessem melhor suporte material, teriam maior possibilidade de desenvolvimento. Por esse motivo, empenhavase em elaborar, conforme sua experiência, materiais alternativos que também favorecessem a aprendizagem dos alunos na escola pública, mas nem sempre percebia os mesmos resultados quando comparados aos da escola particular. Nesse caso, o aluno tinha acesso aos cinemas, às diversões, às bibliotecas, às excursões, aos brinquedos pedagógicos, recursos importantes para despertar o interesse do estudante e estimular a aprendizagem do conteúdo ensinado. 1.2.2 A relação com o trabalho Sempre responsável e comprometida, Jandira procurava criar condições para realizar seu trabalho da melhor maneira possível, tanto na escola particular quanto na escola pública. Muitas vezes, orientava os pais de seus alunos sobre as dificuldades de seus filhos, mas percebia que na escola particular, nem sempre as famílias aceitavam sua opinião porque temiam a reprovação da criança. Jandira avaliava que esses pais consideravam que o investimento financeiro que faziam na educação da criança era mais importante do que o seu desenvolvimento. Isso lhe causava sofrimento, pois nem sempre podia contar com o apoio das famílias. De outro lado, à direção da escola particular também não interessava desagradar aos pais dos alunos, pois eram tratados como clientes que compravam os serviços que a escola comercializava. Assim, o professor tinha que tentar atender às expectativas dos familiares, ou seja, os alunos deveriam obter os bons resultados pelos 37 quais os pais estavam pagando. Desse modo, o professor muitas vezes era responsabilizado quando a criança não conseguia obter boas notas, tanto pelas famílias quanto pela escola. Às vezes, os pais colocam os filhos numa escola particular e acham que a escola vai fazer tudo e que os filhos vão sair dali cem por cento [...] e isso não condiz com a realidade porque a criança, muitas vezes, vai para a escola particular, mas tem limitações, ela não aprende. Aí, muitos pais acham que é a professora que não está ensinando direito e não olham a limitação do filho [...] ou, às vezes, enxergam e não querem ver. Jandira procurava cumprir da melhor maneira possível às prescrições em ambas as escolas, mas considerava que a escola particular era mais exigente em relação ao professor. Às cincos horas da manhã já estava de pé para se preparar para seu trabalho e não era preciso que ninguém a chamasse ou que ela usasse o despertador para acordar, pois estava sempre atenta aos seus compromissos. Considerava que, apesar de sua dedicação, o trabalho como professora nem sempre era reconhecido, além de ser mal remunerado e desgastante. Sua mãe comentava que, se tivesse mais filhas não gostaria que fossem professoras. Mas apesar disso, Jandira sentia sua atividade como gratificante. Afirma que, embora a escola pública oferecesse piores condições físicas de trabalho, achava injusto não se dedicar aos seus alunos tanto quanto o fazia na escola particular. Entretanto, revela ter sido pouco reconhecida pela instituição de ensino particular como boa profissional, apesar de se considerar competente. A escola particular reza assim: aqui é uma escola particular, a gente precisa do aluno. Professor tem muitos. [...] Ainda mais numa escola de irmãs... elas são muito financistas. Aí, a gente pensa na caridade... elas não se preocupam. Elas se preocupam com o dinheiro. [...] Eram muitos rígidas assim por olhar o lado delas, a vantagem para elas. Muitas pessoas reconheciam o seu trabalho e ainda se lembram de como era boa professora, mas Jandira afirma que seu trabalho foi pouco valorizado na instituição particular, especialmente quando começou a apresentar os primeiros sintomas de adoecimento. Eu acho... Inclusive a gente vê agora muita gente que a gente encontra e diz: “Nossa! Como você era boa professora!” A maioria reconhece seu trabalho. Agora... eu me sinto assim... No ambiente da escola, enquanto você está prestando serviço, você vale. Se você adoeceu, você não vale. Você é esquecida, sabe? As pessoas não procuram saber como você está: “Oh, fulana, aqui é da escola, você está melhor?” Nem um dia! Eles colocam outra pessoa e ali eles vão se movendo e acontecendo e continuando. 38 Ela se mostra decepcionada em relação à escola particular, pois esperava que o seu esforço fosse reconhecido, uma vez que, conforme suas palavras, vestia a camisa da instituição e procurava cuidar da imagem pública do colégio, realizando um bom trabalho. Ressalta, entretanto, que gostava de ser respeitada como uma profissional responsável e competente e não admitia ter que bajular os superiores hierárquicos para conseguir vantagens, embora procurasse manter bom relacionamento com a direção. Entre as dificuldades de sua profissão acha que o trabalho docente tem sido pouco valorizado e faz comparações entre o momento atual e o que imagina ter sido o trabalho docente em sua infância. Considera que as famílias não têm mais o mesmo interesse pela educação das crianças e, desse modo, o professor perdeu um poderoso aliado, ficando com grande parcela de responsabilidade pela formação das gerações futuras. As pessoas mudaram pra pior porque aí a mãe sai, o filho faz e acontece com a empregada, faz e acontece dentro da escola, com a professora, faz e acontece na sociedade. E as próprias mães não estão querendo educar o filho não. Elas preferem sair fora, pegar a bolsa e ir trabalhar e deixar o problema rodar, do que ensinar ao filho uma tarefa que é chata. Mas, apesar das dificuldades que encontrou em seu trabalho, especialmente na escola particular, Jandira também ressaltou que gostava muito de sua profissão e que preferia estar ainda exercendo a docência a estar aposentada por invalidez. Lembra-se que, em seu grupo de trabalho, era considerada uma pessoa divertida e entusiasmada e sente falta da convivência com suas colegas de profissão, embora seja uma pessoa que ainda tenha facilidade para fazer amizades. Afirma que o benefício que recebe da Previdência Social é suficiente para seus gastos pessoais e que não precisa pedir dinheiro ao esposo para isso. Além disso, ele tem recursos financeiros para assumir as despesas da casa, não necessitando de sua contribuição. Mas ela ressalta que quando trabalhava fora de casa, também sentia mais interesse em se cuidar. Mas assim... faz falta a gente sair, conversar, até mesmo para se arrumar. Porque a pessoa que trabalha, a pessoa se sente na obrigação de estar arrumando o cabelo, fazendo uma unha. Eu ainda faço isso porque toda vida eu fui muito vaidosa, mas assim... A pessoa tem aquele compromisso de ter uma aparência melhor para sair para trabalhar porque você não vai trabalhar de qualquer jeito, né? E você ficando em casa, você fica mais a vontade, né? Então faz falta até para isso. É... ele dignifica. O trabalho dignifica. Apesar das dificuldades do cotidiano, ainda considera que seu trabalho lhe causava satisfação especialmente por perceber o quanto contribuía para o desenvolvimento de seus alunos. 39 Mas é gratificante... é complicado e é gratificante. Quando você vê uma criança lendo, você pensa assim: não fui eu que ensinei; de uma hora pra outra ele pega o livro e fala: “professora, já sei ler”. Você fala: mas não fui eu que ensinei!... Então, nas séries iniciais... Eu achava ainda mais gratificante porque nas outras, a criança já aprendeu a ler, mas nas séries iniciais é bonitinho demais. 1.2.3 O adoecimento Jandira se sentia pouco à vontade para realizar o seu trabalho na escola particular, pois se percebia impedida de sustentar suas convicções quando alguma situação não lhe agradava e, desse modo, calava-se para evitar conflitos com seus superiores hierárquicos, pois temia ser demitida. E às vezes a gente escuta algumas regras que a gente não gosta. Eu sou uma pessoa muito falante, eu gosto de expor as minhas idéias, eu gosto de estar explicando o motivo do que eu não gostei e às vezes em escola particular a gente não pode. Então eu me calava... Aí eu me calava... Mas eu estava adoecendo. As diversas tentativas de explicar aos pais a respeito das dificuldades de alguns alunos e ser mal interpretada causavam-lhe enorme dissabor. Quando não concordava com alguma situação, preferia usar a franqueza para tentar solucionar os conflitos, mas percebeu que na escola privada, não podia apresentar suas idéias e opiniões, especialmente quando eram contrárias a algumas prescrições da instituição. Jandira percebia que não havia espaço para diálogo, pois numa escola que visava à obtenção de lucro, a lógica era a de que “o cliente sempre tem razão”. Isso a deixava triste: Eu fui me entristecendo de ver muita coisa, de ver aluno que era ruim e a gente ia falar que tava ruim e as mães não aceitavam porque estavam pagando. Tudo isso me aconteceu. Desse modo, não lhe era permitido expressar as suas impressões sobre o desenvolvimento dos alunos, tampouco exprimir o saber que adquiria no exercício de sua atividade, cotidianamente. Não era possível elaborar meios alternativos de realizar o seu trabalho de acordo com sua percepção do processo de ensino e aprendizagem, pois era obrigada a seguir às diretrizes e prescrições da escola fielmente. Assim, Jandira foi impelida a se calar, o que parece ter favorecido a eclosão de seu adoecimento. Descobriu-se envolta em contradições, pois a forma como foi educada enquanto exaluna da mesma instituição era muito discrepante de como deveria agir como 40 professora. Além disso, lhe parecia incoerente que uma escola cuja proposta era oferecer um ensino de qualidade, desse pouca autonomia para o professor realizar o seu trabalho. Ela associou seus sintomas a essa impossibilidade de se expressar e ao fato de ter que aceitar viver sob condições e valores diferentes daqueles que serviram de base para sua formação. Eu tenho essa facilidade de estar dialogando e como eu não gostava e não podia sempre estar colocando as minhas idéias... aí eu guardava... aí veio a doença. (...) Eu nunca briguei, eu nunca discuti com colega... mas eu acho que eu fui adoecendo pela postura que eu vi... que a minha criação de um jeito... Eu achei aquilo constrangedor, eu não aceitava o que as pessoas faziam, o que as pessoas diziam, sabe? Eu não aceitava e aí eu fui...eu acho... atacou o que atacou. Toda vida eu fui muito positiva, o que é correto... Eu sei até onde que eu posso, eu sei aonde que eu dou conta e que eu não dou conta. Quando solicitava à direção da escola o empréstimo de algum equipamento audiovisual para utilização em sala de aula, percebia que não tinham confiança em deixá-lo sob sua responsabilidade. Também considera que o acúmulo de atividades, a sobrecarga de trabalho, a preocupação excessiva por realizar suas tarefas da melhor forma possível, também contribuíram para o seu adoecimento. Por esse motivo, necessitou se afastar de suas atividades profissionais em diversas ocasiões, pois foi acometida de uma grave disfonia que a impedia de realizar o seu trabalho. Mas, muitas vezes, não era compreendida em suas necessidades de cuidados com a saúde. Alguns colegas de trabalho duvidavam que conseguisse uma aposentadoria, pois era muito jovem. Jandira percebeu que, em muitos casos, as pessoas julgavam que estava “fazendo corpo mole.”. Consequentemente, ela se sentia ainda mais deprimida, passando a não mais confiar em sua capacidade como professora e temendo cada vez mais enfrentar tudo que estivesse relacionado ao seu trabalho na escola particular. Sentia-se impotente diante de muitas situações que a desagradavam e que iam contra seus princípios morais e convicções religiosas e, desse modo, julga que foi impedida de realizar o seu trabalho conforme seu saber, sendo este, o principal motivo de seu adoecimento, culminando numa aposentadoria precoce. Ela atribui a doença e a aposentadoria precoce, sobretudo, à experiência na escola particular, dizendo ter se sentido “podada”. Mas eu julgo que foi mais pela escola particular do que pela escola pública. Com isso eu aposentei muito cedo. Eu fui prejudicada, eu fui podada. Quando eu falo com os outros que sou aposentada, os outros até estranham. Acham que sou muito nova. Realmente eu fiquei sem atividade. 41 1.2.4 Os sintomas Jandira começou a apresentar dificuldades para emitir os sons da fala. Havia ocasiões em que perdia totalmente a voz. Entretanto, os exames realizados por diversos especialistas, não revelaram qualquer comprometimento orgânico que justificasse a sua disfonia. Desde o início, ele (o médico) disse que poderia ser assim um estado de stress, ele falou que poderia ser alguma coisa nas cordas vocais e ele tentou olhar que poderia ser alguma coisa na faringe, labirintite, mandou ir à fonoaudióloga para ver o que daria para ser da voz, mas só que eu fiz a microfilmagem e não deu nada. Eu fui ao otorrino e ele também não constatou nada. Então, ele achou que poderia ser um estresse e que poderia ser assim... alguma coisa que eu não gostasse e que me bloqueasse. Era um bloqueio do que às vezes eu via, queria falar e não falava. Ele achou que a causa da minha doença seria essa. Em busca de solução para seu problema, Jandira se submeteu a uma psicoterapia e o seu psicólogo identificou na sua disfonia, sem causas orgânicas, indícios de uma conversão decorrente de neurose histérica. Eu tive até procurando um psicólogo na época e ele me explicou que tem pessoas que não dão conta e começam a desmaiar. Tem pessoas que não dão conta e vem aquela dor de cabeça, vem adoecendo outro membro e o meu foi a fala porque fui impedida talvez de estar expondo o que eu queria, porque era um regime fechado, um regime de irmãs. Jandira considera que seu adoecimento foi fruto de problemas emocionais, suscitados por sua situação profissional. Caracteriza-se como uma pessoa que valoriza a verdade e a justiça e por isso tem necessidade de expor suas opiniões mesmo quando discordantes em relação às prescrições. E sempre que se sentia impedida de fazê-lo, a disfonia se manifestava. Segundo seu relato, os problemas na voz começaram quando Jandira já estava trabalhando na escola privada há mais ou menos três anos e foram intensificando com o passar do tempo, ficando mais freqüentes e culminando em uma depressão. Os afastamentos freqüentes lhe causavam grande dissabor, pois se sentia como se não estivesse cumprindo bem as suas atividades como professora. Durante as crises, para se comunicar com seus familiares, precisava escrever ou bater palmas para chamá-los e quando não conseguia se fazer compreender, sentia-se ainda mais deprimida. Nas ocasiões em que esteve afastada, logo que percebia que sua 42 voz estava retornando, preferia voltar ao trabalho porque se preocupava com seus alunos e temia ser demitida em razão dos afastamentos. Ela se define como uma profissional dedicada e que, muitas vezes, tratava os alunos como filhos, não se sentindo tranquila quando tinha que deixá-los sob os cuidados de outra docente. Porque eu ficava: ah! Coitados dos meninos eles vão ficar prejudicados com outra pessoa. É aquela doação que a gente pensa nos outros e sempre querendo o melhor. E a escola, crianças assim de escola... ainda mais de primário...a gente é meio mãezona de menino... dos outros. Ai meu Deus e os meninos com outra professora estranha... né? Mesmo doente eu ficava com essa preocupação. Às vezes era época de prova né? Como que os meninos iam se sair com outra professora, na prova? Com o adoecimento, Jandira sentiu-se ainda mais rejeitada, desvalorizada enquanto pessoa e como profissional. Afirma que enquanto conseguia exercer suas atividades sentia-se reconhecida como pertencente ao grupo de funcionários da escola. Entretanto, quando adoeceu e necessitou de afastamento para cuidados com a saúde, percebeu que alguns de seus colegas preferiam não continuar mantendo relações de amizade com ela, pois temiam se comprometer perante a direção da escola e consequentemente, serem penalizados por esse motivo. Amizade?... A gente nota como o ser humano é. Às vezes, tem colega que fica com medo de conversar com você para não ter um comprometimento com o patrão. 1.2.5 A aposentadoria Por ter necessitado se afastar em muitas ocasiões para se recuperar da disfonia, Jandira seria demitida pela escola particular e estava cumprindo aviso prévio, ou seja, seus temores não eram infundados. Isso fez com que se sentisse ainda mais desvalorizada em sua capacidade profissional, o que acarretou o agravamento dos seus sintomas. Estava muito deprimida quando seu irmão alertou-a para o fato de que a escola não poderia demitir uma profissional com problemas de saúde. A partir de então, ela começou a tomar providências para conseguir sua aposentadoria. Alguns colegas de profissão lhe diziam que não seria fácil conseguir comprovar sua necessidade da aposentadoria, pois o seu adoecimento não revelava causas orgânicas, entretanto, os médicos eram unânimes ao identificar uma causa psicogênica para as dificuldades na fala que ela apresentava. 43 Ela ressaltou que o processo de comprovação da necessidade da aposentadoria por invalidez lhe causou muito sofrimento, pois se sentia tratada como louca ou, em outros casos, como se estivesse simulando os sintomas da doença. Relata que em uma das perícias, o médico se referiu a ela como “a professorinha que não fala”, o que lhe causou um intenso sentimento de revolta, pois se considerou desrespeitada ao perceber um tom de ironia na afirmação do especialista. Entrei pelo INSS, sofrendo, porque o INSS é difícil; é uma instituição difícil. Eles te pressionam muito. Eles me levaram para lugares horrorosos lá no Carlos Prates, naquele INSS. Passei por várias provações, por lugares horríveis, de gente que parecia que estava até doido mesmo. Devido ao seu adoecimento, Jandira avalia que foi prejudicada em seus objetivos profissionais e, consequentemente em sua realização pessoal. Afirma que, por causa dos sintomas que não cediam, sua única saída foi a aposentadoria, pois temia não conseguir outro emprego, imaginando que ninguém daria oportunidade para uma professora com dificuldades na voz. Entretanto, revelou que, ao contrário do que muitas pessoas poderiam estar pensando a respeito de sua aposentadoria precoce, não considerou vantajosa essa medida, pois percebeu uma significativa diminuição de seus vencimentos. Além disso, ainda hoje, sente-se ociosa quando fica em sua casa apenas cuidando dos afazeres domésticos, pois já estava acostuma a ter muitos compromissos e gostava disso. Para se sentir útil, aproveita o tempo livre para ajudar aos familiares e outras pessoas que venham solicitar algum tipo de ajuda, pois continua mantendo um largo círculo de amizades. Enfim, Jandira considera que ainda não está totalmente bem, mas através da psicoterapia, compreendeu que deveria tentar ser mais franca e autêntica, procurando defender suas posições diante dos outros. Evitando se calar diante daquilo que julga inadequado conforme suas convicções pessoais, tem maiores possibilidades de afastar o sintoma que a aflige, ou seja, a perda da possibilidade de se expressar através da fala. Mas agora através do tratamento que eu fiz eu aprendi a não ficar muito tempo... Eu posso até ficar com uma raiva, mas eu aprendi a não ficar. (...) Hoje ainda eu tenho esse problema, porém, assim... quando eu fico muitíssimo abalada. Agora eu aprendi que eu devo... eu não preciso usar minha fala para maltratar as pessoas, mas eu tenho que falar o que eu sinto porque, se eu não falo o que eu sinto, eu fico engasgada e adoeço. Foi o que aconteceu. 44 1.2.6 Análise do caso Jandira fez o magistério na mesma escola em que, posteriormente, foi trabalhar. Logo que se formou, começou a lecionar como contratada em uma escola do Estado. Trabalhou nessa mesma instituição durante 10 anos, mas foi demitida quando uma colega concursada assumiu o cargo. Durante cinco anos, trabalhou nessa escola pública e, ao mesmo tempo, numa escola particular administrada por uma congregação de religiosas católicas. Isso lhe permitiu fazer algumas comparações sobre o seu trabalho nas duas instituições de ensino. Jandira encontrava maiores dificuldades ao lidar com os pais de seus alunos na escola privada. Em sua opinião, isso se dava porque, como pagavam mensalidade, o nível de exigência dos pais era maior e, por isso, muitas vezes, desconsideravam a percepção e a opinião dos professores sobre o rendimento escolar de seus filhos; o interesse dos pais era pela aprovação do aluno mesmo que não tivesse alcançado bons resultados na aprendizagem. Isso fazia com que Jandira se sentisse responsabilizada quando a criança não conseguia se sobressair na escola. Ela sempre foi muito comprometida com sua profissão. Conseguir que a criança tirasse proveito das aulas, que gostasse de ir à escola, que aprendesse o conteúdo que ela se esforçava para ensinar, era fundamental para essa professora. Além disso, sempre procurou ser pontual, sentindo-se mal se necessitasse faltar ao trabalho. Tentava trabalhar da melhor forma para que sua turma fosse bem-sucedida na aprendizagem. Para Jandira, a escola particular oferecia melhores condições de aprendizagem ao aluno, por ter bons recursos materiais para auxiliar o trabalho do professor e os pais serem mais atentos à educação dos filhos. Já na escola pública, o professor tinha que suprir muitas carências materiais e as famílias se interessavam menos pelo desenvolvimento da criança. Apesar dessas diferenças, era sempre dedicada ao seu trabalho e procurava criar condições para realizá-lo da melhor maneira possível, tanto na escola particular quanto na escola pública. Preocupava-se em preparar o material para a aula, em acompanhar o progresso do aluno, tentava criar estratégias para facilitar a aprendizagem dos alunos da escola pública, mas, ainda assim, considerava que os resultados alcançados estavam aquém daqueles que obtinha na escola particular. Muitas vezes ia dormir às duas horas da madrugada fazendo o seu plano de aula e às cinco horas da manhã já estava de pé para preparar, antes de ir para a escola, as 45 atividades que iria realizar com seus alunos. Apesar desse esforço, ela se sentia gratificada ao perceber o desenvolvimento das crianças, a partir do trabalho que realizava. Uma extensa jornada de trabalho, cumprindo dois e, algumas vezes, até três turnos, incluindo a preparação das aulas para turmas diferentes, com alunos diferentes e com perfis diferentes, ajudando na promoção de atividades extracurriculares como os eventos nas datas comemorativas, causavam-lhe desgaste, tanto mental, quanto físico. Era comum não usufruir de uma pausa para descanso entre um turno de trabalho e outro. No que concerne à escola privada, essa professora afirma ter sido pouco valorizada em sua dedicação e habilidades, apesar de se considerar uma profissional competente. As exigências eram mais pesadas, uma vez que os pais esperavam resultados melhores, alegando que estavam pagando. Ela comparava a postura de seus alunos da escola pública e da escola privada: na escola particular, tanto as crianças como seus pais tratavam os professores como empregados que deveriam obedecer às suas ordens. Na escola pública, entretanto, a clientela e sua família eram mais respeitosas com os professores. Além disso, na escola particular, a própria direção desqualificava o trabalho do docente. Considerava também a organização do trabalho na escola particular como muito rígida. Além disso, apesar de haver bons equipamentos para uso em sala de aula, a escola oferecia muita resistência em emprestá-los aos professores por receio de que fossem danificados. Dessa forma, somente as religiosas podiam utilizar equipamentos audiovisuais tais como projetor de slides, retroprojetor ou aparelho de som. Jandira havia sido aluna dessa escola na infância. Em sua época de estudante, a escola só aceitava crianças do sexo feminino e as alunas também eram submetidas a uma disciplina rigorosa: não havia tolerância com atrasos, o uniforme devia estar em perfeitas condições e as mensalidades deviam estar rigorosamente em dia. Revela que, como professora na escola pública, tinha mais liberdade para direcionar o seu próprio trabalho. Os recursos materiais eram mais escassos do que na escola privada e, por esse motivo, era necessário que criasse atividades que facilitassem a aprendizagem dos alunos. Muitas vezes, ela mesma comprava os materiais necessários para desenvolver, em sala de aula, as atividades que elaborava com o objetivo de facilitar o seu trabalho com os alunos. Apesar disso, na escola pública, sentia-se mais 46 livre para realizar seu trabalho e, como gostava de sua profissão, tinha o mesmo comprometimento, independentemente de cobranças externas. Considerando-se uma pessoa dedicada e responsável, achava que não era necessário que a escola particular tivesse com ela um tratamento tão rigoroso. Era costume a diretora ou a supervisora entrar em sala de aula inesperadamente para observar o trabalho dos professores, realizando com isso um monitoramento do que estava sendo feito e avaliando suas ações em sala de aula. Sentia-se constantemente vigiada e ameaçada com a possibilidade de demissão. Por esse motivo, achava que estava sendo desrespeitada, pois não se percebia reconhecida em seus esforços e em sua capacidade profissional. Assim, revelou-se pouco à vontade para realizar o seu trabalho na escola particular, sentindo-se impedida de trabalhar conforme as suas convicções, pois devia seguir rigorosamente as prescrições impostas pela escola. Entretanto, preferia se calar diante disso, para evitar conflitos com seus superiores hierárquicos que resultassem em sua demissão. Com o passar do tempo Jandira começou a apresentar os sintomas da disfonia, ou seja, revelou dificuldades para emitir os sons da fala. Havia ocasiões em que perdia totalmente a voz. Entretanto, os exames realizados por diversos especialistas, não revelaram qualquer comprometimento orgânico. Os problemas na voz começaram quando estava trabalhando na escola privada havia mais ou menos três anos e foram se intensificando com o passar do tempo. Além disso, começou a apresentar sintomas de depressão. Nas ocasiões em que ficava de licença em decorrência dos distúrbios da voz, era acometida por sentimentos exacerbados de melancolia que a deixavam sem forças para reagir: chorava com muita frequência, não tinha interesse em se cuidar, sentia falta de apetite. Assim que os sintomas da perda da voz abrandavam, ela preferia voltar ao trabalho porque se preocupava com seus alunos e com a preservação de seu emprego, mas em pouco tempo, os sintomas retornavam. Foi recomendada a trabalhar na biblioteca da escola, baseando-se na hipótese de que, afastando-se da regência, da sala de aula e dos alunos, talvez conseguisse a supressão definitiva dos sintomas, mas em pouco tempo a disfonia voltou a se manifestar. O desvio de função não parecia uma solução para seus problemas. 