Universidade do Vale do Paraíba
Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento
Aline Aparecida Guimarães Rodrigues da Silva
Políticas Públicas inclusivas visando a
Pessoa com Deficiência Auditiva/Surdez:
Consolidando direitos
São José dos Campos, SP
2011
Aline Aparecida Guimarães Rodrigues da Silva
Políticas Públicas inclusivas visando a
Pessoa com Deficiência Auditiva/Surdez:
Consolidando direitos
Dissertação de Mestrado apresentada no
Programa de Pós-Graduação em Planejamento
Urbano e Regional como complementação dos
créditos necessários para obtenção do título de
Mestre em Planejamento Urbano e Regional.
Orientador:
Prof. Dr. Antonio Carlos Machado Guimarães
São José dos Campos, SP,
2011
DEDICATÓRIA
Dedico este estudo ao Deficiente Auditivo/Surdo,
pela nata potencialidade à superação.
Que o som do movimento, da efetiva percepção político-social,
alcance o silêncio recluso de sua cidadania;
E, dedico toda minha força e esforço especialmente à minha filha
Lívia Mariana,
Que, de forma linda e graciosa, veio dar vida a este questionamento
e novas(embora difíceis) perspectivas para os estudos da mamãe.
Eu a amo de uma forma que nenhuma palavra jamais poderá traduzir.
Eu não sou uma revolucionária, mas
me atrevo a sonhar e ‘parafrasear’ o sonho de
Martin Luther King (1963)...
Eu tenho o sonho de ver pequenas crianças viverem numa nação onde elas não serão julgadas por
suas diferenças, (deficiências), mas pelo conteúdo de seu caráter.
Sonho com um país responsável na ideologia e na prática, onde a carta de direitos da Pessoa com
Deficiência seja apenas a letra (discurso) que se transformou em realidade. (prática social).
No meu sonho, estas crianças terão o direito de serem surdas e não serão menos crianças por isso,
porque estarão cobertas por algo maior que a privação sensorial:
a igualdade de direitos, envolvida pela garantia de acesso a todos eles.
E, por este motivo quando se tornarem adultas, não serão consideradas deficientes, e sim cidadãs de
um país onde seus direitos não foram tratados de forma deficiente.
Na realidade, eu tenho vários sonhos, mas este é o que me fala mais alto, porque nele, as crianças
não sabem que o silêncio da cidadania pode ensurdecer a alma.
E não sabem disto,
porque neste sonho, a cidadania é uma realidade.
(KING, 1963)
Agradecimentos
Ao meu orientador,
 Professor.Dr. Antonio Carlos Machado Guimarães:
Obrigada por sua, sempre gentil, forma de mostrar o caminho, que me fez amadurecer
academicamente, e por sua sobriedade que me fez amadurecer enquanto educadora.
Aos professores do curso de Planejamento Urbano e Regional, por conduzirem reflexões que
produzissem a presente provocação deste estudo:

Prof.Dra Sandra M. F. Costa e Prof.Dr. Mario Valério Filho:
Obrigada pelo carinho, atenção e apoio;
 Prof.Dr. Paulo Romano Reichilian,
Obrigada por ativar no aluno uma necessidade de não se conformar com um estudo
medíocre e muito obrigada pela indicação junto ao Conselho de Concessão de
Bolsas.
 Prof. Dr. Emmanuel Antonio dos Santos,
Obrigada por ser um hábil provocador de ideias e possuir uma incomparável
sensibilidade ao ajustar o foco sobre as discussões, sempre com uma elegância de
comportamento rara;
 Professor José Osvaldo Soares de Oliveira ,
Obrigada por sua postura acadêmica, onde a excelência não é o máximo...mas o
suficiente. Sua eficiência e eficácia na conduta acadêmica me ensinaram muito.
 Prof.Dr Pedro Ribeiro Moreira Neto,
Obrigada por apontar um caminho plausível em meio às Políticas Públicas por onde
podemos desbravar nossos direitos. Suas contribuições mediaram muito minha
perspectiva.
 À querida colega de curso Elisa Girardi,
Obrigada pelo apoio e inúmeras caronas! Uma amiga tão querida quanto uma irmã!
Foi um privilégio conhecer e aprender a ser uma pessoa melhor com você.

E, claro, às queridas: Maria Alice, Valéria, Dona Ivone e Dona Nena, que se
titularam em paciência ao me aguentar durante todo este processo.
Obrigada por realizarem seu trabalho com tanta presteza e me aguentar dando trabalho!
Vocês são indispensáveis!
 Por tudo e para todos:
Muito obrigada! Que o peso desta palavra, não tenha se perdido, e traduza minha gratidão
pela instrumentalidade de vocês que tanto contribuiu para que esta etapa fosse concluída.
Agradecimentos
Especiais
‘Grandes coisas fez o Senhor por mim, e por isto estou alegre.’
(paráfrase do Salmos 126.1a)
Sou grata ao meu Deus que, por sua graça e misericórdia me trouxe até aqui.

Ao meu esposo Marcos Augusto Souza Rodrigues da Silva, meu coração é grato a
Deus pela preciosidade que é tê-lo ao meu lado, você me impulsiona e me respalda,
você é o meu amado.

Ao meu filho Lucas Augusto, por suportar minha ausência, eu te amo ‘bem grandão’,
tenha certeza que a mamãe sofreu cada ‘segundinho’ longe de você!

À minha filha Lívia Mariana, por trazer luz a este estudo, ele já era especial antes de
você chegar, mas depois de você ele se tornou uma prova irrefutável do cuidado de
Deus pelas nossas vidas. Você é uma melodia no coração da mamãe!

Aos meus pais, Vicente e Elenice, por representarem segurança e refrigério em minha
vida. Sou feliz por ter uma mãe tão atenciosa e um Pai tão dedicado!

À minha sogra ‘Tianinha’, que acolheu a família com seus cuidados e carinhos que só
uma querida vovó pode traduzir em ações.

Às queridas tias Eliana e Eleni, que ajudaram a mamãe Aline, brincando com as
crianças, para que a mestranda Aline cuidasse do trabalho final.
 À Dra Maria Cecília Bevilacqua,
Obrigada por ser uma profissional sensacional e um ser humano incrível.
Sua perspectiva acadêmica e conduta profissional, tem transformado realidades.
Sua vida e solidariedade me inspiram. Precisamos de muitas ‘Marias Cecílias’ !

E, ao Deficiente Auditivo/Surdo, que sempre me encantou com sua forma magistral
de abstrair do silêncio, a mais bela melodia: a superação.
Tomo as palavras de Paulo aos Filipenses:
“Eu agradeço ao meu Deus por tudo que me lembro de vocês.”
Políticas Públicas inclusivas visando a Pessoa com Deficiência
Auditiva/Surdez: Consolidando direitos.
RESUMO
Trata-se de um estudo qualitativo, que objetiva analisar as necessidades intrínsecas e
extrínsecas do Deficiente Auditivo/Surdo, partindo do referencial de sua provisão pelas
Políticas Públicas. A pretensão é aprofundar a discussão sobre o efeito de invisibilidade
político-social, deflagrando possibilidades de práticas de planejamento que minimizem ou
anulem o efeito de não percepção político-social evidenciada pela timidez de Políticas
Públicas específicas e eficazes. Buscando promover uma aguçada percepção político-social de
atenção integrada é que este trabalho propõe a compreensão em lugar da simples concepção
da Deficiência Auditiva/Surdez. Atentar antes para a Pessoa, perceber o Cidadão que é
Deficiente Auditivo/Surdo, perspectiva que certamente promoverá a participação social
efetiva e efetivada pelo acesso permeável e prático aos benefícios que a cidade, através de
políticas públicas afinadas, pode e deve dispor a todos os seus citadinos. A evolução da
Política Pública depende do atendimento às especificidades do público focal, prática esta que
substituirá a prática de acepção por uma percepção aguçada que promova o atendimento às
particularidades.
Palavras chaves: Política Pública, Inclusão e Deficiência Auditiva/Surdez.
ABSTRACT
It is a qualitative study that aims to analyze the intrinsic and extrinsic needs of Deaf / Deaf,
based on the reference of its provision for Policies. The intention is to deepen the discussion
on the effect of political and social invisibility, triggering possibilities of planning practices
that minimize or nullify the effect of non-political awareness shown by the timidity of public
policies targeted and effective. Seeking to promote a keen awareness of political and social
integrated care is that this paper proposes an understanding in place of the simple design of
Hearing / Deafness. Attend prior to the person, notice that the Citizen is Deaf / Deaf
perspective that will certainly promote effective social participation and the effective
permeability and practical access to the benefits that the city, through public policies in tune,
can and should be given to all their cities. The evolution of public policy depends upon
adherence to the specific focus of the public, a practice that will replace the practice defined
by a keen awareness that promotes compliance with the particulars.
Key Words: Public Policy, Inclusion and Disability Hearing / Deafness.
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................................12
Capítulo 1. Estigma: A forma como cunhamos o outro.......................................................16
1.1 Designar: Uma reflexão sobre duas realidades no entremeio de dois conceitos..............23
1.2 Deficiência: A Díade: Pessoa e corpo.............................................................................26
1.3 Identidade: Significando as particularidades do não ouvir.............................................39
1.4 Particularidades das Identidades: e vice e versa...........................................................43
2
Representação Social: um constructo insólito..................................................................51
2.1 Quando ser normal for diferente, ser diferente será normal: um pleonasmo social....56
2.2 Normalizar, Integrar ou Incluir? Eis as questões...........................................................60
3
Políticas
Públicas
para
todos:
Elaboração
que
contempla
particularidades.........................................................................................................64
as
3.1 Planos Urbanos e a Deficiência Auditiva/Surdez: aprimoramentos.............................69
3.2 Legislar: Direitos concebidos díspares de direitos consolidados......................................77
Considerações Finais...............................................................................................................85
Referências...............................................................................................................................90
12
À guisa da introdução
“Temos o direito de ser igual, sempre que a diferença nos inferioriza.
Temos o direito de ser diferentes, sempre, que a igualdade nos descaracteriza”.
(SANTOS, 1996).
INTRODUÇÃO
Na vanguarda de uma Sociedade utopicamente inclusiva e empiricamente excludente,
as Políticas Públicas representam o mecanismo pelo qual o Deficiente Auditivo/Surdo pode
acionar sua cidadania.
Há certa resistência em reconhecer um campo de ação específico para a assistência
focal e particularizada à Comunidade Deficiente Auditiva/Surda. Tal resistência se expressa
pela timidez de Políticas Públicas inclusivas, que ainda não atingiram um patamar de
assistência plena, respaldados por uma tríade imprescindível: compreensão, legitimidade e
legalidade.
Compreensão das particularidades para a elaboração de Políticas afinadas à realidade
da Deficiência Auditiva/Surdez e a extensão de suas afetações. Compreensão que promove
uma inclusão comprometida com as potencialidades do público focal.
Legitimidade de propostas, projetos e ações que não negligenciem a pessoa e a família
envolvida no processo, isto porque, na busca por resolver algumas questões da deficiência,
tende-se a observar e atender ao processo físico, não alcançando o comprometimento global.
E, Legalidade, porque os direitos do Deficiente Auditivo/Surdo ainda não estão
articulados ao processo de gestão, o que compromete seu usufruto.
Nomeamos, discernimos, propomos, questionamos as pessoas com deficiência e os
processos que as atendem ou negligenciam. Mas a forma como a sociedade seguir fazendo
isto, apenas perpetuará um contingente de pessoas que estão fazendo algo e um contingente de
13
pessoas recebendo algo, quando o ‘algo’ não está sintonizado, equalizado à pessoa e sim com
a deficiência. Esta prática equivocada de fazer política e entende-la como pública desgasta a
cidadania porque fragiliza a acessibilidade social frente às barreiras sistêmicas impostas pela
não ação, ou ação equivocada ou mesmo uma boa ação incorporada por uma gestão
incompleta.
O que provoca um questionamento incômodo frente às Políticas existentes. Se existe
uma busca histórica pela inclusão, porque questionar o que já está sendo feito e não apenas
mirar no que ainda não está sendo feito?
Simplesmente porque não se pode atender a uma demanda sem conhecê-la, sem
reconhecer suas particularidades e a extensão de suas necessidades. Logo, não se pode
projetar e implementar políticas públicas inclusivas e atendimento à Pessoa com Deficiência
sem perceber a Pessoa, suas necessidades intrínsecas e extrínsecas. Entendê-la como alvo do
processo de elaboração da política e não como portadora do alvo. A Política deve atender a
PESSOA e não a deficiência que ela apresenta. A deficiência particulariza, especifica mas não
representa a pessoa, o ser global que tem a deficiência, mas que antes, tem toda uma gama de
representação que precisa ser compreendida e não negligenciada.
Ignorar este aspecto da humanização da elaboração, opera uma percepção equivocada,
que planeja atender de maneira tão fria a questão, visando a patologia. E sabemos que esta
visão já foi superada em vários âmbitos das competências que buscam entender as questões
frente à problemática. Já existe e em franco amadurecimento uma séria discussão a respeito de
como devemos tratar a pessoa e não focalizar apenas a patologia, fazendo da pessoa apenas
um portador.
Faz-se urgente a releitura de propostas de políticas, para que as ações e medidas
percebam a pessoa, e não mais seguir projetando políticas que focalizam a deficiência e
ignoram a pessoa de forma integral.
14
Assim, o presente estudo objetiva analisar os fatores inerentes à inclusão social via
Políticas públicas. Antes porém, percorre o caminho de conceituação de termos presentes
nesta realidade. A metodologia utilizada comparou a realidade descrita na literatura pertinente
com a realidade vívida e vivida. Para tanto, convivi com alguns grupos de Pessoas com
Deficiência Auditiva/Surdos e suas famílias, em diferentes situações, além desta frente,
percorri empiricamente a prática médica de tratamento e reabilitação, observando a realidade
e contrastando com a proposta de política inclusiva.
Não foram utilizados questionários e pesquisa de opinião devido às particularidades do
grupo focal (linguagem, comunicação e desprendimento). Assim, utilizei dinâmicas de grupo
em conversas e debates sobre as perspectivas do Deficiente Auditivo/Surdo assistidos por
intérpretes, e profissionais que atuam em sua realidade.
Objetivando ajustar a lente de observação social frente à problemática da inclusão
social do Deficiente Auditivo/Surdo, a realidade empiricamente observada foi contrastada à
revisão bibliográfica pertinente, resultando no presente estudo.
Pretendi operar uma provocação. Uma forma mais próxima de entender a Pessoa antes
de pretender atendê-la. Para tanto considero mister uma mudança de perspectiva e atuação
porque, se continuarmos falando deles e sobre eles, sem ouvi-los e/o inclui-los no processo de
reconhecimento, continuaremos alimentando um processo de exclusão que se perpetua porque
tiramos do processo de elaboração a Pessoa, o que ela tem a dizer sobre suas condições, suas
dificuldades e potencialidades.
Aprecio as reflexões de Freire (1973) sobre a “cultura do silêncio” e as discussões
sobre minoria social, política, linguística e cultural: ser o “menor”, sentir-se “menor”.
Perspectiva que corrobora com o discurso de Skliar (1999), onde concordam sobre os
entremeios sociais onde:
[...] silenciam-se vozes e impõem-se relações de minoria-maioria representadas e
validadas pelo processo educacional, fruto da cultura do oprimido. Sofrer no silêncio
15
e sentir-se “menor”, são formas de consolidação de uma política de exclusão que
reproduza ideia de “um mundo homogêneo” (SKLIAR, 1999).
Para este autor, existe uma diferença crucial entre entender a surdez como uma
deficiência e entende-la como uma diferença. E se estas duas concepções não foram
consideradas de forma consciente seguiremos defendendo inclusão e praticando exclusão.
Precisamos urgentemente de requalificação na forma como vemos e percebemos a
deficiência, uma mudança de perspectiva. A Política Pública já olha para a diferença, mas,
sem reconhecer as particularidades.
Esta abordagem se estabelece sobre a incongruência de propostas de atenção que
perdem sua força de atuação plena frente às barreiras sistêmicas que ainda perpassam o
caminho do Deficiente Auditivo/Surdo e seu exercício de direitos.
E direitos são pré-concebidos de respeitabilidade, ausência de discriminação sem
afetar a descriminação sem a qual não se pode atentar às particularidades. Do estigma ao
preconceito, todo o caminho percorrido pela exclusão, deixa uma trilha de direitos humanos
desalinhados e ignorados. Fato que por si só pede uma reflexão: Donde vem o direito de
cunharmos o outro?
16
Capítulo 1 Estigma: A forma como cunhamos o outro.
Cunhada na Grécia, a palavra estigma, designava marcas físicas naturais ou produzidas
artificialmente para sinalizar a inferioridade moral de seu portador (ladrões, escravos,
traidores etc.).
Goffman (1993), refere-se à palavra como "signos corporales, sobre los cuales se
intentaba exhibir algomalo y poco habitual en el status moral de quien los presentaba". Ou
seja (“sinais corporais, destinados a expor algo mal e incomum, representação status moral
de quem os apresenta”).
A marca sinalizava algo negativo, alertava para se evitar o convívio. O que por si só
comprometia todas as relações, desde o contexto familiar ao comercial.
Já no início da era cristã, as marcas corporais representavam distúrbios físicos ou
metáforas da graça divina.
Para Rebouças (2008) o estigma social também surge nas relações de afirmação de
identidade entre os indivíduos de uma sociedade. O autor ainda aponta três níveis distintos de
estigma social: deformidades corporais; fraqueza de caráter e abominação de atos.
A postura social de nomear e categorizar as pessoas, opera um ‘apartheid social’
manifestado de várias formas, e numa destas facetas, o estigma da deficiência vem corromper
o princípio da igualdade e consequentemente, o exercício da cidadania.
O estigma é um atributo que produz um amplo descrédito na vida do sujeito; em
situações extremas, é nomeado como "defeito", "falha" ou desvantagem em relação
ao outro; isso constitui uma discrepância entre a identidade social virtual e a
identidade real. Para os estigmatizados, a sociedade reduz as oportunidades, esforços
e movimentos, não atribui valor, impõe a perda da identidade social e determina uma
imagem deteriorada, de acordo com o modelo que convém à sociedade. O social
anula a individualidade e determina o modelo que interessa para manter o padrão de
poder, anulando todos os que rompem ou tentam romper com esse modelo. O
diferente passa a assumir a categoria de "nocivo","incapaz", fora do parâmetro que a
sociedade toma como padrão. Ele fica à margem e passa a ter que dar a resposta que
a sociedade determina. O social tenta conservar a imagem deteriorada com um
esforço constante por manter a eficácia do simbólico e ocultar o que interessa, que é
a manutenção do sistema de controle social. (MELO, 2009)
17
Já citado, Goffman (1993) afirma ainda que, o significado de estigma, atualmente
corresponde mais à desgraça social que marcas que a sinalizam.
O rótulo apenas configura o estigma. Socialmente as marcas sociais não são
imediatamente diagnosticadas. O descrédito social se efetiva pela apartação social do
diferente.
O aspecto dentro do espaço urbano desta apartação afeta diretamente a demarcação
físico-geográfica dos espaços sociais. Se não adequados e com acessibilidade promovida, ou
mesmo receptividade, o meio discrimina a frequência de seus usuários socialmente
desacreditados. E não se trata apenas de serviços, estamos apontando o direito de ir, vir e estar
em ambientes entendidos como públicos, espaços que, na prática não recebem a todos por não
entenderem estes públicos com seus diferenciais inerentes, nem tampouco a estrutura inerente
prescrita para recebê-los. E sabemos que atender ao público depende, antes de mais nada,
entendermos a qual público estamos atendendo.
