ENUNCIADO COMO UNIDADE DA COMUNICAÇÃO VERBAL uma leitura do texto de Mikhail Bakhtin Achilles Delari Junior* Fonte: http://arunrajagopal.files.wordpress.com 1 FINALIDADE DESSE MATERIAL A contribuição de Mikhail Bakhtin (1992a) sobre o que vem a ser um enunciado tem sido tomada como algo importante para muitos estudos em ciências humanas, dentre elas a psicologia em seus diversos campos, que busquem compreender a linguagem como processo vivo que transcorre como mediação por excelência das relações sociais entre seres humanos reais, numa situação concreta vivida. Tal atitude tem estado presente tanto nas apreensões teóricas mais ecléticas da obra deste autor quanto naquelas para as quais um maior rigor e coerência epistemológica se coloca ainda como critério necessário. Partindo da importância desse conceito chave e como uma forma de convidar o leitor ao estudo do clássico, exporei aqui uma síntese minha sobre a leitura que fiz dele há dez anos. As considerações dos itens 2 e 3 creio serem mais úteis ao leitor por sua maior proximidade à estrutura original do texto estudado. Já o que se coloca no item 4 tem ainda pertinência como problematização inicial, à qual eu acrescentaria estudos meus posteriores sobre linguagem, relações sociais, consciência e subjetividade, mas fica, ainda assim, aqui registrado como um convite ao diálogo e reformulação. 2 DEFINIÇÃO GERAL DO CONCEITO DE ENUNCIADO Segundo Bakhtin (1992a) o enunciado é a unidade da comunicação verbal que permite tratar a linguagem como movimento de interlocução real, ultrapassando a ficção científica postulada no velho paradigma “emissor-mensagem-receptor”. Do ponto de vista da filosofia da linguagem de Bakhtin, não existe um tal receptor passivo, e toda enunciação envolve a constituição de algo que se molda, desde o * Psicólogo pela UFPR, mestre em Educação pela Unicamp, na área de concentração “Educação, conhecimento, linguagem e arte”. E-mail: [email protected] 1 de 7 início, na direção de uma atitude “responsiva ativa” a ser tomada pelo interlocutor. “Responsivo”, portanto, nesse caso, nada tem a ver com a noção de “respondente” do behaviorismo de Watson, mas com a capacidade do interlocutor de proporcionar ativamente uma resposta, ou réplica, ao enunciado de quem o interpela. Um enunciado é um ato de linguagem cujos contornos permitem e solicitam que um outro realize uma apreciação valorativa (um estabelecimento de valores) com relação àquilo que falamos ou escrevemos. Ele não se reduz a formas sintáticas ou morfológicas isoladas, como orações ou parágrafos, nem tampouco ao “volume” (quantidade de palavras) do discurso, pois pode ir de um polissêmico “Ai!” a um romance polifônico como “Os Irmãos Karamazov”. Um enunciado define-se, basicamente, por três características: (1) a relação com o autor e os outros parceiros da comunicação verbal; (2) a alternância dos sujeitos falantes; e (3) seu acabamento específico. A seguir, um quadro resumindo este parágrafo (quadro 1). DEFINIÇÕES DE ENUNCIADO Negativas: n.1 não é uma “mensagem” num esquema abstrato E-M-R n.2 não é uma oração. n.3 não é um parágrafo. n.4 não é algo que tem um volume definido. Afirmativas: a.1 é uma unidade viva da comunicação real a.2 é uma unidade que envolve três características: a.2.1 a relação com o autor e os outros parceiros da comunicação verbal; a.2.2 a alternância dos sujeitos falantes; e a.2.3 seu acabamento específico. QUADRO 1 3 DEFINIÇÃO ESPECÍFICA DAS CARACTERÍSTICAS DO ENUNCIADO 3.1 A relação com o autor e outros parceiros da comunicação verbal Quanto à relação com o autor, tem-se em vista o fato de que uma palavra ou uma oração, como unidades da língua, não são “de ninguém”. Só funcionando como um enunciado completo é que elas podem ter um papel real na autoria individual. Mas isso só se dá numa relação que remete a um parceiro ou adversário. Para chegar a definir tal particularidade constitutiva do enunciado, Bakhtin passa pela discussão sobre outra característica fundamental do enunciado que é a possibilidade de alternância entre sujeitos falantes. 3.2 A alternância dos sujeitos falantes A alternância entre/dos sujeitos falantes é uma característica definidora do enunciado porque este, diferente da oração, não se circunscreve ao discurso de um 2 de 7 único sujeito falante, nem limita-se às relações sintáticas. O enunciado entra numa relação direta com a realidade (há uma realidade para além da linguagem, ao lado dela, junto a ela, com a qual ela entra em relação) e com os enunciados alheios – pode-se dizer que o enunciado implica assim questões “semânticas”, i.e., da ordem das relações entre o signo e o seu referente, tanto quanto questões da ordem das relações sociais. A pausa que desenha as fronteiras do enunciado de um locutor não é decidida por ele