47 Devido aos constantes afastamentos, a escola particular deu-lhe aviso prévio, mas seu irmão alertou-a para o fato de que a escola não poderia demitir uma profissional adoecida. A partir disso, Jandira começou a tomar providências para conseguir sua aposentadoria porque teve receio de não mais conseguir outro emprego. Entretanto, considera que foi prejudicada em seus objetivos profissionais e em sua realização pessoal, pois se aposentou muito jovem – estava com 43 anos de idade. Atualmente ela se sente bem disposta e algumas vezes pensa em abrir mão dos benefícios da aposentaria para voltar a trabalhar, pois sempre gostou e ainda gosta da docência, mas além de estar receosa de não conseguir recuperar a mesma disposição do início de sua carreira, ela não gostaria jamais de voltar a trabalhar em uma escola particular, pois teme que os sintomas de seu adoecimento voltem a se manifestar, impedindo-a de prosseguir. Esse relato nos dá alguns indícios do que a organização do trabalho docente, aliada à história pessoal da professora, pode ter contribuído para o seu adoecimento. Como sempre foi comprometida com sua profissão, parecia-lhe desnecessário um controle tão rígido por parte da direção da escola particular sobre o seu trabalho. Mesmo na escola pública, que exercia menos controle, ela realizava suas atividades com o mesmo interesse, não havendo necessidade que monitorassem suas ações em sala de aula. O trabalho na escola particular colocava-a diante de algumas contradições, pois como professora, exercia uma função de grande responsabilidade, trabalhando com crianças em fase de alfabetização, mas a direção não confiava que sequer fosse capaz de cuidar dos equipamentos audiovisuais. Além disso, esperava-se que o aluno tivesse um ensino de qualidade, mas o professor não tinha autonomia para avaliar seu desenvolvimento: o importante era que ele fosse aprovado, pois seus pais pagavam e contavam com isso. Se a escola se preocupava em oferecer um ensino de qualidade, era esperado que contratasse bons professores. Desse modo, para Jandira parecia contraditório que não confiassem no corpo docente. O professor era considerado apenas mais um educador entre muitos e, caso não cumprisse fielmente as normas da escola, era fácil demiti-lo, admitindo-se outro docente logo em seguida. Na escola privada, vivia outra contradição entre o que havia imaginado que seria sua carreira docente e o que recebia como professora. Como se formou nessa mesma 48 escola, esperava que seu trabalho fosse valorizado e que confiassem em suas habilidades. Mas, na realidade, descobriu-se impedida de realizar a sua atividade, pois o que estudou durante sua formação não correspondia mais às demandas da escola, quando foi admitida como professora dessa instituição. Desse modo, observamos que essas contradições, além dos impedimentos que viveu em sua atividade profissional, geraram as insatisfações e sofrimentos insuportáveis para Jandira, acarretando o seu adoecimento. O fato de ter apresentado justamente o sintoma da perda da voz, nos parece ter um valor simbólico. É claro que se trata de um sintoma típico dessa categoria profissional, mas temos que considerar que Jandira não apresentava elementos no plano orgânico que o justificassem. Sendo assim, podemos levantar a hipótese de que seu sintoma foi a forma que encontrou para expressar sua impotência. Seria exagero ver, na perda da voz, a forma desesperada encontrada por essa professora para comunicar que estava sendo impedida de agir? Teria sido a única maneira de se calar diante de uma situação que se tornara insustentável? Assim como ocorreu nas investigações de Le Guillant (2006), no caso de Jandira observamos que a organização de sua atividade profissional na escola particular, onde as contradições e os conflitos eram particularmente intensos, representam um fator patogênico indiscutível, mostrando que somente as predisposições da estrutura de personalidade dessa professora não são capazes de explicar a eclosão de seu adoecimento. Isso se comprova quando consideramos que ela não identifica na escola pública, onde exerceu a docência submetida a condições materiais até menos favoráveis, que tenha se sentido impedida de realizar o seu trabalho ou experimentado qualquer tipo de mal estar. Foram os resultados do levantamento realizado no HEAL e do estudo de caso acima, que despertaram nosso interesse em aprofundar o conhecimento do trabalho docente e seus impactos na saúde física e mental dos professores. Partimos então para uma nova etapa da pesquisa, que será exposta nos próximos capítulos. No primeiro momento exporemos os estudos em torno da saúde do professor aos quais tivemos acesso e, em seguida, os resultados do nosso próprio estudo. 49 Capítulo II 2 O exercício da docência 2.1 O trabalho docente: breve histórico Consideramos que, para compreendermos a realidade atual do trabalho docente, faz-se necessário um passeio sobre sua constituição em um breve histórico, pois os modos que o sujeito elege para realizar sua atividade nos dias de hoje, tem origem em todas as outras experiências que foram transmitidas justamente através da história da educação. Retomando os dizeres de Codo et al (2002, p. 43), “educar é o ato de realizar uma síntese entre o passado e o futuro, [...] ensinar o que foi para inventar e ressignificar o que será”. Conforme Paschoalino (2007), o professor na Grécia antiga era o responsável pela formação dos jovens cidadãos livres. A aquisição do conhecimento era fundamental para a emancipação humana, mas esse era um privilégio da elite, uma vez que estavam excluídos os escravos, os estrangeiros e as mulheres. Entretanto, a transmissão do conhecimento no trabalho e pelo trabalho também coexistia, mas destinada apenas aos escravos. Isso se manteve no decorrer da Idade Média. A instrução erudita era privilégio da elite e mesmo a transmissão do conhecimento dos mestres das corporações de ofício era ainda considerada como uma atividade pouco nobre, destinada às camadas menos favorecidas da população. Somente quando a igreja católica assumiu a responsabilidade de educar para doutrinar, o trabalho do professor adquiriu contornos de uma atividade fundamental para a formação do homem de um modo geral. A partir do século XVI, as escolas sob a tutela da igreja expandiram-se em direção às camadas populares com o objetivo de instrumentalizar o povo para a leitura das sagradas escrituras, sendo o próprio clero responsável pela atividade docente. (CARLOTTO, 2002. p. 22). Mas essa expansão provocou a necessidade de que fossem convocados professores leigos que, sob juramento de fidelidade aos princípios religiosos, seriam os responsáveis por divulgar as verdades do universo. Nesse período, a docência adquiriu status de ser uma profissão com alto nível de qualificação e autonomia, garantindo privilégios para quem a exercia. 50 Tardif e Lessard (2008) destacam que o ensino no contexto da escola representa, há quase três séculos, o modo principal de socialização e formação do homem nas sociedades modernas. A partir dos séc. XVI e XVII juntamente com a urbanização e com a emergência da sociedade industrializada, o ensino na instituição escolar se impôs como uma prática social que substituiu progressivamente outros modos de transmissão do conhecimento, tais como as práticas informais, familiares ou comunitárias. Desse modo, quando a produção nas fábricas se submeteu à gestão científica do trabalho proposta por Taylor, a partir do século XIX, as escolas também foram incorporadas por essa lógica, pois era necessário despertar nos jovens, hábitos e comportamentos adequados às necessidades da indústria. Com a revolução industrial, o desenvolvimento das fábricas passou a ser o exemplo e o motivo para o funcionamento das escolas, levando a uma falaciosa universalização do ensino, pois ainda persistia o modelo em que a educação da elite dominante possuía uma grade curricular mais completa, enquanto a educação para o trabalhador se resumia às noções básicas em leitura, escrita e matemática elementar. Mas, a partir desse período, o trabalho docente passou a conter prescrições bem específicas, que em muitos casos cercearam o fazer do professor. O avanço do capitalismo trouxe um novo uso das medidas e consequentemente, provocou a adoção de novos objetivos de quantificação do desempenho e desenvolvimento humano pelas diretrizes em educação. Avaliações, notas, conceitos numéricos e títulos passam a ser o parâmetro para se definir o rendimento do aluno e consequentemente, a competência do professor enquanto profissional. Esse ainda é o critério vigente nos dias atuais, com as devidas modificações e adequações aos novos tempos. A lógica da quantificação é imperiosa ainda que muitas vezes apareça disfarçada em modelos democráticos de disseminação do conhecimento. Atualmente, espera-se que o professor tenha por atribuições funcionais específicas, proporcionar a um ou mais alunos o ensino e a prática de determinadas atividades educativas, áreas de estudo ou disciplinas constantes de currículo do estabelecimento escolar. Além disso, cabe ao professor orientar e avaliar a aprendizagem e o desenvolvimento no aluno, de habilidades específicas e hábitos considerados socialmente construtivos13. 13 Conforme o Thesaurus Brasileiro da Educação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). 51 A educação, como um modo de socialização, informação e divulgação do conhecimento, a despeito das transformações ao longo do tempo e da história humana, continua a se expandir, ultrapassando os muros da escola, abarcando toda a sorte de tecnologia que lhe serve de suporte e servindo de inspiração para outros modos de transmissão de informações. 2.2 Um trabalho a partir das interações entre pessoas O trabalho tem importância fundamental no desenvolvimento humano por se constituir em uma atividade de conservação, transmissão e renovação de todo o patrimônio desenvolvido pela humanidade. (CLOT, 2006). Trabalhar possibilita ao homem estar em contato com o mundo que o cerca, consigo mesmo e com o outro. Tardif e Lessard (2008, p. 28) baseando-se na concepção de Marx a respeito do trabalho humano ressaltam que este não se resume em transformar um determinado objeto num outro objeto, “mas é envolver-se ao mesmo tempo numa práxis fundamental em que o trabalhador é também transformado por seu trabalho”. No caso do trabalho do professor, existe a especificidade de se realizar na relação imediata com o outro. É por definição, a atividade que vai possibilitar a divulgação, às gerações futuras, de todo progresso e desenvolvimento atingido pelo homem, consequentemente carregando em si a proposta de favorecer a continuidade desse desenvolvimento. Segundo Vygotski (2005), o aprendizado escolar desempenha um papel decisivo na conscientização da criança a respeito de seus próprios processos mentais. A consciência reflexiva chega à criança por meio da aquisição dos conhecimentos científicos: os rudimentos de sistematização entram na mente da criança por meio de seu contato com os conceitos científicos na escola e são depois transferidos para os conceitos cotidianos, mudando sua estrutura psicológica de cima para baixo, ou seja, o conceito mais elaborado influencia a elaboração do conceito mais simples. Esse movimento revela a relação estreita existente entre o aprendizado escolar e o desenvolvimento mental da criança. O trabalho docente se revela na transformação que é capaz de provocar e que se processa no outro – seu aluno. Essa metamorfose do educando é que apresenta para o 52 professor o resultado de seu esforço e se traduz no reconhecimento de seu trabalho, visível ou não, na relação com os alunos, pais, comunidade escolar, colegas de trabalho. Conforme Codo et al (2002, p. 44) “retomar o passado, refazer os vínculos com o presente, reorganizar o futuro, eis o que o professor faz.” Esse autor ressalta que na atividade em docência “cada palavra dita, cada movimento do olhar tem seu lugar reservado no futuro do outro, do país, do mundo. Por bem e por mal”. Para esse autor, o trabalho do professor é imediatamente histórico e isso o condena à relação direta com o outro, pois não há um produto visível, um objeto concreto. O professor, para se reconhecer, depende que o outro o reconheça. Desse modo, sem a possibilidade de estabelecimento de vínculos afetivos com o aluno, com o produto e com as tarefas, o trabalho do professor não se viabiliza. (CODO, 2002). Tardif e Lessard (2008, p. 19 e 20) abordaram a docência como um trabalho interativo, ou seja, uma profissão que tem o ser humano como seu objeto. Conforme esses autores, a característica essencial de um trabalho baseado em interações “é colocar em relação [...] um trabalhador e um ser humano que se utiliza de seus serviços”. Nesses casos, “as pessoas não são um meio ou uma finalidade do trabalho, mas a ‘matéria – prima’ do processo do trabalho interativo e o desafio primeiro da atividade dos trabalhadores”. No exercício da docência, as relações se estabelecem com pessoas – os alunos – que são capazes de iniciativa e são dotadas de capacidade de resistência ou participação na ação dos professores. Isso faz com que o trabalho de educar apresente características específicas, afetando profundamente a atividade do trabalhador. Clot (2010, p. 281) agrupa o ensino na categoria dos serviços, juntamente com o comércio, as profissões da área de saúde, justiça ou o trabalho social, ou seja, profissões em que o objeto14 do trabalho é a vida do outro. Conforme esse autor, nesses casos a separação entre a experiência pessoal e a vida profissional do sujeito é mais complexa, pois “o próprio trabalho impõe uma responsabilidade renovada quanto ao objeto e, por isso, a definição das tarefas é influenciada, mais do que em outras circunstâncias, por avaliações conflitantes”. A docência, então, está entre as atividades em que, por ser o homem o objeto de trabalho, o conflito decorrente da necessidade de se realizar um trabalho de qualidade pode atingir, para o trabalhador, o patamar de um verdadeiro 14 Clot (2010) utiliza aspas para destacar a palavra “objeto” quando esta se refere ao ser humano como destinatário das profissões classificadas como serviços. 53 embate entre os conceitos do que seria “justo ou injusto, do verdadeiro e do falso e até mesmo do bem e do mal”. Tardiff e Lessard (2008, p. 24) ainda destacam a importância e a necessidade de se estudar a docência como um trabalho e não apenas sob a ótica de temas considerados por eles como abstratos tais como a pedagogia, a tecnologia do ensino, o conhecimento, a cognição, a aprendizagem, sem levarmos em consideração a atividade do professor e o contexto histórico social em que ela se efetiva. Para eles é de fundamental importância “que o estudo da docência se situe no contexto mais amplo da análise do trabalho dos professores e, mais amplamente, do trabalho escolar”. Assim, para que possamos conhecer a atividade docente, devemos considerá-la não como a simples execução de tarefas prescritas, mas abordá-la também a partir do esforço que estes profissionais devem empreender para realizá-la. Apresentaremos a seguir o trabalho do professor a partir de seu olhar. Iniciaremos por uma exposição da escola onde realizamos as observações para, em seguida, apresentarmos os estudos de caso de duas professoras que pertencem à referida escola. Somente aproximando-nos de seu trabalho é que tivemos a possibilidade de compreender como conseguem realizá-lo, considerando que está inserido em um contexto permeado por fatores que têm contribuído para o adoecimento mental do professor. 2.3 As pesquisas em torno do trabalho do professor O trabalho docente e suas relações com a saúde mental têm despertado interesse e sido objeto de estudo sob diferentes perspectivas. Destacamos então alguns estudos sobre o trabalho do professor que tiveram influência na construção de nossas questões, já que fornecem elementos importantes para a compreensão do nosso tema. De início, ressaltamos a extensa e abrangente investigação a respeito do trabalho docente em que Codo et al (2002) expõem a realidade de trabalho complexa e, em vários aspectos, inadequada do ponto de vida da saúde do professor. Trata-se de uma pesquisa englobando 52.000 sujeitos e 1.440 escolas de todos os estados brasileiros, sobre as condições de trabalho e saúde mental dos educadores, realizada a partir da parceria entre o laboratório de Psicologia do Trabalho da Universidade de Brasília (UnB) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). 54 Nessa investigação, os autores apresentam a escola como uma organização de trabalho prestadora de serviços, pertencente ao setor terciário da economia. A docência caracteriza-se pela relação direta com o cliente, ou seja, os alunos. Desse modo, o produto do trabalho docente vai sendo construído durante a relação professor-aluno e não ao final do processo. Conforme o autor, nesse caso, o nível de exigência e tensão para o trabalhador é muito maior do ponto de vista afetivo. Para desempenhar sua função, o professor tem necessidade de estar bem do ponto de vista físico e psicológico, além disso, deve manter-se sempre atualizado, sob pena de inviabilizar sua atividade. Inserido em uma realidade em que nem sempre as instituições educacionais têm condições de solucionar as demandas que recebem, é ao professor que cabe atender aos imprevistos que ocorrem no dia a dia de seu trabalho. Codo et al (2002) apresentam o trabalho do professor como sendo uma atividade inalienável, em que não há fragmentação, pois É ele quem, em última instância, controla seu processo produtivo: em sala de aula, embora tenha que cumprir um programa, possui liberdade de ação para criar, definir ritmos, definir a sequência das atividades a serem realizadas. (CODO et al, p.49). Esse autor ressalta que é por meio do trabalho que o homem pode deixar as marcas de sua passagem pelo mundo. Modifica a natureza ao gerar o produto de seu trabalho e, por conseguinte, modifica a si mesmo e ao outro, numa relação permeada pela história. (CODO et al, 2002). Na docência, especificamente, o resultado disso é a modificação que o trabalho do professor provoca no aluno – sem intermediações – por meio da aprendizagem. Codo et al (2002), baseando-se em Marx, explicam que sob o domínio do capitalismo o produto resultante do trabalho não é atribuído ao trabalhador, comparecendo diante dele como um objeto estranho, pertencente ao capital. Desse modo, o controle do processo de produção é expropriado do trabalhador. Entretanto, no caso da docência, é o professor quem controla todo o processo de trabalho. A prática e o conhecimento sobre sua atividade profissional estão em suas mãos, pois o professor é o detentor das decisões sobre o planejamento e a condução do processo de ensino-aprendizagem em sala de aula. Ainda que se encontre submetido às prescrições e diretrizes externas, os tempos e ritmos de seu trabalho não lhe escapam 55 completamente, pois essa é a principal condição para que consiga realizar seus objetivos, dado a singularidade de seu produto, ou seja, o outro – seu aluno. Para Codo et al (2002), o professor é o responsável e o autor de sua obra. E o resultado de seu trabalho será difundido por seus alunos como uma obra que “não se deteriora”, mas se “acrescenta e se enriquece”. Entretanto, qualquer constrangimento à sua autoria, à marca deixada pelo profissional, implica um “assassinato do trabalho”. (CODO et al p. 386). Apesar de considerar a docência como um “trabalho desalienado” CODO et al (2002, p. 386) nos lembram que ela está inserida num contexto de uma sociedade alienada. Oprimido entre o status de realizar um trabalho completo e a realidade objetiva de uma sociedade que se pauta pela lógica capitalista, o professor encontra-se por vezes impossibilitado de trabalhar com autonomia plena. Desse modo, os autores, a partir de sua investigação, identificaram alguns aspectos próprios da atividade docente que podem levar o professor ao adoecimento psíquico: uma elevada expectativa pelo controle total do processo ensino-aprendizagem, o conflito entre afeto e razão e as dificuldades advindas de uma atividade catalisadora de relações sociais que se exprime na medida em que o trabalho docente está permanentemente entrelaçado a todos os acontecimentos em torno da comunidade escolar. O principal meio de trabalho do professor é a comunicação e, na sociedade “a posição de que fala é a posição da verdade.” (CODO et al, 2002, p. 388). Assim, o seu trabalho vai depender da confiança e do bom relacionamento com os alunos, com suas famílias, com a direção da escola e com seus colegas de profissão. Para Codo et al (2002, p. 384), o docente é “um profissional mal remunerado, com salário iníquo, injusto e arbitrário, trabalhando muitas vezes em condições ruins, desvalorizado socialmente, com um trabalho penoso em um meio ambiente hostil”. O trabalho do professor nos dias atuais não está entre as ocupações mais compensadoras em termos de remuneração e progressão social. Caracterizado por baixos salários, condições precárias, falta de flexibilidade na administração de recursos, falta de condições básicas para o exercício da profissão, trata-se, no entanto, de um trabalho importante em que o reconhecimento pela sociedade não corresponde ao mesmo nível das exigências impostas aos profissionais. Ao mesmo tempo, esse autor identifica um paradoxo nos resultados de sua pesquisa: foi encontrado também “um profissional apaixonado, dedicado, satisfeito, comprometido.” (CODO et al, p.384). 56 Desse modo, ele levanta questões sobre quais seriam aqueles que, por opção, abraçariam a carreira docente diante do contexto atual. Os resultados da pesquisa revelaram que 86% dos professores da amostra considerada mostraram-se satisfeitos com seu trabalho, apesar das dificuldades que enfrentam. Com relação ao comprometimento, mais de 90% dos professores pesquisados revelaram-se comprometidos com seu trabalho, identificam-se com os objetivos da escola e não se arrependem de fazer parte dela. Quase 90% consideram que têm autonomia sobre seu trabalho e sentem-se responsáveis pela qualidade do serviço que oferecem. Mais de 90% acreditam na importância de seu trabalho para a sociedade e isso não tem relação com as condições de infraestrutura de que dispõem para realizálo ou mesmo do salário que percebem. Os resultados dessa investigação também indicam que boas relações sociais no ambiente de trabalho favorecem o comprometimento do profissional em docência. Conclui-se então que os professores, apesar de condições desfavoráveis em muitos casos, apresentam-se satisfeitos com seu trabalho. Entretanto, os resultados desse estudo também denunciam que 48,4% dos educadores apresentam sentimentos de desânimo, apatia e despersonalização, falta de envolvimento com o trabalho, ou seja, sintomas característicos da síndrome de burnout. Baseando-se nos estudos desenvolvidos por Farber (1991), Codo et al (id.) destacam que o burnout constitui um tipo de adoecimento frequente nas profissões que envolvem o cuidado e a atenção dispensados a outras pessoas, dentre as quais está a docência. Conforme o autor, para que o professor consiga desempenhar seu trabalho de forma a atingir seus objetivos, o estabelecimento do vínculo afetivo em relação a seus alunos é condição primordial. O trabalho do professor depende de que consiga despertar a atenção e o interesse do aluno. Essa conquista, que se traduz na tentativa de trazer o aluno para o seu lado, envolve um enorme investimento de energia afetiva da parte do docente, que será direcionada para a relação que se estabelece entre ele e seu aluno, pois é da criação desse vínculo baseado na confiança mútua, que ocorre o processo de ensino-aprendizagem. Mas esse investimento afetivo no aluno nunca retorna ao docente de modo integral, ou seja, “a relação afetiva não se estabelece de forma a permitir que o trabalhador possa se reapropriar de seu trabalho” (CODO et al, 2002, p. 56). A forma de organização do trabalho docente não permite que o circuito afetivo se complete, pois o 57 trabalho do professor está submetido a regras, prescrições, técnicas, programas. O professor deverá tratar seu aluno de modo imparcial – independente de suas carências ou necessidades – pois há que respeitar os princípios que regem o trabalho docente. Desse modo, Codo et al (2002) consideram que a preservação da saúde do professor vai depender das possibilidades que ele tenha ou não de administrar as tensões relativas à quebra desse investimento afetivo. Se o ambiente e as condições de trabalho forem indiferentes às necessidades do professor de dar vazão à sua energia afetiva, poderão contribuir para a eclosão de dificuldades afetivas do sujeito que já são próprias de sua estrutura de personalidade. O burnout está relacionado a atitudes negativas para com a clientela e a organização do trabalho. Três sintomas podem aparecer associados, nesses casos, despersonalização, baixo envolvimento pessoal com o trabalho e sensação de fadiga emocional15. É uma situação de total esgotamento da energia física ou mental do sujeito. Considerando o trabalho do professor, CODO et al (2002, p. 240) definem o burnout como a síndrome de desistência do educador que “ocorre quando certos recursos pessoais são perdidos ou são inadequados para atender às demandas, ou não proporcionam retornos esperados (previstos). Faltam estratégias de enfrentamento”. O indivíduo, nesse caso, busca distanciar-se cada vez mais da realidade, numa tentativa de evitar o sofrimento, mergulhando cada vez mais em seu próprio mundo subjetivo. Codo et al (2002, p. 57) explicam esse processo da seguinte forma: “Assim criase a seguinte lógica: para realizar bem o meu trabalho preciso me envolver afetivamente com meus clientes (alunos, pacientes, etc.); porém, se eu assim proceder, certamente sofrerei, o que me leva a não vincular-me.” O professor passa a assumir uma atitude de desinteresse pelos seus alunos, parecendo não se importar com suas dificuldades. Também as reações de irritabilidade, ansiedade, melancolia, baixa auto-estima e fadiga mental são características do transtorno definidos como burnout. Vasques-Menezes & Gazzotti (2002), que participaram desse mesmo estudo, consideram que quando o professor consegue permanecer na profissão apesar das 15 A despersonalização ocorre quando o vínculo afetivo é substituído por um racional. Trata-se da perda do sentimento de que estamos lidando com outro ser humano, ou seja, da coisificação da clientela, no caso do professor. Conforme o CID-10, este transtorno (F48.1) é caracterizado pela perda das emoções e uma sensação de desligamento do sujeito em relação aos seus pensamentos, ao seu corpo e ao mundo real. Na exaustão emocional, o docente não consegue trabalhar com a mesma dedicação e interesse que apresentava no início da carreira. O baixo envolvimento pessoal no trabalho decorre de sentimentos de ineficácia no desenvolvimento de sua atividade. (CODO et al., 2002). 58 dificuldades, o faz na medida em que é capaz de elaborar estratégias defensivas de negação da existência das adversidades, como uma forma de passar por cima delas sem ter que efetivamente enfrentá-las. Essas autoras apresentam o professor como um profissional que tipicamente teria um perfil de personalidade com características “que, de certa forma, produzem ou reproduzem o perfil maníaco.” 16 (VASQUES-MENEZES & GAZZOTTI, 2002, p. 371). Somente os profissionais que apresentam traços próprios de uma estrutura de personalidade maníaca seriam capazes de permanecer na docência por um longo período de tempo. Desse modo, conforme as autoras, para esse profissional, educar é uma “profissão de fé” (VASQUES-MENEZES & GAZZOTTI, 2002, p. 373) e seria o idealismo do professor, como característica pessoal, um dos seus principais motivadores para se manter na profissão, apesar das dificuldades. Para essas autoras, o burnout pode ser considerado como uma estratégia de defesa contra o sofrimento. O profissional opta por se relacionar com o mundo de uma forma fria, protegendo-se assim das frustrações advindas das possíveis trocas com os outros – seus alunos e os colegas de trabalho. Além disso, o tempo de trabalho na docência levaria a uma mudança no sujeito causando a transformação do idealista em um profissional esgotado com seu trabalho. Assim, quando o professor consegue se manter trabalhando por muitos anos é apenas de um modo automático e auxiliado por mecanismos de defesa tais como a negação e a despersonalização. As autoras admitem que, tanto as dificuldades do trabalho quanto os desafios externos a ele, contribuem para que o sujeito adote estratégias defensivas. O fato de estar exposto aos desafios da profissão docente, durante um longo período de tempo, pode contribuir especialmente para a eclosão de exaustão emocional. Para estudar o burnout em uma amostra nacional de quase 39.000 trabalhadores em educação, Codo e sua equipe utilizaram tanto recursos quantitativos quanto qualitativos17. Os resultados da análise dos dados revelaram que 31,9% dos profissionais apresentaram baixo envolvimento emocional em relação a sua tarefa; 25,1% apresentaram exaustão emocional e 10,7%, despersonalização. A incidência de 16 As autoras consideram como características do perfil maníaco a impulsividade, a multiplicidade de ações, a inquietação e o idealismo. Para elas, esses também seriam traços da personalidade do educador. Somente sendo um idealista é que o professor consegue realizar o seu trabalho, uma vez que traça um projeto para o seu aluno: transformá-lo conforme sua própria visão de mundo. 17 Para o estudo quantitativo, utilizou a escala de Malasch (1986). Para a investigação qualitativa foi elaborado um roteiro de entrevistas baseado no mesmo inventário, com o objetivo de complementar as informações obtidas. 