O DESENVOLVIMENTO DAS FUNÇÕES PSICOLÓGICAS SUPERIORES E OS PROBLEMAS DE ESCOLARIZAÇÃO. SILVANA CALVO TULESKI MESTRE EM EDUCAÇÃO/UEM DOUTORA EM EDUCAÇÃO ESCOLAR/UNESP PROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ E-mail: [email protected] DISTÚRBIO DE APRENDIZAGEM CONCEITO: Distúrbio de Aprendizagem é um termo genérico que se refere a um grupo heterogêneo de desordens, manifestadas por dificuldades na aquisição e no uso da audição, fala, escrita e raciocínio matemático. Essas desordens são intrínsecas ao indivíduo e presume-se serem uma disfunção de sistema nervoso central. Entretanto, o distúrbio de aprendizagem pode ocorrer concomitantemente com outras desordens como distúrbio sensorial, retardo mental, distúrbio emocional e social, ou sofrer influências ambientais como diferenças culturais, instrucionais inapropriadas ou insuficientes, ou fatores psicogênicos. Porém, não são resultado direto destas condições ou influências (Hammill conforme citado por Ciasca, 1994, p.36, grifos nossos). PROBLEMATIZANDO... INCIDÊNCIA: Encontramos 40% da população em idade escolar indicada como portadora de dificuldade de aprendizagem, enquanto somente 3% a 5% apresentariam distúrbio de aprendizagem (Campos, conforme citado por Rocha, 2004). No entanto, no âmbito escolar e nos serviços de atendimento especializado, esse índice é muito maior do que 3 a 5%. Estudo intitulado “qualidade da educação: uma nova leitura do desempenho dos estudantes da quarta série do ensino fundamental” demonstra que, em língua portuguesa, somente 5% da amostra podem ser considerados leitores competentes e em matemática, apenas 7% conseguem resolver problemas de forma coerente. Para a Psicologia Histórico-Cultural o aprendizado é considerado um aspecto fundamental para que as funções psicológicas superiores aconteçam. O ENSINO IMPULSIONA, PROMOVE O DESENVOLVIMENTO. PORQUE ENFOCAR O FENÔMENO COMO PROBLEMAS DE ESCOLARIZAÇÃO... 1. O cálculo, a leitura e a escrita são habilidades culturais, adquiridas pelo ensino sistematizado, portanto, não-inatas; 2. Sua apropriação depende de uma relação: ensino-aprendizagem; 3. Quando pensamos em distúrbio ou dificuldade DE APRENDIZAGEM, o fenômeno é enfocado sob o prisma unicamente do aluno, do aprendiz, de seu ambiente restrito familiar ou em seu organismo, numa visão ambientalista ou inatista; 4. Problemas de escolarização obriga a pensar a constituição múltipla tanto do aprender como do não-aprender em relação com o ensinar e o nãoensinar, ou seja, a totalidade do fenômeno que vai além, inclusive, das relações unicamente intraescolares; 5. A adoção da Psicologia Histórico-Cultural nos proíbe pensar os fenômenos de maneira fragmentada, pois ao compreender o homem como HISTÓRICO, não o vê como refém da maturação neuronal ou de estruturas biológicas herdadas. A FORMAÇÃO DAS FUNÇÕES CORTICAIS SUPERIORES NO HOMEM... Luria se opunha a duas vertentes dentro da neuropsicologia: o localizacionismo estreito e a visão holística. Localização dinâmica das funções mentais superiores: entende o cérebro como constituído por complexos sistemas funcionais que se formam ao longo do desenvolvimento cultural, responsáveis pelas funções superiores. Os sistemas funcionais , portanto,distinguem-se não somente pela complexidade de sua estrutura, como também pela mobilidade de suas partes constituintes. SISTEMAS FUNCIONAIS Enquanto as formas superiores da atividade consciente são sempre baseadas em certos mecanismos externos – torna-se perfeitamente claro que esses apoios externos ou artifícios historicamente gerados são elementos essenciais no estabelecimento de conexões funcionais entre partes individuais do cérebro, e que por meio de sua ajuda áreas do cérebro que eram previamente independentes tornam-se os componentes de um sistema funcional único. (Luria, 1981, p.16) São três as principais unidades ou sistemas funcionais necessários para qualquer tipo de atividade mental: a unidade para regular o tono ou a vigília, a unidade responsável por obter, processar e armazenar as informações e outra para programar, regular e verificar a atividade mental. Os processos mentais do homem e a sua atividade consciente ocorrem com a participação destas três unidades, cada uma delas com seu papel específico. PRIMEIRO SISTEMA FUNCIONAL Responsável pelo tono, a vigília e manutenção do nível de energia cortical para a atividade organizada, dirigida a metas. Suas estruturas estão abaixo do córtex, no tronco cerebral e possuem uma dupla relação com o córtex. A formação reticular do tronco cerebral exerce um papel ativador geral sobre o córtex, fortalecendo as reações motoras aos estímulos e o estado de vigília, e