próprio, mas pela “resposta ou compreensão responsiva de outro locutor” (Bakhtin, 1992a, p. 296). “A pausa entre os enunciados é um fato real e não um fato gramatical” (idem). Sendo assim, podemos deduzir que as pessoas não trocam apenas “orações”, nem tampouco apenas “palavras”, se tomadas como unidades lexicais (tal como constam no léxico - dicionário) ou morfológicas (tal como definidas pela sua forma sonora ou gráfica), as pessoas trocam, alternam, enunciados que possibilitam e solicitam uma tomada de atitude por parte de um outro. A alternância move-se pela construção e/ou reivindicação de uma réplica cujas conseqüências são posicionamentos concretos diante da realidade humana, no cotidiano, tanto quanto naquilo em que necessitamos ir além das categorias do cotidiano (na estética, na ética, na ciência, na cidadania). Esta característica de alternância, por sua vez, leva a pensar outro aspecto definidor do enunciado que é o acabamento. 3.3 O acabamento específico O acabamento, ou “totalidade acabada do enunciado”, é tomado como “a alternância dos sujeitos falantes vista do interior”. As determinações de um tal acabamento remetem a três fatores indissociáveis: “1) o tratamento exaustivo do objeto de sentido; 2) o intuito, o querer-dizer do locutor; 3) as formas típicas de estruturação do gênero de acabamento” (BAKHTIN, 1992a, p. 299). Marcarei estes três fatores também num quadro apenas facilitar remissões futuras ao leitor (ver quadro 2) CARACTERÍSTICAS DO ENUNCIADO 1 A relação com o autor e os outros parceiros da comunicação verbal 2 A alternância dos sujeitos falantes 3 O seu acabamento específico 3.a o tratamento exaustivo do objeto de sentido; 3.b o intuito, o querer-dizer do locutor; 3.c as formas típicas de estruturação do gênero de acabamento QUADRO 2 3.3.a O tratamento exaustivo do objeto de sentido O esgotamento ou “tratamento exaustivo do tema” varia desde esferas mais práticas onde ocorre quase em plenitude, como quando pedimos “fogo” para acender um 3 de 7 cigarro ou quando um militar ordena “fogo” numa execução sumária, a enunciações mais abstratas, como nas dissertações que jamais esgotarão seu objeto de estudo. No caso das réplicas cotidianas ou das ordens militares, este esgotamento é mais viável e a dimensão criativa fica relativamente reduzida, ainda que nunca esteja totalmente ausente. Já nos enunciados próprios da investigação científica a dimensão criativa pode amplificar-se impossibilitando o esgotamento, ainda que haja discursos científicos que se coloquem mais claramente como meta a proposição de enunciados que tentem esgotar seu objeto tal como proposto ao início da investigação. Em função desta dimensão criativa estar sempre presente, pelo menos em algum nível, em todos os enunciados, o acabamento sempre comportará uma relatividade, delimitada pelos objetivos aos quais o autor se propõe, a partir de um determinado intuito. No limite, qualquer tema é potencialmente inesgotável, mas na enunciação circunscrita às situações sociais concretas, todo enunciado receberá um acabamento, mesmo que relativo e provisório. 3.3.b O intuito, o querer-dizer do locutor O intuito do locutor é o lugar em que se circunscreve o objeto do sentido a ser tratado “exaustivamente”, formando uma “unidade indissolúvel” entre os elementos subjetivos e objetivos do enunciado. Contudo para Bakhtin, este “querer-dizer”, do locutor, índice de sua dimensão subjetiva, só se realiza mediante a escolha de um determinado gênero discursivo, em função “da especificidade de uma dada esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do objeto do sentido), do conjunto constituído dos parceiros” (BAKHTIN, 1992a, p. 301). O intuito se materializa na escolha de um gênero discursivo. Os gêneros do discurso tornam-se assim o principal critério na definição de um acabamento específico do enunciado – que é a unidade real da comunicação verbal, e trataremos disso em seguida. 3.3.c As formas típicas de estruturação do gênero de acabamento A definição dos gêneros discursivos materializa uma das mais contundentes críticas bakhtinianas ao objetivismo abstrato saussureano. Ocorre que qualquer enunciação só é possível dentro de um determinado gênero, mesmo que não saibamos disso enquanto falamos. Mas estes gêneros se ancoram nas diferentes esferas da atividade humana, em suas diversas possibilidades de estabelecimento de relações sociais, permeadas por semioses características de determinadas instituições ou tramas de poder. Saussure considerava como da ordem social e objetiva apenas as formas sintáticas da língua, próximas às próprias raízes lógicas universais que configuram a primazia da Langue sobre a parole. As variações, acidentes e desvios da fala concreta seriam da ordem individual, definindo o enunciado como um ato