59 pelo menos um dos três sintomas do burnout foi de 48,4% da categoria. A pesquisa revelou também que o burnout não se restringe aos professores, sua incidência em todos os cargos dentro da escola deve ser considerada. (CODO et al, 2002) O autor enfatiza que o burnout é uma síndrome de “desistência de quem ainda está lá”, ou seja, o trabalhador, mesmo presente em seu posto de trabalho, passa a considerar o outro como “números que vão se somando em uma folha em branco” (CODO et al, 2002, p.254). Ele se baseia nas pesquisas realizadas por Farber para definir esse tipo de transtorno mental como uma síndrome do trabalho originada dos conflitos decorrentes da discrepância entre o quanto o professor investe em sua atividade e aquilo que ele recebe (reconhecimento de colegas e chefes, bons resultados de seus alunos, etc.), ou seja, há uma contradição na percepção individual entre esforço e consequência, uma diferença entre o que é dado e o que recebido. Ele ainda destaca uma investigação realizada por Farber junto a professores nos EUA, no ano de 1984. Os resultados dessa pesquisa revelaram que 77% a 93% dos professores entrevistados experimentaram algum dos fatores relacionados ao burnout. Para ele “a ocorrência de burnout, propriamente dita, nos EUA e em outros países, tem se revelado preocupante” (CODO et al, 2002, p. 249), tratando-se de um problema internacional e não apenas restrito a algumas culturas ou realidade social e educacional. 2.4 Outros estudos sobre a docência Com o objetivo de conhecer as possíveis relações entre satisfação com o trabalho, estresse e burnout, Farber (1984) realizou uma pesquisa com 365 professores de escolas públicas do subúrbio de New York, EUA. Os resultados dessa investigação revelaram que a maioria dos professores que foram inquiridos não diminuiu sua participação no trabalho e que ainda estava comprometida com o ensino. Entretanto, numa frequência entre 20 e 25%, esses docentes apresentaram-se vulneráveis ao burnout, sendo que 10 a 15% já apresentavam os sintomas que caracterizam essa síndrome. Friedman e Farber (1992) investigaram, em uma amostra de 641 docentes de 40 escolas de ensino fundamental em Israel, a relação entre o burnout e as diversas maneiras como os professores se consideram profissionalmente. Os autores buscavam também apreender o sentimento desses profissionais em relação ao reconhecimento dos outros. Embora a amostra considerada seja originária de um único país, observaram que 60 muitas características do grupo de professores são tipicamente encontradas entre os professores dos EUA. Os resultados desse estudo revelaram a presença de duas atitudes comuns entre os professores: eles têm necessidade de se sentirem satisfeitos com seu trabalho para evitar o burnout e consideram que a tarefa de educar torna-se mais difícil quando não há o reconhecimento de sua complexidade e responsabilidades ou quando não é admitida a existência de tensões desencadeadas nas relações com pais, alunos, direção e a sociedade em geral. Os autores destacam que, para a maioria dos sujeitos da pesquisa, o ensino ainda é mais satisfatório do que estressante e que, apenas uma minoria informou que gostaria de deixar a profissão. Ressaltam também que esses padrões podem ser consistentes em todas as sociedades ocidentais. Gomes, R.A. et al (2006) realizaram uma investigação sobre o estresse, burnout, saúde física e satisfação profissional com 127 professores de uma escola secundária do Distrito do Porto, em Portugal. Os resultados revelaram que mais de 30% apresentavam estresse ocupacional e uma porcentagem considerável desses profissionais apresentavam sintomas de burnout, ou seja, 14% evidenciavam problemas de exaustão emocional, 17,95% apresentaram sintomas de despersonalização e 6% apresentaram baixos índices de realização pessoal. Conforme os autores, a combinação simultânea dos três fatores indica uma porcentagem média de 13% de professores que parece encontrarem-se em situação de burnout. Moreno (2002) e colaboradores realizaram um estudo com 63 professores de primeiro grau e de educação especial de escolas públicas e privadas, de Madri, com o principal objetivo de verificar a validade do Questionário de Burnout para Professores – Revisado (CBP–R) como instrumento facilitador da compreensão dos aspectos característicos da organização escolar e das atividades de ensino que podem interferir na eclosão da síndrome, quando comparado ao Maslach Burnout Inventory – Educators Survey (MBI-Ed)18. Os resultados obtidos atestaram a validade do CBP–R e revelaram que o estresse decorrente do papel do professor, as preocupações profissionais relacionadas à falta de segurança no emprego e os conflitos com a administração foram os fatores que explicaram o burnout dos sujeitos da amostra. Conforme Moreno (2002), 18 O MBI-Ed (Maslach & Jackson, 1981/1986) e o CBP-R (Moreno, Oliver & Aragoneses, 1993) são instrumentos utilizados para avaliação da síndrome de burnout em professores. O MBI-Ed tem sido a principal referência no estudo desse tema, mas conforme Jimenez (2002), o CBP-R permite analisar as diferentes fases do processo, os seus fatores desencadeantes e explica melhor a sua sintomatologia. 61 o burnout não aparece de forma brusca, mas decorre de um processo contínuo que tem como antecedentes importantes os fatores oriundos do próprio contexto ocupacional e da organização escolar, tais como a relação com os alunos, o tipo de jornada de trabalho, a sobrecarga de trabalho referente ao número de horas de dedicação e a proporção aluno/professor em sala de aula, o sistema de horários, a insuficiência de pessoal, o clima organizacional, a sua relação com as demandas da administração, entre outros. Entre as pesquisas realizadas em Minas Gerais sobre saúde mental e o trabalho em docência, ressaltamos uma investigação epidemiológica realizada por Gasparini (2005) com o objetivo de estimar a prevalência de transtornos mentais em professores da rede municipal de ensino de Belo Horizonte e sua associação com fatores relacionados ao trabalho docente. Os resultados evidenciaram que os transtornos mentais ocupam o primeiro lugar entre os diagnósticos que resultam em afastamentos das atividades laborais. Também foram encontradas relações significativas entre os transtornos psíquicos e as experiências de violência na escola, as condições de estrutura física da instituição escolar e alguns aspectos relativos à organização do trabalho docente, tais como a pequena autonomia do professor frente às prescrições da tarefa. O desenvolvimento de estudos qualitativos aprofundando esses resultados parece-nos essencial para sua compreensão. Outra investigação que também nos despertou interesse é a recente pesquisa realizada pelo Sindicato do Professores do Estado de Minas Gerais (SINPRO–MG, 2009) mapeando as condições de saúde e trabalho da rede privada de ensino no Estado, com o objetivo de caracterizar o perfil socioeconômico e demográfico dos docentes, de conhecer o ambiente e as relações de trabalho, bem como os principais agravos à saúde física e mental desses profissionais. Seus resultados revelaram um elevado percentual (92,84%) de professores que afirmaram sofrer de cansaço físico e mental. Uma etapa qualitativa a partir desses números também nos parece imprescindível para que eles possam ser interpretados. Diniz (1997) realizou um estudo visando conhecer como se processa a articulação saúde-trabalho no campo da docência. Também buscou compreender o lugar ocupado pelos transtornos mentais entre professores que manifestavam insatisfação com seu 62 trabalho. Essa autora tentou verificar se os desvios de função19 seriam soluções satisfatórias para que os docentes conseguissem suportar o mal-estar vivido no seu trabalho. Desse modo, acompanhou 14 professoras (apenas do sexo feminino) de escolas municipais de Belo Horizonte, que já se encontravam em desvio de função, observando que, aqueles casos em que os problemas persistiram após o desvio de função (11 casos), superaram os que obtiveram um resultado satisfatório (quatro casos) com essa medida. Diniz (1997) concluiu, então, que os problemas que se apresentam às docentes, muitas vezes extrapolam a sala de aula, ou seja, não são as dificuldades advindas do contato com os alunos, as principais causas dos transtornos mentais das professoras. A autora afirma também não ser possível dissociar os projetos de vida do professor de sua atividade profissional, pois essas dimensões se encontram entrelaçadas. Desse modo, não se pode apostar no desvio de função como uma solução simples e eficaz para resolver os problemas relacionados ao adoecimento mental do professor, pois essa medida funciona apenas como uma tentativa de readaptação, quando as relações do professor com o seu próprio trabalho não são interrogadas. Essa autora considera o magistério como um campo amplo de possibilidades, sendo necessária uma abordagem da angústia e das dúvidas do sujeito, a partir de sua singularidade. Somente assim é possível estabelecer o espaço da saúde e não da institucionalização da doença. Segundo ela, “faz-se necessário pensar na possibilidade que cada mulher professora tem de inventar sua saúde no processo de trabalho pedagógico, na sua relação com o aluno e porque não, em sua vida.” (DINIZ, 1997, p. 186) Outro estudo que merece ser mencionado aqui foi realizado por Paschoalino (2009) no qual foi possível identificar evidências da sensação de mal-estar que permeia as relações de trabalho do professor nos dias atuais. A autora privilegiou o método do estudo de caso para realizar sua investigação numa escola localizada em Belo Horizonte, considerada no passado, como uma escola modelo, tanto pelas famílias dos alunos como pelos profissionais que ali exerciam suas atividades. 19 Desvio de função é um dispositivo usado no Departamento e Segurança e Medicina do Trabalho (DSMT) da Rede Municipal de Ensino, recomendado pelo médico quando o servidor apresenta problemas de saúde em determinada função, de forma persistente e sucessiva. Os professores em desvio de função, nesse caso, eram aqueles que por recomendação médica deveriam ser remanejados para realizar outras tarefas onde não fosse necessário o contato direto com crianças, tais como funções administrativas na secretaria ou bibliotecas. 63 Após a adoção dos princípios da Escola Plural20, esse estabelecimento de ensino sofreu forte impacto tanto nas ações que diziam respeito à sua atividade fim, que era a educação no ensino médio, quanto nas relações de trabalho entre os professores. A autora focalizou o referido mal-estar como um conjunto de sentimentos sobre a profissão resultantes das condições de trabalho desconfortáveis com as quais o professor se depara: as condições objetivas em que se exerce a docência, a violência nas instituições escolares, o esgotamento do professor diante das exigências de seu trabalho e a modificação do papel do professor na sociedade. Essa pesquisa revelou outros fatores que também podem estar relacionados às dificuldades pelas quais passam os docentes no exercício de sua atividade profissional, especialmente aqueles que dizem respeito à mudança da imagem do professor perante a sociedade e diante de si mesmo. A falta de condições materiais não são as únicas responsáveis pelas dificuldades no exercício da docência e a autora nos lembra que, para compreendermos essa atividade, é preciso nos aproximar daquele que a exerce, ou seja, o professor. Paschoalino (2009) ressalta as diversas mudanças pelas quais o trabalho docente vem passando ao longo dos anos. O professor está inserido numa realidade onde também tem pouco controle sobre o que deve ser ensinado aos alunos e, diante desse quadro, as renormalizações frente às dificuldades tornam-se necessárias, significando mudanças para garantir posições mais confortáveis, mas também implicando escolhas que podem resultar em perdas e limitações à sua autonomia no exercício de sua atividade profissional. Para ela, a perda do reconhecimento profissional e pessoal do professor pode ser considerada como um importante fator de mal-estar para estes profissionais e enfatiza que a docência, nos dias atuais, tem sido exercida como um trabalho solitário em que o professor se encontra diante de uma tarefa imensa e sem ter com quem compartilhar suas dificuldades. A autora também destaca a síndrome de burnout como um tipo de transtorno mental relacionado às profissões que exigem cuidados para com o outro, tais como os profissionais da área de saúde, policiais, bombeiros, educadores e enfatiza que 20 Escola Plural: proposta político-pedagógica da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, baseada no direito à educação e na construção de uma escola inclusiva, a partir da implantação de novos parâmetros de avaliação, novas estratégias metodológicas e didáticas, da valorização dos saberes do aluno e do professor e de novas formas de se estabelecer relações entre o objeto e os sujeitos do conhecimento. O processo de implantação do Programa da Escola Plural se deu gradativamente no período de 1995 a 1997. 64 “nenhuma outra profissão se desgasta tão rapidamente como a categoria dos professores.” (PASCHOALINO, 2009, p. 68). Aranha e Cunha (2009), em posfácio à publicação de Paschoalino (2009) a respeito dessa investigação sobre o trabalho docente, também enfatizam a existência de contradições entre o idealismo da profissão e as condições concretas da realidade presentes no trabalho do professor, ressaltando que as soluções prescritas e previstas por especialistas que não se aproximaram do educador e de seu fazer são pouco eficazes para promover o desenvolvimento e a compreensão da atividade. Enfim, a partir da revisão bibliográfica que realizamos, identificamos uma prevalência de estudos voltados para o adoecimento do professor, com consequente escassez de pesquisas focalizando experiências bem-sucedidas em educação, que apresentem impactos positivos na saúde desse profissional. Não podemos negar a existência de um mal-estar docente, mas não podemos também ficar indiferentes às experiências de êxito e sucesso no trabalho do professor – que nem sempre encontram a mesma visibilidade quando comparadas aos casos de insatisfação e adoecimento desse profissional. Não desconhecemos as dificuldades concretas que permeiam a educação, mas, em muitas situações, os professores são capazes de se articular e criar coletivamente um projeto que viabiliza seu trabalho. Desse modo, interessa-nos compreender como o professor, mais do que resistir, consegue desenvolver renormalizações de seu fazer e de sua situação profissional, em meio a condições de trabalho sabidamente patogênicas. Além disso, as experiências bem-sucedidas também informam sobre o adoecimento, pois, conforme Canguilhem (1990, p. 149), “a doença não é uma variação da dimensão da saúde, ela é uma nova dimensão da vida”. Por esse motivo, pareceu-nos pertinente conhecer mais sobre as alternativas de realização do trabalho docente que contribuem para a manutenção da saúde do professor. Assim, consideramos importante avançar em nossas investigações buscando identificar os possíveis mediadores existentes entre as condições objetivas de exercício da profissão e a subjetividade do professor. Visando a compreensão de como essas dimensões encontram-se entrelaçadas, faremos uma breve reflexão a respeito do trabalho em docência e a sua importância no progresso das gerações. 65 Capítulo III 3 A Escola EMBRA A Escola Municipal Brasileira (EMBRA)21 foi fundada em 21 de julho de 1976, iniciando seu funcionamento em 1977. Está localizada no bairro Céu Azul, numa região que pertence à regional Venda Nova, periferia de Belo Horizonte. Sua área construída compreende 17 salas de aula, 1 sala para apresentação de vídeo, laboratório de informática, biblioteca, sala multiuso, almoxarifado administrativo e pedagógico, 2 salas da coordenação, sala de reprografia, sala da direção, secretaria, 6 banheiros, 2 vestiários, 3 quadras, 2 pátios e o teatro de arena. Como escola municipal, a EMBRA, está subordinada à Secretaria Municipal de Educação (SMED) de Belo Horizonte. A organização administrativa e pedagógica dessa instituição está pautada nos princípios que nortearam a implantação da Escola Plural22 e, em termos financeiros, ela se mantém com as subvenções da Prefeitura de Belo Horizonte e com verba do Governo Federal advinda do PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola). Atualmente, ela possui 1.180 alunos, distribuídos em três turnos: matutino, vespertino e noturno. O turno da manhã trabalha com alunos de 1º e 2º ciclos, o turno da tarde com 2º e 3º ciclos e o noturno com educação de jovens e adultos (EJA) e turma Projeto23 com o objetivo de alfabetização e certificação no ensino fundamental. A equipe de profissionais da EMBRA é composta de professores regentes, professores coordenadores pedagógicos e de turno, orientadores educacionais, supervisor pedagógico, profissionais da área administrativa (biblioteca e secretaria), bem como os funcionários responsáveis pela manutenção das instalações físicas da escola (copeiras, cozinheiras, vigias, auxiliares de serviços gerais). A administração da escola é realizada por uma diretora, uma vice-diretora e o colegiado com representantes 21 Preferimos omitir o verdadeiro nome da instituição de ensino para preservamos o sigilo das pessoas que ali trabalham e estudam. Desse modo, optamos por utilizar um nome fictício ao nos referirmos à escola. 22 Essas informações foram obtidas junto à direção e coordenação da escola. Atualmente, a SMED não mais utiliza a denominação Escola Plural para identificar as diretrizes utilizadas em educação, pois, por sua implantação ter se constituído em um processo dinâmico, as modificações e adequações ao longo do tempo se fizeram necessárias. 23 Composta por alunos com faixa etária entre 12 e 15 anos. 66 dos vários segmentos da instituição. Os professores regentes perfazem um total de 58 profissionais. Conforme o projeto pedagógico da atual gestão, o plano de trabalho da EMBRA visa construir um modelo educacional com o objetivo de promover a integração do ser humano, tornando possível a sua atuação competente, responsável e digna na sociedade. Para isso, busca uma gestão democrática e participativa, incentivando e valorizando a opinião de todos. Esse objetivo é perseguido pelo grupo de educadores por meio da promoção de reuniões coletivas para monitoramento do processo ensino-aprendizagem, bem como da organização dos tempos dos profissionais visando assegurar momentos para estudo, planejamento, trabalho em equipe e atendimento aos pais e alunos. Esses períodos se constituem em 4 horas semanais de trabalho do professor. A direção da escola considera importante facilitar a formação dos docentes em um contexto, no qual, novos saberes sejam produzidos em conjunto. A expectativa é por um novo tipo de profissional flexível, dinâmico e criativo. Pretende-se ainda a promoção de discussões com o coletivo de educadores sobre os resultados das avaliações sistêmicas tais como Prova Brasil, Provinha Brasil, Proalfa e Avalia BH24 para, desse modo, garantir a participação dos docentes no planejamento e execução dos gastos das verbas destinadas ao funcionamento da escola. É oportuno ainda ressaltarmos, aqui, que a EMBRA tem atingido resultados superiores às metas propostas pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB)25. Em 2009, a meta a ser alcançada era de 4.5 pontos para os alunos da 4ª série do ensino fundamental, mas o IDEB observado dessa escola foi de 5.3. Também ressaltamos que a elaboração do regimento interno dessa escola, cujo objetivo era esboçar os contornos de seu projeto pedagógico, mobilizou pais, funcionários, alunos e professores. Para isso, a direção da escola demandou a uma Consultoria em Políticas Públicas, no ano de 2000, o desenvolvimento de uma pesquisa 24 A Prova Brasil é um exame a nível nacional para avaliar as habilidades em língua portuguesa e matemática de estudantes das escolas públicas do ensino fundamental. A Provinha Brasil avalia o nível de alfabetização do 2º ano de escolarização das escolas públicas brasileiras. O PROALFA é o Programa de Avaliação da Alfabetização da Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais que tem o objetivo de verificar os níveis de alfabetização alcançados pelos alunos do 3º e 4º anos do ensino fundamental da rede pública. Avalia BH ou Avaliação do Conhecimento Aprendido é um instrumento da Prefeitura de Belo Horizonte utilizado para diagnóstico da Rede Municipal de Educação envolvendo alunos do final do 1º ciclo, todas as etapas do 2º e 3º ciclos e do 2º ao 8º ano do ensino regular noturno. 25 O IDEB é um indicador de qualidade educacional que combina informações de desempenho em exames padronizados, tais como a Prova Brasil, com informações sobre o rendimento escolar baseadas nos índices de aprovação dos estudantes do final das etapas de ensino (4ªs e 8ªs séries do ensino fundamental e 3ª série do ensino médio). 67 tendo por base a realização de um diagnóstico da escola com o objetivo de apontar os pontos de conflito entre os pressupostos do Projeto Escola Plural, os objetivos explicitados pela comunidade escolar e as práticas efetivamente desenvolvidas. Essa consultoria foi financiada com verba do PDDE após aprovação dos profissionais da escola e membros do Colegiado. Os principais aspectos apontados como problemáticos pela consultoria foram o desconhecimento e rejeição do sistema de avaliação adotado pela Escola Plural pelos alunos, pais e professores, revelando uma compreensão inadequada ou insuficiente a respeito das suas orientações. Alguns professores verbalizam que, no dia a dia do trabalho docente, o Projeto Escola Plural jamais se concretizou, não passando de prescrições e diretrizes ideais que vieram impostas pelo governo municipal. O trabalho do professor na EMBRA compreende algumas tarefas específicas que devem estar em conformidade com o regimento interno da escola. O professor é responsável por planejar e ministrar aulas, exercer atividades de coordenação pedagógica, atender às dificuldades de aprendizagem do aluno, participar da avaliação do rendimento escolar, participar de reuniões pedagógicas programadas pelo colegiado ou direção da escola, participar de cursos de aperfeiçoamento programado pela Secretaria Municipal de Educação (SMED), pela administração regional e pela escola, promover a participação e oferecer os esclarecimentos aos pais ou responsáveis pelos alunos sobre processo de aprendizagem, bem como elaborar e executar projetos de pesquisa sobre o ensino da Rede Municipal de Ensino (RME). Conforme as diretrizes da Escola Plural, o reconhecimento da experiência profissional e do saber do professor adquirido por meio de sua prática diária é fundamental como conteúdo do processo de sua formação. Desse modo, a jornada de trabalho para o cargo de professor municipal deve ser de 22horas e 30 minutos semanais26 de efetivo trabalho escolar. Sendo que 20% de sua jornada semanal devem ser destinadas à realização de atividades coletivas de planejamento e avaliação escolar, de acordo com as regras estabelecidas pela Secretaria Municipal de Educação (SMED). Esses tempos e espaços devem também ser considerados como efetivo trabalho escolar, pois há que se considerar como educação todo o processo de aprendizagem vivenciado por alunos e professores dentro e fora da escola. 26 Sendo 16 de regência, 4 horas destinadas ao planejamento e desenvolvimento de projetos, 2 horas e 30 minutos para o recreio. 68 A proporção de 1,5 professores por turma é um critério para definir o quadro de professores dessa escola. Além disso, a distribuição das turmas aos professores, a partir desse quantitativo, é de responsabilidade de seu coletivo. Essa proposta pressupõe que os profissionais da educação atuem como um todo, não sendo o professor responsável por uma única turma. Por meio dessa proposta, busca-se o rompimento com a lógica do trabalho individualizado, com a valorização de algumas disciplinas em relação às demais e com a dicotomia razão e emoção, corpo e cérebro, saber e poder. O projeto político-pedagógico da EMBRA apresenta como desafio que a escola incorpore em seu dia a dia a prática do trabalho coletivo, reconhecendo que alcançar o sucesso em equipe é mais fácil do que atingi-lo individualmente. Acredita-se com isso que esse seja um modelo humanizador. Mas foi aproximando-nos do trabalho dos professores, ouvindo seus relatos, observando a movimentação da escola, acompanhando algumas reuniões entre a direção e membros do corpo docente, observando o trabalho do professor em sala de aula, conhecendo os alunos, presenciando a algazarra das crianças no recreio, bem como participando de momentos de descontração na sala dos professores, que tivemos a visão do que realmente é o dia a dia do trabalho docente nessa escola. 3.1 O cotidiano na EMBRA A EMBRA possui um amplo espaço físico e apresenta-se em bom estado de conservação. Essa escola não tem enfrentado dificuldades relacionadas à falta de recursos financeiros para o desenvolvimento de seus projetos. O governo tem disponibilizado verbas suficientes para sua manutenção, não sendo esse o mais forte fator de insatisfação do professor em relação a seu trabalho, conforme afirmação da coordenadora pedagógica. As salas de aula são mobiliadas com carteiras, uma mesa para o professor e um armário onde os professores podem guardar materiais de uso frequente e algumas coleções de livros infantis compondo uma pequena biblioteca para utilização dos alunos. A mesa do professor fica posicionada do lado esquerdo da sala, defronte às carteiras que ficam dispostas em fileiras e ocupam quase totalmente o espaço físico da sala. As carteiras são pequenas e individuais. A clientela dessa escola compreende alunos de seis até quinze anos de idade e o mobiliário da EMBRA nem sempre garante 69 conforto para todos os alunos. Conforme declara a coordenadora pedagógica: “os alunos maiores não entram na carteira e os menores ficam em pé”. A escola também dispõe de equipamentos audiovisuais tais como televisores e aparelhos de reprodução de CDs e DVDs que podem ser utilizados pelo professor. A biblioteca está localizada nos fundos da construção. As estantes de livros e algumas mesas para uso dos alunos ocupam quase todo o seu espaço físico. Duas funcionárias cuidam do acervo, além de receber e orientar os alunos que desejam utilizar esse espaço para estudo. A sala de informática também está localizada na parte posterior da área construída. A sala é bem ampla com cerca de 30 computadores com acesso à internet. Um funcionário especializado em informática cuida da manutenção dos equipamentos. Há também uma pequena horta nos fundos do terreno sob os cuidados do zelador da escola. Apesar de estar localizada em uma área considerada perigosa pela coordenadora, observamos que os muros da escola encontram-se preservados e sem pichações. A instituição cresceu com o bairro e a comunidade a respeita e a preserva como um patrimônio de todos. Nos fins de semana, o espaço físico da escola, muitas vezes, é utilizado para eventos coletivos como festividades da comunidade, cursos ministrados pela instituição religiosa do bairro e para catequese. Aos fins de semana, as quadras também podem ser emprestadas aos alunos para a prática de esportes, mediante autorização da gestora. A direção procura escutar as sugestões, reclamações e elogios da comunidade, mas as decisões sobre a organização e funcionamento da escola partem sempre do colegiado e dos gestores da escola, não sendo aceitas interferências externas na sua administração. A direção da escola prefere adotar essa postura por considerar mais seguro para a preservação do patrimônio da instituição. As atividades na escola são iniciadas a partir das 7h da manhã. As crianças comparecem uniformizadas e, antes de serem encaminhadas pelos professores para a sala de aula, são reunidas na quadra de esportes para rezar junto com os coordenadores. O intervalo para o recreio é de 15 minutos e se inicia a partir de 9 horas. É a coordenadora quem aciona o sinal para o início e para o término do recreio. Durante esse espaço de tempo, a maioria dos docentes se reúne na sala dos professores para conversar e se alimentar. A funcionária responsável pelo refeitório leva uma quantidade da merenda escolar para a sala dos professores para que possam se servir. Também há 70 café e leite à sua disposição. Um grupo de professoras, entretanto, optou por um lanche mais leve. Diariamente, cada uma delas leva um tipo de alimento que considera mais saudável para partilhar com esse grupo: pão integral, frutas, cereais, dentre outros. O horário para recreio é um momento de descontração também para as docentes. Conversam sobre diversos assuntos, mas o cotidiano da escola e o seu trabalho na sala de aula são temas muito frequentes. Henrique, também coordenador de turno, observa os alunos durante o recreio para garantir que brinquem em segurança. Não é raro uma brincadeira se transformar em discussão entre algumas crianças que, em muitos casos, solicitam sua ajuda. Ele afirma que frequentemente tem que utilizar a intuição para conseguir lidar com as crianças e, desse modo, realizar o seu trabalho. 