um papel inibidor, provocando sono. São três as origens dessa ativação: os processos metabólicos do organismo; a chegada de estímulos do mundo exterior ao corpo que produz o reflexo de orientação, e; as intenções e planos, previsões e programas que se formaram durante a vida consciente do homem, sociais em sua motivação e que são efetuados com a participação da fala, inicialmente externa e depois interna. SEGUNDO SISTEMA FUNCIONAL Função primária de recepção, análise e armazenamento de informações e localiza-se nas regiões posteriores como as regiões: visual (occipital), auditiva (temporal) e sensorial geral (parietal). Os sistemas desta unidade estão adaptados para a recepção de estímulos que vão ao cérebro a partir dos receptores periféricos, adaptadas para a recepção de informações visuais, auditivas, vestibulares ou sensoriais gerais. Todas estas regiões têm uma estrutura e organização hierárquica: áreas primárias (receptoras), áreas secundárias (associativas), ambas com analisadores específicos, e; áreas terciárias (zonas de superposição) onde diversos analisadores possibilitam o funcionamento em concerto.. SEGUNDO SISTEMA FUNCIONAL Para Luria (1981), existem três leis básicas que governam a estrutura e funcionamento das regiões que compõem o segundo sistema cerebral: a lei da estrutura hierárquica das zonas corticais, a lei da especificidade decrescente das zonas corticais hierarquicamente organizadas e a lei da lateralização progressiva de funções. Com o aparecimento da maior aptidão da mão direita (que está associada ao trabalho e que evidentemente se relaciona com um estágio bastante precoce da história do homem), e mais tarde com o aparecimento de outro processo correlato, a saber, a fala, algum grau de lateralização de funções começa a ocorrer, fenômeno este que não foi encontrado em animais mas que no homem se tornou um importante princípio da organização funcional do cérebro. (Luria, 1981, p.58) TERCEIRO SISTEMA FUNCIONAL Responsável pela programação, regulação e verificação da atividade consciente. O homem não reage passivamente às informações que lhe chegam, cria intenções, formula planos e programas para as suas ações, inspeciona a sua realização e regula o seu comportamento, comparando os efeitos de suas ações com as intenções originais e corrigindo quaisquer erros que tenha cometido. Suas estruturas estão na região frontal. Enquanto o segundo sistema é aferente ou ascendente, este segue uma direção descendente, começa nos níveis mais altos das zonas terciárias e secundárias onde os planos e programas motores são formados, passa depois às estruturas das zonas primárias que enviam os impulsos motores preparados á periferia. TERCEIRO SISTEMA FUNCIONAL Os lobos frontais humanos são muito mais desenvolvidos até mesmo que nos macacos superiores; eis por que no homem, por meio da progressiva corticalização de funções, processos de programação, regulação e verificação da atividade consciente são dependentes em um grau muito maior das partes pré-frontais do cérebro que os processos de regulação de comportamento em animais. (Luria, 1981, p.73) Para Luria (1981), o que diferencia a regulação da atividade consciente humana é que esta ocorre com a participação da fala. Enquanto que as formas elementares de regulação de processos orgânicos e mesmo as formas simples de comportamento podem ocorrer sem o auxílio da fala, os processos mentais superiores se formam e ocorrem com base na atividade de fala, que é expandida nos estágios iniciais de desenvolvimento e depois se torna contraída ou internalizada. A ação programadora e verificadora do cérebro humano, portanto, realiza-se naquelas formas de atividade consciente cuja regulação ocorre pela participação da fala (lobos frontais) como controladora do comportamento. APRENDIZAGEM DA LEITURA E ESCRITA É FUNÇÃO DA ESCOLA. Como qualquer outra função psicológica cultural, o desenvolvimento da escrita depende, em considerável extensão, das técnicas de escrita usadas e equivale essencialmente à substituição de uma técnica por outra. O desenvolvimento, neste caso, pode ser descrito como uma melhoria gradual do processo de escrita, dentro dos meios de cada técnica, e o ponto de aprimoramento abrupto marcando a transição de uma técnica para a outra. Mas a unicidade profundamente dialética deste processo significa que a transição para uma nova técnica inicialmente atrasa, de forma considerável, o processo de escrita, após o que ele se desenvolve mais até um nível novo e mais elevado. (LURIA, 1998, p.180) O ato de leitura envolve capacidades complexas como: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. Compreender o papel da