Omote (2004) entende que o processo de ‘estigmatização’ pode ser mais bem
compreendido, analisando a dinâmica psicossocial da coletividade onde determinadas
categorias de pessoas são estigmatizadas.
O autor percebe o paradigma do estigma e padronização como um processo social e
coletivo de reação a uma característica portada.
Sucintamente, Omote (2004) entende o estigma como uma questão de fronteiras entre,
normalidade e violação da normalidade.
Portanto, potencialmente, qualquer característica portada por um grupo de pessoas
pode tornar-se um desvio. É uma forma de enfrentamento de um dilema por uma coletividade
humana.
O estigma é tratado como marca social de descrédito e de
inferioridade das pessoas que pertencem a alguma categoria de
desvio, e cumpre a função de controle social para a manutenção da
18
vida coletiva. Aventa-se a ideia de que os desvios e estigmas são
necessários na construção de uma sociedade inclusiva, justamente
porque há aí uma ampla gama de desigualdades. O estigma é parte
integrante da inclusão, e este é o grande dilema a ser enfrentado
pelas sociedades humanas que precisam combater as desigualdade.
(OMOTE, 2004)
Logo, o dilema presente na categorização do estigma para fim de acepção, corrompe
princípios norteadores de justiça social, cabendo discussão quanto à sua relevância e
nocividade.
Entre o paradigma da inclusão e a realidade excludente de nossa sociedade,
a
gravidade da questão preconceituosa não reside no estigmar, e sim no uso do estigma para fim
de acepção. O julgar ‘não normal’ seguido de exclusão é que marca a história da humanidade
de refutável postura frente às diferenças.
De acordo com Telford (1978) a dificuldade em lidar com as pessoas com deficiência
não é um fato novo. Desde os tempos mais antigos, a questão da deficiência vem passando
por vários estigmas, como: incapacitados, merecedores de piedade e dó, sempre apoiados em
uma visão assistencialista que dificultava sua inserção em uma sociedade.
A evolução moral depende de uma nova postura ante aos desvios dos padrões fixados
como aceitáveis. A desumanização dos processos de convivência é a marca da maior
deficiência social e se apresenta de várias formas, estigmatizando e preconcebendo pessoas e
suas particularidades.
O preconceito neste contexto assina o estigma quando opera a pré-concepção de dada
realidade, operando acepção.
Termo de origem latina, o termo carimba a exclusão social do Deficiente Auditivo e
opera uma disfunção social de nível tão profundo, que provoca uma rede de prognósticos
sociais.
Preconceito: Do latim praejudicium
“prae”= antes
“Judicium” = vem de judicare (jus + dicare)
“Jus” = lei
19
“Dicare” = dizer, falar.
Preconceito = dizer a lei antes. Julgar sem analisar, avaliar. Não se colocar no lugar de, para
fazer uma avaliação.
Fato pontuado na vivência de uma Deficiente Auditiva/Surda.
Como acontece com muita gente hoje em dia, ao se depararem com um surdo, ficam
com impressão de sermos diferentes delas. Pois elas não conhecem profundamente os
surdos, como também nunca tiveram oportunidade para trocarem umas palavrinhas
com os surdos, por isso que na primeira vez que nos veem, precipitam-se tomando-nos
por estranhos, tratando-nos de outro modo [...], digo que tive um pouco dessa culpa,
porque em vez de reagir, deixei que eles me tomassem por estranha [...] se não fosse
por isto, não teria tomado conhecimento das palavras: “preconceito” e
“marginalização”, nem mesmo das dificuldades que nós surdos passamos no dia-a-dia.
(STRÖBEL, 2007)
‘Julgar antes de ...’
É desta forma que a Sociedade preconiza a acepção e a discriminação. Enquanto
deveria reconhecer o papel das diferenças no outro e em si mesma, a Sociedade, onde entendo
‘NÓS’, perpetua uma desumanização do outro mediante seu enquadramento nos padrões
especificados pela maioria.
[...] o preconceito nada mais é que uma atitude favorável ou desfavorável, positiva
ou negativa, anterior a qualquer conhecimento”. O estereótipo refere-se à
concretização de um julgamento qualitativo, baseado no preconceito podendo ser,
também, anterior à experiência pessoal. (AMARAL 1992)
Objeto de análise deste trabalho, a Deficiência Auditiva/Surdez, representa o
foco do preconceito que pode significar uma ameaça social para o Deficiente Auditivo/Surdo
e para os ouvintes, por não saberem lidar com as diferenças.
A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos
considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas
categorias. Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm
probabilidade de serem neles encontrados. (GOFFMAN, 1982)
A atualidade exige uma nova postura social frente as diferenças, e o respeito à
20
diversidade, inaugura uma perspectiva que redefine um novo padrão de consciência e atitude
frente ao Deficiente Auditivo/Surdo.
Pinto (2007) considera a importância de considerar o conceito da Identidade Surda,
sob a ótica da relevância política, dentro do multiculturalismo, de igual importância para
outros movimentos sociais, pela batalha contra a ideologia dominante: a Identidade Política
Surda. Neste contexto social, a sociedade deve despir-se de seus pré-conceitos e conceber
uma maneira de reconhecer na pluralidade uma oportunidade de conviver e crescer com a
forma como o ‘diferente’ vive sua realidade.
Luciano Oliveira (1997) defende a decantação terminológica preliminar quando se
trata de inclusão/exclusão. Necessidade oriunda do desgaste que costumeiramente ocorre com
conceitos que caem no domínio público, o que ocasiona certa diluição retórica de sua
especificidade, forçando tais conceitos a prestarem-se aos mais diversos usos.
Portanto e para tanto, segue um apontamento sobre conceitos relevantes neste trabalho,
onde cada um deles emergirá contiguamente, exigindo então, que estejam bem enunciados
para evitar desencontros entre o conceito, o uso e a desmistificação.
Quando se trata de processos humanos e discussões referentes a como um grupo deve
ou não ser tratado ou tido e/ou percebido, a utilização de termos técnicos supera a questão
semântica e estabelece a importância dispensada a um assunto tradicionalmente estigmatizado
e eivado de preconceitos e estereótipos.
Isto porque, termos revelam valores e conceitos vigentes que comunicam a forma
como a sociedade pensa, sente e trata.
Atkinson (1996) discutiu as mudanças de terminologia no Reino Unido. O autor
analisou principalmente o espaço entre as pessoas e as palavras que usariam, considerando
como as pessoas se veem e como os outros as vem e representam, tanto na palavra escrita
21
como na falada. Apontou que as trocas de palavras poderiam auxiliar nas mudanças de
perspectivas e sugerir linhas de direção para que tais modificações pudessem ocorrer.
O que prevê cuidado para abster-se da banalização e desgaste de termos que se perdem
pelo uso incorreto por inconsequência, descuido ou ignorância.
Sassaki (2003) aponta a importância de (re)educar a sociedade no que tange às
nomenclaturas, pois, seu uso equivocado pode perpetuar um comportamento equivocado.
O maior problema decorrente do uso de termos incorretos reside no fato de os
conceitos obsoletos, as ideias equivocadas e as informações inexatas serem
inadvertidamente reforçados e perpetuados. Este fato pode ser a causa da
dificuldade ou excessiva demora com que o público leigo e os profissionais
mudam seus comportamentos, raciocínios e conhecimentos em relação, por
exemplo, à situação das pessoas com deficiência. O mesmo fato também
pode ser responsável pela resistência contra a mudança de paradigmas como
o que está acontecendo, por exemplo, na mudança que vai da integração para
a inclusão em todos os sistemas sociais comuns. Trata-se, pois, de uma
questão da maior importância em todos os países. Existe uma literatura
consideravelmente grande em várias línguas. No Brasil, tem havido tentativas
de levar ao público a terminologia correta para uso na abordagem de assuntos
de deficiência a fim de que desencorajemos práticas discriminatórias e
construamos uma verdadeira sociedade inclusiva. (SASSAKI, 2003)
A forma como tratamos comunica a importância que damos ao tratado, é mister que a
terminologia seja apropriada(própria) para que possa ser ‘apropriada’(assumida) pelos
usuários de forma consciente e responsável. O que aponta para o processo de designação que
não é paralelo ao processo de exclusão, mas inerente a ele, levando há uma reflexão sobre os
desdobramentos da prática de designar.
1.1 Designar: Uma reflexão sobre duas realidades no entremeio de dois conceitos.
Ao propor o presente estudo, assumo a perspectiva de olhar de novo a questão da
inclusão, observar as questões que historicamente se consolidam frente ao estigma da
deficiência auditiva.
22
Para tanto, inicio tratando da designação, justamente por entender que esta reflete
concepções desajustadas sobre a questão.
Tão histórica quanto à discussão sobre a inclusão, a designação segue paralela este
processo de apropriação: Deficiente Auditivo ou Surdo, eis outras questões...
A construção de uma verdadeira sociedade inclusiva passa também pelo cuidado
com a linguagem. Na linguagem se expressa, voluntariamente ou involuntariamente,
o respeito ou a discriminação em relação às pessoas com deficiências. (SASSAKI,
1997)
O termo Deficiente Auditivo prevê uma visão clínica, nesta, a pessoa é considerada
portadora de uma patologia localizada, uma deficiência que esmera cuidados, tratamento e
reabilitação. A Deficiência Auditiva é graduada e tem estabelecida no diagnóstico a melhor
conduta médica e previsão do desenvolvimento da linguagem.
Sua graduação varia desde leve a profunda, pontuando o nível de resíduo auditivo que
determina o nível de audição restante.
Utilizo Couto (1985) tratando sobre a graduação da Deficiência Auditiva que pode ser:
Leve (com perda de 20 a 40 dB): são pessoas consideradas desatentas
e distraídas. Por não perceberem todos os sons da palavra
principalmente a voz fraca e distante, olham sempre para o rosto de
quem está falando. Costumam pedir para repetir as informações. Essas
pessoas conseguem adquirir linguagem, naturalmente. Em geral,
chegam à escola, podendo concluir os estudos sem demonstrar sua
deficiência. Algumas demoram um pouco mais para falar
corretamente, ou falam trocando alguns fonemas. Outras falam bem,
mas quando começam o aprendizado da leitura e escrita, fazem
confusão entre as letras que têm sons semelhantes, trocando-as. O
atendimento médico indicado é o tratamento clínico ou cirúrgico. Se
houver dificuldades articulatórias, essas pessoas devem ser atendidas
por uma fonoaudióloga;
Média ou Moderada (com perda de 40 a70 dB): para as pessoas
compreenderem a fala, é necessária uma voz forte, principalmente em
ambientes ruidosos. Apresentam atraso de linguagem e alterações
articulatórias. As dificuldades na compreensão da fala são mais
notadas quando as frases são complexas, envolvem expressões
abstratas e aparecem artigos, pronomes, conjunções etc. Observam-se
também dificuldades em compreensão de terminações verbais e as
concordâncias de gênero e de número do substantivo e adjetivo.
Geralmente, essas pessoas precisam de apoio visual para o
entendimento da mensagem. Diante disso, os atendimentos indicados
são: clínico, cirúrgico, fonoaudiológico e pedagógico especializado.
Sugere-se, adicionalmente, a frequência à escola regular com
23
acompanhamento e suporte anterior de atendimento especializado e de
prótese individual;
Severa (com perda de 70 a 90 dB): as pessoas só percebem voz muito
forte e alguns ruídos do ambiente familiar. Decorrente disso, a
compreensão verbal depende do apoio visual e da observação do
contexto em que se desenvolve a comunicação. A linguagem só é
adquirida no seu próprio ambiente com orientação. Nesse caso,
recomenda-se o uso de prótese individual. Além disso, o atendimento
indicado é em escola ou classe especializada, para que a linguagem
básica de compreensão e de expressão sejam adquiridas. A
alfabetização pode ser realizada antes de ingressar em classe comum,
onde devem permanecer com atendimento especializado paralelo;
Profunda (perda auditiva superior a 90 dB): O fato de não possuírem
informações auditiva impede as pessoas identificarem a voz humana.
Não adquirem linguagem naturalmente no ambiente familiar e não
adquirem fala para se comunicarem, devido à ausência de modelo.
Aconselha-se o uso de prótese individual. O atendimento indicado
deve ocorrer na escola ou em classe especial, com programas de
aproveitamento dos restos auditivos e de aprendizagem de leitura
labial e da fala. Há previsão de escolaridade mais
prolongada.(COUTO, 1985, p.12)
Assim, o termo Deficiente Auditivo tem seu parâmetro embasado na modalidade
clínica, uma perspectiva médica sobre a deficiência. É o termo utilizado por profissionais da
Saúde.
Behares (1993) critica o conceito por considerar a perspectiva do uso estritamente
médico-organicista que, não deve se estender ao uso cotidiano. O autor chama a atenção para
a necessidade de vê-los sob uma perspectiva sócio-cultural. Ele relata como as investigações
atuais têm chamado a atenção para a multideterminação da surdez e para a adequação do
emprego do termo surdo, não apenas porque não ouve, mas porque desenvolve
potencialidades psicoculturais próprias.
Sanchez (1990) e Brito (1993; 1995) concordam com Behares, quando defendem a
aquisição do termo surdo como mais apropriado por representar uma tentativa de minimizar o
processo de estigmatização dessas pessoas, processo este amplamente discutido por Goffman
(1982), através do qual a audiência reduz o indivíduo ao atributo gerador do descrédito social.
Os autores entendem que a expressão surdo, como vem sendo empregada, tem
favorecido identificar a pessoa como diferente, sendo esta diferença particularizada por ser
decisiva para o desempenho.
24
O emprego do termo deficiente auditivo, ao contrário, tem coincidido com a
utilização de procedimentos que visam ajustar os surdos aos padrões linguísticos
mais aceitos e valorizados na sociedade, envolvendo tratamentos e/ou atendimentos
sistemáticos de fala oral. Os estudos que usam a referência surdo têm procurado
abrir um espaço social para essas pessoas, respeitando suas especificidades. Buscam
a identidade social dessas pessoas entre os seus, sua legitimação como comunidade
linguística diferenciada. (DORZIAT, 1998)
Quando questionei um grupo focal sobre como preferiam ser denominados, eles se
dividiram. Não houve consenso. Um grupo maior prefere Deficiente Auditivo porque não se
consideravam surdos, uma vez que, ainda possuíam resíduo auditivo, que possibilitava ouvir
mesmo que, com o auxílio do Aparelho de Amplificação Sonora Individual (AASI). Outros
preferem ser conhecidos como Surdos porque se entendem Surdos, não ouvem e fazem uso da
LIBRAS, portanto, acreditam que a melhor definição é a surdez. Um terceiro grupo (menor)
não se definiu, disseram não fazer diferença.
Tal reação apenas ratificou uma situação já presente na arena acadêmica. Existe uma
divisão quanto à caracterização. E esta divergência de preferência enriquece a própria noção
de comunidade ante à categorização e formação de sub-grupos de opinião.
Já Sassaki (2010) opera uma criteriosa análise sobre a terminologia e defende que
devemos utilizar criteriosamente cada um dos termos. O autor entende que, num contexto
formal ou estatístico, o termo propício é pessoas com deficiência auditiva referindo-nos ao
grupo como um todo, especificando ou não os graus de perda auditiva e a quantidade de
pessoas existentes em cada nível de surdez.
E, em situações pessoais, informais, coloquiais, o melhor termo é surdos, pessoas
surdas, comunidade surda, comunidade dos surdos, quantidade de pessoas por nível de surdez,
comunicação entre os surdos, comunicação com os surdos, comunicação dos surdos, os sinais
que os surdos utilizam etc.
Sassaki (2010) ainda opera a análise sob o ponto de vista do uso pessoal e diz:
“usar o termo “pessoa com deficiência auditiva” ou os termos “pessoa
surda” e ”surda”, fica por conta de cada pessoa. Geralmente, pessoas
com perda parcial da audição referem-se a si mesmas com tendo uma
deficiência auditiva. Já as que têm perda total da audição preferem ser
consideradas surdas”( 2010)
No tratado do autor, ainda vale mencionar que, no plano formal e estatístico,
convencionou-se adotar a classificação: deficiência auditiva.
Trata-se de uma discussão que transcende aspectos médicos ou sociais, trata-se de uma
questão de identidade. É preciso realmente, conforme Sassaki (1997), utilizar com muito
25
cuidado e consciência a terminologia, pois ela configura a forma como vemos e consideramos
a questão.
Concordo com Sassaki (1997) quando reitera o cuidado com o uso e me aproprio das
possibilidades e momentos de utilização. O que também me proporciona uma situação
confortável frente aos defensores dos dois termos e da própria Comunidade.
Então deixo claro que, para esta pesquisa vou me referir ao sujeito sempre como
Deficiente Auditivo/Surdo por entender a razão de ambas as perspectivas e não encontrar nem
numa, nem noutra o termo que traduza a realidade absoluta.
Cumpre ressaltar, porém, que não entendo ambos termos como sinônimos e sim como
paralelos duma dada realidade. Assim o uso do (/) não representa (ou) e sim (e o) o que
representa que falo das duas classes, para as duas classes e com as duas classes quando
pondero questões inerentes à inclusão.
Usarei Comunidade como grupo geral, onde entende-se toda a representação e
diversidade dentro do próprio grupo. Dentre eles: Deficientes Auditivos, Surdos,
Protetizados(usuários de Aparelho de Amplificação Sonora e Individual – AASI), Usuários de
LIBRAS(Língua Brasileira de Sinais), Oralizados e Implantados.
Portanto, concordo com Doziart, quando reitera a importância de atentar para o
conteúdo ideológico das palavras, afinal, elas podem representar um importante indicador
para o entendimento da pessoa e da realidade que a cerca.
Assumo minha franca falta de posição frente à dúbia questão. O duelo, se é que existe,
não reside apenas no campo conceitual, mas de apropriação pela própria Comunidade.
Entendo ambas as proposituras, mas entendo antes que ambos os termos ainda não refletem a
situação nem tampouco o lugar no mundo do Deficiente Auditivo/Surdo.
A discussão remete ao tema do estatuto da surdez e à sua transformação de patologia
em fenômeno social. Tal alteração acompanha-se de uma mudança nos termos e conceitos a
eles relacionados.
Ressalte-se o abandono da classificação de deficiente auditivo, substituída pela de
Surdo. Não se trata de mera mudança de terminologia, mas da adoção de uma nova
classificação, que terá implicações na construção de uma nova identidade para o grupo e na
forma como este será acolhido na Sociedade e na arena política.
Entretanto, a nomeação ou titulação pode discriminar ou descriminar. E esta distinção
deve ser madura para poder compreender a diferença entre a pessoa, sua distinção
caracterizada pela deficiência e o que significa não entender esta diferença.
26
Afinal, a deficiência na correlação entre entender, perceber, discernir e tratar; pode
transgredir a dúbia fragilidade da linha que separa a pessoa da deficiência.
Dúbia, porque corpo e a deficiência que o acomete forma uma díade que pode
conviver minimizando as barreiras acarretadas pelas competências afetadas ou, sobreviver ao
efeito devastador de não compreender a deficiência como parte da pessoa e não a pessoa
como uma parte deficiente.
É neste cruzamento que corpo e deficiência travam uma parceria imposta e uma luta
contra as barreiras extras, incorporadas no processo de contato social.