3.1.1 A coordenação pedagógica Nosso primeiro contato com a escola se deu por intermédio de Paula, que atualmente exerce a função de coordenadora pedagógica. Convidada a participar de nossa pesquisa, ela se mostrou disponível e logo combinamos a primeira visita ao seu local de trabalho que ocorreu em setembro de 2009. Paula trabalha nessa instituição há mais de 20 anos, mas está há quase 30 anos na carreira docente. Também exerceu função de professora, supervisora e diretora na EMBRA. Atualmente, além da coordenação, também assume, como regente, uma turma de Educação de Jovens e Adultos – EJA no turno da noite nessa mesma escola. Como coordenadora ela tem atribuições de organizar as reuniões de pais e professores, as reuniões dos conselhos de classe, os horários das atividades da escola quando há falta de professores, a substituição dos professores faltosos, além de elaborar os horários de utilização da biblioteca pelos alunos, articular com o corpo docente o remanejamento de alunos e a ambientação de novatos. Além disso, diariamente, ela recebe os alunos no início do turno, acompanhando-os também na saída da escola. Também fica atenta ao uso do uniforme pelos alunos, verifica os casos de alunos infrequentes ou que se atrasam, para comunicar às suas famílias. Paula sempre guarda em sua agenda alguns adesivos com motivos infantis que utiliza para presentear os alunos que têm bom comportamento. Percebemos que é muito respeitada pelas crianças. Numa situação em que precisou interferir no conflito entre 71 duas crianças durante o recreio, bastou que falasse que deveriam se dirigir à sua sala e esperar por ela, que os meninos a obedeceram prontamente. Sua sala é relativamente ampla, mas pouco iluminada. É mobiliada por uma mesinha com o computador, armários que guardam materiais pedagógicos e uma mesa para estudos. Há uma pequena saleta contígua à sua que os professores podem utilizar para aulas de reforço dos alunos mais fracos. Também é função da coordenadora auxiliar os professores em termos de garantir as condições materiais para que exerçam seu trabalho, bem como informar aos pais dos alunos sobre o desempenho de seus filhos. Espera-se também que ela seja promotora da articulação e integração das ações pedagógicas e didáticas desenvolvidas na escola. Na ausência de algum docente, sem que tenha sido possível realizar um planejamento prévio, muitas vezes, ela tem que assumir a regência da turma que está sem professor. Isso interfere na realização de seu trabalho, uma vez que este envolve muitas atribuições. “Então, eu não converso com os pais, não converso com a direção, não converso com o coordenador de turno. Além do mais, uma boa aula você também não dá porque cada hora você está numa turma.” (PAULA). Paula afirma que seu longo período na instituição favoreceu seu bom contato com a comunidade onde a escola está localizada. Seus antigos alunos, hoje, são os pais das crianças que estão matriculadas. Sente-se segura em seu ambiente de trabalho e percebe que a população dos bairros próximos também ajuda a preservar a escola. Se for necessário acompanhar algum aluno até sua casa, muitas vezes localizada em regiões consideradas perigosas, ela não tem receio de fazê-lo. Considera que a relação da escola com a comunidade é de “muito respeito, muito fraterna, de amizade, e acolhedora”. 3.1.2 A direção da escola Virgínia, diretora da EMBRA, trabalha em educação há 27 anos e está nessa escola há 21 anos. É responsável tanto pela gestão pedagógica quanto pela administração dos recursos financeiros, da estrutura operacional e pelo funcionamento geral da escola. Conta com o auxílio de uma vice-diretora, mas considera que o acúmulo de atribuições ao gestor escolar é muito desgastante. Gostaria de ter mais tempo para acompanhar de um modo mais próximo o processo de ensino-aprendizagem na escola, mas isso é dificultado pelas suas inúmeras atribuições. Frequentemente sua mesa está 72 repleta de relatórios, orçamentos, projetos, entre outros documentos da escola. Conta com a ajuda de uma funcionária que exerce a função de auxiliar de caixa escolar e com os serviços de um escritório de contabilidade, contratado pela Prefeitura, para cuidar da folha de pagamento dos funcionários. Mas é ela quem cuida da movimentação bancária e administra as contas e verbas da escola. Também deve acompanhar o funcionamento operacional da escola, a aplicação das avaliações externas sobre o desenvolvimento dos alunos, monitorar a execução do projeto pedagógico, promover reuniões com os professores e funcionários e conversar com os pais dos alunos quando necessário. Virgínia ingressou na EMBRA como professora, trazendo sua experiência de sete anos que obteve lecionando em uma escola estadual. Já exerceu a função de coordenadora de turno, de coordenadora pedagógica e também foi diretora em mandato anterior nessa escola. Com apenas cinco anos de exercício profissional na EMBRA foi convidada a se candidatar ao cargo de diretora. Eleita, permaneceu nessa função por 3 anos. Em 2007, um grupo de professores pediu que se candidatasse novamente. Então decidiu que só ficaria por dois anos na direção da escola. Entretanto, ao final desse período, o mesmo grupo solicitou que ficasse mais tempo e, atendendo aos pedidos do corpo docente, voltou a se candidatar. Afirma que gosta do que faz, se envolve muito em seu trabalho e considera que a principal função do diretor é acompanhar o processo de aprendizagem do aluno. Considera que, se tivesse mais tempo, gostaria de se dedicar mais à gestão pedagógica, sem se preocupar tanto com questões de ordem operacional. Ela diz sentir falta de exercer a regência de turma. Pretende voltar para sala de aula antes de se aposentar, mas os professores já têm se manifestado solicitando a sua permanência na direção. Para ela, os professores mais experientes são os que têm conseguido melhores resultados com os alunos quando comparados aos docentes novatos. Também avalia que a indisciplina e a falta de comprometimento de uma considerável parcela de alunos seja um dos principais motivos do desgaste mental de muitos professores. Na EMBRA, a direção é rigorosa quando se trata de garantir que o aluno respeite o professor e as regras de boa convivência em grupo. Quando os coordenadores não podem cuidar pessoalmente dos conflitos entre professor e aluno, a diretora faz questão de se inteirar do assunto para assumir um posicionamento coerente em relação ao fato 73 ocorrido. Procura auxiliar aos professores na resolução de problemas de indisciplina dos alunos. Com bastante frequência podemos encontrar crianças que são levadas à sua sala para conversar a respeito de suas atitudes não condizentes com o ambiente escolar. Fica claro que ela não admite que o professor seja desrespeitado pelos alunos ou mesmo por seus familiares. “Ou vai sair da escola ou vai consertar porque tem que ter limites. Tem pais também que não têm limites não... e nós colocamos isso para os pais também”, diz. Como gestora, Virgínia também se preocupa em garantir que o tempo de planejamento do professor seja respeitado, ou seja, ela providencia para que o período de 4 horas semanais, para desenvolvimento de projetos e atividades, seja preservado. Além disso, não permite que o docente passe mais de 16 horas na regência. Caso algum professor falte, não admite que outro docente utilize seu tempo de planejamento para cobrir a ausência do colega em sala de aula. Nessa situação, os alunos são distribuídos em outras turmas, ou, no último caso, o coordenador assume a turma que está sem professor. Eu não concordo com isso. Aqui, enquanto eu tiver na direção, nós não vamos tirar o tempo de projeto do professor, não. (...) Porque se a gente começa a abrir mão dos nossos direitos... Se eu como gestora começo a deixar que esses direitos vão se perdendo... O professor trabalha o dia inteiro; qual o momento que ele vai poder se sentar para fazer o seu planejamento, qual o momento ele vai poder se sentar comigo ou com o coordenador para conversamos sobre seu trabalho, se ele tem que ficar o tempo todo em sala de aula? Então, aqui a gente não deixa não. (VIRGÍNIA). A direção procura também convidar o grupo docente a participar do planejamento das ações pedagógicas e das decisões a respeito dos gastos de verbas disponibilizadas pelo governo. Acompanhamos reuniões entre direção e professores em que estes puderam sugerir como seriam utilizadas as verbas disponíveis para o desenvolvimento de projetos pedagógicos. As reuniões eram realizadas com todos os professores, em grupos de quatro, além da coordenadora pedagógica e a diretora. Acompanhamos uma das reuniões em que um grupo de professoras discutiu como deviam utilizar uma verba que a escola havia recebido. A Prefeitura havia disponibilizado um determinado valor para o desenvolvimento de atividades promotoras do processo de ensino-aprendizagem. A diretora achou estranha a quantia disponibilizada para a escola e consultou a Secretaria de Educação para se certificar se não haviam se equivocado em relação a isso. Ficou confirmado, entretanto, que esse montante era mesmo para a EMBRA. Uma das professoras presentes destacou que os 74 projetos desenvolvidos pela escola nos últimos anos tinham sido bem-sucedidos e talvez por esse motivo estivessem merecendo esse recurso para que pudessem dar continuidade ao trabalho. Durante esses encontros, a direção indagou sobre a necessidade de contratação de especialistas para a capacitação dos professores e solicitou que os professores sugerissem nomes de profissionais especializados para esse treinamento. Elas solicitaram o desenvolvimento de oficinas de ação pedagógica principalmente em português, matemática e ciências, argumentando que essas capacitações deveriam ser mais objetivas e que tinham interesse em aprender novas técnicas e práticas de ensino. Desse modo, os cursos de capacitação não deviam se restringir a discussões teóricas e todos concordaram que deveriam cobrar essa postura do especialista que seria contratado para o treinamento. O grupo de docentes também reivindicou a compra de novos livros para a biblioteca de sala de aula. Além disso, falou sobre as dificuldades que encontrava para executar seu trabalho, especialmente sobre os problemas de aprendizagem e a indisciplina de alguns alunos. Foi possível perceber que as crianças que apresentavam maiores problemas na escola eram velhas conhecidas do grupo de professores. Durante essa reunião também conversaram sobre os projetos que estavam desenvolvendo com seus alunos e sobre as excursões e passeios que realizariam durante semestre. Os locais a ser visitados poderiam ser escolhidos conforme o assunto que o professor estivesse trabalhando com sua turma, para ilustrar o conteúdo estudado. Foi sugerido que organizassem visitas a museus, ao zoológico, a empresas e associações de catadores de material reciclável. 3.1.3 A implantação da Escola Plural na EMBRA A implantação das propostas da Escola Plural significou grandes mudanças no cotidiano das escolas da RME-BH. Esse movimento levou as instituições educacionais do município a realizar uma discussão sistemática sobre os desafios de sua prática pedagógica considerando o contexto histórico, político e social em que estavam inseridas. O grupo docente da EMBRA procurou aderir às propostas da Escola Plural, mas foi necessário desenvolver estratégias específicas para que conseguissem trabalhar conforme as novas diretrizes. 75 Como diretora da escola, Virgínia reconhece pontos positivos na proposta da Escola Plural tais como a contratação de mais professores e funcionários. Também acha positiva a lógica de se trabalhar por ciclos, levando em consideração a idade do aluno. Mas ressalta que essa proposta deveria ter sido trabalhada em uma escola modelo para ser testada antes de sua implantação na rede de escolas do município. Em sua opinião, diversos equívocos foram cometidos com sérias consequências, pois muitos estudantes foram aprovados sem, na verdade, estarem devidamente capacitados. Não sendo permitida a reprovação do aluno que não conseguiu se desenvolver durante o ano letivo, esses estudantes saíam da escola sem saber ler e escrever corretamente. Conforme, Virgínia, isso fez com que a Escola Plural ficasse rotulada como aquela em que qualquer aluno passa. “E a realidade foi essa, aluno saindo no final do 3º ciclo sem ler e sem escrever. Chegamos ao ponto de um supermercado colocar uma placa: “Não aceitamos alunos de escola plural para trabalhar!”E a gente fica sem chão.” (VIRGÍNIA). Na prática, a proposta da escola plural nunca foi realmente implementada, conforme a opinião de algumas professoras da EMBRA. Estas preferiram continuar adotando as práticas pedagógicas da escola tradicional. A Escola Plural foi implantada gradativamente nas escolas da rede municipal de ensino de Belo Horizonte entre os anos de 1995 e 1997. O principal objetivo dessa proposta era implementar uma escola inclusiva, que respeitasse a diversidade cultural dos alunos. Essa proposta baseava-se numa construção coletiva de políticas educacionais que fossem mais democráticas e igualitárias. Mas a reorganização do trabalho docente foi elaborada a partir da uma apropriação do saber e das experiências do professor em sala de aula, sem que este participasse efetivamente dessa elaboração. Conforme o parecer de uma das professoras da EMBRA, a proposta da Escola Plural veio como uma imposição27 da Prefeitura, uma vez que foi criada por pessoas que não tinham a vivência da interação diária com os alunos em sala de aula. “Tem coisas 27 Conforme o Caderno 0 (zero) da Proposta Político-Pedagógica da RME, publicado em 1994, a Escola Plural foi elaborada a partir das experiências em docência, que muitas vezes tinham um caráter transgressor, ainda que legítimo. A proposta consistiu em “recolher ricos materiais existentes nas escolas e construir coletivamente uma proposta da rede municipal, assumida e garantida pelo Governo” (p. 10). Desse modo, buscou-se a construção de uma “direção mais coletiva” para legitimar “essa pluralidade de experiências” que foram, então, “assumidas como propostas de Governo”. Assim, ressaltamos que as afirmações dos docentes a respeito da Escola Plural foram fielmente transcritas no presente estudo, revelando seus conceitos e opiniões particulares. Em respeito à experiência do docente, não nos cabe questionar sobre a veracidade ou adequação de suas opiniões, pois consideramos que é o trabalhador quem mais sabe e tem a dizer sobre a sua atividade. 76 que são meio fora da realidade... de quem está na academia e não trabalha com um grupo grande de alunos e com as diferenças que a gente tem dentro de sala...”, declarou. Uma das principais inovações da Escola Plural diz respeito à reorganização dos tempos escolares na educação básica em três ciclos de três anos cada. O primeiro ciclo compreende os alunos com idades entre 6 e 9 anos. O segundo ciclo corresponde aos alunos que estão na faixa de idade de 9 até 12 anos e o terceiro ciclo diz respeito aos alunos que estão entre 12 e 15 anos de idade. Dentro desses ciclos de formação, considera-se que o aluno, estando junto com seus pares de idade, terá melhores oportunidades de alcançar uma formação social mais equilibrada. O objetivo é que o estudante, além da aquisição do conhecimento, tenha possibilidades de realizar com seus colegas trocas de experiências, de valores, de representações, de identidades de gênero, de classe social e de etnia, como indica a proposta político-pedagógica da Escola Plural. A proposta da Escola Plural também inclui um processo de acompanhamento do desenvolvimento do aluno que deve ser constante dentro de cada ciclo de formação de modo que as dificuldades de aprendizagem possam ser percebidas e trabalhadas dentro de cada ciclo. Desse modo, o aluno deve continuar com o mesmo grupo de idade sem repetências e ficará retido ao final de cada ciclo, no caso de não conseguir um desenvolvimento equilibrado em todas as dimensões da formação ou por frequência insuficiente às aulas. A retenção ou permanência do aluno no ciclo de idade deve ser considerada como uma situação excepcional. Essa decisão não depende apenas da determinação de um professor. O parecer final sobre a necessidade de retenção do aluno deve ser uma decisão de toda a equipe de trabalho da escola. Quando se trata de estabelecer critérios sobre a reprovação de um aluno, uma das professoras da EMBRA comenta que, conforme a proposta da Escola Plural, o professor que acompanha a turma tem o poder de decisão limitado. Para ela, a direção das escolas, de um modo geral, não tem interesse na retenção do aluno, mesmo nos casos mais necessários, pois para que a escola atinja uma pontuação satisfatória no IDEB, não é bom que haja um número grande de retenções. Às vezes, a gente quer bancar, mas, às vezes, você é pressionado pela regional, pelas acompanhantes da regional, pela direção – dependendo da direção - porque não pode ter muita retenção. Então, não temos muita autonomia para reter não. (PROFESSORA). 77 Para a direção da EMBRA, as mudanças implementadas pela Escola plural em relação à retenção dos alunos foi um ponto negativo, pois o aluno, muitas vezes, é aprovado sem maturidade intelectual. Mesmo não se comprometendo com as atividades propostas pelo professor, o aluno deverá prosseguir juntamente com sua turma, pois não pode ficar distante dos colegas de mesma faixa etária. Conforme a opinião dos professores e da direção dessa escola, essa medida provoca o desinteresse do estudante, pois estando comprometido ou não, sendo responsável ou não, estudando e conseguindo um bom conceito ou não, será aprovado. A implantação das propostas da Escola Plural nas escolas da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte mobilizou os esforços da direção da EMBRA no sentido de contratar uma consultoria em políticas públicas com o objetivo de diagnosticar as impressões da comunidade escolar sobre as diretrizes da Escola Plural e auxiliar na construção do projeto político-pedagógico e do currículo da escola. Isso ocorreu no ano 2000, cinco anos depois que havia iniciado o processo de implantação da Escola Plural na rede de escolas de Belo Horizonte. Mesmo cabendo a cada unidade escolar elaborar sua proposta curricular, a Secretaria Municipal de Educação apresentou uma referência curricular para toda a rede, que deveria nortear a elaboração do currículo de cada escola. Além disso, a partir de 2004, passou a exigir a descrição do projeto político-pedagógico como documentação obrigatória para aprovação das propostas de trabalho de todas as escolas da rede de ensino. A direção e o corpo docente da EMBRA decidiram que seria importante a contratação de uma empresa de consultoria em políticas públicas para nortear os primeiros trabalhos da construção do projeto pedagógico da escola. A utilização da verba advinda do Plano Dinheiro Direto na Escola (PDDE) do governo federal foi utilizada para esse investimento, após concordância de todos os professores. Essa pesquisa se iniciou em fevereiro de 2000 e a coleta das informações se deu a partir da aplicação de 264 questionários direcionados às famílias e 257 questionários direcionados aos alunos. Também foram realizados encontros técnicos com professores da escola para propor uma discussão sobre o desenvolvimento da pesquisa, coletar suas impressões sobre a implantação da Proposta da Escola Plural na EMBRA e aprofundar a compreensão do grupo docente a respeito dos conceitos norteadores da Escola Plural. 78 O principal problema diagnosticado a partir dessa pesquisa foi o desconhecimento e a rejeição ao sistema de avaliação adotado pela nova proposta, tanto pelos alunos e seus pais, quanto pelos professores. Na ocasião dessa pesquisa, os principais instrumentos de avaliação utilizados na escola ainda eram as provas. Isso revelou a existência de uma contradição no modelo pedagógico da escola em relação à proposta da Escola Plural, uma vez que as provas eram consideradas como métodos tradicionais. Os pais dos alunos demonstraram ser o grupo mais insatisfeito em relação ao novo sistema de avaliação. Para 40% dos responsáveis pelas crianças, a proposta foi considerada como péssima ou ruim, porque compreendiam que os alunos, na nova proposta pedagógica, eram aprovados, muitas vezes, sem estarem devidamente preparados e sem que a escola tenha conseguido motivá-los para o estudo. Além disso, conforme os resultados da pesquisa, para 87% dos familiares, o rendimento do aluno não melhorou após a implantação da Escola Plural. Conforme o parecer dessa pesquisa, o modelo pedagógico da EMBRA estava muito pautado em práticas tradicionais e por esse motivo, proporcionava poucas situações de aprendizagem para além dos conteúdos clássicos. Mesmo com a implantação da Escola Plural, alguns professores da EMBRA revelaram que continuaram utilizando métodos da escola tradicional na execução de seu trabalho em sala de aula, pois verificaram que a realidade diária mostrava que seria necessário fazer alguns ajustes a partir da nova proposta político-pedagógica, para que conseguissem atingir resultados satisfatórios com os alunos. A atual diretora da EMBRA, comentando sobre a implantação das diretrizes da Escola Plural, ressaltou “[...] o que a gente viu que foi pior na Escola Plural... Primeiro é que a nossa escola ainda continuou no tradicional. Porque toda instituição tem que ser avaliada para melhorar, avaliação é para nortear mesmo o nosso trabalho”. A atual coordenadora pedagógica da escola e que na ocasião da referida pesquisa ocupava o cargo de diretora na EMBRA afirma que, com a implantação da Escola Plural, percebeu-se uma tensão entre o corpo docente da escola, que se traduziu em certo desequilíbrio entre a utilização dos procedimentos tradicionais e os métodos inovadores. Em 2003, os profissionais dos três turnos da EMBRA voltaram a discutir se ocorreram mudanças significativas em relação à utilização dos métodos da escola tradicional e concluíram que as principais dificuldades da comunidade escolar em 79 relação às propostas da Escola Plural continuavam presentes no cotidiano da escola. Em abril de 2004, os professores da EMBRA apresentaram suas sugestões para diminuir esses conflitos tais como a ênfase no trabalho com esportes, o uso frequente da biblioteca, a reativação do laboratório de ciências, a retomada dos cursos de capacitação dos docentes em forma de oficinas e a elaboração coletiva do projeto políticopedagógico da escola, uma vez que se tratava de uma exigência da Secretaria Municipal e Educação. No projeto pedagógico da Escola Plural, a organização das aulas e atividades deve ser discutida e planejada por um conjunto de profissionais que trabalham com um grupo de alunos, mas a figura do professor referência da turma é fundamental, pois é com ele que o aluno poderá estabelecer maiores vínculos. Atualmente, na EMBRA, as turmas são acompanhadas por uma professora durante todo o ano letivo, e além dela, pela professora de educação física e pela professora de espaço e formas, disciplina que trabalha os aspectos ligados à geometria espacial, promovendo também a formação do aluno em educação artística. Na proposta plural de educação, o currículo deve ser construído a partir da definição coletiva dos temas da atualidade perpassando as disciplinas tradicionais e não paralelos a elas, havendo uma integração entre temas que dizem respeito à relação com o meio ambiente, a diversidade cultural, à sexualidade, ao mercado de consumo e as disciplinas curriculares – língua portuguesa, matemática, ciências, história, artes e educação física. A adição dos temas atuais ao conteúdo do currículo proporciona, conforme o projeto da Escola Plural, que as disciplinas estejam relacionadas com a realidade contemporânea, agregando a elas um valor social. Desse modo, o processo de ensino-aprendizagem visa à formação do aluno a partir de seus sistemas de valores. Conforme a proposta da Rede Municipal de Ensino (RME) de Belo Horizonte, os alunos quando entram na escola já trazem hipóteses explicativas e concepções sobre o mundo que conhece. Desse modo, o conhecimento deve ser produzido coletivamente, na interação entre alunos, suas famílias e professores, considerando a experiência vivida e a produção cultural de toda a comunidade escolar e dando significado às aprendizagens construídas. O trabalho do professor não deve ficar restrito a apenas repassar os conteúdos prontos. É preciso que o professor considere, em o todo processo de ensinoaprendizagem, a prática social dos sujeitos nele envolvidos, pois ele não se resume a 80 uma atividade puramente intelectual. O trabalho do professor por depender da interação e convivência com o aluno, não permite que o docente fique alheio aos problemas pessoais da criança, para se dedicar apenas ao ensino das disciplinas curriculares. A coordenadora pedagógica da EMBRA nos explica essa dimensão do trabalho docente: Então, na escola, o professor hoje gasta muito tempo conversando, muito tempo vendo postura, a atitude que o menino tem na escola. Ele não vai à escola só para aprender. Ele vai para merendar, ter inserção social, ele vai pra fugir de trabalhos de casa. Então, é complicado... Num dia, o professor perde tempo de toda hora estar parando a aula, toda hora estar conversando. É um desgaste enorme para ele e para a turma também. (COORDENADORA PEDAGÓGICA) Os temas da atualidade assim como os hábitos adequados de convivência em grupo são trabalhados na EMBRA por meio de recursos como música, dança, poesia e teatro a partir da proposta de um grupo teatral que foi criado em 1999 e persiste até hoje. Considerando que o processo educativo envolve muitas dimensões do desenvolvimento humano, a escola ao invés de tratar assuntos como violência, miséria, drogas, exclusão social apenas por meio de palestras, prefere abordá-los por meio de textos teatrais construídos, na maioria das vezes, na própria escola. A professora de português, por exemplo, desenvolve com as crianças dramatizações que facilitam a aprendizagem a partir do desenvolvimento da oralidade no aluno. O grupo teatral da escola é constituído por alunos dos três turnos e por membros da comunidade como figurantes. Ela trabalha na educação há mais de 30 anos e além lecionar no ensino fundamental no turno da manhã é também professora referência de uma turma de adolescentes no turno da noite. 3.1.4 A sala de aula Tivemos a oportunidade de realizar observações do trabalho de duas professoras do 1º ciclo: Cristina e Marta28. Como já esperávamos, os alunos não ficaram indiferentes à nossa presença. Eles fizeram muitas perguntas, mas foram receptivos e carinhosos. Cristina preferiu acompanhar essa turma por dois anos. Iniciou o trabalho de alfabetização das crianças no ano de 2009, prosseguindo em 2010 com os mesmos alunos. As crianças estão na faixa etária que compreende as idades de 7 e 8 anos. 28 Nomes fictícios. 