escrita enquanto um sistema de representação da linguagem oral e seus usos sociais; Ser capaz de usar e compreender linguagem; Reconhecer os sinais gráficos e diferenciá-los entre si; Compreender que a escrita é organizada espacialmente de um modo particular, seguindo uma direção da esquerda para a direita, tanto na formação das palavras, na formação das sentenças assim como na estruturação geral do texto; Reconhecer um conjunto de letras como uma palavra escrita e transformá-la na palavra correspondente na oralidade; Compreender o sistema ortográfico, ou seja, o conjunto de regras que regula a transformação de sons em letras e letras em sons – a passagem do oral para o gráfico e vice-versa; Compreender o papel da pontuação na organização e significação do texto; Buscar a compreensão do texto; Retomar o texto para resolver dúvidas; Buscar as intenções e o ponto de vista de quem escreveu; Ter uma postura de refletir ou pensar sobre o que foi lido. PROCESSO DE AUTOMATIZÇÃO Luria demonstra que no adulto, em que tais habilidades já foram desenvolvidas, o processo de ler e escrever não é executado por nenhuma ação psicológica complexa, é reproduzido automaticamente por técnicas já aprendidas em estágios anteriores do desenvolvimento. No entanto, durante a apropriação por parte da criança de tais habilidades este processo passa por diversos estágios que envolvem mudanças significativas nas funções psicológicas, que se reorganizam em sistemas funcionais mais complexos. Nesta ótica fica um tanto quanto difícil considerar disfunções corticais vinculadas a habilidades culturais tão complexas como resultantes apenas de maturação do SNC, pois assim a fórmula é posta invertida. Para Vigotski & Luria (1996), as funções corticais superiores são em princípio funções extracorticais, ou seja, desenvolvidas no e pelo intercâmbio da criança com os indivíduos mais desenvolvidos culturalmente, para depois se tornarem intracorticais ou individuais. POR ISSO ACONTECE? De aorcdo com uma pesqiusa de uma uinrvesriddae ignlsea, não ipomtra em qaul odrem as lrteas de uma plravaa etãso, a úncia csioa iprotmatne é que a piremria e útmlia lrteas etejasm no lgaur crteo. O rseto pdoe ser uma ttaol bçguana que vcoê pdoe anida ler sem pobrlmea. Itso é poqrue nós não lmeos cdaa lrtea isladoa, mas a plravaa cmoo um tdoo. Falou gaelra O ATO DE ESCREVER ENVOLVE CAPACIDADES COMPLEXAS COMO: 1. O domínio da posição da letra no espaço gráfico, isto é, como cada letra deve ser traçada, se voltada para a direita, para a esquerda, para cima, para baixo; 2. A diferenciação do traçado das letras ou domínio visuoespacial, distinção das formas e traçados das letras; 3. Compreensão do papel da entonação ou noção de tonicidade e sílaba tônica; 4. Desenvolver procedimentos precisos de segmentação de blocos sonoros em unidades vocabulares (palavras); 5. Desenvolver procedimentos precisos de segmentação de palavras em unidades fonêmicas e o conhecimento das possibilidades de construção de sílabas simples e complexas; 6. Compreender que a fala e a escrita são diferentes, identificando as diversas variações entre falar e escrever, estabilizando a escrita convencional; 7. Compreender a possibilidade de representações múltiplas, a identificação das alternativas de escrita e a estabilização da forma convencional. MATEMÁTICA Os conceitos se desenvolvem por meio da atividade, mediante a atuação da pessoa em diferentes situações e circunstâncias. Ao realizar determinada atividade, o estudante vai formando representações a seu respeito. É a riqueza dessas representações que lhe permitirá ir além da simples descrição ou memorização do assunto estudado. (Vygotski, Leontiev) A relação entre o desenvolvimento da percepção visual e os processos de contagem e o caminho da aritmética elementar (natural) à superior (cultural). No processo de contagem elementar também é possível observar traços semelhantes: a contagem “a olho” das crianças mais jovens, a utilização de técnicas sintéticas ou “arranjos” como auxílio (sofás, tratores); por último, a transição para figuras espaciais (coluna, fila). “A criança é capaz de enfrentar o resto só no próximo estágio, quando começa a empregar figuras espaciais, mas é só quando a contagem abstrata está plenamente desenvolvida, durante o período da idade escolar, que ela irá dominar integralmente o problema do resto” (LURIA, 1992, p. 98) QUAL O ELO ENTRE LEITURA, ESCRITA E MATEMÁTICA? Os processos de compreensão possuem uma estrutura psicológica, que precisa ser entendida pelos educadores; Matemática não é só cálculo, envolve processos de interpretação de enunciados lógicos, desenvolvimento do pensamento verbal; Existem