1.2 Deficiência: A Díade: Pessoa e corpo.
Deficiente, vem sendo as tentativas históricas de superar a visão unilateral sobre a
deficiência. Mutilar o direito da pessoa à sua máxima potencialidade de autonomia, estabelece
um ciclo vicioso, que impele na sociedade uma ruptura entre o discurso e a prática social dos
direitos previstos.
Entre o campo da discussão e a arena social onde as relações ocorrem, a deficiência
afeta tanto o desenvolvimento político-social global do indivíduo do que propriamente dito as
limitações implicadas às competências físicas, mentais e/ou sensoriais que ela acarreta.
Felizmente a perspectiva equivocada de tratar patologicamente a questão vem sendo
reposicionada por uma visão global de caráter mais humanizado.
Autores como Amaral (1995) e Silva (1997), tratam desta questão quando analisam a
forma como esses mitos descrevem ideias que traduzem o deficiente pela deficiência, por
exemplo, tornar uma limitação específica em totalidade, isto é, compreender toda a pessoa
como deficiente e não apenas algo específico ou relacionado a ela, dispor de explicações
lineares e causais, como se tudo o que ela fizesse ou fosse tivesse a ver com as deficiências e
também pelo temor ao contágio, como se ao conviver com alguém com deficiência pudesse
haver uma contaminação desse infortúnio. (grifo do autor)
27
O ajuste de mecanismos de relação entre as esferas sociais e as questões relativas à
deficiência, depende da forma como a sociedade se organiza para enfrentar estas questões.
Para tanto é preciso convergir esforços na tentativa de denunciar, evidenciando a forma como
a sociedade brasileira discrimina os ‘deficientes’ (como são tidos) nas relações sociais de
todas as relações: saúde, educação, trabalho, lazer etc.
A superação das barreiras precisa acontecer de forma sistemática e completa,
sincronizada para não ocorrer por etapas ou por setores; o que certamente realizaria uma
cidadania deficiente, dividida em blocos acessíveis e inacessíveis.
Por não ser uma deficiência de impacto visual e/ou de locomoção como as deficiências
físicas e/ou sensorial como a cegueira, as barreiras que cerceiam a independência e autonomia
do Deficiente Auditivo/Surdo acaba sendo uma soma de todas as representações possíveis de
impedimento porque o Deficiente Auditivo não é percebido em sua não condição de
acessibilidade reprimida.
Quando um cadeirante não consegue acessar um prédio ou um banheiro público isso
afeta de maneira mais direta porque incomoda (ou deveria) a acessibilidade tão dita e não
efetiva. Logo, o impacto é direto. Ou mesmo uma pessoa cega quando não tem acesso a
letreiros em braile ou, sinais sonoros de travessia de pedestres com deficiência visual estas
barreiras devem ser eliminadas no âmbito da política pública que atenda ao legislativo já
existente a atenda aos dispositivos legais para realizar a minimização destas barreiras. É
evidente que não se trata aqui, de apontar qual deficiência é ‘mais’ ou ‘menos’ deficiência,
nem tampouco, apontar maiores ou menores dificuldades, já que cada deficiência acarreta de
forma singular e particular.
Como o estudo especifica a questão da Deficiência Auditiva/Surdez, o foco é lançar
luz sobre as particularidades e entraves desta.
28
Por exemplo, quando um Deficiente Auditivo/Surdo não pode ir ao médico sozinho,
ou não consegue autonomia para ir ao banco resolver questões de sua conta bancária sozinho,
ou mesmo conseguir estabelecer contato com serviços públicos essenciais (hospital,
bombeiros, polícia etc.) cabe uma séria questão: Como estender a acessibilidade ao indivíduo
isolado de seus direitos fundamentais quando a questão não pode ser respondida apenas por
alterações físicas no espaço?
Retórica ou não a pergunta pode estender um vasto campo de investigação desta
marginalização. Sabe-se que uma aplicada política de atenção e conscientização minimizaria
consideravelmente este abismo que isola o Deficiente Auditivo/Surdo do convívio social e
acesso ao que seria, teoricamente, direito humano.
Não formular certas questões é extremamente perigoso, mais do que deixar de
responder às questões que já figuram na agenda oficial; ao passo que responder o
tipo errado de questões com frequência ajuda a desviar os olhos das questões
realmente importantes. O preço do silêncio é pago na dura moeda corrente do
sofrimento humano. Fazer as perguntas certas constitui, afinal, toda a diferença entre
sina e destino, entre andar à deriva e viajar. Questionar premissas supostamente
inquestionáveis do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais urgente que
devemos prestar aos nossos companheiros humanos e a nós mesmos. (BAUMANN,
1999).
No caso da Deficiência Auditiva/Surdez, as barreiras se entrelaçam e somadas, operam
uma inacessibilidade oculta, isto é, o surdo acessa fisicamente os espaços públicos, mas não
opera comunicação para entender e ser compreendido, o que automaticamente o impede de
‘estar’ compreendido naquele espaço e o que ele oferece.
A pessoa com deficiência, atendida por uma vasta legislação pertinente, embora
ineficaz, não está livre de sofrer a imposição de barreiras que podem apresentar-se isoladas ou
sobrepostas.
O decreto nº5296 de 2 de dezembro de 2004 define barreiras como qualquer obstáculo
que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimento ou circulação com segurança das
pessoas, e são classificadas em:
29
Barreiras Urbanísticas: existentes nas vias públicas e espaços de uso público;
Barreiras nas edificações: existentes no entorno e nas áreas internas de uso comum
nas edificações de uso público e coletivo e no entorno e nas áreas internas de uso comum nas
edificações de uso privado e multifamiliar.
Barreiras nos transportes: as existentes nos serviços de transporte;
Barreiras nas comunicações e informações: qualquer entrave ou obstáculo que
dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens por intermédio dos
dispositivos, meios ou sistemas de comunicação, sejam ou não de massa, bem como aqueles
que dificultem ou impossibilitem o acesso à informação.
Barreiras Físicas: são as que impedem fisicamente a pessoa com deficiência de
acessar, sair e permanecer em determinado local como escada, portas estreitas que impedem a
circulação de cadeira de rodas, elevadores sem controles em Braille, portas automáticas sem
sinalização visual para deficientes auditivos. Podem ainda se dividir em barreiras
arquitetônicas, urbanísticas de transporte e comunicação.
Barreiras Sistêmicas: relacionadas a políticas formais e informais. Por exemplo:
escolas que não oferecem apoio em sala de aula para alunos com deficiência, bancos que não
possuem tratamento adequado para pessoas com deficiência.
Barreiras Atitudinais: preconceitos, estigmas e estereótipos sobre pessoas com
deficiência, como, por exemplo, achar que a deficiência é contagiosa, discriminar com base na
condição física, mental ou sensorial etc.
Welber (2010) analisa a deficiência e a incapacidade da sociedade de superar o
preconceito inerente ao assunto. Segundo o autor, a não aceitação nasce porque a deficiência é
vista apenas como limitação ou incapacidade. Numa sociedade que discursa sobre inclusão, a
postura ainda preconcebe as pessoas pela deficiência, isto é, pelo que são ou pelo que não são.
30
A Organização das Nações Unidas – (ONU), que desde a declaração Universal dos
Direitos Humanos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948), aprimora a
(re)estruturação dos direitos da pessoa que, com deficiência, precisa ter acesso aos direitos
que, não podem se descaracterizar do que eles devem trazer primordialmente: o caráter
humano do direito, o que prescreve a toda e qualquer pessoa o direito ‘mor’ de ser tratado
como PESSOA que é, antes de ser tomada somente por suas características, neste caso, a
deficiência.
Esta díade pessoa e deficiência, precisa ser melhor compreendida, para que a pessoa
não fique compreendida pela deficiência mas atendida nas particularidades impostas pela
deficiência.
Afinal, a(s) condição(ões) de Deficiente Auditivo/Surdo é(são) suficientemente(s)
excludente(s) por si só, impelindo barreiras de comunicação que não podem sofrer acréscimos
externos e estendidos de barreiras sistêmicas e/ou atitudinais.
Os Direitos das Pessoas com Deficiência, estão inseridos num constructo de direitos
humanos, sistematizados sob a égide do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais, Culturais e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ambos de 1966.
Fonseca (2008) considera revolucionária a nova concepção estabelecida pela ONU em
2006. O autor opera uma análise da convenção e de como suas resoluções afetam a Pessoa
com deficiência e seus direitos:
O conceito é revolucionário, porque defendido pelos oitocentos representantes das
Organizações não Governamentais presentes nos debates, os quais visavam a
superação da conceituação clínica das deficiências (as legislações anteriores
limitam-se a apontar a deficiência como uma incapacidade física, mental ou
sensorial). A intenção acatada pelo corpo diplomático dos Estados Membros, após
longas discussões consiste no deslocamento do conceito para a combinação entre
esses elementos médicos com os fatores sociais, cujo efeito é determinante para o
exercício dos direitos pelos cidadãos com deficiência. Evidencia-se, então, a
percepção de que a deficiência está na sociedade, não nos atributos dos cidadãos que
apresentem impedimentos físicos, mentais, intelectuais ou sensoriais. Na medida em
que as sociedades removam essas barreiras culturais, tecnológicas, físicas e
atitudinais, as pessoas com impedimentos têm assegurada ou não a sua cidadania.
(FONSECA, 2008).
31
Amaral (1992) opera uma descriminação das deficiências, o que permite uma melhor
visualização de como e quanto elas afetam a pessoa desde o âmbito primário de impacto até o
resultado social. Para a autora, a deficiência primária: “[...] engloba o impedimento (dano ou
anormalidade de estrutura ou função – o olho lesado, o braço amputado, a perna paralisada)”.
Neste ponto, Amaral se refere à deficiência propriamente dita, ou seja, restrição, perda
de atividade, sequela – o não enxergar, o não manipular, o não andar. Trata-se, portanto, de
fatores intrínsecos, das limitações em si, envolvendo a díade pessoa e corpo.
O que gera, segundo a autora, a deficiência secundária: “[...] aquela não inerente
necessariamente à diferença em si, mas ligada também à leitura social que é feita dessa
diferença” (AMARAL, 1992).
O que remete diretamente à questão social e suas significações afetivas, emocionais,
intelectuais que o grupo atribui a dada diferença.
Atualmente, se reconhece que a deficiência secundária é a principal responsável pelo
impedimento do desenvolvimento do indivíduo, pois aprisiona-o na rede das significações
sociais, e com seu rol de consequências (atitudes, preconceitos, estereótipos), que legitimam
a diferença e, consequente, exclusão.
Neste contexto Acessibilidade é um termo midiático, adotado por uma nova postura
social e política frente a deficiência, entretanto, embora cause boas ações e posturas políticas,
está gasto pelo uso equivocado em algumas circunstâncias. Afinal, acessar não pode se
restringir a aspectos arquitetônicos, mas se estender ao ir e vir social, estar e poder participar
do contexto social onde o Deficiente Auditivo/Surdo está inserido.
O Decreto 5.296 (BRASIL, 2004), que regulamenta as Leis nos 10.048, de 8 de
novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, de
19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da
32
acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras
providências, entende por Acessibilidade:
[...] condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida, dos
espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos serviços de
transporte e dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação e informação, por
pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida. (BRASIL, 2004).
Não entendo acessibilidade como um fim, mas como um dispositivo social aos direitos
do cidadão com deficiência. Mas também penso que, embora a sociedade tenha caminhado
uma longa jornada para alcançar o ‘status’ de inclusiva que possui hoje, sofremos um sério
risco de operar apenas um grande movimento em volta de uma ideologia.
Acredito que a acessibilidade descrimina sem discriminar a pessoa, entendendo,
respeitando e atendendo suas especificidades.
E, em se tratando de especificidades, a CIF (Classificação Internacional de
Funcionalidade) responde a um critério fundamental: entender as especificidades e suas
relações diretas e indiretas na composição do corpo e deficiência (e não mais deficiência e um
corpo).
Em 1976, a Organização Mundial de Saúde (OMS), no intuito de entender as
consequências das doenças, publicou a International Classification of Impairment,
Disabilities and Handicaps (ICIDH), em caráter experimental. Esta foi traduzida para o
Português como Classificação Internacional das Deficiências, Incapacidades e Desvantagens
(handicaps), a CIDID (PORTUGAL, 1989).
A ICIDH sofreu um processo de revisão que apontou fragilidades quanto a relação
entre as dimensões de composição e a não abordagem dos aspectos socioambientais, e demais
que formam a contexto onde a pessoa com deficiência está inserida (WORLD HEALTH
ORGANIZATION, 2002).
Assim, em 2001, foi aprovada pela Assembleia Mundial de Saúde, a International
Classification of Functioning, Disability and Health (ICF) (WORLD HEALTH
33
ORGANIZATION, 1980). A versão brasileira foi intitulada Classificação Internacional de
Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF).
Considerado um marco conceitual, impairment (deficiência) compreende as
anormalidades nos órgãos, sistemas e estruturas do corpo, enquanto disability (incapacidade)
compreende as consequências da deficiência sob a perspectiva da funcionalidade /
desempenho; handcap (desvantagem) estabelece a adaptação ao meio ambiente.
O modelo descreve linearmente o processo desencadeado pela doença, seguindo uma
linha de afetação respectiva embora entrelaçada.
DOENÇA
DEFICIÊNCIA
INCAPACIDADE
DESVANTAGEM
Deficiência (impairment):Uma deficiência é qualquer perda ou anormalidade da
estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica. A deficiência representa a
exteriorização de um estado patológico e, em princípio, reflete distúrbios no nível do
órgão. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2003).
Incapacidade (disability):Uma incapacidade é qualquer restrição ou falta de
habilidade (resultante de uma deficiência) para realizar uma atividade da maneira ou
no âmbito considerado normal para um ser humano. …A incapacidade representa a
objetivação de uma deficiência e como tal reflete distúrbios no nível da pessoa.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2003).
Desvantagem (handicap):Uma desvantagem para um dado indivíduo, resultado de
uma incapacidade ou deficiência, limita ou previne o cumprimento de um papel que
34
é normal para esse indivíduo (dependendo da idade, do sexo, e dos fatores sociais e
culturais). A desvantagem refere-se ao valor atribuído à situação ou experiência
individual, quando sai do normal. Caracteriza-se por uma discordância entre o
desempenho ou status individual e a expectativa do próprio indivíduo ou do grupo
do qual é membro. A desvantagem representa pois a socialização de uma
incapacidade ou deficiência e, como tal, reflete as consequências para o indivíduo –
culturais, econômicas e ambientais – que decorrem da presença da incapacidade ou
deficiência (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2003).
Logo, a CIF é baseada, numa abordagem biopsicossocial,
incorporando os
componentes de saúde nos níveis corporais e sociais.
Farias e Buchalla (2005) concluem que, na avaliação de uma pessoa com deficiência,
esse modelo destaca-se do biomédico, baseado no diagnóstico etiológico da disfunção,
evoluindo para um modelo que incorpora as três dimensões: a biomédica, a psicológica
(dimensão individual) e a social. Nesse modelo cada nível age sobre e sofre a ação dos
demais, sendo todos influenciados pelos fatores ambientais.
Cumpre ressaltar que a pretensão da OMS é incorporar também, no futuro, os fatores
pessoais, importantes na forma de lidar com as condições limitantes. O que apenas ratifica o
que temos discutido sobre a importância de uma visão global e humanizada sobre a
problemática da Pessoa com Deficiência e não apenas uma discussão sobre Deficiência como
primeiro plano.
Stephens e Hétu (1991) realizaram análise e aplicação desses conceitos na audiologia.
Apontaram aspectos que poderiam esclarecer o conceito de deficiência, que seria subdividido
em simples e complexo (sem e com a influência de fatores cognitivos). O conceito de
incapacidade poderia ser avaliado por meio das respostas diretas do próprio indivíduo sobre
suas dificuldades. O conceito de desvantagem seria definido por seis dimensões: orientação,
independência física, mobilidade, ocupação, integração social e autossuficiência econômica.
Concluíram, com uma proposta de ampliação do conceito de desvantagem relacionada à perda
da qualidade de vida, que há aumento do estresse e da ansiedade, redução da satisfação e da
qualidade da interação social e autoimagem negativa.
35
De acordo com Costa (2000), a deficiência está, historicamente, associada a uma
situação de desvantagem. Ou seja, refere-se à condição de uma situação de desequilíbrio, que
só é possível num esquema comparativo: aquela pessoa, com alguma deficiência, em relação
aos demais membros do seu grupo.
Tal distinção entre os conceitos me fez refletir sobre como é primordial que, na busca
por uma postura inclusiva, saibamos conscientemente do que se trata a deficiência auditiva,
que tipo de incapacidade ela ocasiona e que desvantagens ela pode acarretar no indivíduo.
Esse cuidado permitirá que, Políticas sejam projetadas, projetos planejados e ações
praticadas em benefício de um público alvo, mas não um público estudado em suas reais
condições e não condições.
Como podemos discutir ‘o quê’, ‘como’ e ‘quando’ fazer, sem ao menos entendermos
e buscarmos compreender em que nível de especificação estamos prontos a atender.
Por isto é importante apontar tais diferenciações, pois elas apontam uma questão muito
pertinente: Particularidades.
A deficiência não pode ser vista como uma qualidade presente no organismo da
pessoa ou no seu comportamento. Em vez de circunscrever a deficiência nos limites
corporais da pessoa deficiente, é necessário incluir as reações de outras pessoas
como parte integrante e crucial do fenômeno, pois são essas reações que, em última
instância, definem alguém como deficiente ou não-deficiente. As reações
apresentadas por pessoas comuns face às deficientes ou às deficiências não são
determinadas única nem necessariamente por características objetivamente presentes
num quadro de deficiência, mas dependem bastantes da interpretação, fundamentada
em crenças científicas ou não, que se faz desse quadro.(OMOTE, 1994)
Segundo o tratado a ONU, Pessoa com deficiência “Trata-se de um conceito em
evolução, o qual deve conter os aspectos clínicos e funcionais das deficiências e que estas
resultam da interação entre aqueles e as barreiras atitudinais e ambientais que impedem a
plena e efetiva participação das pessoas com deficiência na sociedade, em igualdade de
oportunidades com as demais.”
Fonseca (2008) analisando as proposituras da ONU, afirma que:
36
O próprio conceito de pessoa com deficiência, incorporado pela Convenção, a partir
da participação direta de pessoas com deficiência levadas por Organizações Não
Governamentais de todo o mundo, carrega forte relevância jurídica porque incorpora
na tipificação das deficiências, além dos aspectos físicos, sensoriais, intelectuais e
mentais, a conjuntura social e cultural em que o cidadão com deficiência está
inserido, vendo nestas o principal fator de cerceamento dos direitos humanos que lhe
são inerentes. (FONSECA, 2008).
O conceito de pessoa com deficiência adotado pela Convenção, supera as legislações
tradicionais que normalmente enfocavam o aspecto clínico da deficiência.
No tratado, as limitações físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais passam a ser
consideradas atributos das pessoas, atributos esses que podem ou não gerar restrições para o
exercício dos direitos, dependendo das barreiras sociais ou culturais que se imponham aos
cidadãos com tais limitações, o que possibilita afirmar-se que a deficiência é a combinação de
limitações pessoais com impedimentos culturais, econômicos e sociais.