81 No início do ano, observou que a turma era muito heterogênea e, por isso, definiu que os alunos que tivessem mais facilidade para aprender ficariam sentados de um lado da sala de aula enquanto os alunos com dificuldades sentariam numa determinada fileira de carteiras. Esses alunos que precisavam de mais assistência também recebiam aula de reforço de outra professora que os acompanhava durante uma hora por dia. No decorrer do segundo ano, essa divisão em grupos de alunos foi dissolvida, pois aqueles que receberam as aulas de reforço já conseguiam acompanhar os mais avançados. As crianças mais evoluídas em relação ao aprendizado do conteúdo ajudavam os que apresentam dificuldades nas atividades em sala de aula, enquanto Cristina trabalha com um deles em sua própria mesa. As crianças pedem permissão à professora para ajudar os colegas que têm dúvidas e, enquanto trabalham, a professora costuma corrigir os exercícios daqueles que vão terminando primeiramente, pois prefere não deixar pendências para levar para casa. Sua atividade exige que se movimente por toda sala. A professora tem que falar com as crianças o tempo todo e estar atenta à movimentação de todos. Alguns alunos são mais inquietos e se levantam da carteira com frequência. Cristina tem que estar preparada para mudar a estratégia de abordagem das crianças mediante qualquer imprevisto, sendo capaz de tomar decisões rapidamente. É preciso ser paciente e, ao mesmo tempo, conseguir impor sua autoridade como professora para estabelecer limites e regras de boa convivência entre os alunos. As paredes da sala de aula são decoradas com recursos que auxiliam o trabalho da professora: cartazes com a sequência numérica de zero a cem, o alfabeto, as estações do ano, além de figuras decorativas que dizem respeito ao universo infantil. A atividade em sala de aula, além de exigir investimento intelectual por parte do docente, parece ser também bastante desgastante fisicamente: são muitas crianças na sala de aula falando, se movimentando e solicitando sua intervenção o tempo todo. Os alunos são diferentes entre si – alguns mais extrovertidos, outros menos falantes; alguns mais indisciplinados outros mais afetuosos – como é de se esperar, mas, de um modo geral, demonstram gostar da professora e valorizar-lhe a presença em sala de aula. Conhecemos também a turma de Marta que é composta por alunos do 3º ano do 1º ciclo e que estão com essa professora desde o 2º ano. São crianças que estão na faixa de 8 a 9 anos de idade. Como em todo grupo de alunos do último ano do 3º ciclo, 82 aqueles que não conseguissem atingir uma apreensão adequada dos conteúdos ensinados, estariam sujeitos à retenção. Durante suas aulas, a professora procurou desenvolver atividades que despertassem o interesse e a curiosidade dos alunos e premiava aqueles que se sobressaíssem com presentes simples, mas que agradam às crianças. Os critérios adotados para escolher os alunos que ganhavam as lembrancinhas eram discutidos com todos os alunos em sala de aula. Os merecedores eram eleitos pelos próprios colegas. No momento da premiação, a professora aproveitava para discutir cada critério que estabelecido: fazer as atividades dentro do prazo, respeitar aos colegas e aos professores, manter o caderno organizado, não esquecer o material escolar com frequência e fazer os deveres de casa. Ela procurava envolver todos os alunos nessa atividade e conscientizá-los da importância de serem responsáveis e comprometidos. Prefere reforçar o bom comportamento do aluno por meio da premiação e de elogios do que de adotar a punição com o objetivo de suprimir comportamentos inadequados. Esforçava-se para que os alunos compreendessem os motivos pelos quais agia assim e, quando achava necessário, suspendia a exposição do conteúdo da disciplina para conversar com eles. A professora também estava preparando uma atividade para ser realizada fora da sala de aula. Desse modo, ela fotografou alguns locais dentro da própria escola para que os alunos, em grupo de quatro, pudessem sair à procura do que se apresentava na foto. As crianças estavam muito curiosas sobre como e quando seria a atividade que estava preparando. Mas ela teve cuidado de preservar a surpresa, pois sabia que isso mobilizava a atenção dos alunos para a atividade. Teve cuidado de não colocar no mesmo grupo duas crianças que apresentassem um comportamento de liderança, para que não houvesse desentendimentos. E a partir dessa atividade trabalhou com os alunos o desenvolvimento do vocabulário. Marta também aproveitava tudo que acontecia no dia a dia da escola para auxiliar no seu trabalho. Logo que havia terminado de ensinar o processo da metamorfose dos insetos, os alunos encontraram um casulo de borboleta entre as cortinas da sala de aula e essa coincidência foi aproveitada para exemplificar aquilo que havia ensinado. Segundo ela, quando consegue fazer uma ligação entre o que está ensinando e os fatos que ocorrem no dia a dia, os alunos têm mais chances de memorizar e “levam o que aprenderam por toda vida”. 83 Ela se sente livre para tomar decisões a respeito de como conduzir as atividades e partilha com seus colegas de trabalho as atividades que desenvolve em sala de aula. Afirma que, na EMBRA, sempre teve liberdade para trabalhar de acordo com aquilo que sua experiência cotidiana ia lhe apresentando. Sempre procurava seguir o que estava proposto no currículo conforme as diretrizes da educação, mas a forma como expunha os conteúdos era apenas sua. Sobre o seu trabalho na EMBRA, ela comenta que A escola que te deixa livre... eu acho que o trabalho rende mais, sabe por quê? Não tem competição de mostrar para a coordenadora. Você não tem que provar nada para ninguém. [...] Porque é a turma que me mostra como tem que ser. A temperatura é da turma. (MARTA). Juntamente com os professores das quatro turmas de alfabetização da EMBRA, ela desenvolveu um projeto de referência para trabalhar com os alunos. Poderia não ter seguido essa direção, mas considerou que seria uma proposta interessante e que agradaria aos alunos, facilitando o seu trabalho. Apesar de esse projeto ter sido planejado em grupo, ela teve autonomia própria para desenvolver os conteúdos em sala de aula como preferia e conforme percebia o desenvolvimento dos alunos. Eu gosto de ter um projeto que eu chamo de carro chefe. É um projeto que eu tenho que desenvolver o ano inteiro. Eu trabalho todos os conteúdos, mas vira e mexe eu vou naquele projeto porque daquilo eu puxo muita coisa. (...) Nós, professores das quatro turmas de alfabetização, fizemos a proposta de trabalhar esse projeto. Então, cada um trazia uma sugestão. No primeiro ano, foi a turma do Maurício de Souza: Cebolinha, Cascão... e tinha uma mascote de cada turma. No ano seguinte, uma professora falou: “Gente, vamos fazer um projeto de alguma coisa diferente?” Mais madura, com um tema mais de acordo com a idade. Aí, foi a turma do Sítio do Pica Pau Amarelo e todo mundo concordou. Não era obrigatório seguir, mas ficava chato todo mundo ter uma mascote e uma turma não ter. Aí, nós escolhemos as mascotes, teve um sorteio, teve o dia da apresentação da turma do Sítio e as atividades foram surgindo (MARTA). 3.1.5 Outras considerações sobre a escola Como pudemos perceber em nosso estudo, a gestão da EMBRA se caracteriza por contar com a participação do corpo docente nas decisões sobre o planejamento das ações que dizem respeito à promoção do bom funcionamento da escola e dos gastos das verbas destinadas ao desenvolvimento de seus projetos. Alguns deles podem ser destacados aqui. O Projeto Papo Legal desenvolvido a partir de 2002 se caracterizou pelo envio de textos sobre diversos assuntos relacionados ao dia a dia da educação na EMBRA aos pais e responsáveis pelos alunos, visando à 84 integração de toda a comunidade escolar e convidando-a a participar efetivamente na educação dos estudantes. Também merece destaque o Projeto Convivência que já estava sendo desenvolvido há três anos quando incluiu a prática do Tae-kwon-do, no segundo semestre de 2002, como parte da rotina da escola, sendo realizada duas vezes por semana. A direção da EMBRA por meio do incentivo ao esporte procurou viabilizar o trabalho com os alunos a respeito de temas relacionados aos valores, atitudes e responsabilidades necessárias ao convívio em sociedade. Além disso, essa ação foi utilizada como uma ferramenta pedagógica para garantir, na prática, o trabalho com os princípios que, conforme a Escola Plural, devem orientar as ações em educação: afetividade, solidariedade, racionalidade, respeito mútuo, justiça, diálogo, tolerância, dentre outros. O Projeto Oficinas Pedagógicas do Ensino Noturno foi desenvolvido na EMBRA, em 2006, com o objetivo de trabalhar temas de interesse da comunidade escolar, bem como desenvolver as capacidades dos alunos por meio do reforço dos conteúdos curriculares nos quais eles estavam apresentando dificuldades de aprendizagem, tais como as oficinas de escrita, leitura, matemática do cotidiano e língua estrangeira. Com esse projeto, a EMBRA proporcionou uma ampliação dos espaços de discussão e diálogo entre alunos e professores. Cada professor teve possibilidade de escolher, segundo seus interesses e habilidades, a oficina que desejava coordenar, assim como lhe foi dado autonomia para elaborar a sua forma de organização. Buscando a inclusão e manutenção do aluno no espaço escolar, alguns trabalhos também podiam contar com a parceria dos próprios estudantes que, por demonstrarem habilidades em determinadas áreas como culinária, artesanato, música, dança, informática, dentre outras, ajudavam ao professor na orientação dos colegas. Também é merecedora de destaque a iniciativa de realizar a pesquisa por meio da consultoria de políticas públicas para diagnosticar os pontos de conflito entre os pressupostos da Escola Plural e as práticas efetivamente desenvolvidas na escola. Essa ação revelou o compromisso profissional da EMBRA com a integração entre todos os membros da escola, visando elaborar o seu projeto pedagógico em conformidade com as diretrizes plurais, mas levando em conta os saberes construídos no dia a dia do trabalho docente. 85 Da mesma forma, a possibilidade de participação do professor na elaboração dos projetos da escola propicia um maior entrosamento do grupo e reforça a sua coesão. Na EMBRA, o professor tem autonomia para desenvolver sua atividade em sala de aula, mas não significa que esteja realizando o seu trabalho isoladamente. Ao contrário, sentindo-se parte do corpo docente da escola ele tem maior possibilidade de trocar experiências com seus colegas. A sala dos professores é efetivamente um espaço de convivência na EMBRA, ou seja, trata-se do local onde fica evidente o bom relacionamento do grupo de profissionais. Além disso, os comentários de alguns professores confirmam a nossa impressão. Logo no primeiro dia em que iniciávamos as visitas à escola e mesmo antes de explicitarmos os objetivos de nossa pesquisa, tivemos a oportunidade de ouvir o seguinte comentário de uma professora que há sete anos havia sido transferida para trabalhar na EMBRA: “Eu tive muita sorte de vir para cá. A escola é muito boa!”. O grupo de professores na EMBRA, a direção e a coordenação enfrentam juntos as dificuldades encontradas no dia a dia de seu trabalho. Procuram se auxiliar uns aos outros na realização das tarefas propostas de tal modo que ninguém fique submetido a uma sobrecarga de trabalho, conforme explica a coordenadora da escola: Tem a ver também com a equipe que eu trabalho no cargo da coordenação – é uma coisa de cada vez – ou passa para outro ou deixa sem fazer. [...] Então, para mim ela é uma escola prazerosa onde as pessoas me respeitam também e está dentro dos princípios que eu tenho, não é? Do respeito, da tolerância, da seriedade do trabalho. Então, para mim, é uma escola tranquila de trabalhar e a minha relação é tranquila. A minha relação com todos é muito legal também. [...] Então tem o trabalho da equipe, do grupo. Mesmo que eu tenha dificuldades, o planejamento é feito em conjunto, então, já facilita muito para o professor também (COORDENADORA). A valorização do trabalho do professor pela direção da escola é evidente e pode ser observada nas ações visando garantir que os alunos, seus familiares e mesmo a Secretaria Municipal de Educação respeitem os direitos dos professores. Antes de se sentir como diretora da EMBRA, sente-se como professora e, por esse motivo, tem a exata medida do que são os desafios da docência e essa postura também contribui para que as relações de trabalho nessa escola sejam bem-sucedidas. 86 Capítulo IV 4 Caso clínico 4.1 A história de Cristina Cristina é professora do 1º ciclo na EMBRA há 10 anos, entretanto, exerce essa profissão desde seus 18 anos de idade. É casada e mãe de três filhos. Nosso primeiro contato ocorreu em setembro de 2009, na sala dos professores, em uma reunião informal durante o recreio, ocasião em que um grupo de professores conversava informalmente. Durante as visitas com o objetivo de observar o cotidiano da escola, tivemos a oportunidade de conhecer e conversar com os docentes, especialmente durante o recreio, quando se reuniam na sala dos professores. Em uma dessas ocasiões, Cristina comentava com as colegas sobre as dificuldades que vivia no dia a dia de seu trabalho, mas, ao mesmo tempo, mostrava-se entusiasmada, sugerindo atividades e dividindo seu material com as colegas de profissão. Consideramos pertinente conhecer sua trajetória profissional de forma aprofundada, uma vez que tinha uma longa experiência de trabalho na docência, além disso, tanto a coordenadora pedagógica como outras professoras já haviam comentado sobre sua disponibilidade para trazer e trocar materiais interessantes com as colegas. Desse modo, expusemos-lhe nossos objetivos e lhe perguntamos se aceitaria nos relatar sua história. Ela prontamente concordou em nos conceder as entrevistas nos dias e horários em que reservava para o desenvolvimento de projetos. As entrevistas foram realizadas na própria escola, em uma saleta próxima à sala da coordenação. É interessante destacar que essa professora iniciou a descrição de suas experiências comentando que, em sua opinião, as histórias bem-sucedidas na docência também merecem ser estudadas e divulgadas, ou seja, desde o início, ela deixou claro que considera sua história um sucesso. 4.1.1 O início da carreira profissional Cristina sempre trabalhou como professora. Formou-se no magistério pelo Instituto de Educação em Belo Horizonte e mais tarde cursou Pedagogia na mesma 87 instituição. Iniciou sua carreira docente aos dezoito anos de idade, trabalhando inicialmente em uma escola estadual como professora contratada para um curso préescolar de férias. Isso foi possível por indicação de sua irmã – que também era professora. Sentia-se insegura por ainda não ter experiência e, desse modo, achou difícil o seu início na carreira docente. Em sua família existem tias e três irmãs professoras, mas Cristina não considera que tenha sido influenciada por elas em sua escolha profissional. Pertencendo a uma família humilde, originária de uma região agrícola no interior de Minas Gerais, julga que este tenha sido o principal motivo que levou sua mãe a desejar que seus filhos estudassem e tivessem um futuro promissor. Entretanto, ela se lembra especialmente de uma professora de sua infância, que quando levava os alunos para passear na cidade fazia questão de apresentá-la como uma aluna exemplar. Tem uma professora, que nunca mais vi: a D. Josefina. Como a gente era da roça, aquela “roça” mesmo... Quando a gente ia passear na cidade... eu era ótima aluna, um destaque...muito tímida, mas um destaque positivo. Então eu me lembro dela me apresentando... Ela me levou numa sala e mostrou como eu sabia os fatos todos e eu era menina da roça. Eu me lembro disso, ela me apresentando como destaque no colégio. Quando crianças, Cristina e seus irmãos, moravam na zona rural de uma cidade do interior de Minas Gerais. Era necessário percorrer uma longa distância a pé ou a cavalo para ir à escola. Muitas vezes, ela trocava a merenda que sua mãe preparava em casa pelas merendas das crianças da cidade. Levava também frutas para seus colegas e, por esse motivo, conseguia ser popular entre eles. Juntamente com seus irmãos, muitas vezes, vendia laranjas e biscoitos feitos por sua mãe para ajudar nas despesas de casa. Apesar das dificuldades, sente saudades de sua infância, embora prefira a vida que leva atualmente. Cristina sempre procurou cumprir bem aquilo a que se propunha. Considera que sua trajetória como estudante foi bem-sucedida, pois acha que soube aproveitar as oportunidades que seus pais lhe proporcionaram. Orgulha-se de ter sido boa aluna e de ter sido reconhecida nas escolas onde estudou, por esse motivo. Ser reconhecida por sua capacidade e inteligência compensava o fato de ser uma criança de origem humilde, perante seus colegas. Ressalta que nunca foi destaque nos desfiles de Sete de Setembro por ter sido uma criança tímida. Além disso, a sua família não tinha condições financeiras suficientes para providenciar as roupas típicas das festividades. Desse modo, 88 empenhava-se para se destacar na escola, com os recursos que dispunha, obtendo bons resultados na aprendizagem. Sua mãe sempre incentivou aos filhos para que estudassem e progredissem na vida profissional. Morando em zona rural, onde ainda não havia chegado iluminação elétrica, Cristina e seus irmãos faziam os deveres de casa sob a luz de lamparina. Mais tarde, seu pai comprou um lampião a gás para facilitar e sua mãe sempre se preocupava em garantir que os filhos frequentassem a escola uniformizados e limpos. Já morando na Capital, logo que se formou no Magistério, começou a trabalhar no período da tarde enquanto cursava Pedagogia pela manhã. Tentou o concurso para ser professora na Prefeitura de Belo Horizonte e foi aprovada. Sempre faz questão de ressaltar para seus filhos que, além do concurso da Prefeitura, foi também aprovada no vestibular, na primeira tentativa. Em sua carreira docente, durante cinco anos e antes de se casar, trabalhava nos três turnos. Foi professora de um curso de magistério aos 21 anos de idade, sendo mais jovem que algumas de suas alunas. Em uma ocasião, estava no corredor em frente à porta de entrada da sala onde iria ministrar uma aula quando foi repreendida pelo disciplinário da escola que pensou ser ela uma aluna que se ausentava da aula. Também trabalhou como educadora em uma Unidade Municipal de Educação Infantil (UMEI) e mais tarde, com adolescentes de 4ª e 5ª séries. Quando ingressou na escola da Prefeitura foi designada para ministrar os cursos de educação física e educação artística. Não tendo escolha, por ser novata na escola, procurou se aperfeiçoar para conseguir desempenhar bem suas atividades em sala de aula. Enfatiza que os professores novatos não têm possibilidade de escolher a turma com a qual vão trabalhar e têm que aceitar a turma que lhes é atribuída. Ela se sente gratificada quando encontra algum de seus antigos alunos, já adolescente, e que a reconhece como uma de suas primeiras professoras. Revela ter sido uma profissional mais retraída no início da carreira devido à sua origem humilde e interiorana. Disse que se sentia muito insegura. Entretanto, a partir da experiência que foi adquirindo no dia a dia da docência, foi se sentindo mais confiante e acreditando na sua capacidade. Na época da graduação, relata que foi elogiada diante de sua turma de faculdade, por uma professora considerada muito rigorosa. Ela destaca esse fato como um marco em sua trajetória de vida, pois, desde então, passou a confiar mais na própria 89 capacidade: “Cada vez que você vai alcançando resultados positivos, você tem que acreditar que você é capaz mesmo. Então, você vai procurar fazer mais e mais.” 4.1.2 A reação diante da Escola Plural Cristina comenta que gosta de seu trabalho. Entretanto, considera que em uma determinada época de sua trajetória profissional não conseguiu realizar bem suas atividades, fracassando na alfabetização de seus alunos. Ainda hoje ela se lembra do nome das crianças dessa turma porque se sentiu responsável pelo fato de não terem conseguido bons resultados. Isso ocorreu na época da implementação das idéias construtivistas29 nas escolas municipais, quando Cristina tentou seguir essas tendências e utilizar a metodologia sugerida para realizar o seu trabalho de alfabetizar as crianças. Durante o primeiro ano da implantação da Escola Plural, tentou seguir as prescrições dessa nova proposta, mas como percebeu que não estava conseguindo os resultados esperados, preferiu retomar o estilo tradicional de ensinar, passando a se guiar pela sua experiência e fazer aquilo em que acreditava. Ainda hoje se arrepende de não ter confiado mais na sua experiência durante esse período, julgando ter prejudicado a turma da qual era regente. Como se recusou a obedecer às novas diretrizes, foi rotulada de conteudista e tradicionalista por alguns colegas, mas optou por utilizar o modelo que julgava mais eficiente e que já dominava. Sua própria experiência e percepção lhe mostraram que aqueles inovadores modelos pedagógicos vinham prontos para ser executados sem levar em conta o dia a dia do professor e da clientela. Procurou, então, seguir as novas tendências, mas sem abandonar por completo as formas tradicionais de ensinar. A sua disposição para enfrentar críticas e apostar no seu próprio conhecimento foi resultante do seu comprometimento com o trabalho. Preferiu não cumprir cegamente todas as prescrições do novo modelo pedagógico que estava sendo proposto e percebeu que, 29 O Construtivismo é uma corrente teórica que considera o desenvolvimento intelectual humano a partir das ações mútuas entre indivíduo e meio. Como corrente pedagógica contemporânea, concebe que a educação deve ser um processo de construção do conhecimento baseado na complementaridade dos saberes de professores e alunos, levando em conta o contexto social atual e todo o acervo cultural já construído pelo homem. Conforme a proposta da Escola Plural, a educação deve ser construída a partir dos saberes e da participação dos sujeitos que a exercitam, seja como educando ou como educador. Considera também a escola como espaço de vivência cultural e de experiência de produção coletiva. Veja mais em Becker F.(1992), F. O que é construtivismo. Revista de Educação AEC. Brasília. Vol.21. nº 83.( abr-jun) pp. 7-15. 90 assim, estava obtendo melhores resultados com o seu trabalho: “Pensei: Não vá pela cabeça de ninguém, não. Faça o que é certo para você. E meu trabalho foi dando certo. E fui acreditando cada vez mais no meu trabalho e foi dando certo.” Cristina ressalta que as prescrições externas muitas vezes não facilitam o trabalho do professor, especialmente quando não levam em consideração o dia a dia da escola, o tipo de clientela e a situação socioeconômica das famílias. Ela se queixa ainda que não tenha podido contar com o apoio das famílias dos alunos, pois, em sua maioria, não são aliadas do professor. O papel de orientar as crianças nas condutas básicas e regras de boa convivência em sociedade está sendo negligenciado pelas famílias, em sua opinião. Por esse motivo, o professor fica sobrecarregado. Cabe a ele, além do papel de alfabetizar, tentar passar para o aluno as regras de comportamento e de convivência social. Segundo ela, o projeto da Escola Plural veio por imposição da Prefeitura e os professores começaram a agir sem critérios bem definidos, ao sabor da influência externa. Considera que os resultados não foram bons e que os professores foram responsabilizados pelo fracasso dos alunos: “Nós temos uma leva de semianalfabetos aí fora, no mercado de trabalho... E a culpa caindo sobre nós professores. E eu acho que, na verdade, é do sistema que impôs isso pra gente.” Dessa forma, Cristina reforça que a adoção das diretrizes elaboradas sem se considerar a experiência do professor em sala de aula não foram benéficas para o desenvolvimento de seu trabalho como professora. Para ela, a proposta da Escola Plural não foi compreendida nem mesmo pelos responsáveis por sua implantação. Considera que, o trabalho docente foi desqualificado: o professor não passava de um animador de programa infantil. Cada professor agia da maneira que considerava correto, pois ninguém foi preparado adequadamente para trabalhar com a nova proposta de ensino. A direção das escolas também tinha dificuldade em gerir o processo de mudança, pois muitos docentes ainda preferiam trabalhar do modo tradicional e, em muitos casos, conseguiam mais êxito do que os que estavam tentando adotar as técnicas novas. Para ela, a Escola Plural estava baseada em um modelo de escola ideal, que não correspondia à realidade da clientela. “Aí, mostravam aqueles vídeos, era um grupo pequeno de alunos com a orientadora ali do lado, a professora ali do lado. Não tinha como fazer isso com uma turma de 25, 30 alunos... Impossível... Assim... de uma hora pra outra?” 91 A saída encontrada por Cristina para conseguir trabalhar foi a de continuar seguindo o modelo tradicional, adaptando-o, conforme sua experiência, com os alunos. Confiante em sua capacidade, preferiu apostar em seu saber e criar novas normas de realização de seu trabalho. Ela não ficou restrita às diretrizes que, particularmente, percebeu como imposições da Secretaria Municipal de Educação. À medida que trabalhava com as crianças, foi observando que não bastava aplicar as regras, mas era preciso criar um estilo próprio de trabalho que favorecesse a obtenção dos resultados esperados. Pouco a pouco, conseguiu integrar os aspectos das novas diretrizes ao seu modo de trabalhar. “Algumas coisas são interessantes, os projetos são interessantes... mas têm outras que você vê que não dá, não vai dar resultado. Você pega o fio da questão lá, o que é mais interessante e adapta à sua turma e a seu jeito de trabalhar.” Além disso, para essa professora, os resultados não estavam vinculados apenas aos objetivos a serem alcançados de acordo com as regras, mas tratava-se de uma meta pessoal, pois se sentia responsável pelo futuro das crianças. Percebemos que em sua trajetória profissional ela sempre foi comprometida, sendo a sua maior preocupação os resultados obtidos com seus alunos. 4.1.3 Mãe, esposa e professora Cristina se casou aos 28 anos de idade, mas começou a namorar seu esposo quando ainda estava com 19 anos e formada no magistério. Seu casamento já dura 23 anos e julga ser vitoriosa, por esse motivo. Recorda das dificuldades que passaram juntos, no início do casamento, por causa do envolvimento de seu marido com drogas, ainda na época do namoro, mas que se intensificou após o casamento. Seu esposo sempre a respeitou, apesar de seu envolvimento com as drogas, sendo que ela adotou um posicionamento firme diante dos seus problemas e dos transtornos familiares que estes lhe acarretaram: Hoje eu não gosto de lembrar as coisas ruins porque ficou pra trás... Foi muito difícil. Eu estava com dois filhos e ele parou de mexer com cocaína - ele chegou até no crack - parou e ficou na bebida, mas sempre se mantendo ao lado dos meninos e de mim... do lado assim: aquela coisa de cuidado...e também nunca me deu problema, prejuízos - porque quem se envolve em drogas dá muito prejuízo - ele nunca... Sempre preservou meu nome, porque eu falava assim: Você pode fazer o que você quiser, mas o meu nome você preserva... Acho que é por isso que eu suportei tanta coisa e por isso que a gente foi para a igreja. 92 Através de sua empregada doméstica, Cristina foi levada a conhecer a doutrina evangélica e acredita que isso foi fundamental para que conquistasse a tranquilidade que hoje tem experimentado em sua vida pessoal. Seu esposo atualmente trabalha gerenciando a área comercial de um grupo de empresas. Nos períodos em que sua família passou por dificuldades, ela preferiu não pedir ajuda a seus pais, pois nunca deixou que interferissem em sua vida conjugal e, hoje, relata as dificuldades pelas quais passou, com orgulho de quem já as superou. Quando se casaram, Cristina e seu esposo passaram a residir no mesmo bairro onde trabalha ainda hoje, mas era seu desejo se mudar para um bairro mais valorizado socialmente. A recente aquisição de uma nova moradia, em um local de sua preferência, é motivo de satisfação para essa professora. Morar em um bairro distante lhe dava a sensação de ainda estar vivendo no campo. O seu lado religioso fica evidente sempre que menciona os bons momentos de sua vida pessoal bem com as passagens em que se sentiu mais exigida pela vida. Entretanto, adota um posicionamento ativo diante dos problemas. Procura não se entregar ao desânimo ou ao conformismo. Ao contrário, luta pela concretização de seus objetivos. Defende suas convicções e não gosta de deixar pendências para resolver depois. Apresenta-se como uma pessoa segura, comunicativa, lutando para vencer a timidez: “Prefiro fazer o jogo do contente, como diz a minha mãe... Em qualquer lugar que chego eu sou assim. Continuo muito tímida, introvertida, mas, no entanto... pareço não ser.” Cristina tem três filhos com idade de 14, 12 e 9 anos. Tenta conciliar sua vida profissional com a maternidade. Mesmo sendo tão comprometida com seu trabalho, procura estar sempre próxima da família. Não abre mão de almoçar em casa todos os dias, pois tem necessidade de verificar se está tudo bem, sendo que só assim se sente tranquila. Por esse motivo, gosta de trabalhar perto de sua residência. Apesar do tempo reduzido para almoço tenta conciliar tantos afazeres – uma vez que trabalha pela manhã em uma escola e à tarde em outra – procurando não se entregar à ansiedade. Tudo indica que o fato de valorizar sua vida pessoal a ajuda na preservação de sua saúde mental. O trabalho é importante na vida dessa professora, mas ela também encontra satisfação fora dele. É capaz de conciliar a vida pessoal e profissional, reconhecendo que uma está entrelaçada com a outra. 