de “vontade e inteligência” e desconsiderando totalmente o que Bakhtin chama de “formas de combinação dessas formas da língua”, ou seja, ignorando “os gêneros do discurso” (BAKHTIN, 1992a, p. 304). Para Bakhtin, os gêneros, como formas de combinar as formas sintáticas da língua, não são da ordem puramente idiossincrática, são normatizações da ordem das relações sociais constituídas em atividades humanas concretas. É mediante a escolha de gêneros socialmente produzidos que a autoria individual pode se realizar, 4 de 7 e tal escolha nunca é totalmente arbitrária ou aleatória, pois necessita constituir um acabamento que permita e solicite a atitude de um outro. Os modos de dizer que configuram este acabamento são constituídos socialmente e ancorados em práticas culturais reais. Deste modo, algo totalmente desprezado pelo objetivismo abstrato torna-se central na definição de enunciado como unidade real da comunicação verbal, confrontando os artificiais esquemas lógico-estruturais que pretendem dar conta da constituição das enunciações concretas. Os gêneros implicam entonações, modulações, deferência, riso, gesticulação, articulação com o ambiente verbal e não verbal, constituindo uma dimensão estética inalienável aos enunciados. Dimensão esta que não se restringe a um conjunto de fatores secundários com relação aos atos de compreensão social mais formal ou abstrata que estivesse no primeiro plano. Pelo contrário, ela se constitui como desdobramento material indispensável à própria composição real dos sentidos. Tais gêneros do discurso são sociais e, segundo Bakhtin, é o domínio de um gênero que nos permite descobrir ou criar nossa individualidade dentro deles. Quando mais Dostoiévski dominava o gênero romanesco, mais confortável se tornava seu trânsito por ele, imprimindo marcas características aos seus próprios romances, permitindonos reconhecer neles a singularidade do seu estilo. Portanto os gêneros sendo sociais não são restritivos, impeditivos, da individualidade, mas uma condição imprescindível à sua constituição. O locutor recebe de sua cultura formas gramaticais prescritivas da língua tanto quanto prescrições conformadas por gêneros discursivos, estas são mais móveis do que aquelas, mas não deixam de ser normativas. No entanto, a rigidez de tais normatizações pode flutuar bastante, em função das esferas da vida humana às quais os gêneros se vinculam. Nos gêneros cotidianos as variações são maiores do que no gênero de ordem militar por exemplo, ou no campo da deferência religiosa. Além disso, diferentes gêneros colocam-se em luta num mesmo sujeito, como quando alguém domina o gênero científico e não consegue dar-se bem numa conversa cotidiana, ou quando um militante de desenvoltura com as massas sentese constrangido diante de uma platéia acadêmica. Diferentes gêneros podem mesmo discrepar, misturarem-se, contaminarem-se, atravessando esferas alheias, criando inadequações, surpresas, mal estar, riso ou comoção. Usar um gênero solene numa conversa cotidiana pode provocar riso. Configurar um gênero cômico numa situação religiosa, militar ou acadêmica pode causar escândalo. Um texto acadêmico pode tomar caminhos literários e um simples anúncio publicitário pode revestir-se de um gênero científico positivista. Um tom paternal no campo da vida política pode ser indício de facismo e um tom politizante num discurso religioso pode mobilizar a luta de uma classe oprimida. No campo da paródia, da ironia e da composição artística, no teatro, no cinema ou na poética em geral, como um movimento que comporta ambivalência, os gêneros podem chocar-se, desviar-se, contagiarem-se, refazerem-se, recriando sentidos, fazendo soar diferentes vozes, rompendo relações de poder e estabelecendo outras. Entende-se assim que se trata de forças sociais em jogo, em luta, na determinação do sentido de uma enunciação real, numa concepção que se diferencia tanto do “objetivismo abstrato” (o componente social da linguagem tomado como forma abstrata e anônima) quanto do “subjetivismo idealista” (o componente concreto da 5 de 7 linguagem tomado como de origem individual e ideal) – ver Bakhtin (1992b). Isto porque o gênero, pautando-se em normas culturais, é social, mas sendo social não inviabiliza variações individuais dentro de esferas concretas de enunciação. Desse modo, em Bakhtin, o social e o individual não são vistos como instâncias opostas que de algum modo passariam a interagir, a posteriori, por algum motivo estrutural, mas sim momentos indissociáveis de um só movimento dialético e dialógico interconstitutivo. 