Desloca-se a questão do âmbito do individuo com deficiência para as sociedades que
passam a assumir a deficiência como problema de todos.
Ainda, de acordo com a análise de Fonseca (2008), o artigo 3 fixado na Convenção,
aponta para um novo conceito, uma nova perspectiva frente à concepção de deficiência e
pessoas com deficiência.
A noção, neste ínterim defendida, absorve e veicula a idéia da deficiência como fator
inerente à diversidade humana, traduzida nas peculiaridades de raça, gênero, orientação
sexual, religiosa, política, ideológica, na condição familiar, étnica, de origem etc.
Proponho a superação da noção que restringe a deficiência à noção de
"impedimentos" pessoais de caráter físico, mental, intelectual ou sensorial, adotando a
perspectiva de entender a deficiência globalmente, isto é, fatores de restrição de acesso aos
direitos, não pelos efeitos produzidos pelos impedimentos, mas sobretudo, pelas barreiras
sociais e atitudinais.
As barreiras não se estabilizam nos campos da Saúde e Educação. Estas são apenas as
bases de uma espiral que até o momento não parou de crescer.
37
“A discriminação, a tutela e a caridade são instrumentos que tornam inválidas pessoas
produtivas.” (QUEIROZ, 1986).
Concordo em parte do que foi dito por Queiroz (1986), a discriminação, a tutela e a
caridade são instrumentos que invalidam, mas não as pessoas produtivas, mas sim seu caráter
produtivo.
A não abertura no espaço trabalhista, respaldado por práticas inclusivas que
extrapolem a Lei de cotas, mina a capacidade produtiva do Deficiente Auditivo/Surdo. O que
aponta para trás, para a formação e para adiante, a conscientização da iniciativa privada no
preparo do ambiente para receber as particularidades do Deficiente Auditivo/Surdo.
Em São José dos Campos, sobram vagas para Deficientes Auditivos/Surdos que não
são preenchidas ou preenchidas temporariamente por falta de preparo das empresas e preparo
do empregado para conviver noutra realidade.
Esta realidade reflete o quanto caminha lentamente o processo de inserção, integração
e inclusão social. Não se pode atender em blocos. A atenção ao Deficiente Auditivo/Surdo
precisa acompanhar o novo entendimento da própria Organização Mundial da Saúde, ou seja,
compreender todos os aspectos que formam o indivíduo e não apenas sua situação enquanto
paciente.
Não é plausível uma soma de políticas desvinculadas que não dialogam. A rede de
atenção à minimização de barreiras precisa estar conectada às particularidades acarretadas
pela deficiência e a soma que isso reflete na sociedade.
As pontes entre as diversas áreas que englobam o conexto social do Deficiente
Auditivo/Surdo precisam sair e chegar no mesmo lugar, para não percorrerem caminhos
insólitos. A saúde precisa tratar a patologia, a educação habilitar o educando, e a política
aprovar leis que encontrem respaldo plausível. Como encontrar na lei de cotas, empresas
38
preparadas para receber o empregado e sua potencialidade de trabalho e não apenas isolá-lo
sem função produtiva, apenas para cumprir a lei.
Ou ainda pior, empresas que não conseguem completar seu quadro de cotas porque
não encontra mão de obra preparada. O que remete aos ‘vãos’ entre a lei e o não caminho para
desfrutar do direito. Como no caso em que o indivíduo surdo não recebe condições para
frequentar a escola e, portanto, não se gradua, sem escolaridade não responde aos quesitos
mínimos de contratação... o que gera um desserviço público.
Romita (1991) entende que a verdade parece estar na combinação dos dois
argumentos: Os portadores de deficiência não necessitam de medidas preferenciais, mas sim
de remoção das barreiras que impedem a sua inserção no mercado de trabalho, mas por não
haver uma integração eficiente desses três pontos: qualificação profissional, habitação e
reabilitação e estímulos financeiros. Concordo com a perspectiva da remoção de barreiras e
promoção de adequação de condições para equalizar o objetivo da lei de Cotas ao acesso
legítimo da Pessoa com Deficiência às vagas.
O autor ainda analisa que, no Brasil, uma grande parte dos portadores de deficiência
são pedintes de ruas e trabalham na economia informal, como: camelôs distribuidores de
propaganda nos semáforos etc., estando, via de regra, fora do mercado formal de trabalho e
sem a proteção do sistema de seguridade social [...]” (ROMITA, 1991).
O fato da marginalização, ser tão efetiva e enraizada, tem origem e retroalimentação
num sistema, de política pública, desencontrado e desarticulado; que não dialoga entre os
setores, logo, não consegue fechar as lacunas que poderiam criar ‘rampas sociais’ de
acessibilidade.
Ramalho e Souza (2005) afirmam que as estimativas existentes são bastante
desencontradas e analisam:
[...] se formos considerar como trabalho atividade que é exercida legalmente
registrada ou de forma autônoma, mas com as devidas proteções da seguridade
social, é bem provável que essa proporção fique em torno de 2,5% do total de
39
portadores de deficiência em idade de trabalhar no Brasil, o que representa
aproximadamente 180 mil pessoas. (RAMALHO; SOUZA, 2005).
Não podemos analisar friamente a questão trabalhista do deficiente auditivo, sem
considerar a independência e autonomia que um bom emprego proporcionaria. Nem
tampouco sermos ingênuos a julgar a preferência pela seguridade social, sem antes entender
as razões pelas quais ela se dá. Como por exemplo: condições sociais adequadas no ambiente
de trabalho, sistema inclusivo e de controle social na prevenção de discriminações, e claro, a
remuneração frente à carga horária e condições de exigência que, raramente supera os valores
do seguro social.
[...] para alcançar o objetivo de proporcionar aos deficientes o acesso aos cargos e
empregos públicos e privados, é necessário que o Estado Legislador adote medidas
niveladoras, a fim de remover os obstáculos que se opõem ao livre desenvolvimento
da personalidade dessas pessoas, assim como dos demais membros das classes
sociais desfavorecidas[...]. (ROMITA, 1991).
1.3 Identidade: Significando as particularidades do não ouvir
Os povos surdos não são obrigados a ter normalidade. A máscara não esconde o ser
que é surdo, o ser surdo que é humano... Quando a sociedade deixa o surdo ser ele
mesmo carece tirar as máscaras e assim chega o momento de o povo surdo enfrentar
a prática ouvintista, resgatar-se e transformar-se no que é de direito: partes de nós
mesmos, de termos orgulho de ser surdo! (STRÖBEL, 2007)
A identificação de um grupo, denominado por sua particularidade singular de não
ouvir, não é tida por eles como uma limitação e sim como uma identificação. O preconceito
gerado nasceu com a incapacidade da sociedade em aceitar o que difere do dominante, neste
caso, o ouvinte, o que nos remete à capacidade de se comunicar oralmente.
A discussão sobre diferença e identidade, não pode ser reduzida a uma questão de
respeito e tolerância para com adversidade. A diferença e a identidade não estão simplesmente
aí como dados da natureza. Elas são cultural e socialmente produzidas e, como tal, devem ser
questionadas e problematizadas. (SILVA, 2000).
40
Inúmeras são as barreiras impostas às pessoas com Deficiência. Embora já exista
legislação pertinente, tais barreiras persistem e refugam o Deficiente Auditivo/Surdo à
periferia social a um nível significativamente visível sob a perspectiva social da Política
Pública.
O Artigo 7º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aborda a questão
discriminatória e aponta algumas formas de sua ocorrência. Destas, podem ser descriminadas:
a omissão do setor público quando não atende seu cidadão Deficiente Auditivo/Surdo em toda
a dimensão de direitos previstos; as barreiras atitudinais, manifestadas por outras pessoas no
contato interpessoal ou indiretamente imposto por negligência e/ou não percepção (ONU,
1948).
Enquanto a Declaração de Salamanca (BRASIL, 1994) reafirma a tendência da
política social das passadas duas décadas tem consistido em promover a integração, a
participação e o combate à exclusão. Inclusão e participação são essenciais à dignidade e ao
desfrute e exercício dos direitos humanos, a Declaração afirma ainda que a reforma das
instituições sociais não é, somente, uma tarefa de ordem profissional; depende, acima de tudo,
da convicção, empenhamento e boa vontade dos indivíduos que constituem a sociedade.
As inúmeras barreiras plausíveis de serem vivenciadas pelo Público Deficiente
Auditivo/Surdo também são físicas. Tais barreiras são causadas pela infra-estrutura (ou
ausência desta), e podem ser arquitetônicas, urbanísticas, de transporte e comunicação; e
impedem as pessoas de circularem em determinados locais ou utilizarem com decência os
equipamentos urbanos. A ausência de informações sinalizadas para que o Deficiente
Auditivo/Surdo, usuário de Libras possa interagir com a informação e se valer dela, é uma
destas ausências, que poderia ser facilmente sanada. Outra forma de favorecer o usufruto do
espaço, seria garantir atendimento em Libras nos setores públicos, ou buscar soluções
plausíveis como o sistema da tradução e interpretação (CELIG) que já é utilizado na Capital.
41
O sistema representa o que considero, uma ‘rampa social’ já que proporciona
acessibilidade aos setores e serviços.
Já as barreiras sistêmicas são causadas pelo sistema social, relacionadas às políticas
públicas e/ou ausência destas, o que evidencia obstrução de direitos e, portanto ofende os
direitos humanos previstos.
A consolidação de políticas públicas dirigidas ao cidadão requer seu reconhecimento
como Sujeito de Direitos, bem como a demarcação de seu lugar no conjunto de ações do
Estado e da sociedade. Um dos requisitos é certamente a ampliação de sua interlocução com
as áreas de atenção pública à seguridade social, com o Judiciário e com o Legislativo.
Quanto ao último, é necessário ressaltar o fato de que o atendimento à Pessoa com
Deficiência precisa de conhecimento sobre as particularidades da Comunidade como
fundamento para a elaboração de políticas púbicas. O desconhecimento pode levar a
situações, no mínimo desarmoniosas, como a formação de salas de aulas híbridas, onde
cadeirantes, cegos, surdos são submetidos ao mesmo tratamento, em total desconsideração ao
específico de cada um, ou ainda o uso do ‘closed caption’ ou mídias com recursos escritos
que não consideram o assustador índice analfabeto em Língua Portuguesa da Comunidade.
Se o objetivo das políticas públicas é promover a igualdade, ele implica no respeito às
diferenças.
Neste sentido, Fávero (2006) faz uma distinção importante entre integrar e incluir. Em
seu ponto de vista, integrar tem como fundamento adaptação individual. A sociedade, então,
reconhece a desigualdade, mantendo a possibilidade daqueles que, por “méritos” próprios,
consigam atingir uma nova condição no espaço social.
Não há aqui, portanto, a consciência de que aquele indivíduo faz parte de um grupo
que requer uma atenção especial. Por outro lado, prossegue o autor, a inclusão se traduz no
combate à exclusão em si. Assim, incluir exige que o Poder Público e a sociedade promovam
42
condições para o acolhimento das especificidades. Resumindo, a integração prevê
incorporação condicional àquele que consegue adaptar-se, a inclusão garante a adoção de
ações para evitar a exclusão de qualquer pessoa ou grupo social.
A inclusão, portanto, implica na adoção de políticas públicas e sociais que promovam
o acesso à cidade e aos serviços, conduzidas por uma gestão pública que assegure o acesso
universal e igualitário a todas as pessoas aos espaços públicos e equipamentos urbanos; uma
ação que só tem como requisito para sua eficácia a consideração das diferenças e
particularidades impostas por limitações físicas, econômicas ou sócio-culturais.
A cidade se enquadra enquanto provedora não apenas do ‘chão’ do ‘lugar citadino’
que abriga fisicamente o indivíduo Deficiente Auditivo/Surdo, mas o berço social onde
medidas e ações devem emergir através de seus equipamentos sociais, sua frente de ação
política deve se materializar em serviços públicos que aconteçam na cidade, no espaço
público, nos territórios citadinos.
A cidade se enquadra na inclusão e se torna inclusiva quando atende de maneira sóbria
e efetiva suas obrigações determinadas pela Constituição. Quando não resvala sua
responsabilidade em ações medíocres e superficiais. Quanto não se limita de maneira
simplista aos apontamentos do Estatuto da Cidade (SAULE JÚNIOR, 2002), mas inclina e
adequa seu Plano Diretor de forma suficiente. A cidade pode responder à demanda específica
de Deficientes Auditivos/Surdos e suas particularidades quando compreende o significado da
diferença e o que ela ocasiona na cidadania deste indivíduo.
Entendo que, a cidade se torna responsavelmente inclusiva quando transforma seu
espaço urbano e o que ele compreende em um campo democrático de atuação, ou seja, onde
todos, independente de como são ou estão (já que uma pessoa pode ser deficiente ou estar
deficiente) possam ‘ser’ e ‘estar’ nesta cidade enquanto e como cidadãos.
43
A cidade não exclui quando se importa em descriminar s diferenças sem discriminar a
pessoa com deficiência.
Nascimento (2000) vai relacionar a situação de exclusão não só a um conjunto de
carências materiais, mas ao desconhecimento do excluído como sujeito. Desta maneira a ele é negado
não só um conjunto de bens e serviços necessários a uma vida com dignidade, mas seu lugar
na elaboração das políticas que lhes dizem respeito.
Neste plano, podemos lembrar as observações de Foucault (1996) que aborda a
desqualificação da fala de loucos e heréticos na ordem do discurso, ao final da Idade Média;
um processo de exclusão que, no presente, vai atingir outros segmentos sociais.
Em decorrência, a abordagem das políticas inclusivas se desdobra ainda no tema da
formação de identidades. O que significa dizer que a forma como são socialmente percebidos
condiciona a forma como estabelecem sua interlocução com o restante da Sociedade, e
consequentemente estabelece a relação de Identidade e suas Particularidades.
1.4 Particularidades das Identidades: e vice e versa.
Somos notavelmente ignorantes a respeito da surdez, muito mais ignorantes do que
um homem instruído teria sido em 1886 ou 1786. Ignorantes e indiferentes (...). Eu
nada sabia a respeito da situação dos surdos, nem imaginava que ela pudesse lançar
luz sobre tantos domínios, sobretudo o domínio da língua. Fiquei pasmo com o que
aprendi sobre a história das pessoas surdas e os extraordinários desafios
(linguísticos) que elas enfrentam, e pasmo também ao tomar conhecimento de uma
língua completamente visual, a língua de sinais, diferente em modo de minha
própria língua, a falada [...]. (SACKS, 1998).
Várias questões fragilizam a Identidade Surda. As subjetividades da Comunidade
perscrutam caminhos que excedem diferenças primárias como raça, credo ou classe social.
Silva (2000) define Identidade Cultural e Social como conjunto daquelas
características pelas quais os grupos sociais se definem como grupos. Desse modo, aquilo que
eles são é inseparável daquilo que eles não são, daquelas características que os fazem
diferentes de outros grupos.
44
Existe toda uma rede de diferenciações e posturas que convergem ou divergem dentro
da realidade da Deficiência Auditiva/Surdez. Modos de ver e viver a Deficiência
Auditiva/Surdez que discrepam uma da outra, formando grupos heterogêneos dentro da
Comunidade.
E esta diferenciação tem início na própria forma de denominar os grupos.
Existem dentre outras, duas expressões comumente encontradas na literatura: Surdo e
Deficiente Auditivo.
Dorziat (1998) pondera sobre como a perspectiva dos Estudos Culturais, que
redefiniram o significado de cultura, conhecimento e currículo, principalmente sob a
perspectiva de Michel Foucault.
Sob o respaldo de Silva (2000) e Hall (2000) dentre outros, os conceitos de identidade
e diferença são amplamente problematizados. Silva discute sobre a importância de não reduzir
a questão aos planos da tolerância à diversidade.
“A diferença e a identidade não estão simplesmente aí como dados da natureza. Elas
são cultural e socialmente produzidas e, como tal, devem ser questionadas e
problematizadas.” (DORZIAT, 1998)
Sob o signo da globalização o mundo mudou, e com ele, perspectivas sociais se
transformaram porque, as pessoas se transformaram. O contexto político-social foi alterado
frente à franca e urgente necessidade de acompanhar o ritmo frenético da evolução científica,
política, social e principalmente o contexto econômico.
Bauman (1999) considera que,
[...] parte integrante dos processos de globalização, é a progressiva segregação
espacial e a exclusão. É cada vez mais evidente a ruptura de comunicação entre as
elites extraterritoriais (dia a dia mais “globais”) e o restante da população (cada vez
mais “localizada”). (BAUMAN, 1999)
E, neste contexto, diferentes grupos sociais buscam, sob a tutela da pós-modernidade e
seu arquétipo de questionamentos e insatisfações, inauguram uma postura exigente, que
45
visiona uma participação mais efetiva. E neste contexto cultural que a questão da Identidade
ganha um maior espaço de reflexão.
A identidade para o sujeito pós-moderno torna-se uma ‘celebração móvel’: formada
e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam [..]. O sujeito
assume identidades em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao
redor de um “eu” coerente”. (HALL, 2000).
Buscando um melhor conhecimento sobre a vivência deste público, percebi que, em
meio à comunidade e profissionais da Saúde e Educação que convivem e vivem da realidade
da deficiência auditiva/surda, francos são os desencontros frente a própria identidade.
Desde a forma como devem ser denominados até a forma como devem ser
clinicamente tratados, as divergências não se restringem aos métodos, mas formam diferentes
frentes dentro do mesmo paradigma da exclusão.
O que de fato, corresponde ao que Hall (2000) pondera quando analisa a constante
transformação do processo de identificar-se, mostrando que, ao longo do tempo, o sujeito não
permanece idêntico, mas, em vez disso, sofre continuamente influências do meio em que vive
e das pessoas que compõem este meio.
O que de fato ocorre nas Identidades Surdas, já que, além das próprias diferenciações
intrínsecas, as inserções dos ouvintes na vivência do Deficiente Auditivo/Surdo e sua família
acabam por interferir nas decisões quanto ao tratamento, quanto ao método de reabilitação e
educação.
São ouvintes (médicos, fonoaudiólogos, intérpretes e professores) que, defendem seus
partidarismos frente às questões da Deficiência Auditivo/Surdez, conduzindo seu público de
contato a se portarem e decidirem questões que determinam seu papel dentro da comunidade
Surda e ouvinte, logo, interferindo no processo de construção de identidade.
”Uma separação entre o saber produzido pela experiência e o saber produzido pelo
conhecimento científico”. (LARROSA; PÉREZ DE LARA, 1998)
46
Durante o processo de investigação da realidade, percebi que a condução do perfil do
grupo era realizado pelo intérprete, que opera a ponte entre o Deficiente Auditivo/Surdo e o
ouvinte. As impressões sobre a realidade social frente a problemática era respondida de
maneira superficial pelo grupo da dinâmica. A intérprete conduzia o pensamento e raciocínio
do grupo frente às questões colocadas para discussão.
Quando por exemplo o assunto era educação, a maioria defendia a presença do
intérprete, mas na passagem, na tradução da questão a ser discutida a intérprete subescrevia
inconscientemente sua opinião. Exemplo: Não é mais fácil quando tem intérprete? Vocês não
entendem melhor quando tem intérprete? Ou noutro momento frente à questão dos métodos
de reabilitação, quando o grupo discutia a questão do uso da LIBRAS, do Oralismo ou mesmo
sobre tratamento com Implante Coclear, o grupo diversificou opiniões sobre os métodos.