93 Eu, na verdade, eu acho que consigo lidar com a situação porque eu não levo problema para casa não. Não levo. Então, quando eu saio daqui às onze e meia, eu só vou pensar aqui às sete horas da manhã do outro dia; porque se eu levar pra casa não tenho vida... Porque, além disso, aqui, eu tenho muita vida para viver. O período que tem reservado para almoçar durante a semana é muito restrito. No prazo de uma hora e trinta minutos, em que perde uma hora no trajeto entre sua casa e as escolas onde leciona, resta-lhe pouco tempo para se alimentar e repousar entre uma jornada e outra. Apesar disso, prefere ir à sua casa nesse intervalo para conferir se está tudo bem com seus filhos. Segundo ela, já está tão acostumada com a correria diária que, quando está em período de férias, sente falta desse movimento. Após tornar-se mãe, Cristina acha que seu trabalho como professora se desenvolveu: passou a ter mais paciência com os alunos e a se preocupar com eles, além de conseguir compreender as dificuldades das mães das crianças, embora considere que entre as duas funções existem diferenças, ou seja, ela sabe diferenciar muito bem seus papéis de mãe e professora. Também se preocupa em acompanhar o desenvolvimento escolar de seus filhos, ajudando-os com os deveres de casa. Seu marido a considera uma “santa”, por conseguir lidar com tantas crianças, já que não tem a mesma paciência. Sua filha lhe disse que quer ser professora e mãe quando crescer. Cristina se sente orgulhosa com a escolha da menina porque acha que a sociedade e os meios de comunicação têm enfatizado apenas as dificuldades da carreira docente e, desse modo, fica difícil que alguém ainda queira ser professora. Tal escolha sugere, no entanto, que Cristina representa um modelo positivo para a filha, a despeito dessa ênfase negativa que vem sendo dada pela mídia. 4.1.4 A escala de valores pessoais Cristina demonstra ser comprometida em relação ao seu trabalho, mas este não ocupa o primeiro lugar na escala de valores que norteia sua vida. Eu falo que em tudo na vida você tem que colocar Deus em primeiro lugar. Para mim, a sequência é Deus em primeiro lugar, minha família, meu trabalho e a igreja. Então, tudo que eu faço, eu coloco na direção de Deus e creio que isso me ajuda muito. 94 Assim, o trabalho ocupa o terceiro lugar em sua escala pessoal de valores, após Deus e sua família, mas isso não é reflexo de um desinteresse por sua profissão. Pelo contrário, Cristina tenta organizar seus afazeres diários para cuidar de sua vida pessoal sem negligenciar sua vida profissional porque percebe que estão interligadas. 4.1.5 As tarefas e o ambiente de trabalho Cristina trabalha como professora efetiva na EMBRA pela manhã e durante o turno da tarde leciona em outra escola da Rede Municipal de Ensino. Seu dia de trabalho inicia às 7h e termina às 17h30min. Embora exerça a mesma função nas duas instituições, existem algumas diferenças nas tarefas que lhe são atribuídas. Isso ocorre conforme a organização da escola e Cristina acha conveniente para ela. Na EMBRA, atualmente, ela é responsável por ensinar todas as disciplinas do currículo, exceto Educação Física e Espaço e Formas – esta última, uma disciplina criada para substituir as aulas de educação artística e que trata de aspectos da geometria e da matemática entrelaçados às artes. Na escola em que leciona no turno da tarde, é responsável por ensinar língua portuguesa, ciências, artes e literatura. Tinha pouco tempo que havia entrado para essa escola para onde se transferiu por se localizar perto de sua casa. Na outra escola onde lecionava à tarde, antes da transferência, era responsável pelas aulas cujos conteúdos envolviam somente a língua portuguesa, ou seja, gramática, literatura e produção de textos. Nessa escola, foi professora durante 12 anos e só pediu transferência porque decidiu trabalhar mais perto de casa. A aquisição do apartamento novo, bem como a transferência de escola, são percebidas como uma conquista, mas ela reconhece que não é tão simples deixar o local de trabalho onde se está entrosado para recomeçar em outro. Entretanto, apesar de afirmar que gosta de trabalhar na EMBRA, está tentando uma transferência para outra escola que se localize mais perto de sua atual residência. Se Deus quiser, esse ano eu saio daqui, não porque eu não gosto da escola. Eu amo essa escola, mas eu quero ir para próximo da minha casa... Eu gosto de trabalhar perto de casa. Mas eu acredito no tempo da gente também. [...] Agora, só quero sair daqui pela distância... Sair da zona de conforto é muito difícil, sair do seu lugar de conforto e ir para um lugar aonde não conhece ninguém. Poderia ficar aqui... mas eu preservo muito a minha qualidade de vida fora daqui. Fora daqui... há muito além disso. É qualidade de vida poder almoçar em casa, poder ver meus filhos. 95 Afastar-se da EMBRA, onde leciona há 10 anos, e de suas colegas de trabalho faz, em alguns momentos, com que Cristina tenha dúvidas sobre esse pedido de transferência, mas estar mais próxima de sua família é primordial. Além disso, ela prefere trabalhar em mais de uma escola por considerar que, assim, tem oportunidade de lidar com pessoas diferentes, em ambientes diferentes, com outros estilos de direção e com uma clientela mais diversificada. Considera também que, dessa forma, tem mais oportunidade de aprender coisas novas e conhecer outras pessoas. Isso provavelmente contribui para que seu trabalho lhe pareça mais interessante e desafiador. Em um período de sua vida profissional, trabalhou na mesma instituição escolar nos turnos da manhã e da tarde, mas percebeu que o seu desgaste era maior. Sentia-se entediada por ter que se relacionar com as mesmas pessoas, almoçar sempre na companhia delas – pois ainda não tinha filhos, conversar sobre os mesmos assuntos. Optando por trabalhar em escolas diferentes, Cristina proporciona a si mesma, oportunidades de ter contato com experiências de trabalho diversificadas desde que isto seja em escolas próximas à sua residência. Sua vida pessoal não pode ser negligenciada, até mesmo em favor do trabalho. “Ah! Eu quero coisas diferentes. Cada pessoa é de um jeito. Os diretores, apesar das mesmas diretrizes, cada um encara de uma forma diferente. Acho que por isso é legal. Eu fecho a janela da EMBRA e começo na EMA30... É diferente”. Ela tem hábito de preparar os planos de aula com antecedência, isso lhe permite trabalhar com mais tranquilidade. Relata que seu tempo é bem dividido e que costuma contar com a ajuda de seu filho mais velho na digitação do material que vai utilizar em sala de aula. Aos domingos, gosta de preparar atividades para a semana inteira. Considera-se organizada e, frequentemente, consegue realizar todas as atividades que se propõe dentro do prazo esperado. Meu tempo é bem dividido. Na verdade, eu consigo fazer o meu material todo, preparar minhas aulas todas. Domingo... Domingo à noite... 6, 7 horas da noite, eu começo a preparar o meu material. Meu menino me ajuda digitando alguma coisa e está lá, na 2ª feira, um montão de 30 Utilizamos um nome fictício para denominar essa escola que também pertence à Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte. Entretanto, não tivemos oportunidade de realizar observações do trabalho docente nessa instituição escolar, mas Cristina ressalta que, nesse caso, o corpo docente é dividido em equipes. Cada equipe de professores é responsável pelas turmas de cada ciclo de idade. Quando algum professor precisa faltar, só pode ser substituído por outro da mesma equipe. Desse modo, há uma preocupação entre os profissionais de não ficar num grupo onde há um docente que se ausenta do trabalho com muita frequência. Mas nem sempre é permitido ao professor, escolher o grupo com o qual quer trabalhar, especialmente quando é novato. Na EMBRA, se um professor faltar, seus alunos são distribuídos entre as outras turmas e, caso isso seja impossível, a coordenadora é quem vai substituí-lo. 96 material pronto... Às vezes, para a semana toda. Aí, fico tranquila, só por conta de corrigir, de cobrar. Semanalmente, ela conta com 4 horas para planejar suas aulas que distribui em uma hora por cada dia, sendo que um dos dias fica em sala de aula durante todo o turno. Utiliza esse tempo para rever as atividades que já preparou em casa, aproveita para dar assistência a algum aluno que esteja precisando, elabora atividades com algum colega de trabalho, participa de reuniões ou, às vezes, prefere descansar. Já fiz muito! O meu material já está todo pronto... vou descansar. Se eu não tiver nenhum aluno para dar assistência, eu posso usar assim. Agora, se eu deixar tudo por fazer... igual prova para corrigir em época de avaliação... eu aproveito esse horário. Igual eu já não dei conta de corrigir em sala enquanto os meninos faziam alguma atividade, eu utilizei esse horário. É melhor do que levar trabalho para casa. Cristina gosta de preparar suas aulas em casa, mas prefere não levar para fora da escola as provas ou os exercícios de seus alunos para corrigir. Também gosta de compartilhar com suas colegas o material que elaborou. Na sala dos professores, eles costumam sugerir entre si atividades que consideram interessantes para desenvolver com os alunos e Cristina sempre tem alguma contribuição a dar, conforme opinião de algumas de suas colegas. Mas eu gosto... isso é de cada um. Cada um trabalha da forma que dá conta, né? Eu gosto de preparar as minhas coisas, eu gosto de preparar as minhas matrizes, porque eu sei o que quero quando estou fazendo aquilo ali. Eu gosto de oferecer também. Eu fiz pensando em mim, mas eu ofereço... se quiser usar, pode. Por ser uma das professoras mais experientes na EMBRA, consegue escolher sua turma e o seu grupo de trabalho. Nessa escola, onde trabalha no turno da manhã, não existe uma política de trabalho em duplas de professores para alunos do 1º ciclo. Cristina é professora referência de sua turma durante 16 horas por semana e, nas 4 horas semanais que tem para desenvolvimento de seus projetos, seus alunos têm atividades com a professora de Espaço e Formas e com a professora de Educação Física. Entretanto, na escola em que lecionava no turno da tarde – antes de pedir transferência – existe o costume do trabalho em duplas e isso se constitui num desafio para essa professora, já que considera que, para trabalhar em dupla, é preciso haver um bom entrosamento entre os colegas. Caso não haja possibilidade de escolher o seu parceiro de trabalho, prefere assumir a turma sozinha. 97 A colega com quem eu gostava muito de trabalhar... ela quis ficar como eventual, aí eu fiquei sozinha até que apareceu outra com quem eu gostava de trabalhar também. Você trabalhar com quem você não tem afinidade, trocando turma? Se não for com alguém que você tenha afinidade não dá certo, não! É difícil demais! Isso desgasta! Escolher a pessoa com quem vai trabalhar, quando a organização da escola possibilita é uma forma de se resguardar de conflitos no ambiente de trabalho. Cristina não gosta de se sentir sobrecarregada e desse modo, prefere trabalhar com pessoas que, assim como ela, são responsáveis. 4.1.6 O comprometimento com o trabalho Cristina se considera uma profissional exigente e preocupada com resultados. Espera que seus alunos se desenvolvam e revela que, em muitas situações, adota uma atitude mais severa para conseguir despertar a atenção da turma. Sente-se como alguém que tem uma responsabilidade especial pelo futuro das crianças, sendo exigente porque acredita que o seu papel como professora é o de fazer com que o aluno aprenda o conteúdo estudado. Nossa! Se você chegar na minha sala, tem dia que eu estou uma arara. Você tem que ver. Mas eu falo com as mães: “olha mãe, eu nunca vou falar com seu filho o que eu não gostaria que falassem com o meu”. Às vezes, eu cobro e brigo do jeito que brigo com os meus... Ela se esforça para não precisar se afastar do trabalho por licença médica, mas está ciente dos seus direitos e reconhece que há momentos em que os cuidados com sua saúde devem ser prioritários. Revela-se insatisfeita com a forma como a Prefeitura interpreta as necessidades pessoais dos professores, considerando que o trabalhador falta ao trabalho de propósito ou por preguiça. Na medida do possível, tenta preservar a sua saúde, mas se adoecer, sabe que terá que solicitar licença médica. Desse modo, sente-se incomodada com a possibilidade de ser incompreendida ou julgada como uma profissional irresponsável. A criação, pela Prefeitura, de um abono com o objetivo de fixar o profissional e recompensar ao professor que não falta ao trabalho durante o semestre ou não solicita transferência, é considerado como um desrespeito por Cristina, pois considera que, mesmo sendo responsável e comprometido com o trabalho, o professor, às vezes, 98 necessita se ausentar por motivos pessoais ou para cuidar de sua saúde, já que esse é seu direito. Ela se mostra revoltada com as propostas que vem sendo feitas pela Prefeitura para tentar motivar o professor. Quando o docente opta por não comparecer aos cursos de formação que, muitas vezes, são oferecidos no horário de trabalho, ele é considerado como desinteressado. Em sua opinião, a SMED31 não leva em conta que, em muitos casos, as escolas não têm como substituir o docente, que os coordenadores nem sempre têm condições de remanejar professores para substituir aquele que está em treinamento e, assim, os alunos ficariam sem aula. Mesmo tentando ser coerente com aquilo que acredita, Cristina acaba se submetendo às pressões da organização do trabalho, afetando sua saúde: Eu não desejo, mas... Igual hoje, eu estou rouca. Estou tomando muita água, fazendo um paliativo, eu não vou precisar pegar atestado, mas tem pessoas que tem saúde mais debilitada, não dá conta e aí você vai ser punida financeiramente porque você precisou faltar. Considera seu trabalho como uma atividade importante e demonstra sentir orgulho do seu desempenho, apesar de enfatizar que, diariamente, encontra muitos desafios. O resultado do seu trabalho não está restrito à aprendizagem dos conteúdos pelo aluno. Para ela, os alunos são pessoas com um potencial a ser desenvolvido e o seu papel é ajudá-los, sendo que o professor é uma personagem fundamental na formação intelectual e moral da criança. Considera que o futuro adulto no qual seu aluno se tornará começa a ser formado a partir daquilo que ele aprende em sala de aula sob sua orientação. Realmente tem que ter muita paciência, muita entrega, muita... tem que ceder muita coisa também. Às vezes, você tem que deixar seus problemas de lado e cuidar daquela vida que está ali. Você é responsável por ele. Você é responsável. Eu tenho filhos e sei o que é estar um ano na vida de uma criança. É muita responsabilidade. Ela prefere trabalhar com as crianças mais novas porque o desenvolvimento delas fica mais evidente quando comparado ao dos alunos mais velhos. Tem consciência de que as crianças são diferentes entre si e o ritmo de aprendizagem de cada um é singular. Desse modo, não fica frustrada quando um de seus alunos demora mais tempo para 31 Secretaria Municipal de Educação. 99 evoluir na alfabetização e sente satisfação em ver como, ao final do ano letivo, todos eles adquiriram novas habilidades. Reconhece, nesse progresso, o resultado de seu trabalho e isso representa um incentivo para sua permanência na atividade. Ela acredita ter um poder para ajudar ou não na construção do futuro de seu aluno e isso vai depender da forma como realiza o seu trabalho. Sente-se com uma grande responsabilidade nas mãos, pois considera que a fase de alfabetização é a base para que a criança continue se desenvolvendo. Desse modo, acha seu trabalho “edificante”. No seu entender, o trabalho do professor é ajudar o aluno a se desenvolver na aprendizagem dos conteúdos propostos pelas diretrizes pedagógicas para prosseguir em busca da aquisição de outras habilidades e quando consegue identificar esse desenvolvimento na criança, sente-se recompensada. O fato de perceber que o aluno é capaz de atingir etapas mais avançadas nos anos seguintes, revela concretamente que, como professora, fez corretamente o seu trabalho. 4.1.7 Experimentar novos meios de trabalhar Para conseguir realizar as atividades propostas e obter os resultados que se traduzem na aprendizagem dos alunos, Cristina prefere adaptar as prescrições externas à sua experiência profissional e ao seu gosto pessoal: Porque eu, por exemplo, não gosto de trabalhar com jogos. Tem que propor jogos em sala e eu não dou conta. Eu assumo que não dou conta. Eu não quero nem tentar. Ultimamente eu não estou nem querendo tentar mais. Eu pego o jogo e adapto da minha forma. [...] Por exemplo, é um jogo para trabalhar... dividir a turma em grupos e tal...é...eu não consigo. Aí, eu pego e faço um grupo... o jogo coletivo. Ao invés de ser em grupinhos menores eu uso a sala inteira e trabalho aquilo ali no coletivo... dando oportunidade de todos participaram, mas não jogando em grupos. É aquela barulheira, aquela coisa que... e os alunos...eles falam demais. Eu adapto e dá certo. Mas nem tudo que vem, dá pra gente trabalhar não. Sentindo-se segura de seu saber sobre a docência, essa professora não tem medo de experimentar novas estratégias para realizar o seu trabalho. O conhecimento teórico que obtém nos livros nem sempre lhe parece adequado para ser aplicado em sala de aula, porque cada clientela tem suas peculiaridades: “Então, não tem jeito de acreditar em tudo que está no livro, não. Tem coisa que posso e tem coisa que não. Isso dá certo e isso não dá.” Na sua avaliação, os cursos de capacitação oferecidos pela Secretaria Municipal de Educação não têm sido eficientes porque não levam em consideração a realidade 100 objetiva da escola e dos alunos. Desse modo, ela tem pouco interesse por esses treinamentos, pois confia mais na sua própria experiência. Considera que os bons resultados obtidos na EMBRA advém do esforço dos próprios professores e não dos cursos de formação propostos pela Prefeitura. Ainda bem que a gente abraça a situação e manda ver porque os resultados têm melhorado muito, os alunos têm lido muito mais. Têm saído melhor nas avaliações porque nós estamos trabalhando... Porque não acredito que seja a Prefeitura. Então, nem para sair para fazer curso mais eu estou me dispondo. Eu estou acreditando no que eu faço no que eu estudei e na minha prática de 25 anos de trabalho... E vamos embora porque está dando certo. 4.1.8 Respeitar e ser respeitada Cristina procura conversar e orientar os pais de seus alunos a respeito do desenvolvimento escolar de seus filhos. Considera que os problemas de indisciplina das crianças, muitas vezes, estão relacionados aos conflitos familiares e à negligência da família. Sabe até onde pode e deve transitar no seu papel de professora, mas sempre que possível convoca os pais a participarem mais da educação de seus filhos. Por isso, seu trabalho é reconhecido pelas famílias. Considera importante ouvir o que as mães têm a dizer sobre suas dificuldades na educação dos filhos. Procura conversar com elas levando sempre em consideração que também é mãe e, com isso, percebe que o respeito que tem merecido das famílias de seus alunos é decorrente do fato de que também as respeita. Assim, ela valoriza o bom relacionamento com as famílias de seus alunos. Gosta de mandar recados carinhosos para conquistar a confiança das mães. Considera que a família tem que ser bem tratada pela escola porque, quando esta é aliada do professor, o seu trabalho com o aluno tem maiores chances de ser bem-sucedido. Nas situações em que alguma mãe de aluno a procura nervosa ou irritada, tenta tranquilizá-la. Entretanto, não se sente constrangida se tiver de ser franca e enérgica em tais situações. Cristina reconhece que o trabalho de orientação dos pais realizado na EMBRA é fundamental para ajudá-los a compreender seu papel na educação das crianças. Essa escola havia realizado um trabalho de orientação da comunidade escolar em parceria com um psicólogo e já tem um projeto para contratar um profissional especialista em orientação sexual para trabalhar com os adolescentes. 101 Que bom que essa escola também tem psicólogo trabalhando com os pais. Na outra escola que eu trabalhava também tinha esse trabalho com os pais, porque, às vezes, as mães não fazem porque elas não sabem também... Muitas vezes, na reunião, eu explico: “Eu quero assim, assim, e assim.” E falo para elas: “A sua obrigação não é ensinar, não. A minha obrigação é ensinar, a sua é estar orientando, ajudando, cobrando. Ela prefere lecionar para os alunos do primeiro ciclo. Não gosta de trabalhar com adolescentes por se considerar ansiosa e exigente em relação à obtenção de bons resultados. Com eles, tem a sensação de estar “perdendo tempo” e com os alunos mais novos consegue que sigam o seu ritmo Eu gosto até 10 anos no máximo; de seis até 10 anos. [...] Até o 4º ano, antiga 3ª série... Quando vão chegando na 5ª série, começam a ficar chatos... passam perto da gente e parece que nem enxergam... Eu gosto dos pequenos...você põe do seu jeito. Sua preferência pelas crianças em fase de alfabetização é devida ao fato de se sentir mais satisfeita, pois percebe os resultados de seu trabalho de modo mais objetivo e este lhe parece mais palpável. Orgulha-se de ver como as crianças se desenvolveram a partir de sua orientação. Sente-se recompensada com os resultados de seu trabalho, mas, comenta que é necessário ter muita disposição física quando se trata de alfabetizar as crianças. Reconhecer-se nos bons resultados de seu trabalho é fator que a incentiva a dar continuidade nessa carreira, não desistindo diante dos problemas que se apresentam no cotidiano. Cristina elogia a proposta da Escola Plural de dividir as turmas por ciclos de idade. Desse modo, pode ficar com a mesma turma por dois anos seguidos e dar continuidade ao trabalho de alfabetização. Quando você trabalha no ciclo, você tem oportunidade de continuar com sua turma por dois anos, três anos... Eu fico dois anos com a mesma turma. Eu acho ótimo, mas eu gosto dos pequenos; na 3ª série, eu não gosto de continuar não. Eu gosto de continuar o primeiro ciclo, acho que é um ganho muito grande. [...] Eu pego essa turma no início do ano – como eles estão hoje – se eu continuar com eles no ano que vem – se eu continuar na escola, eu vou continuar com eles – você entrega no fim do ano e eles estão anos-luz na frente. A turma que acompanhou no período que compreende os anos de 2008 e 2009 obteve 95% de aproveitamento como alunos avançados na Provinha Brasil. Essa é um instrumento de avaliação diagnóstica, elaborada pelo INEP, que verifica o nível da alfabetização das crianças que estão no segundo ano de alfabetização das escolas 102 públicas brasileiras. Esse resultado é motivo de orgulho para ela, percebendo-o como fruto de seus esforços como professora. Entretanto, Cristina queixa-se do pouco comprometimento das famílias com a educação das crianças, pois acredita que essa é uma tarefa que depende da parceria entre pais e professores. Também faz severas críticas à postura assistencialista, em sua opinião, adotada pelos órgãos do governo responsáveis pela educação, pois considera que essa atitude reforça o desinteresse das famílias pela educação das crianças. Observa que, muitas vezes, os pais fazem com que a criança frequente a escola por causa das bolsas recebidas do Estado, por causa da merenda escolar e não pelo real desejo de garantir um “futuro melhor” para seus filhos. Ela reage com indignação ao comparar o desinteresse de algumas famílias carentes aos esforços que viu seus próprios pais empreenderem para que ela conseguisse estudar. Para ela, alguns pais não valorizam o trabalho do professor porque não compreendem a importância da educação na vida das crianças. Julgam que a escola é um local aonde seus filhos vão para se alimentar e para que não fiquem ociosos pelas ruas da cidade. Acham que o governo tem obrigação de suprir as carências das crianças menos favorecidas, eximindo as famílias de quaisquer responsabilidades. Em sua opinião, essas medidas do Estado reforçam o pequeno comprometimento das famílias quando investe em pessoas que não valorizam a educação de suas crianças. Tem pais que têm muita perspectiva que o filho vá para uma faculdade e agora têm outros que acham que o que a escola está fazendo está bom... E os meninos estão ganhando coisas demais: é livro, caderno... Você não pode pedir um real para uma excursão porque é a escola que tem que dar... Um lápis? A escola pode dar o lápis, pode dar tudo. Hoje, os meninos ganham um kit de cadernos e daqui a pouco está tudo rasgado. É muito assistencialismo. [...] E não está sendo valorizado. Os pais acham que eles não são obrigados a dar. Estão esperando que deem tudo para eles. Não é responsabilidade deles mais... Em sua opinião, a escola perdeu sua posição como espaço de educação formal em nossa sociedade a partir da implantação das políticas do governo que se preocupam mais em suprir as necessidades materiais imediatas da criança do que em garantir os meios para que ela aprenda a conquistar seu próprio lugar no mercado de trabalho. 103 4.1.9 O dado e o recebido no trabalho Mesmo gostando de seu trabalho, Cristina percebe que algumas propostas do Sistema Educacional ao invés de servir de apoio para o trabalho docente, são prejudiciais, pois não levam em conta a realidade objetiva dos alunos e suas famílias. As normas e diretrizes da educação muitas vezes são discrepantes em relação às condições objetivas do trabalho nas escolas, gerando para o professor o ônus do conflito entre o que é esperado e o que realmente ocorre na prática. Ela considera que a má qualidade do ensino nas escolas públicas do Brasil não é culpa dos professores e ressalta que também nas instituições de ensino particulares, os professores estão encontrando muitas dificuldades para realizar seu trabalho. A escola particular ainda tem a retenção, mas também tem o sistema de dependência, quer dizer, pode ir para frente quem faz a dependência, o menino não fica totalmente retido. E tem escola particular em que o menino fica retido, mas os pais exigem e a escola tem a obrigação de aprovar. [...] A gente sabe de uma escola grande, aqui em Belo Horizonte, que os alunos do ensino médio aprontaram e a escola tinha que expulsar, né? Aí, os pais vieram e os alunos voltaram para a escola. Aí, fica aquela coisa... Nós não temos muito jeito. Ela se recorda também que, quando ainda era estudante, os professores gozavam de reconhecimento e de um status que não corresponde mais à realidade dos dias de hoje. Os alunos ficavam de pé quando a professora entrava em sala de aula. Apesar de gostar de sua profissão e de investir em sua carreira, percebe que o trabalho em docência não garante uma boa posição social para o professor, atualmente. Hoje é: “ah, você é professora? “Qual a sua profissão? Professora? Professor ganha mal, não é?” Falam assim, desse jeito. Porque o que fica aí é que a escola está mal e o professor ganha mal. Não tem mais aquele respeito, aquele status em ser professora, não. Cristina critica severamente as medidas adotadas pela Prefeitura com o objetivo de padronizar o trabalho do professor, desconsiderando sua experiência e o modo de vida da clientela. Considera também contraditório que, atualmente, a Prefeitura esteja retomando as avaliações externas e o boletim, mas, para ela, trata-se de um equívoco quando se pretende que esse boletim apresente apenas conceitos sobre o desempenho do aluno ao invés de notas, pois para as famílias fica mais difícil compreender se a criança está se desenvolvendo ou não. 104 As tentativas de se recuperar o que, em sua visão, ficou perdido em termos de desenvolvimento dos métodos de ensino, vêm novamente como imposições da Secretaria Municipal de Educação, disfarçadas de inovações, ou seja, não passam de “novas” velhas propostas. Agora, com essa retomada... Só que vem de novo imposta. As avaliações externas. E avaliação... agora é nota, conceito, boletim... Como se nunca tivéssemos trabalhado com boletim. Muitas coisas se perderam e está se tentando retomar, mas novamente – eu acho – que de uma forma errada, muito imposta [...] Aí voltou o boletim e até a própria forma da Prefeitura classificar. [...] Aí, colocam conceito A, B, C, D e E. Por que que não volta a nota que fica muito mais fácil do pai entender? Os pais estão sem parâmetro. Eu acho que se fosse nota seria muito mais fácil. Querem voltar tudo? Então volta a nota... fica mais fácil para nós e para os pais. Percebe, portanto, em seu trabalho algumas contradições entre o que é investido pelo professor e o que este recebe em contrapartida. Um desses problemas está na autonomia, já que o professor não pode decidir a respeito das reprovações dos alunos, pois o governo não tem interesse em manter os alunos na escola por um longo período de tempo. A lógica da quantidade tem sido mais forte do que os critérios baseados na qualidade do aprendizado do aluno. Quando o professor avalia que um determinado número de alunos deverá ficar retido e repetir o 3º ano do ciclo, a regional interfere, pois não é bom para a escola que haja muitos casos de retenção. Entretanto, na EMBRA, a direção dá aval para a decisão do professor, pois considera que é ele quem conhece os seus alunos. Se a regional perceber que você deixou uma turma inteira retida, ela vem aqui. Tem um número X que ela aceita de retenção. A não ser que a escola banque. Aqui na escola a diretora costuma bancar: “tem que reter, vamos reter, não quero um número falso.” Mas tem escola que não: “Nosso IDEB32 tem que aumentar.” Porque, quanto mais retenção, pior, né? A restrição do poder de decisão do professor é percebida por ela como uma desvalorização do seu trabalho e da sua experiência. Embora não seja esse o seu caso, ilustra sua crítica com uma situação em que a família do aluno acionou a justiça para exigir que ele fosse aprovado. A escola foi obrigada a aceitar a aprovação do aluno, independentemente do parecer contrário da professora. Assim, os critérios de avaliação do trabalho docente pela Secretaria Municipal de Educação lhe parecem contraditórios: as maiores verbas para desenvolvimento de 32 IDEB: Índice de Desenvolvimento da Educação Básica 105 projetos são destinadas justamente para as escolas que não conseguem atingir as metas de pontuação satisfatória no IDEB. As escolas e os professores que mais se esforçam e que, por esse motivo, atingem as metas de alfabetização dos alunos, não recebem incentivos ou premiações. Além disso, os critérios de avaliação do trabalho docente adotados pelo governo dão ênfase apenas aos resultados obtidos pelo estudante. Desse, modo os esforços do professor nem sempre ficam evidentes. Para ela, a satisfação com o trabalho não depende apenas da remuneração do professor. O salário não tem sido fator de insatisfação para ela: “Não reclamo do meu salário: “Ah, não vai dar para nada. Mas acaba dando. No final sempre dá. Você não sente falta de nada. Você consegue levar a vida assim tranquilamente...” No entanto, sente-se desrespeitada ao pensar nas incoerências presentes também nesse campo. A Prefeitura procura incentivar ao professor com benefícios financeiros que lhe parecem contraditórios. No início de 2010, instituiu um abono com o objetivo de estimular a fixação profissional. No final do semestre, ele será pago ao professor que não precisou faltar, mesmo por motivo justificado, com o objetivo de recompensá-lo. Para Cristina, com essa gratificação, a Prefeitura demonstra que desconsidera os esforços dos profissionais que precisaram se ausentar o trabalho porque adoeceram, muitas vezes, em decorrência das dificuldades da própria profissão. Além disso, há uma proposta da Prefeitura de pagar um prêmio por comparecimento em cada reunião pedagógica que o professor participe, mas não é permitida nenhuma falta durante o semestre. Para Cristina, isso também penaliza o professor que está doente ou que precisou faltar por algum motivo justificado. Também o aumento de salário que a categoria conquistou por meio de uma greve realizada em março de 2010, ainda não havia sido pago aos professores. Tudo isso fez com que concluísse que permanecer na carreira docente depende de gostar da profissão mais do que da remuneração: “[...] A gente trabalha na marra. A gente está fazendo porque a gente gosta mesmo, porque senão se você for olhar esse lado, você para de trabalhar...” 