dois tipos de comunicação que diferem em complexidade: a comunicação de acontecimento e a comunicação de relações. Comunicação de acontecimento - grupos simples, que expressam acontecimentos. (Ex. Hoje está chovendo). Comunicação de relações - unidades de códigos complexos da linguagem, meios para o pensamento lógico abstrato e se diferenciam pelo conteúdo e por sua construção gramatical, pois um objeto relaciona-se com outro, entra na classe de outros objetos da qual é parte. TIPOS DE COMUNICAÇÃO DE RELAÇÕES: 1. O genitivo atributivo, que exige transformações intermediárias para compreensão (Ex. Irmão do pai), utilizando-se uma série de meios ou procedimentos auxiliares para a compreensão (Ex. Irmão de meu pai, De meu pai o irmão, Irmão paterno). 2. Uso das palavras auxiliares como preposições e conjunções que expressam relações espaciais, temporais, de causa, que transformam a linguagem em um instrumento de pensamento. (Ex. Um círculo abaixo de uma cruz / A primavera antes do verão), que colocam acontecimentos em determinadas relações. 3. A existência de marcadores gramaticais ou semânticos (relações reais em que pode aparecer o objeto), reversibilidade ou irreversibilidade das construções. (Ex. O rapaz foi ao bosque/ O bosque foi ao rapaz ou Um círculo abaixo de um triângulo/ Um triângulo abaixo de um círculo). 4. A inversão das palavras, que altera a ordem dos acontecimentos reais, exigem uma operação complementar que elimine o conflito (Ex. Eu tomei café da manhã depois de ter lido o jornal). 5. Construções comparativas - imprescindível uma premissa prévia, cuja dificuldade é maior ao se introduzir um fator de inversão na conclusão da comparação. (Ex. Maria é mais loira que Luísa. Quem é mais morena?). 6. Quando a oração principal termina com uma subordinada contínua e se intensifica quando a oração subordinada se inclui na metade da oração principal. (Ex. A menina viu o pássaro que estava pousado na varanda/ O refúgio, que estava na clareira do bosque, havia envelhecido muito), devido à necessidade de analisar toda a informação, estabelecer de forma exata a que parte da construção se refere a palavra “que” e, conservando na memória operativa os componentes da oração que estão separados entre si, uni-los posteriormente em um todo. 7. Inversões semânticas - o significado imediato das palavras incluídas na oração contradiz o significado que realmente se quer transmitir (Ex. Eu não estou acostumado a não submeter-me às normas), exigindo uma elaboração prévia da informação, substituição de uma negação dupla por julgamento positivo e inibição das apreciações errôneas surgidas em um primeiro momento. AO PÉ DA LETRA a) Para escrever certo meu nome, não acerte nunca. Quem sou eu? b) Porque a sala de aula parece com o mar? c) Três gatos comem três ratos em três minutos. Cem gatos comem cem ratos em quantos minutos? d) O pai do padre é filho do meu pai. O que eu sou do Padre? e) Qual é o dobro da metade de dois? f) Um avião lotado de passageiros parte do Rio de Janeiro em direção a Buenos Aires. Por uma fatalidade cai na fronteira Brasil-Argentina. Onde serão enterrados os sobreviventes? g) Uma pata nascida no Chile bota um ovo na divisa Brasil-Chile. Segundo o Itamaraty, a quem pertence o ovo? h) Qual é a metade de dois mais dois? i) 200 burros estão andando em fila, um burro cai ele olha paras trás, quantos burros ele vai contar? j) Qual a metade do dobro de 25? l) Numa família há três irmãos, cada um tem uma irmã. Quantos filhos são? RESPOSTAS a) A letra R b) Os professores navegam, os alunos bóiam, as notas afundam. c) Três minutos d) Tio e) Dois f) Os sobreviventes ainda estão vivos. g) O Brasil não faz divisa com o Chile. h) Três i) Nenhum, burro não sabe contar. j) 25. l) 4 FINALIZANDO… O desenvolvimento das habilidades culturais de contagem e escrita envolvem uma série de estágios nos quais uma técnica é continuamente descartada em favor da outra. Cada estágio subseqüente suplanta o anterior; só após ter passado pelos estágios em que inventa seus próprios expedientes e aprendido os sistemas culturais que evoluíram ao longo dos séculos, ela – a criança – chega ao estágio de desenvolvimento característico do homem avançado, civilizado. No entanto, uma criança não se desenvolve em todos os aspectos no mesmo ritmo. Ela pode aprender e inventar formas culturais de enfrentar problemas em uma área, mas permanecer em níveis anteriores e mais primitivos quando se trata de outras áreas de atividade. Seu desenvolvimento cultural é freqüentemente desigual, e os experimentos indicam que traços do pensamento primitivo surgem muitas vezes em crianças bastante desenvolvidas (LURIA, 1998).