Mesmo porque, o grupo era misto (ou seja, era formado de Usuários de LIBRAS, Oralizados
e Implantados). A única pessoa completamente oralizada, mas também usuária de LIBRAS,
contou como foi difícil e demorado o processo de oralização. Disse que se sentia a parte por
não conseguir se comunicar com os pares deficiente auditivos/surdos. Aprendeu LIBRAS e
hoje se comunica com Surdos (por LIBRAS) e, com os ouvintes pelo oralismo. Interessante
que, por trabalhar sempre com a intérprete, ela conduziu sua análise de maneira a favorecer a
LIBRAS frente ao Oralismo. Enquanto via-se claramente a vantagem comunicativa que ela
tinha sobre os demais por possuir ambas as capacidades.
Outra questão claramente observada foi o desconhecimento sobre o Implante Coclear.
De um grupo de 13 pessoas, apenas 01 jovem era implantado. Foi clara a tendência à
marginalização. O grupo se ressentia porque entendia que, agora implantado, o jovem já
evitava se comunicar através da LIBRAS, o que foi entendido como não aceitação da
linguagem, logo refletia acepção aos usuários. Ao mesmo tempo, o jovem se sentiu ignorado
pelo grupo. Sentiu que o grupo não o aceitava mais como par.
47
No ínterim da dinâmica a intérprete denunciou o fato do jovem não querer utilizar
mais LIBRAS, mas não denunciou a marginalização feita pelo grupo. O que também
comunica uma tendência de interpor as inclinações do grupo.
Dentre outros momentos da dinâmica, ficou claro que o grupo não tem noção de
questões sociais, nem tampouco termos como inclusão, exclusão, diversidade e políticas
públicas. A intérprete então, explicou a noção dos termos, mas o resultado de percepção do
grupo ficou claramente restrita ao preconceito e separação (exclusão) e dificuldade
(acessibilidade).
Esta experiência apenas ratificou e complementou o que a literatura já mencionava
como Identidade(S) Surdas. O plural denuncia intergrupos, que associam e dissociam-se
frente à questões imprescindíveis à inclusão político-social.
A dinâmica também confirmou a questão das identidades flutuantes, um meio neutro
onde certas conjecturas ficam à mercê de direcionamentos.
Vertente que Rampelotto e Sacilloto ([2006]) analisam quando trata do sujeito
cartesiano*:
Dentre essas mudanças no pensamento do século XX, merecem destaque: a
descoberta do inconsciente por Freud, já que, a partir da visão do pensamento
psicanalítico, a identidade não é inata, mas constantemente construída; a
argumentação do linguista Saussure, que descreve que o significado não é uma
construção individual; e o trabalho de Foucault, com a ideia do poder disciplinar,
composto pela regulação e pela vigilância das ações do indivíduo. Estes novos
territórios de discussão auxiliam na compreensão da não existência de uma unidade
de identidade. (RAMPELOTTO; SACILOTTO, [2006]).
Realmente, a experiência comprovou a análise da autora quanto à questão da
construção de uma identidade. Esta multiforme ação do meio sobre o sujeito e o impacto do
externo sobre a construção de noção de identificação é evidente frente á forma com o as
Identidades Surdas estão sujeitas ao meio e influências.
[...] as identidades não são nunca unificadas; que elas são na modernidade tardia,
cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas
multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se
48
cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical,
estando constantemente em processo de mudança e transformação. (HALL, 2000).
Sabemos que as diferenças culturais constroem e reformulam identidades. Sob a lógica
da concepção dos excluídos, a formação de territórios de emancipação e territorialidades se
fixam à busca por identificação como sujeitos de direitos.
Várias conquistas já se deram frente aos grandes obstáculos impostos à uma melhor
vivência, e destas, a incapacidade de ouvir naturalmente não está sozinha. Divide espaço junto
ao desconhecimento da Sociedade majoritária-ouvinte frente ao universo que existe dentro
desta realidade de ineficiência no ouvir.
Enquanto minoria linguística, a comunidade surda está cada vez mais unida em prol
de uma articulação política e social que considere seus direitos linguísticos e de
cidadania, impondo-se em busca do respeito à diferença. Essa comunidade vem
lutando por seus ideais, pela compreensão de sua cultura e de sua própria língua,
começando assim a consolidar seu grupo, já que passou a estar presente, através de
movimentos surdos, na tomada de decisões que interferem em sua educação e,
consequentemente, em sua vida. (SACILOTTO; RAMPELOTTO, [2006]).
Mas, a capacidade de se conjecturar e unir em busca de maior participação, já garantiu
à Comunidade Deficiente Auditiva/Surda brasileira seu direito com a formalização da
LIBRAS como a Língua Brasileira de Sinais.
Para Perlin (1998) “a identidade é algo em questão, em construção, uma construção
móvel que pode frequentemente ser transformada ou estar em movimento, e que empurra o
sujeito em diferentes posições”.
A consolidação desta Identidade, passa por possibilidades de aquisição da linguagem,
tratamento, reabilitação e educação, e de todas estas questões depende a formulação do sujeito
concomitantemente à atuação do meio sobre a realidade deste sujeito.
O que imprime categoricamente, a importância de se ater à questão das alterações
auditivas e seus fatores de impacto na alteridade do Deficiente Auditivo/Surdo.
Quanto à reafirmação de Identidade, o Deficiente Auditivo/Surdo, busca e precisa se
autoafirmar enquanto agente do próprio discurso social. Entre a marginalização e a alteridade,
49
este público tem estado à mercê de não políticas específicas ou afinadas às particularidades
que exigem percepção e resposta político-social.
E é sob este contexto que se configura uma severa desconsideração por parte das
políticas Públicas frente à Comunidade, suas Identidades formada por suas particularidades.
Números e análises podem percorrer teoricamente a realidade, mas não têm a
prerrogativa de sequer supor, o que representa ser minoria num contingente de maioria
ouvinte, onde tudo é feito e pensado para o benefício do maior público, neste caso, a
sociedade ouvinte.
O mundo muda mas não na velocidade ou sentido que percorra todas os entremeios da
acessibilidade social.
Poderia percorrer a longa e histórica luta do Deficiente Auditivo/Surdo e a forma
superficial como alguns avanços sociais permeiam a discriminação. Mas, não vou me ater ao
processo histórico, me limito a retomar a questão do quanto, avanços isolados podem
alimentar uma estagnação social do indivíduo.
Em muitos aspectos, temos que reconhecer os avanços de mentalidade social e
comportamental.
Estamos
na
vanguarda
clínica
de
atendimento
à
Deficiência
Auditiva/Surdez, não se pode dizer que nada está sendo feito. Entendo estarmos diante de um
momento importante frente às deficiências e às Pessoas com deficiência, um momento onde a
deficiência que existia na mentalidade social está perdendo espaço para o entendimento do
SER, HUMANO por trás da diferença imposta pela deficiência.
O discurso já protagoniza a Pessoa, o que faz avançar a perspectiva aguçada no
aspecto global e contextual da Pessoa com deficiência. A recolocação está em franco
progresso no campo do discurso: A deficiência agora está sendo posta em seu lugar: no
contexto da diferença ocasionada por ela na Pessoa; enquanto a Pessoa recolocada em seu
50
lugar: Protagonista e visibilidade social antes camuflada pela evidência social da deficiência
que lhe roubava a identidade.
Nogueira (2005) afirma que as últimas décadas trouxeram importantes conquistas no
campo dos direitos sociais, recriando o conceito de cidadania e associando a ela novos temas
e novas dimensões. Concordo, pois o avanço na maturidade e mudança de conceitos faz
evoluir vários campos de atenção específica e desmistificação quanto à potencialidade do
indivíduo.
Já Skliar (1999) entende que:
[...] tais conquistas se refletiram na área da surdez, imprimindo um novo paradigma
na questão da identidade do surdo como reconhecimento político da surdez enquanto
diferença. Neste contexto, a surdez deixa de ser vista como deficiência e o surdo
passa a ser reconhecido como parte de uma minoria linguística e cultural. (SKILAR,
1999)
O mundo muda, mas toda a sociedade (onde cabe o ‘nós’) precisa acompanhar esta
evolução, precisamos operar um movimento eficaz de comportamento frente às questões que
afetam o outro, o diferente, o não igual à maioria. Se, realmente o mundo muda é porque
sempre existe alguém que muda o mundo. Este alguém (iniciativa pública e/ou privada)
precisa ser e estar incansavelmente pronto a não deixar desvanecer o exercício da
responsabilidade social, afinal ela é o dispositivo do discurso, da ideologia e da utopia.
51
2 Representação Social: um constructo insólito
As representações sociais equivalem a um conjunto de princípios construídos
interativamente e compartilhados por diferentes grupos que através delas compreendem e
transformam a realidade. (REIGOTA, 2002).
E por acreditar na força das provocações, lanço mão do recurso posto por autores
como Moscoviti (2003) que elaboram um pensamento referente às representações sociais, e
como o processo de percebê-las corresponde a uma prática de análise sobre como e o que a
sociedade pensa sobre dada realidade.
‘Representa o social’. De forma rasa, a primeira e pronta explicação por si, estabelece
o quanto questões como Deficiência, Inclusão e Políticas Públicas não estão apenas presentes
no cotidiano, mas realizam o cotidiano. E o fazem por serem por si só, representações do que
as pessoas pensam e como agem. As representações fomentam ações, inibem iniciativas e
conduzem políticas.
As representações sociais relacionam-se de perto com o senso comum, o que nos
convida a observá-las para entender o ponto de vista sobre como o Deficiente Auditivo/Surdo
é visto e tido pelo público ouvinte, ou, como as representações sociais concebem a temática
da inclusão desta Comunidade.
Para Moscoviti (2003), uma representação social é o senso comum que se tem sobre
determinado tema, onde se incluem também com ideologias, preconceitos e características
específicas das atividades cotidianas sociais e profissionais das pessoas.
O que remete à concepção que se tem ou não da Deficiência Auditiva/Surdez e da
Pessoa com deficiência Auditiva; concepção que é traduzida na atenção dispensada à
realidade das alterações auditivas na vida das pessoas.
É importante pensar sobre como o ser Deficiente Auditivo/Surdo ser indivíduo,
implica o exercício do ser cidadão.
52
Muito se tem discutido frente a questão inclusiva, o que comprova uma historicidade
de exclusão. Uma vivência sem convivência com o Deficiente Auditivo/Surdo, que comunica
a forma como permanece recalcada e obsoleta a percepção e atitude e não atitude da
Sociedade.
Não pretendo realizar uma análise profunda frente ao que significa a representação
social, e sim apontar o que a representação social da Deficiência Auditiva/Surdez opera no
portador.
Carvalho (2007) em uma análise sobre a questão, entende que, na gênese das
representações, o indivíduo não é apenas um ser genérico, mas é um sujeito histórico, com
uma história pessoal e social, que expressa sentimentos e afetos, com poder de criar e
transformar a realidade existindo em suas representações sociais.
Entender a deficiência é parte de uma maturação social, é preciso perceber
globalmente a pessoa com Deficiência Auditiva/Surdez, atentar às nuances de uma evidência
física de particularidade. Precisa-se inclinar os arquétipos e estereótipos a um ângulo que
contemple o ser do ser humano Deficiente Auditivo/Surdo. Ser visto, ouvido, percebido,
respeitado como sujeito de direitos que é.
Respeitado inclusive sobre suas escolhas, suas preferências, seu achar enquanto sujeito
de sua própria condição. Entendo ser legítima, a intenção de elaborar planos de ação e
políticas que subjuguem os impactos da deficiência auditiva/surdez, mas, há uma linha muito
tênue entre subjugar a deficiência auditiva/surdez e subjugar o Deficiente Auditivo/Surdo ao
que entendemos ser melhor.
O que percebi em minhas ‘andanças’ na busca por conhecer a realidade desta
deficiência, é que há uma forte tendência em defender métodos. Desde o diagnóstico à
reabilitação e inclusão, há uma demarcação de território, defendida por diferentes frentes, que
defendem sua metodologia.
53
Macedo (2000) analisa sob a tutela do desenvolvimento humano, a importância do
diálogo. O autor afirma que:
[...] sob esta perspectiva, uma gestão dialógica e co-constitutiva não deve ser uma
prática de culto ou cultivo ao narcisismo intelectual competitivo, ou de lideranças
afeitas e acostumadas apenas com relações satelitizadas, especialmente praticadas
nos meios acadêmicos; deve-se incentivar a inteligência parceira que alimenta-se
também do gosto pela prática da dialogicidade e da dialeticidade humanamente
majorantes [...]. (MACEDO, 2000).
Considero legítima e democrática, a coexistência de várias formas de atuar sobre uma
problemática, e saudável inclusive, pois fomenta competição, que promove (ou deveria) a
excelência. Mas, se esta coexistência não respeita a opção de uma escolha esclarecida e livre,
por parte da Pessoa com Deficiência e sua família, o processo fica comprometido porque
novamente observa-se a minimização da deficiência, suplantando a escolha da Pessoa com a
deficiência.
E, entre os lados e perspectivas, (não) fica o Deficiente Auditivo/Surdo e sua família.
Ou refém dos partidarismos que lhe convencerem, ou da falta de opção por questões
financeiras, ou ainda pior, por uma franca ausência de informações que minem o monopólio
estabelecido por quem sequestra mais e melhor contingente de adeptos. Digo sequestro
porque entendo uma falsa escolha quando não se tem informação suficiente, nem tampouco
liberdade para optar.
Sob esta realidade, cabe apontar novamente o papel das Políticas Públicas no papel
neutralizador. Um mediador entre a informação, os profissionais e seus métodos e o menos
protegido do processo: O público Deficiente Auditivo/Surdo.
E toda esta conjectura defende o direito de ‘ser’ ou ‘não ser’ do Deficiente
Auditivo/Surdo.
Podemos elaborar uma Política Pública que atenda a todo o público e suas
particularidades, sem se esquecer da neutralidade que garantirá a democrática e transparente
54
atenção ao que deveria ser o único e comum objetivo de todas as frentes ligadas à
problemática: a inclusão.
Deficiente Auditivo, Surdo, Oralizado, Implantado, Usuário de LIBRAS, Usuário de
AASI; a Pessoa com Deficiência deve ter sempre à primazia do direito à escolha consciente
do que quer “SER”.
E isto também depende de uma Política de valorização das Identidades. Porque, se
entendermos a conjectura e formação global da Pessoa com Deficiência Auditiva,
respeitaremos sua escolha (ou não escolha).
Insisto neste ‘ser’ justamente porque nele reside o direito de exercer seu papel onde se
insere(integração) ou é inserido(inclusão).
Contabilizar na história a busca pela inclusão do Deficiente Auditivo/Surdo, não
fortalece a busca, mas pode transformar efetivamente a realidade destas pessoas se usarmos
criticidade suficiente para reconhecer os entraves e conferirmos que, sem a dose mínima de
responsabilidade social, não se alcançará uma nova concepção de atuação polítco-social.
Apoiado em Durkeim, Reigota (2002) afirma que: “[...] nada ou quase nada escapa
das configurações sociais, ou seja, as sociedades agem sobre seus indivíduos
independentemente da vontade destes.” O autor ainda destaca que, os conceitos científicos
tendem a generalizações e ao rigor, enquanto que as representações coletivas se associam a
um tipo de conhecimento que, podemos eventualmente possuir um aspecto de cientificidade,
que se pauta pela compreensão do saber.
Porém, isto não diminui o valor e a pertinência social do conhecimento gerado a partir
das vivências com a diversidade.
Numa postura arrogante de domínio do saber, ainda existe uma parcela de
profissionais ou estudiosos que acreditam conhecerem mais sobre a alteração auditiva do que
quem a possui.
55
Ouvi de vários profissionais da área que sabiam ‘exatamente’ o que as famílias
estavam passando diante de um diagnóstico de perda auditiva.
Um destes profissionais inclusive, afirmou que conhecia tanto do assunto que
entendia mais de surdez que o próprio surdo. Eu na minha ignorância só pude então esperar
ter a oportunidade de voltar a conversar com ele sobre o assunto, caso ele ficasse
sensorialmente surdo já que já se considerava teoricamente surdo...
Ledo engano e presunção pensar que conhecemos a realidade da deficiência se não
somos pessoas com deficiência, ou que entendemos a família se não somos do núcleo familiar
que convive com as alterações auditivas de baixo ou alto impacto (nível de afetação social da
deficiência auditiva).
A profunda relação entre sujeito, deficiência e sociedade segue corrompida por um
frágil tripé: ignorância quanto a deficiência/diferença; arrogância da ‘normalidade’ e
descompromisso social. Sobre estas questões pairam discussões acadêmicas e discursos
hegemônicos dos direitos humanos paralelos, que por tangenciar as questões mais pertinentes
e não supri-las não convergem para a minimização do impacto social da exclusão.
Reconhecer estas intrínsecas relações e inter-relações, contribuirá para uma real
atuação frente à marginalização do Deficiente Auditivo/Surdo.
De acordo com Durkheim, as representações coletivas são categorias de pensamento
pelas quais uma sociedade expressa sua realidade, contudo, tais categorias não se
apresentam de imediato e não são universais na consciência. Surgem com origem
nos fatos sociais, e mais, transformando-se elas mesmas em fatos sociais passíveis
de serem observados e interpretados. Salienta, ainda, que tais representações
traduzem a maneira como o grupo pensa suas relações com o objeto que o afeta.
Para entender como a sociedade se representa a si mesma e ao mundo que a cerca é
preciso considerar a natureza da sociedade e não dos indivíduos. (MINAYO, 2007)
Isto, de fato se vê na manifestação marginalizada da Comunidade Deficiente
Auditiva/Surda que se concentra à margem social educacional, cultural, enfim, preenchem
lacunas, espaços reservados na sociedade majoritária.
56
É de fato ensurdecedor o fato de que, em pleno século XXI, as pessoas são reclusas à
própria deficiência por falta de informação, sofrem preconceitos diversos e absurdos na
ocupação de seus direitos constituídos, vividos como favores.
A representação social da Sociedade ouvinte é que deveria ser observada sob
parâmetros de análise de ineficiência já que, mesmo ante previsão legislativa, a gestão se
esquiva de aprimorar e fazer valer previsões estatutárias dos direitos e deveres das esferas de
governo e sociedade civil.
E no que se refere ao urbano, é preciso despir o Planejamento de seu aspecto físico e
arquitetônico. Planejamento Urbano não é só físico-estrutural. É planejar considerando o
humano, o ser que vai fazer, ocupar e (re)organizar as estruturas. E é neste momento em que a
humanização se reflete, e considera a pessoa do espaço, a pessoa que acessa que compra que
vota, que é público das ações e não ações de políticas que podem e precisam extrapolar o
campo ideológico e se materializar neste espaço, onde o planejamento alcança seu objetivo:
Planejar.
E acredito que, se a motivação do Planejamento estiver equalizado ao ser humano, não
se restringirá ao arquétipo sólido das estruturas, mas vislumbrará operar mudanças que visem
a todos, sem discriminação, sem negligencias as diferenças, mas respeitando a descriminação
necessária às diferenças.
2.1 Quando ser normal for diferente, ser diferente será normal: um pleonasmo social
“Ser normal é tão importante, mas tão importante mesmo, que não se
consegue entender até que ponto vai seu significado.”
(QUADROS; PERLIN, 2007)
A definição de normalidade, obedece a parâmetros pré-estabelecidos pela sociedade e
seus pré-conceitos, que mal interpretados e conduzidos se tornam preconceitos que avariam
57
um modelo de sociedade capaz de permitir que todos se desenvolvam sem a noção de
diferença no sentido depreciativo.