4.1.10 A escola e o grupo de trabalho Cristina comenta que prefere trabalhar em sala de aula, pois sente que possui mais autonomia quando pode desenvolver sua atividade profissional na atividade de regência. Já recebeu propostas para atuar na coordenação ou mesmo na direção, mas nunca teve 106 interesse. Revela que não gosta de realizar as tarefas em grupo, pois prefere não depender do ritmo e do comprometimento de outras pessoas. Mesmo na época de faculdade, preferia trabalhar sozinha, pois quando realizava alguma atividade em grupo sentia que assumia mais responsabilidades que seus colegas. Como professora, procura preparar o seu material de trabalho com antecedência e depende apenas de si mesma para cumprir seus objetivos. “Eu sempre fui de preparar minhas coisas. Até hoje eu preparo... não sei muito fazer no coletivo. Por isso que eu falo que não gosto de coordenação. Eu gosto de sala de aula porque aí eu faço do jeito que gosto.” Está há 10 anos na EMBRA e gosta dessa escola, pois sempre teve bom relacionamento com seus colegas e com a direção. Considera que essa instituição tem sido bem avaliada pela Secretaria de Educação do município por causa do bom trabalho que os professores vêm realizando, mas acredita que o apoio da direção também tem sido importante para manter a coesão do grupo. O respeito à individualidade e à experiência do professor tem sido preservado pela direção e, além disso, a diretora se preocupa com o processo aprendizagem dos estudantes, além de respeitar os tempos de estudo e planejamento dos professores. Relata que em outra escola onde já trabalhou teve contato com uma diretora que fazia questão de se assentar em uma cadeira mais alta quando promovia reuniões com os professores. Isso lhe provocava uma sensação de mal-estar, pois sugeria que a direção se colocava numa posição superior à dos professores. Na mesma ocasião, ela trabalhava em outra escola onde a diretora estava mais próxima do professor, dando apoio necessário quando era pertinente, o que lhe permitia comparar os dois modos de gestão escolar. Sua conclusão é a de que quando a direção é parceira do professor, seu trabalho fica mais leve. Ao se transferir para a EMBRA, passou a lidar com uma diretora que tinha a característica de ser mais sociável e estar junto do professor. Em sua trajetória nessa escola, comenta que sempre manteve bom relacionamento com a direção. Considera que a atual diretora respeita a individualidade e valoriza o trabalho do professor em sala de aula. Ela nunca vai à sala da gente, mas conhece todos os alunos, os problemas de cada um. Isso faz a escola crescer... E outra coisa: ela defende a gente lá no sindicato e na Prefeitura. [...] Se chega alguma coisa nela, ela vai lá, ela chama e resolve a portas fechadas... e isso é muito importante... Aqui a direção faz esse papel. [...] Ela já foi diretora da escola, em outra ocasião. Não sei se você 107 sabe que as pessoas que já foram diretoras numa escola elas, geralmente, não permanecem na mesma escola. Aqui, não. Todos os ex-diretores, que eu sei que foram diretores aqui, permanecem na escola. Isso é da EMBRA. Cristina explica que, costumeiramente, quando alguém exerce cargo de direção evita voltar a trabalhar com regência de turmas, preferindo os cargos de coordenação e supervisão ou mesmo, preferindo pedir transferência para outra escola. Ou seja, depois que ocupa um cargo de gestão, geralmente não quer voltar a ser subordinado no mesmo grupo ao qual pertencia. Entretanto, desde que começou a trabalhar nessa escola, observou que os ex-diretores não se opuseram a voltar para a sala de aula para trabalhar como professores regentes. Isso evidencia, segundo ela, o cargo de diretor nessa escola não representa uma posição de poder e privilégios: Aqui, não! A Paula, que hoje é coordenadora, já foi diretora da escola. A Virgínia já foi diretora há anos e agora voltou de novo... A diretora passada está na sala de aula. Então, é uma característica da EMBRA... A direção não é um cargo de poder. Outra coisa que eu acho interessante: eles fazem uma troca de papéis: hoje, eu sou a diretora, mas, na outra vez, eu vou ser a vice... é essa troca de papéis. Ela comenta que os casos de pedido de transferência são raros e que o grupo de professores é bem entrosado em relação aos objetivos que devem alcançar no trabalho. Além disso, a direção garante autonomia para que o professor realize o seu trabalho em sala de aula e se preocupa em providenciar os recursos materiais necessários para isso. Além disso, o grupo de docentes é coeso: Poucas colegas pedem transferência... Eu tenho uma colega que aposentou com 30 anos aqui na escola... Tem outra de 30 anos... tem muita gente que está há 25, 30 anos na escola. [...] O grupo aqui ajuda porque é um grupo coeso. Todo mundo se ajuda... Está todo mundo buscando o bem do menino. E a escola dá uma certa autonomia pra gente trabalhar... Ela cobra, mas dá uma autonomia. Você tem um respeito... Eu sinto esse respeito e isso é muito importante. Fazem o possível pra gente estar tendo o que a gente precisa na sala de aula... Isso tudo ajuda, né? E também uma boa relação, um bom relacionamento entre o pessoal da escola. Cristina gosta de compartilhar com suas colegas as atividades e textos que desenvolve para o trabalho com seus alunos. Os horários reservados para desenvolver seus projetos e mesmo o recreio são, muitas vezes, utilizados para isso. Considera que o bom entrosamento do grupo de professores é devido ao modelo de direção que não incentiva a competição entre os colegas: 108 Com uma direção que não dá margens a fofocas, não tem mais aqueles grupinhos. Claro que não são as mil maravilhas, como todo relacionamento humano, mas isso ajuda. [...] Você fica mais animada para trabalhar. Você chega aqui às sete horas da manhã e está todo mundo rindo, feliz da vida... É uma ou outra que está para baixo e todo mundo a levanta. Daqui a pouco está todo mundo gargalhando... Acho que isso é muito bom. Isso ajuda a gente também: estar bem no local que trabalha. 4.1.11 Estratégias para preservar a saúde Cristina não hesita quando é preciso efetuar mudanças na sua vida profissional, se for para garantir seu bem-estar. Para ela, seu trabalho não deve estar restrito ao cumprimento de regras engessadas. É preciso sentir-se livre para trabalhar, pois considera cada aluno como um ser único que deve ser tratado na sua singularidade, mesmo sendo crianças: Você tem que conhecer os meninos... Cada menino tem o jeito de tratar. Tem menino que você pode berrar e gritar que ele não está nem aí e continua seu amigo. Ele vai continuar fazendo a mesma coisa. Agora tem uns que se você der um grito com ele, esse menino vai desmontar. Com alguns, você tem que falar duro, com outros, você tem que falar manso. Tem uns que quer que você abrace, todo dia quer um abraço, outros não querem nem esbarrar em você. Cada menino é de um jeito. Quer dizer, você tem que aprender a lidar com isso também. Ela se preocupa em cumprir o conteúdo das disciplinas que devem ser ensinadas aos alunos, mas procura respeitar o ritmo de aprendizagem da turma. Para ela, é necessário saber avaliar o que será melhor tanto para a sua vida pessoal quanto para a sua carreira. Por isso, preferiu pedir transferência de uma escola onde gostava de trabalhar para ter o benefício de continuar almoçando em casa e vendo seus filhos. Isso contribuiu para reduzir seu “stress”: “Então, não tem muito stress. E eu procuro me livrar de tudo que é estressante. Eu procuro me livrar mesmo.” Confiante no bom trabalho que realiza com seus alunos, Cristina reconhece que a docência é uma atividade desgastante, tanto para o físico quanto para a mente. Ainda assim, não se sente confortável quando precisa se ausentar de seu trabalho por motivos pessoais, pois para ela seu trabalho não se trata de “um bico”. Entretanto, quando percebe que precisa de uma pausa, não se priva de usufruí-la. Ela relatou que ao final de 2009, ganhou de presente uma temporada num spa, mesmo faltando 10 dias para o início do período de férias, procurou a equipe médica da Prefeitura para conseguir uma licença, pois estava se sentindo muito cansada e não gostaria de perder essa oportunidade. Já havia terminado todas as atividades do ano 109 letivo. Experimentou um conflito pessoal sobre se devia tentar conseguir uma licença médica ou não, mas sentia que estava realmente precisando descansar. Faltando apenas um dia para tomar uma decisão definitiva a respeito de solicitar a licença ou desistir da temporada no spa, resolveu agendar uma visita ao psiquiatra e relatou ao médico sobre sua necessidade de descanso. O médico indagou se ela já havia sofrido com sintomas de depressão, pois a considerou ansiosa. Mas Cristina respondeu que, quando percebe que pode estar à beira da depressão, procura reagir. Afirma que não gosta de se sentir ou mesmo falar que está doente. “Eu não tenho prazer em falar que estou doente. Eu quero é estar feliz, eu quero estar bem para cuidar de tudo. Nem gripe eu curto, nem gripe. Aí ele me deu a licença, viajei, voltei linda e maravilhosa. Foi ótimo.” Ela disse ter se sentido aliviada quando se submeteu à avaliação da junta médica da Prefeitura e a especialista que lhe atendeu ter concluído que o fato de estar se sentindo esgotada já era motivo suficiente para merecer a licença: “[...] É bom ouvir isso de um profissional: (eu também acho)... Eu custei a admitir... para eu pegar essa licença. Mas eu deixei alguém no meu lugar... Já estava tudo planejadinho.” Apesar de evitar as licenças médicas, Cristina prefere assumir que, algumas vezes necessita de descanso, do que tentar resistir até o fim de sua capacidade física e mental. Mesmo comprometida com seu trabalho, ela não negligencia os cuidados com sua saúde. Aceitar suas fragilidades não se constitui em um sinal de desinteresse pelo trabalho ou falta de profissionalismo. No entanto, de maneira geral, preocupa-se com os alunos, com o bom funcionamento da escola e, por esse motivo, prefere não se ausentar do trabalho, sendo que, algumas vezes compareceu mesmo doente. Em uma ocasião, havia torcido o pé na escola, mas foi trabalhar mancando, não aceitando sequer ir ao médico para solicitar um medicamento para dor. Não queria se ausentar da escola porque ficava preocupada com seus alunos. Aí, à noite meu pé estava doendo tanto e eu falei com meu marido: Ah, eu não quero... eu não quero ficar sentindo dor... eu não quero meus meninos jogados. Porque os meninos ficam jogados... [...] Meu marido é pastor. Ele chegou... tinha vindo de um culto em que um pastor faz curas e ele pegou meu pé, orou e eu acreditei: gente, o meu pé vai melhorar. Eu não vou ter que ir ao médico. Aí, no dia seguinte continuei mancando, eu cheguei aqui sem conseguir por o pé no chão: tem que ir ao médico. Eu não vou! Meu pé vai ficar bom! E à tarde eu não tinha mais nada. Hoje, eu sinto raramente uma dorzinha aqui. Não tive que ir ao médico. Meu pé não ficou inchado... 110 Durante o período em que estávamos realizando as observações na escola, Cristina precisou solicitar uma licença, pois não estava se sentindo bem e, dessa vez, reconheceu que a licença médica se tratava de um direito seu. Eu te falei que eu não me deixo adoecer, né? Eu estive de licença por três dias porque, dessa vez, eu me permiti. Eu estava precisando... Eu estava precisando ficar em casa e descansar. Aí, eu assumi toda a responsabilidade: não! Eu acho que estou me doando demais! Então, eu mesma me permiti três dias em casa. Eu aceitei ficar doente... Porque eu não gosto de aceitar, mas eu estava precisando. Assim, embora evite ir até o limite de sua capacidade de suportar, Cristina não se sentiu confortável quando precisou dar uma pausa em seus afazeres para descansar. Está acostumada com a correria diária e se orgulha de ser uma pessoa dinâmica. Mas preferiu admitir que estivesse se sentindo muito cansada do que tentar resistir até o término do ano letivo. Para ela, o final do segundo semestre é um período muito desgastante no trabalho docente, pois é quando o professor deverá contabilizar os resultados de todo seu trabalho durante o ano, por meio da avaliação que deverá fazer sobre o desempenho de seus alunos. Além disso, o professor deve se submeter aos prazos estabelecidos pela escola para preenchimento das fichas avaliativas dos alunos, para lançamento nos diários de classe dos conteúdos trabalhados nas aulas e para entrega desses documentos na secretaria. Quando atribui uma nota ao aluno, o professor sente como se estivesse avaliando o seu próprio trabalho e isso muitas vezes pode ser extenuante para uma profissional tão dedicada como é o seu caso. 4.2 Análise do caso Cristina sempre trabalhou como professora e, logo que iniciou na carreira, gostou de seu trabalho, pois já nutria uma admiração pela docência desde que era aluna. Nascida em uma cidade do interior e incentivada por sua família a estudar tinha o objetivo de deixar o campo para conseguir um futuro mais promissor. Sua mãe queria proporcionar aos seus filhos a oportunidade de estudar e melhorar sua condição socioeconômica e achou conveniente que a família se mudasse para Belo Horizonte. Ser “menina da roça” não era um atributo que agradava a ela e por esse motivo, preferiu aproveitar da melhor maneira que podia a oportunidade de estudar para tentar progredir. Procurava ser aplicada nos estudos para ser reconhecida como uma aluna 111 inteligente, apesar de sua origem humilde. Sempre acreditou que se persistisse e se esforçasse, conseguiria progredir. Desse modo, nunca desviou a atenção dos seus objetivos; logo que terminou o magistério começou a trabalhar, mas não quis parar de estudar, pois, nessa época, ainda não era obrigatório que o professor de curso primário tivesse formação superior. Assim, continuou trabalhando e cursando pedagogia. Logo que se formou, já buscou uma pós-graduação e tentou o concurso para professor da Prefeitura, pois tinha urgência em progredir. Apesar de ser muito tímida, no início de sua carreira, sabia que teria que superar essa dificuldade para conseguir trabalhar e melhorar sua condição social. O incentivo que recebia de seus professores lhe dava força para superar as dificuldades e ao mesmo tempo fazia com que admirasse mais o trabalho docente. É importante ressaltar que ela estudou em uma época em que o professor gozava de respeito de toda sociedade e ela também estava interessada em ser merecedora da mesma admiração e reconhecimento social. Entretanto, essa relação sofreu uma grande transformação com o passar do tempo e hoje não é essa a imagem que o docente representa na sociedade. Desse modo, ela tem que estar constantemente avaliando o que a realidade da docência lhe apresenta e criando alternativas para conseguir trabalhar. No período da implantação da Escola Plural, tentou seguir fielmente suas prescrições para se sentir fazendo parte do grupo que trazia essa proposta considerada tão inovadora. Mas quando percebeu que, na prática, essas inovações não se aplicavam, preferiu retornar ao modelo de educação tradicional, pois se sentiu mais segura. Para ela, atender aos objetivos da maioria apenas para se sentir parte do grupo não era compensador quando se tratava de prejudicar o desenvolvimento de seus alunos. Ao perceber que o resultado de seu trabalho estava ruim, decidiu que seria melhor seguir o que a sua experiência como professora vinha lhe indicando. Ela reconhece que alguns aspectos da Escola Plural foram benéficos para o seu trabalho, mas quando percebe que algumas atividades sugeridas não lhe agradam, não hesita em transformá-las, adequando-as ao seu estilo pessoal de trabalhar. Também não se limita a adotar as atividades que elabora apenas em sua sala de aula. Gosta de compartilhar suas experiências com os colegas de trabalho e, muitos deles, experimentam as sugestões dela com os próprios alunos. Considera também que o trabalho do professor não pode ficar restrito ao cumprimento de propostas baseadas 112 apenas em referências teóricas. É sempre o cotidiano da escola, a partir da necessidade que identifica nos seus alunos, que direciona sua atividade. Cristina é capaz de reconhecer em seu trabalho o resultado do seu próprio esforço. Gosta de ser elogiada, mas não depende disso para constatar que, quando seus alunos conseguem obter bons resultados, muito de seu empenho profissional ali está presente. No entanto, apesar do seu grande compromisso com a profissão, tem consciência dos seus limites como ser humano e não aceita que lhe sejam impostas tarefas que julga ser impossíveis. Preocupa-se com seus alunos, mas sempre que possível convoca a participação das famílias na educação das crianças. Além disso, respeita, em grande medida, seus limites físicos e mentais, tentando não ultrapassá-los. Ela prefere trabalhar em escolas diferentes a permanecer nos dois turnos na mesma escola, pois gosta de diversificar suas atividades e as pessoas com quem convive para ter oportunidade de conversar sobre temas diferentes. Sente-se entediada quando lida com um pequeno grupo de pessoas. Também procura exercer a docência em escolas localizadas próximas de sua casa para ter mais tempo de convivência com sua família. Não abre mão de sua vida pessoal, apesar do seu compromisso e do prazer que sente realizando o seu trabalho. Cristina não tem tempo para se dedicar a outras atividades além de seu trabalho durante a semana, mas já faz planos para a aposentadoria. Entretanto, enquanto aguarda esse momento, procura realizar o seu trabalho da melhor maneira possível, pois não o considera um “bico”. Trabalhando como professora há mais de 20 anos, admite que esteja se sentindo cansada fisicamente, mas não desanimada: preocupa-se com seus alunos e quer ver os resultados do seu trabalho. Essa persistência indica que ela tem conseguido preservar sua identidade profissional e sua saúde, pois sintomas do burnout como despersonalização e falta de envolvimento com o trabalho ou mesmo exaustão emocional não aparecem no seu relato. Ao contrário do que vem ocorrendo com muitos docentes, a passagem do tempo e o fato de lidar diariamente com dificuldades, não minou sua disposição inicial para o trabalho. Para Cristina, é exatamente a experiência adquirida, na medida em que realiza sua atividade, que lhe dá segurança para continuar sua carreira, aperfeiçoando cada vez mais sua prática. Por conseguinte, o aumento da frequência de resultados satisfatórios no 113 trabalho, reforça sua autoconfiança, incentivando-a na busca de novas estratégias para realizar sua atividade. Além disso, por ser professora efetiva na Prefeitura, aprovada em concurso público, não se sente vulnerável quando toma decisões que, muitas vezes, são contrárias às prescrições da SMED. Ela não aceita participar de treinamentos ou cursos de capacitação nos horários em que deve ministrar suas aulas, especialmente quando sabe que seus alunos e a organização da escola ficarão prejudicados, pois não há professores suficientes para substituir os ausentes. Também questiona alguns aspectos da Escola Plural, mas não se priva de elaborar alternativas para trabalhar a partir da metodologia proposta, pois considera que muitas diretrizes que vêm para o professor não são factíveis justamente por não levarem em consideração o cotidiano da escola e a realidade da clientela. Tudo indica que ela consegue realizar satisfatoriamente sua atividade como professora porque é capaz de criar novas normas para sua atividade. Clot (2006), baseando-se em Canguilhem, destaca que é possível falar de saúde quando o sujeito consegue transformar as imposições da realidade em um recurso para forjar alternativas de enfrentamento dos desafios como novas normas de vida. A preferência de Cristina pelo trabalho em sala de aula nos dá evidências de que, nesse ambiente, ela tem maior autonomia para realizar sua atividade. A regência permite ao professor um maior controle sobre o processo de trabalho. Nesse espaço, apesar da imposição das normas e técnicas que podem funcionar muitas vezes como obstáculos na relação que se estabelece entre professor e aluno, ela percebe a possibilidade de expressão de sua subjetividade. Assim, tem oportunidade de trazer para a relação de trabalho suas vivências, suas experiências pessoais, sua afetividade, favorecendo a criação de um estilo próprio de trabalho. Isso vai permitir que se reconheça nos resultados de seu trabalho o que a incentiva a prosseguir. Além disso, admitir que não seja perfeita, que possa cometer falhas e que tenha limites físicos e psíquicos também a ajuda na preservação de sua saúde mental. Outro fator que desejamos ressaltar aqui, diz respeito ao idealismo do professor em relação à sua profissão. Conforme Codo et al (2002), essa atitude pode levar à criação de expectativas elevadas que, quando frustradas, contribuem para o adoecimento. No caso de Cristina, observamos que a docência é vista como uma profissão que oferece muitos desafios. No entanto, mesmo dizendo que gosta de seu 114 trabalho, ela admite ser a docência uma profissão que não tem sido compreendida e valorizada pela sociedade de um modo geral e se ressente disso, pois vai contra aos seus objetivos de juventude de conseguir alguma projeção social por meio do trabalho. Mas isso não é suficiente para lhe causar o desejo de desistir da carreira porque sua vida não se resume às atividades profissionais. Preservar sua vida pessoal, cuidar e estar próxima da família são também aspectos essenciais para ajudá-la na preservação da saúde. Apesar de criticar os métodos desenvolvidos longe da realidade diária da docência, essa professora não os descarta totalmente. Utiliza os recursos que são oferecidos por eles para criar novos meios de abordar seus alunos e mobilizar-lhes a participação. Ela também convoca a participação das famílias dos estudantes, dividindo com elas a responsabilidade do processo de ensino–aprendizagem. Não se colocar numa posição de única responsável pelo bom desempenho do aluno também ajuda na preservação de sua saúde mental. Outro fator que favorece essa preservação é o reconhecimento dos seus próprios limites e daqueles impostos pelas características da atividade docente. O seu trabalho depende do ritmo da turma. A tentativa de fazer cumprir os programas sem levar em conta o fato que a docência é um trabalho que envolve interações, é um fator que agrava a ansiedade do professor. No caso de Cristina, a manutenção da saúde é possível também a partir de sua opção por acompanhar as turmas durante dois anos para que, assim, possa ter um tempo maior para desenvolver seu trabalho, sem se preocupar excessivamente com o cumprimento dos prazos. Outro fator que parece favorecer a preservação da sua saúde mental é a aceitação do adoecimento não como um sinal de fraqueza ou incapacidade, mas como uma pausa necessária para cuidar de si. Observamos que a sua disposição para enfrentar possíveis críticas por muitas vezes adotar uma postura mais independente diante do grupo de professores resulta da experiência que adquiriu no exercício da docência. A coragem de assumir riscos, experimentar o novo, criar novas estratégias para realizar o trabalho, conquistar sua autonomia, não se acomodando às situações aparentemente mais confortáveis, parece ser um resultado da sua experiência de vida, entrelaçada ao que também tem experimentado e apreendido no dia a dia de seu trabalho. Cristina é capaz de reconhecer aspectos positivos em muitas propostas da Secretaria Municipal de Educação e aproveita, a partir da própria experiência, aquilo 115 que considera bom. Sente-se livre para criar seu estilo próprio ao realizar o seu trabalho33. Seu relato revela uma postura de não submissão às exigências abusivas do trabalho. Assim, não se preocupar excessivamente com as avaliações 34 externas também parece contribuir para a manutenção da sua saúde mental. O trabalho do professor, conforme sua percepção, não é avaliado diretamente. O interesse recai sobre o desempenho do discente. Mas considerando que o produto do exercício dessa profissão é a aprendizagem do aluno, essa prática pode conduzir a desconsideração dos esforços empreendidos pelo professor. Por conseguinte, uma questão se impõe para Cristina: quando o aluno não obtém bons resultados nessas avaliações, significa que o professor não foi eficiente? Ela acredita que essa não seja a melhor forma de concluir sobre a eficiência desse profissional, já que esses resultados dependem de múltiplas variáveis, sendo que, algumas delas independem do professor. Acreditamos que essa postura crítica a respeito da forma como o seu trabalho é tratado pela Secretaria Municipal de Ensino também vem contribuir para a preservação de sua saúde, pois favorece a diminuição de sua ansiedade em relação às avaliações externas na medida em que está consciente de realizar seu trabalho da melhor maneira possível. Entretanto, é preciso destacar que o apoio da direção da escola também contribui para a realização do trabalho docente de um modo satisfatório, segundo a própria Cristina. Ela afirma que a direção não é um cargo de poder e disputa na EMBRA. Os professores, muitas vezes, se revezam ao ocupar a gestão da escola e, ao término do mandato, não se opõem a retornar à sala de aula como regentes. Para Clot (2010), o coletivo de trabalho não se reduz ao trabalho coletivo onde há apenas uma cooperação dos sujeitos, situada no tempo presente. Ele, na verdade, representa a história do coletivo em cada trabalhador, ou seja, a memória profissional que cada sujeito pode resgatar para si mesmo, com o objetivo de agir. Trata-se do gênero da atividade que se constitui no patrimônio de gestos, palavras e técnicas que serão utilizadas ou não, mas que compõem o legado de uma história que não necessariamente precisa ser dita, pois está subentendida e é identificada por todos que pertencem ao coletivo de trabalho. Cada profissional conhece esse código e é a partir 33 Conforme definição de Clot (2006), o estilo diz respeito à maneira pessoal e singular como cada trabalhador incorpora as regras do coletivo de trabalho, influenciando o seu próprio modo de fazer e garantindo maior plasticidade e flexibilidade na execução da atividade profissional. 