4 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE ENUNCIAÇÃO E SUBJETIVIDADE Dedicarei alguns parágrafos ainda às relações entre o tema da enunciação em Bakhtin e a questão da subjetividade, tida como importante objeto de estudo para o campo da psicologia entre outros discursos em ciências sociais ou humanas. Algumas pessoas têm afirmado que não há uma palavra em russo diferente para enunciado e enunciação, para o ato de enunciar e o processo que o gera, dando assim a entender que se trata sempre de um processo indissociável do ato. Não tenho conhecimento suficiente da língua para confirmar essa hipótese, quanto ao que seja comum a qualquer pessoa que em russo pronuncie a palavra “viskazivanie” (traduzida em português por enunciado), mas no interior do discurso teórico parece fazer sentido. De todo modo, quando digo das relações entre “enunciação e subjetividade” estou me referindo ao ato e processo de produção do enunciado em suas implicações para os aspectos de produção da singularidade da experiência humana e suas possibilidades de emancipação. O conceito de enunciado de Bakhtin implica que o trânsito social pelo campo real da construção do sentido é concebido como algo distinto de um simples ato de inteligibilidade de estruturas lógicas por parte de um sujeito auto-referenciado – nessa última concepção, a linguagem é vista como algo abstrato e o sujeito que faz uso dela algo fechado em si mesmo. Não podemos captar a própria forma lógica de um discurso sem nos pronunciarmos quanto a ele mediante um determinado sistema de valores culturais e qualquer compreensão só se completa com esta dimensão valorativa (ver BAKHTIN, 1992c). Aquela se antecipa a partir desta. Não ocorre que passemos a avaliar um enunciado apenas depois de concluirmos o entendimento lógico de toda sua estrutura, só ao exato final de um turno discursivo quando então nos é “passada a palavra”. Pelo contrário, nós o avaliamos desde o começo e vamos completando a fala do outro de acordo com nossas expectativas, dentro de nossas perspectivas ideológicas. Por certo, nossas antecipações podem entrar em crise e refazerem-se no meio do caminho, mas não deixa de ser em função dos critérios de nossa concepção de mundo que constituímos uma apreciação que dá forma à compreensão da própria sintaxe, que sequer precisa estar de acordo com a norma padrão. Além disso, é preciso dizer que o sentido, como visão de mundo, não é um catálogo geral de remetimento semântico, mas também, e fundamentalmente, um modo de solicitar uma réplica de um outro. A própria constituição de uma visão de mundo se estabelece também como produção e composição de “contrapalavras” – isto é, réplicas. De modo que, quando procuramos compreender o que alguém nos diz, estamos também solicitando a esta pessoa que se posicione ou se mova em determinadas direções. Compreender não é apenas repetir o que o outro diz do 6 de 7 mesmo modo que ele quis dizer, mas já ir devolvendo a ele um pedido de uma nova explicação, uma nova tomada de posição. Nossas contrapalavras se dirigem à apreciação de um outro tanto quanto suas palavras se dirigem à nossa apreciação. Nossa compreensão é uma montagem de réplicas frente a uma fala alheia, tanto quanto uma solicitação de que outra pessoa as refaça, apreciando-as e replicandoas ou checando-as de algum modo. O sistema de valores de um outro está então implicado na minha própria valoração daquilo que ele me diz e não sou impermeável às suas apreciações, no mesmo instante em que realizo as minhas. Sendo assim, a posição bakhtiniana contrapõe-se ao egocentrismo e etnocentrismo próprios às definições cartesianas de sujeito e subjetividade, rompendo com uma primazia estrutural das formas lógicas. Compreensão e juízos de valor constituem-se antes em tramas “dialógicas” que ultrapassam a interioridade de um cogito, pois não começam nem terminam dentro de nós. Não se trata de afirmar assim uma suposta harmonia ou transparência intersubjetiva nas alternâncias entre os falantes, mas de evidenciar o fato de que, numa direção ou noutra, a locução carrega marcas do lugar ao qual se dirige, justamente na tentativa de atingi-lo. Nesse movimento, nossas visões de mundo se sustentam ou se refazem, entram em crise e se constituem. A apreciação, assim, não se aliena da experiência, como emoção e provação, mas também não se reduz à sua fruição epidérmica, pois é uma ação semiótica social, elo de uma corrente histórica que constitui sentidos e significados. Achilles Delari Junior Fechado em Piracicaba, SP, em junho de 1998. Revisado e reformatado em Umuarama,PR, em outubro de 2008. Sujeito a revisões posteriores. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. M. O enunciado, unidade da comunicação verbal. In: ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992a. BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992b. BAKHTIN, M. M. Observações sobre a epistemologia das ciências humanas. In: ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992c. 7 de 7