Definir normal ou diferente tem que posicionar um padrão para se estabelecer uma
comparação, um modelo matricial onde possamos determinar, convencionando normas sociais
cabíveis de apreciação e observação, parâmetros de diferenciação que não ocasionem acepção
de pessoas por suas características.
Precisamos definir quem estabeleceu a normalidade e perguntar-lhe se ser normal é ser
diferente ou igual.
Não podemos ignorar a questão dialética das relações pessoais, onde a deficiência
opera no tido normal uma ótica deturpada sobre o tido ‘não normal’, o que implanta uma
conduta preconceituosa e negligente.
O questionamento sobre inclusão emerge justamente do não entendimento sobre as
diferenças e do estigma da deficiência versus normalidade.
Para Amaral (1992) “[...] do ponto de vista biológico, o desvio está presente no corpo
quando há falta ou excesso de alguma coisa”. A autora afirma que “[...] o fato é que (seja da
ótica de quem a vive, seja da ótica de quem a vê) a deficiência, do ponto de vista psicológico,
jamais passa em ‘brancas nuvens’” e prossegue:
Muito pelo contrário: ameaça, desorganiza, mobiliza. Representa aquilo que foge ao
esperado, ao simétrico, ao belo, ao eficiente, ao perfeito... e, assim como quase tudo
que se refere à diferença, provoca a hegemonia do emocional sobre o racional.
(AMARAL, 1992).
O conceito de normal, ou de norma, e consequentemente daquilo que não é normal ou
que, não segue a norma; é bastante complexo e tem sido tratado por diversos autores como
Canguilhem (2002), Goffman (1993), Mantoan (2002), Gilberto Velho (1989), dentre outros.
“A diferença promove a singularidade,
sem abrir mão da pluralidade.”
(PORTELLA, 1999)
58
Influenciada pela reflexão dos mesmos, entendo importante lembrar que, o critério de
normal tem sua base considerando a estatística e o que ela aponta como maioria, e do que esta
maioria considera ideal, ou seja, sua ideologia.
Canguilhem (2002) analisa a dependência de estipular a anormalidade tendo referência
o que já foi estipulado como normal, e pondera que, definir quem ou o quê é normal depende
de oscilações em torno de valores médios puramente teóricos, sob os quais os indivíduos vão
ser considerados normais. E continua: “Mas será que devemos considerar qualquer desvio
como anormal?”(CANGUILHEM, 2002)
Certamente a pergunta de Canguilhem provoca, ou deveria provocar desconforto
quando sugere a estipulação da normalidade. Então, não resta saber a quem consideraremos
normais, e sim, se temos o direito de rotular qualquer pessoa considerando a deficiência e não
postular o nível de afetação da deficiência tendo como base a pessoa.
Quando se trata de estipular anormalidade ou desvio à normalidade, a deficiência é
facilmente enquadrada, devido sua diferenciação significativa, tida também como desvio à
‘normalidade.’
A coletânea dos Estudos Surdos II (QUADROS; PERLIN, 2007), utilizada como base
neste capítulo projeta claramente esta questão, quando ao longo das colocações observa-se um
questionamento quanto à forma como os Surdos (não) são percebidos.
[...] aquele grupo que Bauman (2005) denomina de párias da sociedade. O que nos
levou a ser classificados como isto, se estamos bem vestidos, comemos em
restaurantes de classe e transitamos em qualquer ambiente como qualquer grupo,
simplesmente a chamada normalidade?(QUADROS; PERLIN, 2007).
Seguimos vertentes e perspectivas que não nasceram da visão de quem vive a
questão da inclusão. Usá-lo durante a pesquisa, não significa ouvi-la, falar de sua deficiência e
de seus direito não representa defesa de seus interesses.
Hoje os párias, os não-normais não irão para quaisquer países como nos tempos da
colonialidade em que o rei determinava a criação de novas cidades e os deficientes
59
eram jogados pelos despenhadeiros, por representarem um peso para a sociedade. A
temporalidade daqueles feitos incautos mudou. Ficamos entre os homens e
mulheres, pois assim a vida é possível. Acontece que “estamos integrados”, como
querem alguns e “não integrados”, como falam outros. (BAUMAN, 2005).
Há de ter muito cuidado para não excluirmos do processo de inclusão o excluído.
Antes de agir, ouvir. Este cuidado tão simples, certamente inaugurará uma postura
social livre de rotulações. Uma ação político-social que consiga dimensionar as dificuldades e
assim poder supri-las porque vislumbra a pessoa por trás da deficiência, podendo enfim
reverter o panorama.
O que certamente não será o final feliz, mas o início de uma nova forma de perceber a
questão, mas sobretudo, eliminar análises superficiais e observar pelo ângulo mais propício
que cuidará da deficiência por trás da pessoa.
Discutimos a importância da política, mas o tempo da política se processa no
indivíduo e através dele, e reflete no espaço social (escola, rua, comércio, área pública de
lazer...) onde está inserido. Portanto, é de fato incômodo não perceber a voz do Deficiente
Auditivo/Surdo nem percebê-lo tanto nos espaços públicos quanto na política pública
(planejamento e aprimoramentos).
Notadamente, não existem trilhas óbvias para retornarmos ao quadro das identidades
daqueles que se consideram normais. A nossa trilha perfaz nos identificarmos
enquanto surdos, enquanto aqueles com marcas de diferença cultural. Não nos
importa que nos marquem como refugos, como excluídos, como anormais. Importanos quem somos, o que somos e como somos. A diferença será sempre diferença.
Não tentem colocar todos os capitais do mundo para declarar-nos diversos porque
não é isso que estamos significando. Continuamos a ser diferentes em nossas
formas. Continuamos a nos identificar como surdos. Continuamos a dizer que somos
normais com nossa língua de sinais, com o nosso jeito de ser surdos.(QUADROS;
PERLIN, 2007)
Segundo Fávero (2006), na integração, a sociedade admite a existência das
desigualdades sociais e, para reduzi-las, permite a incorporação de pessoas que consigam
adaptar-se, por méritos próprios. Enquanto a inclusão parte da primícia de deixar de excluir.
Mesmo diante dos estudos e discussões pertinentes, a doutrina tem tratado a questão da
terminologia de maneira tímida e esporádica. Não há uniformidade na nomenclatura, nem
60
tampouco afinco na busca por soluções sistêmicas para este, que sem dúvida, representa
apenas a menor das questões frente a uma problemática tão relevante e profunda como a
inclusão ou integração ou normatização.
A inquietação não se dá pelas opções, e sim pela ausência de opções que visem uma
melhor vivência do Deficiente Auditivo/Surdo, ou uma conjectura em favor desta ‘melhor
vivência’.
2.2 Normalizar, Integrar ou Incluir? Eis as questões.
O nó da questão da integração social do indivíduo surdo, envolvendo a existência de
grupos de surdos e sua convivência com os ouvintes, pode ser assim colocado:
apesar de ser uma condição intrinsecamente adversa, a surdez e os surdos não
podem ser tratados meramente como doentes, pois não o são. Essa visão só poderá
ser modificada se ultrapassarmos as decorrências diretas da perda auditiva e
analisarmos de forma mais abrangente as consequências geradas por ela, aliadas às
consequências construídas e produzidas pelas relações sociais. (BUENO, 1998).
O conceito de normalização, segundo Wolfensberger (1972), reconhece às pessoas
com deficiência os mesmos direitos de outros cidadãos do mesmo grupo etário, em aceitá-los
de acordo com a sua especificidade própria, proporcionando-lhes os serviços da comunidade,
que contribuiu para desenvolver as suas potencialidades, de modo a que o seu comportamento
se aproximou dos modelos considerados “normais”.
Para Mantoan (1997), “a normalização visa tornar acessível às pessoas socialmente
desvalorizadas as condições e os modelos de vida análogos aos que são disponíveis, de modo
geral, ao conjunto de pessoas de um dado meio, ou, sociedade”.
Segundo Fávero (2006), na integração, a sociedade admite a existência das
desigualdades sociais e, para reduzi-las, permite a incorporação de pessoas que consigam
adaptar-se, por méritos próprios.
Segundo Glat (1995), a integração “é um processo espontâneo e subjetivo, que
envolve direta e pessoalmente o relacionamento entre seres humanos”. Na opinião de
61
Rodrigues (2006), “a integração pressupõe uma ‘participação tutelada’, uma estrutura com
valores próprios aos quais, o aluno ‘integrado’ se tem que adaptar”.
Enquanto a inclusão parte do princípio da não exclusão. Pressupondo que todos fazem
parte de uma mesma comunidade e não de grupos distintos.
Assim, enquanto a normalização requer um comportamento ‘normal’ por parte do
deficiente, a integração, prevê incorporação condicional àquele que consegue adaptar-se e por
fim, a inclusão visa a adoção de ações para evitar a exclusão de qualquer pessoa.
O Dicionário de Direitos Humanos (PIOVESAN, 2006) discerne tal diferenciação,
caracterizando o comportamento dos conceitos quando contextualizados e suas aplicações,
apontando o direito à seguridade dos direitos universais, que preveem em absoluto o direito à
inclusão social.
Santana e Bergamo (2005) trabalhando a questão da Cultura Surda abordam elementos
referentes à formulação de aspectos grupais e discriminatórios.
Segundo os autores, a separação entre grupos humanos é produzida socialmente, bem
como sua integração, na medida em que toda forma de preconceito, toda discriminação, todo
comportamento humano está subordinado à cultura que os constrói, propaga, veicula e
sedimenta.
De acordo com esta perspectiva, são as normas sociais que “autorizam” essa
separação, normas que organizam toda a nossa vida social, modos de falar, de vestir-se, de
atuar no mundo, de pensar etc.
“Essa luta pela inclusão é uma forma de ‘garantia’ de afastamento da ‘anormalidade’ e
aproximação das minorias, normais embora diferentes”. (SANTANA; BERGAMO, 2005)
Quando tratamos sobre questões referentes aos processos de inclusão que abordem
movimentos sociais frente à deficiência física, é forçosa a prudência de evitar
62
dimensionamentos emocionais e sim racionalmente propostos de análise, para que, a
discussão não se perca na zona comum, mistificada de 'ex-inclusão social'.
Mas, em que consiste a inclusão?
Para Werneck (1993), “incluir não é tratar igual, pois as pessoas são diferentes! [...]
Incluir é abandonar estereótipos”.
Incluir significa uma inserção total e incondicional dos sujeitos, sem segregação, sem
discriminações.
Segundo Nascimento (2000), o excluído não é apenas aquele que se encontra em
situação de carência material, mas aquele que não é reconhecido como sujeito [...].
Enquanto a integração prevê incorporação condicional àquele que consegue adaptarse, a inclusão garante a adoção de ações para evitar a exclusão de qualquer pessoa.
Para Klein (2004, p.54) a inclusão e/ou exclusão é um “binômio que facilmente remete
à ideia de um espaço, de um lugar onde se pode estar dentro ou fora, estar de um lado ou de
outro de uma suposta fronteira”.
O exercício da inclusão, não representa nada mais que reivindicar aplicação do
princípio de igualdade, na forma como é constitucionalmente garantida no Brasil.
Incluir, portanto é um processo que contribui para a construção de um novo tipo de
sociedade através de transformações, pequenas e/ou grandes, nos ambientes físicos (espaços
interno e externo, equipamentos, aparelho e utensílio, mobiliário e meios de transporte etc.) e
na mentalidade de todas as pessoas, portanto do próprio Deficiente Auditivo/Surdo.
Mattos (2002) discutindo inclusão, avalia que, em outros países, principalmente
Espanha, França e Itália, que iniciaram o processo de inclusão dos anos 80, as discussões e os
projetos tiveram um caminho natural de evolução. Aqui no Brasil, as decisões são marcadas e
estabelecidas por efeito cascata.
63
Por isso acredito que antes de falar sobre, é preciso falar com, e ouvindo, entender o
que o público focal tem a dizer a respeito de si mesmo e do que espera. O maior risco é o de
estarmos fazendo a coisa certa do jeito errado ou a coisa errada do jeito certo.
64
3 Capítulo 3 Políticas Públicas para todos: Elaboração que contempla as particularidades.
Somente no momento em que nos debruçarmos sobre o fenômeno social da
deficiência auditiva, levando em consideração as restrições efetivamente impostas
por uma condição intrinsecamente adversa (a surdez), aliada às condições sociais
das minorias culturais, determinadas por diferenças de classe, raça e gênero,
estaremos avançando no sentido de contribuir efetivamente para o acesso à
cidadania, acesso esse historicamente negado [...] (BUENO, 1998)
Disponibilizar os direitos só será produtivo se o processo considerar as diferenças. Já
não cabe, um discurso quadrático (inflexível), onde não se observa as nuances de uma
realidade tão excludente que, por tentar se tornar inclusiva, pode cometer desencontros no
trajeto.
É preciso abandonar posturas desqualificadas no ver e tratar a questão. Para tanto, qual
seria a forma de viabilizar ações concretas que respondam às necessidades e especificidades
individuais? Quais setores da Sociedade precisam se organizar e tomar a iniciativa de agir em
prol de uma causa tão relevante?
Certamente a primeira pergunta evoca o mecanismo das Políticas Públicas e a
Legislação para viabilizarem e efetivarem ações de atenção e à segunda pergunta, Sassaki
(1997) responde: “Quanto mais sistemas comuns da sociedade adotarem a inclusão, mais cedo
se completará a construção de uma verdadeira sociedade para todos, a sociedade inclusiva.”
(SASSAKI, 1997).
Partindo do pressuposto que a política urbana tem por objetivo, ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade, garantindo assim a regulação da ordem
pública visando o bem coletivo; a percepção da Comunidade Deficiente Auditiva/Surda será o
resultado de uma gestão que não ignora a importância da inclusão respaldada na coerência e
não no discurso.
Mas, toda a conjectura de ações deve proceder a articulação minuciosa que contemple
as particularidades do Público alvo, para que sua efetivação não seja superficial nem
tampouco refém de processos ou interesses econômicos.
65
Considero porém, a importância de uma ponderação sem romantismos. A Política
existe e subsiste com base em custos e deliberações condicionadas a uma série de
considerações, às quais não vou me ater, mas que são reais e representam o ‘start’ ou o
‘pause’ de ações inclusivas.
Não podemos ignorar que, como em qualquer outra frente de atenção pública, a
Política Pública em prol da inclusão do Deficiente Auditivo/Surdo gera custos, o que também
nos remete a um fato acolhedor em épocas eletivas: Este público também vota. E como tal,
tem o direito à cidadania além eleição.
Mas, sob o contexto capitalista contemporâneo, cabe a pergunta: Quanto custa incluir?
Oliveira (1997) diagnostica o uso do termo exclusão principalmente como um
instrumento ético e político de denúncia diante da crescente erosão da cidadania promovida
pela, denominada globalização. É claro que o contexto é político-econômico, mas é preciso
perceber a problemática da exclusão como intrínseco à vida cotidiana, o que significa que não
podemos isolar a discussão aos campos da saúde e educação.
A viabilidade econômica não deve suplantar a edificação social de uma cidade que
adota uma postura inclusiva. E para tanto, deveria arquitetar socialmente seu Planejamento,
com intuito supremo de dispor a Política, seus dispositivos e equipamentos para todos.
Ratzka (2001) aponta que, frequentemente, argumenta-se que é muito oneroso o custo
para se incluir as minorias. Porém, lembra a existência de estudos, demonstrando que muitos
investimentos na área de inclusão de pessoas deficientes, acarretam economias futuras à
sociedade, que ultrapassam em muito seus custos.
Segundo o autor, mesmo diante de toda a discussão sobre o teor financeiro do
processo inclusivo, conclui: (...) E direitos humanos “não devem ser discutidos em termos de
custos ou lucros.” (RATZKA, 2001)
66
Basta provocar a capacidade capitalista, de visar e transformar tudo em lucro, a
percepção da lucratividade com a inclusão.
Com uma demanda mundial que, segundo a Organização Mundial de Saúde,
corresponde a 10% de toda a população do mundo, as Pessoas com deficiência possuem
necessidades especiais intrínsecas às dificuldades e limitações, mas necessitam ter sua
Identidade reconhecida, rompendo com a postura social-capitalista excludente, dirigida por
uma mentalidade globalizada que as segrega.
Considerando o ônus social da exclusão o custo-benefício de uma Política inclusiva
suplantará qualquer custo processual, tratando a inclusão como mercadoria, a cidade se porta
como uma empresa. E se não for possível desvincular o papel da cidade de seu viés
econômico, basta compilar dados que comprovam os benefícios de uma empresa que aplica o
empowerment e elevar ao nível de gestão municipal.
De acordo com Sassaki (1997), a abordagem ideal das instituições inclusivas através
de seus profissionais e colaboradores é considerar seus usuários como cidadãos com direito à
maior autonomia física e social, independência para agir, tomar decisões e mais espaço para
praticarem o empowerment.
Assim, a promoção de uma mentalidade que assume o Deficiente Auditivo/Surdo
enquanto cidadão que possui direitos e deveres, também contemplará sua autonomia
participativa. Uma das grandes tendências atuais em termos de ferramentas de gestão
organizacional vem sendo a prática do empowerment, ou seja, segundo Araújo (2001), o
fortalecimento do poder decisório dos indivíduos da empresa, ou criação de poder decisório
para os indivíduos.
67
A edificação de uma nova mentalidade político-econômica advém de uma construção
da percepção indiscriminada de todos os agentes. E é sob este paradigma que a expressão e o
significado social de empowerment1 se enquadra.
Esta autonomia para exercer participação político-social é muito representativa para
uma Comunidade que tanto tem a oferecer em suas potencialidades.
Onde eu concordo com Foucault (apud SKLIAR 2003) quando o autor afirma que, a
inclusão não é o contrário da exclusão, e sim um mecanismo de poder disciplinar que a
substitui, ocupando sua espacialidade.
Portanto, a construção só pode vir pela recuperação do espaço da exclusão, pela
valorização das realidades que, por não se reprimir à lógica capitalista, podem
oferecer resistência necessária para abrir caminhos para a efetiva cidadania.
Multidimensional, a exclusão pode adquirir diferentes feições econômicas, políticas
e culturais. (NASCIMENTO, 2000)
Além
de
pluralizar
aspectos
interacionistas,
o
processo
multiplicador
de
possibilidades, faz da inclusão social, uma das características contemporâneas da sociedade
que são apresentadas como a nova questão social.
Então os paradigmas sociais e pedagógicos se estabelecem sob parâmetros sociais
convexos. Jurado evoca Michel Foucault, quanto à formalização de uma sociedade mais útil e
unificadora, onde os processos políticos devem visar, sobretudo a excelência da interação
humana (JURADO, 2002).
Quando a sociedade, representada por seus representantes políticos e/ou diferentes
grupos de representação social, perceberem o Deficiente Auditivo/Surdo como parte
integrante do movimento social, a diversidade será uma ferramenta associativa e não
1
O termo empowerment significa a descentralização de poderes pelos vários níveis hierárquicos da organização, o que
permite a criação de maior motivação nos trabalhadores proporcionada por uma maior liberdade de iniciativa, com naturais
benefícios para a organização como um todo. (NUNES, 2007)
Empowerment aqui é parafraseada no contexto. Largamente utilizada no contexto empresarial, aqui é tomado enquanto
atitude de ‘deixar o outro participar com autonomia’.