34 Tais como PROALFA, Prova Brasil, SIMAVE, Avalia BH. 116 dele que o sujeito pode estabelecer o seu modo particular de realizar a sua atividade, sendo, então, capaz de reconhecer-se na sua atividade. Nas situações profissionais em que o sujeito está impedido de recriar seu modo de fazer a partir da história do coletivo de trabalho, ele apenas executa a tarefa sem se sentir parte de sua atividade. Desse modo, muitos casos de adoecimento no trabalho encontram aí a sua origem. Entretanto, se o trabalhador puder desenvolver sua atividade e, consequentemente, afetar a atividade do coletivo, imprimindo nele algo de si mesmo, poderá recuperar o sentido e o poder de agir naquilo que realiza. Como foi possível identificar, a partir do relato de Cristina e de nossas observações na EMBRA, o trabalho do professor não se restringe à execução das tarefas que previamente são prescritas pela Secretaria Municipal de Educação. Desse modo, o docente pode se sentir livre para criar outras possibilidades de realizá-lo a partir dos meios que lhe são disponíveis e das trocas de experiências que são estabelecidas no coletivo. Sendo assim, não podemos negligenciar o fato de que o contexto dessa escola seja altamente favorável, permitindo aos docentes o exercício da autonomia e a construção de um estilo próprio de trabalho, o que é, infalivelmente, central na preservação da saúde. 117 Capítulo V Considerações finais Nosso estudo revelou que o trabalho em docência está repleto de desafios para o professor. Essas dificuldades dizem respeito às questões mais objetivas do cotidiano, como as que estão relacionadas aos tempos e processos inerentes a essa profissão e àquelas que estão relacionadas ao fato de ser a docência uma atividade que se efetiva somente a partir da interação entre pessoas. Nosso interesse inicial foi o de identificar os fatores que poderiam contribuir para o adoecimento mental dos professores, já que essa categoria profissional está entre as mais frequentes na amostra dos prontuários do HEAL analisados na primeira fase de nossa investigação. Entretanto, ao nos aproximarmos do trabalho professor, realizando observações de sua atividade, conhecendo o seu local de trabalho e ouvindo o seu relato sobre o dia a dia da docência, a pergunta que inicialmente motivou a investigação se tornou mais abrangente: como ele consegue realizar o seu trabalho e preservar sua saúde mental, já que a docência atualmente tem sido considerada como uma profissão que implica superar desafios cotidianamente? As observações que realizamos na EMBRA nos possibilitaram um acesso ao trabalho do professor que não seria possível se tivéssemos apenas consultado as publicações que tratam do assunto. Observamos que se trata de uma escola que, como muitas outras, está envolvida com os desafios da educação no Brasil, mas apresentando um modo particular de administrar os conflitos do cotidiano. Há mais de trinta anos no bairro, tem o apoio e respeito da comunidade, pois muitos dos professores que ainda lecionam na escola foram professores dos pais dos atuais alunos. Além disso, nessa instituição escolar, encontramos docentes que ali trabalham há mais de vinte anos sendo que, alguns deles já poderiam se aposentar, mas permanecem exercendo a docência. Desse modo, consideramos que a permanência do sujeito em sua profissão não pode ser entendida apenas como resultado de uma escolha vocacional bem feita ou de uma tendência do sujeito a idealizar a docência decorrente de sua estrutura de personalidade. Não se trata da expressão de dons ou qualidades inatas recebidas como dádivas nem tampouco de uma dada forma de estruturação psíquica. A persistência na carreira docente, apesar das condições adversas que se apresentam no cotidiano dessa 118 profissão, parece estar relacionada, acima de tudo, às condições oferecidas para o exercício de sua ocupação. Carlotto (2002, p. 26), ao expor sobre a síndrome de burnout, afirma que “é importante considerar as características do trabalho do professor e as especificidades de suas instituições de ensino”, quando se pretende uma compreensão das causas do seu adoecimento. Entretanto, consideramos importante ressaltar que não se trata de atribuir somente aos fatores sociais as causas diretas desses transtornos. Concordamos com Le Guillant (2006) quando afirma que tanto as condições do meio quanto os acontecimentos cotidianos têm um significado singular para cada indivíduo. Para que possamos compreender a dinâmica que se instala entre o trabalho docente e a possibilidade de preservação da saúde do professor é necessário que consideremos também a trama que se estabelece entre as condições materiais do trabalho e as experiências vivenciadas pelo sujeito em sua história pessoal. Desse modo, uma investigação que leve em conta apenas os fatores sociais ou apenas os fatores psicológicos como causadores de sofrimento ao trabalhador irá culminar em uma análise equivocada, sobretudo, pelo seu reducionismo. Um fator que parece contribuir significativamente para a preservação da saúde desse profissional é a experiência adquirida e acumulada ao longo de sua carreira. Um longo período na carreira docente, antes de significar apenas o desgaste para o profissional ou ser o fator desencadeante de distúrbios mentais, pode lhe proporcionar a aquisição do conhecimento sobre o dia a dia de sua atividade, permitindo-lhe antecipar os possíveis problemas para, desse modo, criar soluções inovadoras sem muito esforço, afastando, então, as possibilidades de mal-estar na profissão e garantindo a confiança necessária em sua habilidade. O professor mais experiente é também aquele que conhece todos os códigos do gênero da atividade. Conforme Clot (2010), o trabalhador experiente traz em si toda a história do coletivo de trabalho e, consequentemente, tem melhores condições de lançar mão do conhecimento adquirido pelo seu grupo de docentes, criando um estilo próprio de trabalho. Desse modo, o poder de agir é adquirido junto do coletivo de trabalho e está relacionado àquilo que o sujeito consegue mobilizar de sua atividade pessoal a partir do universo das atividades dos outros. Ressaltamos ainda que a obtenção de resultados satisfatórios na docência não depende apenas do desempenho do professor, pois se trata de uma atividade que 119 pressupõe interações entre seres humanos. O aluno é ativo no processo de ensino e aprendizagem e a sua participação é um fator importante no trabalho docente. Desse modo, a docência não pode se efetivar como um trabalho isolado. Conforme Carlotto (2002), o isolamento social que pode se instalar no trabalho docente, torna os professores vulneráveis ao adoecimento. Isso é decorrente de uma tendência do educador a vincular suas atividades ao atendimento do aluno, não se interessando, muitas vezes, por aquelas que envolvam seus colegas de trabalho. Paschoalino (2009, p. 130) também ressaltou que o “silenciamento” dos professores diante de suas dificuldades, que pode estar relacionado ao exercício de seu trabalho de um modo solitário, faz com que desistam de lutar coletivamente por melhores condições de trabalho, sendo este, outro fator de mal-estar. Entretanto, na EMBRA, observamos que os professores formam um grupo bem entrosado e que é comum a troca de experiências e conhecimento entre eles. Levando em consideração as análises anteriores, só podemos concluir que esse aspecto contribui para a preservação da saúde do professor que, assim, se percebe verdadeiramente como parte de um coletivo profissional. Também observamos que, mesmo para o professor bem-capacitado, não é possível fazer previsões exatas sobre os resultados do processo de ensino e aprendizagem, pois o grupo de alunos tem um ritmo próprio, cabendo ao docente conduzi-lo enquanto coletivo, mas tentando sempre favorecer o despertar do potencial de cada um. Desse modo, as turmas não podem ser tratadas como uma massa amorfa que deverá ser moldada pelo docente. Isso fica claro no pensamento de Vygotski (2005), ao dizer que a criança utiliza, de um modo ativo e em si mesma, as formas de conduta que os outros utilizaram primeiramente com ela. É a partir desse movimento que sua atividade individual vai se desenvolver na atividade social. Os recursos que favorecem o seu desenvolvimento são fornecidos a partir das relações que estabelece com os outros na interação que ocorre em tempo real ou mesmo por meio do resgate de toda a história da humanidade. Assim, o aluno toma parte do processo de ensino-aprendizagem, trazendo consigo aspectos de sua subjetividade e as marcas de sua história pessoal. Por esse motivo, deve ser considerado em sua singularidade, o que constitui desafio diário para os educadores. Como se trata uma atividade que pressupõe o intercâmbio entre pessoas, as novidades, as situações inusitadas, as surpresas são bastante frequentes nesse processo. O professor 120 tem que estar atento às necessidades de seus alunos para, se for preciso – e muitas vezes, repentinamente – mudar a forma de abordá-los para despertar seu interesse pelo conteúdo e garantir sua atenção em sala de aula. Desse modo, quando as condições de trabalho impedem que o docente desenvolva, a partir das diretrizes educacionais, o modo particular de trabalhar, passa apenas a executar o que já está estabelecido e, consequentemente, torna-se incapaz de se reconhecer em sua atividade. Tal restrição ao seu modo de trabalhar pode resultar em alguma forma de desgaste ou mesmo no adoecimento. Em nosso estudo, observamos que o sujeito pode ser capaz de mobilizar, a partir do universo das atividades do grupo a que pertence, saídas possíveis e inovadores para lidar com os problemas. É justamente ao enfrentar os problemas que o sujeito pode adquirir a experiência necessária para defrontar futuras situações que possam ameaçar a preservação de sua saúde. Clot (2010) baseia-se em Canguilhem (1990) para afirmar que, nessas situações, o sujeito terá possibilidade de resgatar o seu poder de agir como uma resposta às dificuldades. Mas, o autor ressalta ainda que ele seja desenvolvido justamente a partir e junto do coletivo profissional, onde o sujeito se abastece para criar o próprio estilo de realizar sua atividade. Desse modo, é preciso destacar que o apoio da direção da escola contribui para a coesão do grupo de professores e para a realização do trabalho docente na EMBRA. A direção não é, nessa instituição de ensino, um cargo de poder e disputa, pois a gestora se percebe como participante do coletivo de trabalhadores. Os professores, muitas vezes, se revezam ao ocupar a direção da escola e, ao término do mandato, os ex-diretores não se opõem a retornar à sala de aula. Na EMBRA, a definição do gênero da atividade não é uma pretensão das posições hierárquicas superiores, pois a autonomia do professor para realizar sua atividade é respeitada. Assim, as dificuldades que se apresentam a partir da interação professor-aluno podem ser superadas quando o docente tem possibilidade de criar estratégias de abordagem da turma baseando-se na própria experiência e em conformidade com o ritmo da aprendizagem dos alunos. Como o trabalho do professor é um trabalho de interações, na situação em que ele se percebe como protagonista de sua atividade, possuidor de autonomia e de poder de decisão, terá maiores condições de desenvolver estratégias criativas para realizar seu trabalho. Também observamos que, nessa escola, o horário de planejamento das aulas é respeitado pela direção, evitando substituições de um docente por outro que esteja 121 cumprindo esse horário. O respeito pela decisão do próprio professor sobre como irá utilizar as quatro horas semanais reservadas para o desenvolvimento de seus projetos parece representar também um fator importante de preservação da saúde. Na EMBRA, a direção não interfere diretamente no trabalho do professor porque compreende que ele deve ter autonomia para conduzi-lo. Está à disposição para auxiliálo, mas é o professor quem planeja e executa o seu trabalho individualmente. Por outro lado, nas decisões a respeito da utilização de verbas para desenvolvimento de novos projetos, todo o corpo docente é convidado a opinar e isso também favorece a coesão do grupo. Outro aspecto que destacamos é o fato de a implantação da Escola Plural ter mobilizado a decisão desse grupo de professores pela contratação de uma consultoria para ajudá-los a administrar os conflitos advindos das inovações propostas. Os principais impactos desse modelo deixados na EMBRA, diziam respeito aos novos critérios de avaliação do aprendizado dos estudantes. Entretanto, nessa escola, os professores tiveram a autonomia necessária para dar pareceres sobre a necessidade ou não da retenção do aluno. A direção da escola apóia suas decisões, pois considera que o professor é quem conhece seu aluno e, desse modo, é quem tem a prerrogativa de avaliar o seu rendimento. Assim, as inovações da Escola Plural foram desafiadoras para o grupo de professores dessa escola, mas não percebemos que houvesse uma total rejeição a elas, pois alguns aspectos foram aproveitados e modificados de modo a favorecer o seu trabalho. Conhecemos uma realidade docente desafiante como em todas as escolas, mas na EMBRA observamos que o trabalho do professor tem sido possível a partir das alternativas que se revelam, tanto nos projetos individuais, como nas estratégias de criação de novas normas pelo grupo de educadores. Um exemplo disso é o grupo teatral da escola que aborda temas que façam parte do cotidiano dos alunos e são trabalhados transversalmente aos conteúdos do currículo. Essa proposta de educar por meio das artes cênicas, se revela como uma alternativa inovadora, mas elaborada com base nas diretrizes da Escola Plural. Estas estabelecem para as escolas a construção de um currículo a partir da abordagem das disciplinas tradicionais, perpassadas por temas relacionados à realidade contemporânea, tais como, violência, exclusão, miséria, preservação ambiental, direitos humanos, visando à educação para a cidadania. Esses 122 temas são tratados por meio de textos teatrais, muitas vezes, elaborados na própria escola, ao mesmo tempo em que a oralidade, além da escrita, é trabalhada como um dos elementos mais importantes na aprendizagem da língua portuguesa. Vimos que, quando o professor tem possibilidade de articular os aspectos de sua história pessoal com condições de trabalho que não venham a restringir sua autonomia profissional, apesar das dificuldades que possam estar presentes, será capaz de forjar novos meios de realizar sua atividade. A oportunidade de nos aproximar do trabalho docente, permitiu verificar que esses aspectos não se apresentam isoladamente para o sujeito e tampouco podem ser considerados numa escala que leve em conta seu maior ou menor grau de importância para a manutenção da saúde mental do trabalhador. É a sua articulação que vai ser fundamental para favorecer a possibilidade do trabalhador se manter saudável estando submetido a tantos desafios, como é o caso do professor. Ao procurar desenvolver novos recursos para atuar com seus alunos, compartilhando-os com os colegas, o professor também contribui para renovar as práticas de se trabalhar na EMBRA. A possibilidade de criar um estilo próprio para realizar o seu trabalho é fundamental para a manutenção da sua saúde, bem como para garantir o desenvolvimento da docência sob o aspecto de gênero da atividade, pois, conforme Clot (2006), o gênero se renova a partir da criação e da divulgação das inovações que o trabalhador pode desenvolver em seu estilo próprio de realizar a atividade. Esse autor ressalta que o trabalho coloca o homem diante de si mesmo, do produto que cria e do outro, pois se constitui na capacidade humana de estabelecer engajamentos. (Clot, 2006). Entretanto, ele perde o sentido quando não permite a realização das metas e valores que o sujeito extrai de todos os domínios de sua vida, podendo gerar sentimentos de mal-estar e levar a um consequente adoecimento. Desse modo, consideramos oportuno retomar aqui o caso de Jandira, que em nosso estudo vem ilustrar o que Clot (2006) considera como uma “amputação do poder de agir” (p. 10), ou seja, uma situação de trabalho em que o sujeito não pode dispor de suas próprias ações e não tem possibilidade de “transformar seu vivido em recurso de vivência de uma nova experiência” (ibid.), criando novas normas de vida a partir dos meios disponíveis e das trocas com o coletivo de trabalho. 123 Jandira se encontrava impedida de forjar suas próprias estratégias para realizar sua atividade profissional, por estar inserida em uma organização de trabalho contrária ao desenvolvimento do gênero. O rigor no cumprimento das prescrições da escola particular onde lecionava não deixava espaço para que o professor exercitasse o saber adquirido a partir de sua vivência cotidiana e experiência profissional, não sendo possível, então, as trocas entre o coletivo de trabalho, pois era exigido que o docente apenas reproduzisse o que estava pré-determinado pelas diretrizes educacionais estabelecidas pelos gestores. Tratava-se de uma situação em que a atividade era constantemente impedida ou contrariada. Estando submetida a essa organização de trabalho rígida e opressora, Jandira foi impedida de construir seu próprio modo de realizar sua atividade, ficando consequentemente, impossibilitada de exercitar o seu poder de agir. Uma vez que a docência pressupõe interações entre pessoas, realizá-la apenas repetindo fórmulas forjadas por terceiros, causou, nessa professora, um intenso malestar, pois ela não conseguia se reconhecer em sua atividade. Por mais que se esforçasse para trabalhar da melhor forma possível, não tinha liberdade para experimentar o que o cotidiano lhe apresentava, uma vez que o descumprimento das regras estava terminantemente proibido. O homem não está para seu trabalho apenas como um mero executante de instruções prescritas previamente. Sua posição no trabalho é a de engajamento em “vários mundos e diversos tempos vividos simultaneamente [...] cujas contradições espera superar” (Clot, 2006, p.61). Ao desprezar a relação entre o dado e o recebido, o trabalho regido somente por imposições exteriores pode impedir que o trabalhador estabeleça as regulações necessárias para a realização efetiva de sua atividade. Conforme Clot (2006), quando as possibilidades de reação e autonomia do sujeito sobre sua atividade e sua vida fracassam diante de uma organização de trabalho que leva ao sujeito duvidar de sua própria capacidade, são gerados então, os fenômenos psicopatológicos (p. 61). Sem ter o domínio sobre sua atividade, a Jandira só restava executar o seu trabalho de forma pouco criativa. Além disso, as contradições que observou entre o que ela considerava ser necessário a uma boa professora e o que a escola exigia daqueles que compunham o corpo docente da instituição, deixavam-na insegura sobre sua própria capacidade de trabalho. Foi justamente o cerceamento de seu poder de agir que parece 124 ter ocasionado a eclosão da disfonia, como uma forma de expressar – mesmo através do silêncio – que aquela situação estava insuportável para ela. Em nosso estudo, tanto o caso de Cristina como a história de Jandira nos trouxeram evidências de como podem estar entrelaçadas a forma de organização de trabalho e a experiência de vida do sujeito para culminar ou não no seu adoecimento. Como nos lembra Canguilhem (1990), “a doença não é uma variação da dimensão da saúde, ela é uma nova dimensão da vida” (p.149), ou seja, para o autor, o estado mórbido não representa uma oposição à saúde. Tanto a condição de estar saudável como o adoecimento são aspectos próprios da vida. A doença é, entretanto, uma dimensão de vida reduzida, onde o sujeito não consegue estabelecer novos meios de superar as adversidades e se entrega a um único recurso. Ter saúde implica não se submeter a essa única norma, mas ser capaz de forjar novas normas de vida. Assim, em nossa investigação, ao darmos visibilidade a uma experiência bemsucedida, obtivemos também evidências de que a preservação da saúde do trabalhador depende da associação de suas características individuais e de uma determinada forma de organização do trabalho que permita a criação de modos inovadores de realização de sua atividade, a partir dos meios disponíveis, tal como pudemos comprovar por meio da história de Cristina. Do mesmo modo, verificamos o quanto o impedimento à participação do sujeito no desenvolvimento do gênero pode causar sofrimento e até mesmo levá-lo ao adoecimento. Assim o caso de Jandira permitiu que compreendêssemos que, para Cristina, é a possibilidade de “aumentar o seu raio de ação” (Clot, 2011. p. 9) colocando algo de si no trabalho, que favorece a preservação de sua saúde. Clot (2006), baseando-se em Canguilhem, destaca que quando a impotência para agir se torna uma provocação à ação e, a partir disso, o sujeito consegue transformá-la num recurso para forjar alternativas de enfrentamento dos desafios como novas normas de vida, encontramos, então, a saúde. Ou seja, se diante das dificuldades que se apresentam no seu dia a dia, se sente desafiado e reage, buscando estratégias criativas para conseguir realizar sua atividade, poderá se manter saudável. Poder de agir, conforme Clot (2010) é a possibilidade de criar novas normas. É poder dizer não àquilo que as dificuldades no trabalho impõem, sem negar sua existência. Enfim, é a tentativa de ultrapassá-las criando alternativas de vida. 125 Nossas observações nos permitiram comprovar que a docência é uma profissão repleta de dificuldades: baixos salários; discrepâncias entre o que é esperado e o que é oferecido ao professor; desvalorização do seu esforço; relações conflituosas com os discentes; pouco apoio por parte das famílias de alguns alunos; imposições de regras e prescrições que não levam em conta sua experiência. Mas, verificamos também que as soluções para esses problemas não se resumem à adoção, por parte do poder público, de medidas de valorização do trabalho docente considerando apenas os aspectos salariais, conforme vemos muitas vezes exposto na mídia. Em nosso estudo, os problemas de infraestrutura ou da falta de recursos financeiros na escola não aparecem como uma das principais dificuldades na docência. As tentativas de motivar o professor apenas por meio do aumento dos recursos financeiros não se mostram eficazes quando não há uma efetiva preocupação com o contexto no qual esse trabalho se realiza. Identificamos também que os cursos de capacitação oferecidos pela Secretaria Municipal de Educação não têm despertado o interesse dos professores porque, muitas vezes, não se baseiam na experiência daquele que mais conhece o cotidiano da docência. Esses treinamentos são considerados como tempo perdido por muitos docentes, significando mais um transtorno, do que uma solução para os problemas que enfrentam no seu dia a dia. Observamos que, com a saída de professores para esses treinamentos, muitas vezes, a EMBRA não dispõe de outros profissionais para sua substituição, tendo que criar alternativas para suprir a ausência do profissional, o que tem impactos importantes no seu funcionamento. Outro fator que emergiu da nossa investigação e que pode estar relacionado à insatisfação do professor, é o fato de seu trabalho ser reconhecido de modo indireto, ou seja, a partir do desempenho do estudante, já que o produto de seu trabalho é a aprendizagem do aluno. Percebemos que tal prática revela uma desconsideração pelos esforços que são empreendidos por esses profissionais para a obtenção dos resultados esperados. Concordamos com Paschoalino (2009) quando afirma que a perda do reconhecimento profissional nos dias atuais é um importante fator de mal-estar para o professor. Entretanto, nosso estudo trouxe evidências de que, quando o docente é capaz de se reconhecer nos bons resultados de seu trabalho, tem maior disposição para prosseguir nele, independentemente do reconhecimento externo. O reconhecimento do 126 trabalho pelo outro é importante, mas reconhecer sua própria marca nos resultados de seu fazer, parece favorecer marcantemente a satisfação do profissional (Clot, 2010). Desse modo, destacamos como essencial que as políticas públicas que dizem respeito à educação, busquem estratégias de valorização dos trabalhadores em docência não só a partir do suprimento das necessidades materiais. Boas condições de trabalho e salários compatíveis com a formação, qualificação, experiência e as necessidades pessoais do sujeito são muito importantes e devem ser consideradas, mas a garantia da liberdade de atuação do professor, possibilitando-lhe expressar sua subjetividade e permitindo-lhe criar recursos inovadores de ação no trabalho parecem ser essenciais para a manutenção de sua saúde. Há que se valorizar também o saber do trabalhador que se renova no dia a dia do exercício da profissão. As propostas de cursos de capacitação e treinamento haverão de ser ferramentas para acrescentar informações úteis para o professor. Os cursos de atualização haverão de ser oportunidades de troca e discussão das experiências adquiridas no fazer diário do professor. É preciso que o docente seja convocado a participar das resoluções sobre as diretrizes da educação, deixando de ser considerado um mero executor das prescrições desenvolvidas por acadêmicos, distantes da realidade da escola e dos alunos. Como nos indica Lima (2002a, p. 246), é fundamental atentar para “o modo pelo qual se articulam as características pessoais e certas condições de vida e trabalho, sem jamais desconsiderar a prioridade ontológica das últimas sobre as primeiras”. Desse modo, o nosso estudo apontou que a preservação da saúde do professor está relacionada à sua disposição para estabelecer novas possibilidades de realizar sua atividade a partir do que a realidade lhe vai apresentando, sendo que isso será possível na medida em que a organização do trabalho não impeça as trocas de experiências que serão estabelecidas com o coletivo. Consideramos necessário, ainda, ressaltar que, em nosso estudo, não abordamos o trabalho do professor sob uma perspectiva de gênero, embora saibamos que, nos dias de hoje, os docentes, em sua maioria, são do sexo feminino. No entanto, consideramos importante que, novas pesquisas possam ser desenvolvidas visando apreender as estratégias de manutenção da saúde mental adotadas pelas professoras em comparação aos docentes do sexo masculino, pois, conforme os resultados da pesquisa realizada por 127 Codo et al (2002, p. 62), “há um aumento paulatino e constante de profissionais do sexo masculino” na docência. Enfim, esse estudo não se pretende conclusivo e, muito menos, capaz de estabelecer generalizações, uma vez que a realidade do trabalho em docência é bastante diversificada. Desse modo, é fundamental que outras pesquisas prossigam no sentido de se apreender os diferentes aspectos do trabalho do professor, visando à compreensão mais abrangente dos fatores que afetam sua saúde, bem como as medidas que podem ser adotadas para a sua preservação. 128 REFERÊNCIAS Baptista, M. N. & Campos, D.C. (2007). Metodologias de pesquisa em ciências: análises quantitativa e qualitativa. Rio de Janeiro: LTC. 320 p. Batista, M. A. (2005). A preservação da saúde em situações patogênicas de trabalho. Mestrado em Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Becker, F. (1992) O que é Construtivismo. Revista de Educação AEC. Brasília, vol. 21, n. 83, abr-jun. pp. 7-15. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Secretaria Municipal de Educação. (1994). Escola Plural - Proposta Político-Pedagógica. Caderno 0. 1ª ed. Belo Horizonte. Canguilhem, G. (1990). O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 307p. Carlotto, M. S. 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