68
discriminatória, aumentando o nível perceptivo social, determinante no processo de
Integração, ou melhor, ainda se permitir e facilitar a inclusão.
Entendo ‘sine quo non’ que a Cidade, enquanto poder público, proceda ao advento da
percepção do Deficiente Auditivo/Surdo, entendendo a importância de permitir e promover
seu acesso à vivência urbana, seus benefícios culturais e infraestruturais. E como isso se dará?
Um conjunto elaborado de Políticas Públicas poderá certamente responder e respaldar ações
planejadas de minimização de barreiras sistêmicas.
Não podemos mais limitar nossas análises aos campos da Saúde e Educacionais. Estes
representam a base de atenção mínima e salutar que precisa ser despendida em favor do
deficiente. Mas não podem ser as únicas áreas, apenas podem e devem representar a alavanca
de uma série de serviços e práticas inclinadas à inclusão.
Tais princípios subjazem aos objetivos da Política Pública definidos no Estatuto da
Cidade, quais sejam, o de “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
da propriedade urbana” (Estatuto da Cidade, art. 2º - Saule Júnior, 2002). Prevendo na função
social da cidade, o exercício do direito dos cidadãos à cidade, consubstanciado no acesso à
moradia digna, infraestruturas, equipamentos e serviços públicos necessários e suficientes à
melhoria da qualidade de vida urbana, bem como ao patrimônio ambiental e cultural do
município.
A função social da cidade elege a inclusão social como um novo paradigma da gestão
urbana, apontando para o que Saule Júnior (2002) chama de “a construção de uma nova ética
urbana”.
Percebo a exclusão concordando com a perspectiva de Luciano de Oliveira, quando
chama a atenção para o fato de que a problemática da exclusão há tempos está presente nas
discussões sobre a situação social do Brasil e que passou a prestar aos mais diversos usos.
69
Essa constatação o leva a discorrer sobre a natureza epistemológica do conceito e sua
aplicação no cenário nacional e internacional. Para o autor, chamar todos e quaisquer grupos
sociais desfavorecidos de excluídos pode levar a contrassensos, sendo necessário
assimilarmos as suas origens e naturezas distintas, assim como tratarmos a questão com
estratégias diferentes (OLIVEIRA,1997).
O que me leva a olhar mais de perto do grupo focal deste estudo, optando porém por
uma perspectiva da própria Comunidade. Buscar ouvir e entender a perspectiva da Pessoa por
trás do estigma, ouvir o que ela tem a dizer. Esta atitude amplificada, embasada de
conscientização político-social, evitará desmandos e políticas estranhas ao público focal.
3.1 Planos Urbanos e a Deficiência Auditiva/Surdez: aprimoramentos.
Dados e fatos: A incongruência entre a demanda e a assistência.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (INSTITUTO BRASILEIRO
DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2000), aponta que o número deficientes físicos no
Brasil gira em torno de aproximadamente 14,5% (25 milhões de pessoas). Deste total 5,7
milhões são pessoas portadoras de deficiência auditiva. Expressivos dados numéricos, que
motivam a provocação deste estudo na busca por uma percepção aguçada via Políticas
Públicas que preconizem a Inclusão social desta Comunidade.
Uma década já se pôs sobre estes dados, o que aponta para o que reserva o último
censo, realizado em 2010, ainda não divulgado. Tal incidência numérica relativa à deficiência
auditiva evidencia a urgência em buscar novas Políticas, bem como, o aprimoramento das já
existentes.
Em escala municipal, São José dos Campos, divulgou o primeiro Censo da Pessoa
com Deficiência, realizado no período 2009/2010. A pesquisa apontou que, 11% da população
70
joseense apresenta uma ou mais deficiências, destes, 13,8% são Surdos (sem especificação de
graduação).
Estes números representam uma demanda significativa, e numericamente reconhecida.
O que significa que, os Deficientes Auditivos/Surdos, agora, são um número, e números
requerem respostas. Afinal, como a própria Prefeitura apontou no Censo:
O objetivo desta realização é conhecer, de forma mais profunda, o perfil da
população em questão e a realidade socioeconômica em que ela se insere, o que era,
em parte, desconhecido para o município de São José dos Campos, (SÃO JOSÉ
DOS CAMPOS, 2010).
A resposta do Poder Público Joseense, através do gabinete de acessibilidade, à
crescente jornada rumo à inclusão, apenas comprova a necessidade de um despertamento
qualitativo e quantitativo frente a uma demanda a muito existente e tão irrisoriamente
assistida.
Promulgada em 10 de julho de 2001, a Lei 10.257, conhecida como o Estatuto da
Cidade, regulamenta o capítulo "Política urbana" da Constituição Federal de 1988. Esta Lei
tornou obrigatória a elaboração de Planos Diretores participativos para municípios com mais
de 20.000 habitantes. Em seu texto, o Estatuto prevê a oferta de equipamentos urbanos e
comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da
população e às características locais (BRASIL, 2001).
Em seu Artigo 2º, o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) de São José
dos Campos, promulgado em 2006 -, incorpora esta diretriz acenando para o desenvolvimento
integrado e harmônico e o bem-estar social da comunidade de São José dos Campos (SÃO
JOSÉ DOS CAMPOS, 2006).
Em consonância com tais objetivos, dedica parte de seus artigos à Pessoa com
Deficiência. Todavia, quando visto mais detalhadamente, é possível perceber que tais
intenções acabam se convertendo em letra morta. No que nos interessa mais diretamente, o
71
Plano não discrimina os diferentes tipos de deficiências e, em nenhum momento, as
expressões surdo ou deficiente auditivo são mencionadas.
O Plano, nos poucos artigos que se referem aos Portadores de Necessidade Especiais,
o faz sem menção a medidas concretas e adequadas aos diferentes tipos de deficiência. Uma
exceção é feita às pessoas com dificuldade de locomoção (segmento que inclui Pessoa com
Deficiência e idosos), quando, em seu artigo 31 (alínea IV), estabelece o dever do município
de “assegurar transporte escolar com as adaptações necessárias aos alunos que apresentem
dificuldades de locomoção, seja pelo aspecto motor ou de conduta”. Numa formulação
aproximada, seu artigo 57 (alínea V) recomenda “ possibilitar, às pessoas com necessidades
especiais, condições adequadas e seguras de acessibilidade autônoma aos meios de
transporte urbano”. Contudo, este é o único segmento que encontramos particularizado no
PDDI de São José dos Campos. (SÃO JOSÉ DOS CAMPOS, 2006).
O caso joseense não é uma exceção. Ele representa uma tendência, observável em
outros instrumentos de políticas públicas, de tratar de Pessoas com Deficiência sem
particularizar cada qual de seus segmentos e o tipo de atendimento que lhe deveria ser
destinado. Assim, uma situação análoga pode ser encontrada no Plano Diretor Estratégico de
São Paulo, promulgado em 2002 (SÃO PAULO, 2004). Também ali encontramos uma
generalização semelhante, o que nos habilita a sustentar a hipótese de que as políticas públicas
ainda expressam um grande desconhecimento da situação concreta de cada segmento.
Em geral, o que encontramos em instrumentos como estes apresentam duas
características.
Em primeiro lugar, a ‘indiferenciação’ das necessidades especiais; o que pode
conduzir a um tratamento indiferenciado dirigidos a deficientes visuais, auditivos/surdos,
cadeirantes, como se as diferenças entre eles não fossem tão pronunciadas, quanto as que
existem entre estes e os não deficientes.
72
Uma segunda característica seria a restrição das propostas de políticas públicas ao
ambiente escolar. Em conjunto, elas em grande medida segregam as Pessoas com deficiência
num espaço especializado.
Arriscamo-nos a dizer que os Deficientes Auditivos/Surdos têm este desconhecimento
potencializado dada a sua “invisibilidade”, a ausência de marcas visíveis de sua condição,
sendo muito fácil confundi-los com a população ouvinte.
O percentual das pessoas com deficiência auditiva/surdez também intervêm no
processo. Os dados que dispomos ainda se referem ao recenseamento realizado pelo IBGE em
2000 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2000).
Nos microdados encontramos a informação de que apenas 0,4% da amostra se declara
incapacitado ou com grande dificuldade de audição. Os demais são representados por aqueles
que declaram não possuir qualquer restrição (96,9%), alguma dificuldade (2,3%) ou que não
responderam (0,3%).
A estas informações do censo 2000, agregamos ainda, as informações coletadas pela
própria Prefeitura de São José dos Campos. Entre 2009 e 2010, a municipalidade realizou
uma coleta de dados referentes à população portadora de necessidades especiais.
Do universo pesquisado, composto exclusivamente de Pessoas com deficiência,
apenas cerca de 13,8% declaram deficiência auditiva/surdez, um número semelhante aos com
deficiência visual (13,7%) e bastante inferior aos que relatam deficiência intelectual (31,2%).
Os números apontam para uma demanda significativa, que aponta para pessoas
aguardando atenção de Políticas igualmente significativas, que atendam suas especificidades.
Dentre estas especificidades está o ‘não lugar’. É inconcebível embora fato que, um
grupo de pessoas sejam incógnitas às Políticas e direitos, o que faz da inclusão não um
milagre social ou uma bem aventurança da sociedade majoritária, e sim uma necessidade
urgente de possibilitar o exercício de um direito humano de ‘SER’ e portanto estar.
73
O que torna pertinente a discussão sobre a inclusão do Deficiente Auditivo/Surdo sob
a perspectiva da organização territorial, sublinhando a sua importância na formação de uma
identidade e na sua constituição como ator político. De outra parte, vamos nos remeter à
ocupação de um “território virtual” por este segmento da população.
Defendem alguns a necessidade de territorialização da cultura surda, inclusive
buscando alternativas ao espaço escolar. Assim, como a cultura surda não possui um território
geográfico para acontecer (é o que se observa em muitas das cidades brasileiras, inclusive
grandes centros), ela depende de encontros proporcionados pelos sujeitos que a compõem.
Tais encontros não podem ser vistos como espontâneos ou naturais; são encontros
provocados, estipulados e alterados pelos próprios sujeitos surdos:
Enfim, a língua de sinais, o olhar surdo, a luta e a necessidade de comunidade são
marcas surdas que enunciam uma diferença que precisa de movimento e de espaço
para acontecer – daí a preocupação de algunssurdos com o esmaecimento da luta
por parte das gerações mais novas e pela desvinculação da comunidade surda em
relação ao espaço escolar surdo. A diferença surda necessita ser despedagogizada;
para tanto, darautonomia e condições, inclusive financeiras, para o movimento
surdo estruturar-se parece ser uma condição pela qual muitos surdos lutam, nos
dias de hoje. (VEIGA NEO apud LOPES, 2006)
Tal posição, contudo, deve ser relativizada. Primeiro, porque processos espontâneos
podem em grande medida constituir territórios que, num momento posterior, podem se
institucionalizar como tal e, inclusive, vir abrigar serviços destinados a públicos específicos
que ali se instalam. Frente a um quadro de exclusão, que atinge não só os Deficientes
Auditivos/Surdos, percebe-se nas grandes cidades a formação de “pedaços”, na feliz
expressão de Magnani, a apropriação do já existente ou mesmo a construção de novos lugares;
territórios de sociabilidade daqueles que se identificam seja integralmente, seja por aspectos
particulares da pessoa (MAGNANI; TORRES, 1996).
Por outro lado, distinguir espaço segregado e espaço próprio, podemos requalificar a
escola como um espaço do Deficiente Auditivo/Surdo, lugar de sociabilidade entre iguais, um
elemento que pode impulsionar um processo de formação de sua identidade no campo
74
político. É esta a lição que nos oferece o processo de formação das primeiras associações de
surdos no país:
Em 1950, na cidade de São Paulo, alguns surdos que tinham liderança e ex-alunos
do INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos), costumavam encontrar-se para
um bate-papo na praça da Matriz ou em alguma rua-ponto, independentemente de
sua classe social. Essa prática teve sua origem com os alunos do INES, que se
reuniam para conversar quando saíam das aulas. Tal comportamento se justificava
principalmente pela possibilidade de trocarem informações na sua própria língua,
sem o controle dos ouvintes e, também, pelo prazer de estarem juntos. Sempre que
um surdo tinha tempo disponível, ele procurava se reunir com outros surdos em
algum ponto de encontro. Naquele período, também existiam as atividades de
esporte, porém elas eram realizadas em conjunto com ouvintes devido à dificuldade
que tinham para encontrar espaços para praticarem esportes entre si. Esses grupos,
apesar de se reunirem permanentemente para um bom "bate-papo", não tinham ideia
da existência das Associações de Surdos. Essa reunião de surdos nas ruas de São
Paulo não está distante da historia dos surdos de todas as capitais e cidades
brasileiras. Quase todas as Associações de Surdos, nos dias de hoje, têm o início de
sua história nas reuniões em algum ponto de encontro, tanto nas ruas quanto nas
praças. São raras as Associações de Surdos que iniciaram suas atividades na casa de
surdos ou de algum ouvinte. (MACEDO, 2000).
A influência da escola especializada na formação de uma identidade surda ainda se faz
presente. Acima nos referimos à formação de um território de surdos no bairro do Tatuapé em
São Paulo. Ali também se encontra um telecentro, instalado na estação ferroviária urbana.
Este local tem sido apropriado por grupos de surdos, alunos de uma escola de educação
especial de São Paulo:
[…] O Acessa SP CPTM Tatuapé é um ponto de encontro de adolescentes surdos
que, já incluídos digitalmente, acessam a internet todos os dias e, como qualquer
outro jovem, participam de redes sociais como Orkut e MSN. […] Quase todos são
alunos da Escola Municipal de Educação Especial Helen Keller, localizada no bairro
da Aclimação – fundada em 1952 para apoio à educação de alunos da rede de ensino
municipal portadores de deficiência auditiva. A escola atende hoje 300 estudantes.
Ensina Libras (Língua Brasileira de Sinais) e leitura labial para uso cotidiano dos
alunos. Desde 1992, a Helen Keller possui laboratório de informática – por isso a
inclusão digital já se dá na própria escola. (CONEXÃO URBANA, 2010)
Contudo, este território que se formou no bairro paulistano, ainda pode ser associado a
um alto grau de excepcionalidade. Ali, conjugam-se facilidade de acesso com a acolhida dos
comerciantes como elementos que viabilizam o início do processo.
O mesmo não ocorreu em São José dos Campos, quando houve reação negativa de
comerciantes, consumidores e administração de um Shopping Center fez com que os
75
Deficientes Auditivos/Surdos deixassem de se reunir no local. O grupo que sempre se
encontrava na praça de alimentação agora está recluso à parte externa da praça.
“Onde há política, há espaço
público e onde há espaço público, há
diálogo; e onde há diálogo, há direitos”.
(ARENDT)
O exemplo de São José dos Campos que, como afirmamos, não é único, demonstra o
muito a ser feito neste terreno para o exercício de uma cidadania plena.
Acredito numa política de valor, porque entendo que elaborar uma política sem
respeitar o público para o qual ela está sendo realizada, banalizará a proposta e fará desta
política uma política pobre.
Os modelos de intervenção devem ser pensados afim de consolidar uma Política
pública nacional em âmbito municipal.
Ações específicas relativas ao avanço da informação, uma reordenação e
aprimoramento da atenção do serviço público municipal de atenção à saúde auditiva e a
capacitação dos profissionais que atuam diretamente como público focal, mas estão
despreparados para a conjuntura de atenção que a realidade pede.
Conceitua-se a inclusão social como o processo pelo qual a sociedade se adapta para
poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais e,
simultaneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade.
(SASSAKI, 1997, p. 41).
Legitimar a Política pública é um processo prático, que só se dará mediante uma lógica
de gestão articulada frente a demanda social. O objetivo em pensar a política em benefício das
particularidades, construirá uma sociedade realmente para todas as pessoas, sob a inspiração
de novos princípios. E são estes princípios, que nortearão novas proposições e ações,
considerando a celebração das diferenças, o direito de pertencer, a valorização da diversidade
humana, tendo sempre como norte a noção de igual importância das minorias, cidadania com
qualidade de vida (SASSAKI, 1997).
76
É no bojo destas discussões sobre a importância de se realizar uma Política Pública de
qualidade para um público alvo tenha qualidade de vida, é que o verdadeiro movimento da
Inclusão Social se efetiva. Tendo como pressuposto a diversidade como intrínseca à natureza
humana.
E, somente uma sociedade capaz de orientar suas Políticas ao patamar de se tornarem
públicas para todos os públicos poderá se considerar uma Sociedade Inclusiva.
3.2 Legislar: Direitos concebidos díspares de direitos consolidados
“Os direitos do homem já há algum tempo se
transformaram numa ideologia que mascara a ausência de
um projeto político.”
(Cornelius Castoriadis)
O índice de deficiência no Brasil, que atinge dez por cento da população, fato
reconhecido pela Organização das Nações Unidas, só recentemente resultou em preocupação
constitucional.
O respaldo da legislação precede as ações públicas, mas não efetivam o direito. A
Comunidade em questão luta há mais de um século na busca por direitos que efetivem uma
melhor vivência da Deficiência.
Schwartzman (2003) defende que a inclusão “não pode ser feita por força de leis ou
porque ela é politicamente correta. Trata-se de um processo complexo, que precisa ser
desenvolvido a passos cuidadosos”.
Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem
nascer. Como realça Norberto Bobbio (1992), os direitos humanos não nascem todos de uma
vez e nem de uma vez por todas.
77
Para Hannah Arendt (1990), os direitos humanos não são um dado, mas um
construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução.
Refletem um construído axiológico, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social.
A própria resolução 2.542/75 da ONU (1975), cuidou de produzir Recomendações
Internacionais referentes à Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência.
Entendo que, esta iniciativa zela pela coerência entre discernir direitos, conceder e
garantir direitos.
Radio Justiça (2008) Analisando a importância da Convenção da ONU, ressalta que,
em Agosto de 2009, o Brasil ratificou a convenção dos direitos das pessoas com deficiência
junto com o seu protocolo facultativo, que permite a qualquer cidadão do país denunciar junto
à Organização das Nações Unidas, qualquer violação ao tratado. Inclusive pode-se afirmar
que a presente Convenção terá força de norma Constitucional podendo ser considerada uma
nova Constituição para as pessoas com deficiência.
Outro ponto destacado pelo autor foi a forma como se concebeu o texto. “[...] e o que
distingue essa convenção das outras, é que o conteúdo foi feito com ajuda direta de ONGs de
pessoas com deficiência que tiveram voz ativa na elaboração dos artigos.” (RADIO
JUSTIÇA, 2008).
É importante lembrar que a partir deste, um importante Documento de Acessibilidade
e Direitos Humanos dos Surdos, foi produzido pela FENEIS (2005) do Rio Grande do Sul, o
compilado une direitos constitucionais previstos e reivindicações da comunidade Surda.
Documentos como este revelam o quanto estamos distantes da aproximação entre o
ideal e o real, já que dependem de seus aprimoramentos e novas percepções precisam ser
acompanhadas por uma consciência patente da sociedade.
Uma mudança na concepção de deficiência não se promove, certamente, a partir de
decisões tomadas em assembleias nem por meio de leis. Implica uma nova visão de
mundo e de homem, um novo paradigma capaz de valorizar e respeitar efetivamente
a diversidade, de tal maneira que quaisquer pessoas com as mais variadas diferenças,
em relação à média da população ou a padrões de normalidade estabelecidos por
78
outros critérios, em termos das condições anátomo-fisiológicas, psicossociais, sócioeconômicas e etno-culturais, encontrem oportunidade de uma vida digna e a mais
plena possível, dentro das fronteiras impostas pela realidade da limitação
eventualmente determinada por tais condições ou a elas inerente. (OMOTE, 1994).
Entendo que a Política de atenção não deve se resumir a uma ou outra questão, mas
reconheço que a Saúde Auditiva representa o berço das Políticas públicas de atenção a este
público.
Em 2005, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou a existência de 278
milhões de pessoas no mundo com perda auditiva moderada a profunda. Em decorrência do
aumento da população e da expectativa de vida, o número de indivíduos com problemas
auditivos vem crescendo.
Estima-se que 42 milhões de pessoas acima de 3 anos de idade são portadoras de
algum tipo de deficiência auditiva, de moderada a profunda (OMS). Há fontes que citam que,
as perdas auditivas na população mundial estão acima de 57 milhões. Deste número: 5,7
milhões estão no Brasil, 450 mil no Estado de São Paulo e 150 mil na Cidade de SP.
Em São José dos Campos, o primeiro Censo apontou uma demanda que urgente requer
medidas de inclusão.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2000) mostram que, no ano
2000, havia aproximadamente vinte quatro milhões e meio de pessoas portadoras de algum
tipo de deficiência das quais, em torno de cinco milhões apresentavam deficiência auditiva.
A deficiência auditiva é considerada como um grave problema de saúde pública. Isto
se dá devido a incidência e privação sensorial no desenvolvimento infantil.
A proposta de uma legislação nacional alavanca toda uma área, como aconteceu com
a área de Audiologia e os serviços de saúde auditiva, mas é indispensável que
questões inerentes de cada região sejam discutidas, para que atinjam necessidades
daquela população específica, deste modo, contribuam para o fortalecimento das
ações desenvolvidas no país. Além disso, a divulgação desses resultados evitará
questões pontuais, mas com ótimo desempenho, não sejam realizadas de maneira
isolada em cada serviço, priorizando a qualidade dos mesmos. (BEVILACQUA,
2009).
79
Com o que concordo visto que a condição social do Deficiente Auditivo/Surdo e sua
vivência social dependem de uma visão holística, que contemple diagnóstico, tratamento e
reabilitação precisos. Processos otimizados de atendimento especializado e de infraestrutura
para atender à especificidade das alterações auditivas.
Esta visão global permitirá que a Deficiência não seja o foco, mas a particularidade
primária a ser recondicionada. No entanto e para tanto, é preciso recondicionar o meio, a
consciência e os planos de ação para que a civilidade, a cidadania e a dignidade sejam
garantidas por uma Política Pública recondicionada ao Público Deficiente Auditivo/Surdo.
“Deficiente é a cidade e não as pessoas. Uma sociedade inclusiva não pode segregar os
espaços e sim igualar as oportunidades”. (Mara Gabrilli)
Para Edna de Mattos (2002), a magia da inclusão está na postura da sociedade como
um todo, reconhecendo que, para além de terem necessidades especiais, as pessoas com
deficiência têm direitos, direito ao acesso à escola pública, ao convívio social, ao lazer, ao
prazer, ao trabalho.
Vivemos num momento de grandes avanços frente à deficiência auditiva/surdez mas,
questões como a fragmentação política e gestões desarticuladas operam um desserviço à
Pessoa e à família que convive com a necessidade diária de superar limites impostos pela
deficiência física e, que portanto precisam se desvencilhar das ineficiências políticas.
Para não se tornar letra morta, como em muitos âmbitos legais, direitos previstos de
atenção à saúde auditiva devem receber uma atenção específica dos gestores, para evitar que o
avanço da área clínica, não se perca por falta de uma rede que se perpetue dentro do processo
de atendimento.
Camargo (apud BEVILACQUA et al., 2010), analisa a produção física e financeira da
Unidades Federadas, dos procedimentos em saúde auditiva (num dado intervalo de tempo) e
conclui a necessidade de aprimoramento na organização da rede de saúde auditiva.
80
Quando, porém, as Políticas específicas são elaboradas, há um desarranjo em sua
abrangência e disseminação, e quando não, a falta de gestão eficiente e comprometida
fragiliza todo o processo.
No Brasil, a Saúde Auditiva ganhou atenção especial em 2004, quando da publicação
da Portaria referente à Política Nacional de Atenção à Saúde Auditiva. Bevilacqua et al.
(2010) referem que, segundo a Academia Brasileira de Audiologia, o momento é oportuno
para organizar diferentes discussões, relatos de experiências e bases teóricas para colaborar no
desenvolvimento e implantação desta Política.
As autoras afirmam que, a Academia Brasileira de Audiologia, entende que o
desenvolvimento e aprimoramento da Política Nacional de Atenção à Saúde Auditiva se dará
pelo diálogo aberto entre os profissionais dos serviços, sociedades científicas, conselhos e
gestores nos âmbitos Nacional, Estadual e Municipal.
O que nos remete novamente a questão das redes que precisam se organizar e se
comprometer com a questão da saúde auditiva. Otimizar uma integração de setores para que o
processo de triagem, diagnóstico, intervenção, tratamento e reabilitação sejam um
‘continuum’ que se estabeleça sobre sólidas bases de Políticas Públicas de Atenção á Saúde
Auditiva sem entraves e desencontros.
Fatores que por si só, implicam na importância urgente de integração entre os níveis
de atenção.
No Campo as Saúde Auditiva, São José possui uma política de atenção muito bem
direcionada na maternidade do Hospital Municipal da Cidade. O recém nascido faz o teste da
orelhinha antes da alta, e em caso de alteração a própria fonoaudióloga que realizou o exame
já agenda o retorno na carteirinha da criança para o re-teste.
Depois da alta, é que fica clara a necessidade de aprimoramento na assistência,
apontado por vários autores nos anais dos Congressos “Políticas Públicas, Serviços e Sistemas
81
em Saúde Auditiva” (Unesp Bauru). Várias são as análises sobre a ausência de uma rede
intrincada de informações e acompanhamento não apenas aos recém-nascidos mas, a todas as
faixas etárias com alterações auditivas.
A gestão de qualidade não se estende fora da maternidade. Após o diagnóstico não
existe um atendimento à família no sentido de acolhimento e orientação. E é neste momento
que toda uma conjuntura de leis e políticas já estabelecidas não se efetivam para muitos
deficientes auditivos/surdos. Isto, porque tais políticas não alcançam a todos.
Em outros momentos e situações de diagnóstico não se percebe uma rede de
informação e respaldo. No que reitero que, não basta elaborar e construir Políticas, se elas não
se tornarem acessíveis, capacitadas, específicas e intrincadas às especificidades.
Mesmo com um primeiro atendimento ao recém nascido, o município não possui uma
rede de atendimento global. A família não é atendida pelo município nas demais áreas que
exigem atenção no contexto da inclusão. Enfim, são políticas desencontradas e imaturas que,
já estão implantadas e/ou sendo elaboradas, mas que, infelizmente e para uma demanda tão
significativa ainda não representam uma resposta a contento.
Isto posto, concluo que a Política pública precisa de tratamento, alías [...] “o mundo
precisa tanto de “tratamento” quanto as pessoas deficientes.” e ousamos dizer que talvez o
mundo precise mais de tratamento do que os portadores de deficiência! (VASH, 1998).
Na construção da análise da importância sobre como a Sociedade entende a questão da
Deficiência Auditiva/Surdez e a atenção no processo de atender à Saúde Auditiva, percebo
empiricamente a gravidade e a urgência do que os autores supracitados apontam:
aprimoramento.
Toda a extensão da rede de atenção precisa se conjecturar e se aprimorar para atender
a um Público que, além das implicações oriundas da deficiência física, sofre da inexistência
82
de Políticas específicas e/ou ineficiência de Políticas pouco públicas e se Públicas, pouco
específicas ao Público Deficiente Auditivo/Surdo.
Organizar os setores e integrá-los sob a perspectiva humanizada de operar uma rede de
atenção efetiva e eficaz, depende de uma visão holística da questão das alterações auditivas
A organização é, acima de tudo, interação que institui e que mobiliza seres nos
âmbitos do simbólico, do sensível, do político, do ético, do estético e do religioso;
religioso entendido aqui, enquanto solidariedade, necessidade de religar-se a algo
ou a outrem, face à natural inospitalidade do mundo vivido pelo insuficiente Ser do
homem. (MACEDO, 1991.)
Bevilacqua (2009), mentora e organizadora dos Seminários de Políticas Públicas,
Serviços e Sistemas em Saúde Auditiva (FOB-USP/Bauru), trata destas e outras questões,
apontando sempre a necessidades dos setores convergirem, visando a integração, o diálogo
entre as etapas que englobam o cuidado com a Pessoa com Deficiência Auditiva e lança luz
sobre a questão do núcleo familiar. Na terceira edição do seminário, ela aponta:
[...] Pensamos que, o momento atual é muito integrante e interessante; somos
protagonistas deste momento histórico, de tudo que esta acontecendo ao nosso redor,
e nossos desafios são lançados no sentido de transformarmos a realidade dos
Serviços de Saúde Auditiva.(BEVILACQUA, 2009).
Em todas as esferas, se o princípio estabelecido objetivas a qualidade de vida do
Deficiente Auditivo/Surdo e compreendê-lo de maneira integral, certamente muitas arestas
serão compreendidas pelo escopo de fragilidades sanadas no processo de desenvolver e
aprimorar Políticas, Serviços e Sistemas.
O que se absorve do conteúdo dos Seminários e discussões, é uma preocupação
legítima sobre o quanto é preciso melhorar. E esta busca pela excelência visa a cidadania da
Pessoa com Deficiência Auditiva/Surdez.
Penso que não basta estarmos caminhando, é preciso estar na direção e sentidos
concretos e com objetivos reais, comprometidos com pessoas reais, que saltam de trabalhos
como este, e sobrevivem à condições reais. Entendo que há um tempo na política e um tempo
para a Política, mas como a Lívia Mariana (minha filha), os demais Deficientes
83
Auditivos/Surdos não possuem uma tecla ‘stand by’ eles estão aqui agora, e suas necessidades
idem.
Tomo a liberdade aqui, de não me referir mais a ‘eles’, mas a nós, porque me entendo
Deficiente de Direitos quando percebo a realidade político-social, sobre a qual escrevo, na
vida da minha família. Logo, com a licença solicitada, me incluo: Nós, precisamos do plural,
da junção dos setores, do diálogo, da integralidade de atenção, precisamos de todas as esferas
de poder comprometidas com sua responsabilidade com o direito humano de alcançar a
cidadania e não apenas discursar sobre ela.
Faz-se necessário frisar, que a questão da integralidade defendida neste escopo, está
pautada no ato de tecer juntos, interativamente, o que é incontornavelmente plural. E alcançar
este status de unidade, fomentará uma possibilidade prática de exercer direitos, minimizando
o ‘apartheid social’.
No âmago da questão do Direito e da cidadania, o ‘aphartheid social’ opera uma
discriminação velada onde não cabe mais questionar se existe mesmo ou não marginalização,
porque ela existe. O que fica é uma nova consciência de onde reside o duelo, porque ele
existe:
Direitos Humanos
versus
(?)
O antagonismo não pode ser mais incumbência da Deficiência Auditiva/Surdez, já que
cerceamento não se cabe somente na limitação sensorial. Mas, diante do que colocamos,
entendo ser mais propício pensar em:
Direitos humanos
84
versus
Direitos consolidados
Já que entre o direito e o exercício do direito, existe um vão suficiente para
marginalizar de forma profundamente indigna e desumana porque elimina o ‘ethos’ que
deveria suplantar as diferenças e unir a sociedade no que ela tem de comum: Direitos.
85
Considerações finais
“A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos"
(ARENDT, 1990)
O desafio apontado no título deste trabalho, está justamente na construção de uma
sociedade inclusiva, construída por políticas articuladas, processos de cuidado e sistemas
plausíveis, construídos por instâncias que visionem a Pessoa, o ser humano e sua condição
global afetada pela Deficiência sensorial auditiva.
A evolução no modo como se cuida, prescreve uma qualificação do processo, que
depende de uma requalificação da Política Social de atenção.
Eu, enquanto autora deste estudo acredito na força das provocações, dos
questionamentos e da criticidade que movimenta a busca pela mudança, pelo aprimoramento e
pela excelência que procede do exercício destes.
A Lívia Mariana, minha bebê, como muitos outros bebês por este país ainda não está
reconhecida pelo IBGE de 2010, enquanto Deficiente Auditiva (porque não foi considerada
neste ínterim no último recenseamento). Independente de não ter sido ‘contabilizada’, ela já
faz parte desta desconhecida demanda, que junto com ela, cresce a cada dia.
Então, enquanto mãe de uma Deficiente Auditiva/Surda, não abro mão da esperança
de ver no futuro meus questionamentos obsoletos, silenciados por medidas e ações plausíveis,
que respondam a contento às necessidades intrínsecas e extrínsecas com as quais nos
deparamos todos os dias.
Enquanto assistia a Deficiência Auditiva/Sudez acontecendo no universo alheio,
minha zona de conforto da análise, me poupava da verdade sobre o que e quanto a Política
não alcança. Desde o diagnóstico de surdez bilateral profunda, da Lívia Mariana, vivo
diariamente o desafio de não me tornar cética quanto aos avanços sociais necessários para
86
garantir que ela, desfrute de uma cidadania plena ou, pelo menos, ativada por uma democracia
substancial.
E concordo quando Müller (2000) ressalta que “a democracia é uma das formas de
Estado que, no plano da ética política, não são compatíveis com a exclusão”. ; mas com uma
ressalva:
A democracia, o estado, a ética, e a política não compatibilizam com a exclusão,
porém é irônico perceber que a democracia se omite diariamente da realidade do Deficiente
Auditivo/Surdo. As famigeradas Políticas Sociais existentes apresentam um caráter
democrático que ‘cabe’ ou se camufla numa cômoda setorização como se ela pudesse se
apresentar desfacetada em ações isoladas.
Ou seja, ora a Pessoa com Deficiência Auditiva tem atendida suas especificidades, ora
suas especificidade são ignoradas...
A democracia e a cidadania exigem um terreno sólido de direitos para se tornarem
efetiva. Como então, estas podem ser usufruídas de maneira legítima se a legislação não se
materializa no cotidiano?
Praticabilidade de direitos e acessibilidade à integração dos serviços devem funcionar
como um duplo dispositivo social dos Direitos humanos e constitucionais. Plausíveis, eles
ativariam uma qualidade de vida a partir de conceitos ‘básicos’ como: saúde, educação,
mobilidade urbana, transporte, cultura e lazer.
É preciso compreender a família quando tratamos de Políticas, porque a família da
Pessoa com Deficiência, representa o núcleo sobre o qual convergem todas as ações e ‘não
ações’, e do qual emergem as respostas sobre os verdadeiros pontos a serem articulados e
aprimorados.
87
Não olhar sob esta perspectiva, é minar todo um trabalho de atenção já que a família
deve ser o alvo, o núcleo onde as ações coincidirão com a realidade do Deficiente
Auditivo/Surdo, e através dela interagir com o meio.
Negligenciar este contexto é fragilizar todo o trabalho de atenção fomentado pela
prática inclusiva.
Para tanto, o marco zero deste processo de percepção social e prática inclusiva deve se
estabelecer sobre uma rede de informações que respalde a família, usando como recursos de
atenção as Políticas Públicas, Leis e ações de conscientização sob os valores da diversidade
humana e a filosofia da possível vida independente do Deficiente Auditivo/Surdo.
Este enfoque holístico deve considerar a esfera do desenvolvimento humano,
respaldado e fomentado pelo desenvolvimento político-social, engajados na luta por uma
‘melhor vivência’ dos direitos humanos e a conscientização latente e patente sobre a não
discriminação do Deficiente Auditivo/Surdo.
‘Ad impossibilia nemo tenetur’ , o termo latino afirma que ninguém é obrigado a fazer
o impossível, no entanto cumpre ao Poder Público o papel de fazer o que for possível na
busca por uma melhor vivência do Deficiente Auditivo frente à real busca diária por uma
sobrevivência digna.
A Política Pública ética e comprometida provê proteção à família e o Deficiente
Auditivo/Surdo, contra os profissionais mais compromissados com a ganância mercadológica
do que com a pessoa com deficiência; do modelo de atendimento público municipal, marcado
de desencontros e não informações quanto às possibilidades de tratamento. Ou ainda, olhar
pelas crianças deficientes auditivas/surdas em idade escolar ou mesmo na creche, que não
recebem atenção específica exigida pela particularidade de seu potencial de desenvolvimento
cognitivo e de linguagem.
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Não é preciso que todas as particularidades se traduzam em Políticas de Assistência
simplesmente porque não precisamos de milhares de Políticas de atenção desalinhadas. A
necessidade reside na objetividade das Políticas Públicas inclusivas que não percam de vista
todas as subjetividades da problemática.
E isto se dá, na medida em que o foco da Política entenda o Público a ser atendido de
maneira global e não isolada e embasada na deficiência isoladamente, mas no aspecto global
do indivíduo.
Cabe lançar luz sobre uma verdade fundamental: Elaborar políticas para Deficientes
Auditivos/Surdos, não significa elaborar políticas deficientes.
Como oportunamente nos traz Veiga Neto:
“O mundo mudou e, com ele, mudou também nosso próprio entendimento sobre nós
e sobre o próprio mundo”, porém “junto a uma maior democratização da
informação, continuam se aprofundando as desigualdades”. Veiga-Neto (apud
LOPES, 2006, p.45)
Entender a questão do Deficiente Auditivo/Surdo passa obrigatoriamente por entender
a Pessoa com Deficiência Auditiva/Surdez.
Assim, fica a necessidade de continuação deste estudo, na busca por novos olhares que
acrescentem outras nuances e perspectivas que certamente cabem, pois ainda são tímidas as
discussões frente à plenitude do que pode ser discutido e melhorado.
E, quando não couberem mais discussões, ou a Deficiência Auditiva/Surdez terá
deixado de existir ou terá sido alcançada a plena rede de atenção necessária para garantir a
cidadania plena e consolidada por um princípio norteador: Ser uma Pessoa com Deficiência
Auditiva/Surdez, não significará mais, ser uma Pessoa Deficiente de Direitos.
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Em tempo de pensar...
RELATO DE UM SURDO
Cássio de Souza, historiador.
"Eu sou apenas surdo. O som é um espetáculo. Senti-lo em minhas cordas
vocais, leva-me a imagina-lo o tempo todo. Na verdade, eu apenas não escuto.
O porque destas portas fechadas? Igrejas, escolas, teatros, cinemas, postos de
trabalho, faculdades e todos os outros lugares onde sou bem-vindo só por meio
de um intérprete de sinais. Em que mundo estou? Do raiar do sol até a
ascensão da lua, nada parece Ter sido feito para mim. Escutar parece ser algo
que distingue os ouvintes como superiores. Principalmente, quando eles nos
classificam como deficientes. Deveríamos nos sentir culpados de sermos surdos?
A sociedade só nos aceita quando nos tornamos "ouvintes" através das leituras
labiais. A vida foi feita em benefício da compreensão mútua. Ignorar o surdo é
como neutralizar uma planta que estava para ser árvore. Já não sinto a
verdade. O mundo parece uma enorme mentira, daquelas que me sufocam,
oprimem e silenciam meus sinais."
(SOUZA, 2000)
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