Teoría y crítica de la psicología 4, 92-114 (2014). ISSN: 2116-3480
Trabalho e linguagem em Luria:
um estudo à luz da ontologia marxiano-lukacsiana*
Work and language in Luria: a study in the light of Marxian-Lukacsian ontology
Natália Ayres
Universidade Federal do Ceará (Brasil)
Resumo. Este artigo centrou-se na análise das categorias “trabalho” e “linguagem” na obra
de Alexander Romanovich Luria, a partir do pressuposto, presente na ontologia marxianolukacsiana, de que o trabalho foi o ato que fundou o mundo dos homens e todos os
complexos que o comportam. Nessa perspectiva, ao analisar as obras de Luria,
conseguimos constatar que o tratamento dado pelo autor às categorias “trabalho” e
“linguagem” se assenta nos preceitos fundamentais da ontologia do ser social, evidenciando
o primado do trabalho em relação aos demais complexos, incluindo, assim, a linguagem,
que surge das necessidades engendradas por ele. Nesse contexto, advoga que o trabalho
comparece, juntamente com a linguagem, como o ato que forja a atividade consciente do
homem, desenvolvendo neste, funções complexas, as quais não estão presentes nos
animais.
Palavras-chave: trabalho, linguagem, Luria, ontologia do ser social.
Abstract. This paper has centered itself on the analysis of the categories ‘labor’ and
‘language’ in Alexander Romanovich Luria, from the assumption, which is present at the
Marxian-Lukacsian ontology, that labor was the act that had founded the human world and
all the complexes that keep it in place. In this perspective, we realize, as we analyze Luria’s
work, that the treatment given by the author to the categories ‘labor’ and ‘language’ agrees
with the fundamental precepts of the social being ontology, giving emphasis to the labor
primacy in relation to the other complexes, including language, which appears from the
necessities dreamed up by labor. In this context, labor comes, as well as language, as the act
that radically changes human conscious activity, developing complex functions, which are
not present in animals.
Keywords: labor, language, Luria, social being ontology.
*
Trabalho apresentado no Colóquio Internacional Marx e o Marxismo, realizado na Universidade Federal
Fluminense – UFF (Niterói-RJ/Brasil), de 30 de setembro a 04 de outubro de 2013. Resultado de uma
pesquisa de mestrado intitulada Trabalho e linguagem na obra de A. R.. Luria: um estudo à luz da ontologia
marxiana, defendida em 2011, no Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade
Federal do Ceará – UFC (Fortaleza-Ce/Brasil).
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Não há ninguém com capacidades excepcionais – não tenho nenhuma.
Nem há uma capacidade específica ou um desastre específico. Mas há
atmosfera de uma vida, que começou naquele momento único que foi o
começo da Revolução. Há um período de exploração, o encontro com um
gênio e o submeter-se à sua influência, e a série de realizações que um
intelectual pode empreender ao longo de uma vida razoavelmente longa.
Alexander Romanovich Luria
Introdução
A Revolução Russa de 1917 introduziu mudanças radicais em todas as esferas da vida. No
âmbito da ciência psicológica, buscou-se construir uma nova psicologia a partir dos
preceitos marxistas. De acordo com Leontiev (1996, p. 431), “os psicólogos soviéticos
foram os primeiros no mundo a iniciar de forma consciente a construção de uma psicologia
nova, marxista”.
As condições postas pelo contexto revolucionário impunham à psicologia uma
reorganização, no sentido de formular uma saída para a questão de seu objeto de estudo e o
método utilizado. Nesse período, a psicologia se encontrava em pólos opostos - de um lado,
a corrente idealista, que compreendia a consciência como manifestação do espírito, de
outro, a corrente naturalista, que a considerava como decorrente diretamente do cérebro.
A partir desse contexto, dá-se início ao projeto coletivo de construção da psicologia
marxista, entretanto, o passo decisivo para seu efetivo início acontece no ano de 1924, no II
Congresso de Psiconeurologia, em Leningrado. Neste congresso, Vigotski profere uma
palestra, na qual defende veemente a permanência do conceito de “consciência” na
psicologia, porém, propondo estudá-la a partir de métodos objetivos. Vigotski chamou a
atenção de todos não só pela clareza da sua fala, mas pelo conteúdo que apresentara, sendo
convidado a fazer parte da equipe do Instituto de Psicologia de Moscou, onde se junta a
Luria e Leontiev, sendo reconhecido como o líder do grupo, este passando a ser chamado
de Troika.
Leontiev (1996, p. 431) lembra que Vigotski, na ocasião dessa comunicação, embora
tivesse 28 anos, portanto, um psicólogo principiante, formara-se “como um pensador que
percorrera um longo caminho de evolução intelectual, cuja lógica interna o levaria à
necessidade de trabalhar precisamente no campo da psicologia científica”. Acrescenta,
ainda, que datam dos seus anos estudantis o seu conhecimento do marxismo, através,
principalmente, de livros introduzidos ilegalmente na Rússia, devido à censura czarista.
A partir da constituição da Troika, desenvolvem-se diversos estudos, os quais
servirão de base para a Psicologia Histórico-Cultural, assentada no marxismo.
Segundo Luria (1992, p. 44), empreenderam “uma revisão crítica da história e do
status da psicologia na Rússia e no resto do mundo”, passo inicial para o desenvolvimento
dos estudos no caminho da meta de “criação de uma nova abordagem abrangente dos
processos psicológicos humanos”.
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Nesta perspectiva, para que possamos compreender a obra luriana é preciso
considerar as condições de vida do autor, ou seja, o contexto histórico no qual suas ideias se
desenvolveram. A vida e obra de Luria, portanto, estão articuladas ao chão histórico da
União Soviética pós-revolucionária, no anseio de construção de uma nova sociedade,
pautada nos interesses coletivos (sociais), e, consequentemente, à edificação de uma
psicologia soviética de base marxista, em resposta ao movimento revolucionário em todas
as esferas da vida (econômica, política, cultural, social), proporcionado pela Revolução de
Outubro de 1917. Nessa tarefa de construção de uma psicologia marxista, Vigotski
comparece como maior representante, sendo este, de acordo com Luria (1992, p.47), o
“principal teórico marxista”. Assim, anunciamos, desde já, que o percurso de Luria se
articula com o quadro histórico de consolidação de uma psicologia marxista,
revolucionária: a Psicologia Histórico-Cultural.
Luria: alguns apontamentos biográficos
Aleksandr Romanovich Luria nasceu em 1902, na cidade de Kazan, situada sobre o rio
Volga, a leste de Moscou. Seu pai, Roman Albertovich Luria, era médico e professor
universitário. Sua mãe, Evgenia Viktorovna, foi dentista durante anos.
Aos 15 anos, depara-se com a Revolução Russa de 1917, influenciando
decisivamente a sua vida. Abaixo a descrição do próprio Luria (1992, p. 25):
Nosso conteúdo e estilo de vida mudaram quase imediatamente. Ao
invés da cuidadosa procura de um apoio para pôr os pés sobre a vida,
nos defrontamos repentinamente com muitas oportunidades de ação –
uma ação que ia muito além de nosso pequeno círculo familiar e de
amizades. Os limites de nosso restrito mundo particular foram
estilhaçados pela Revolução, e novas paisagens se abriram perante
nossos olhos. Fomos arrebatados por um grandioso movimento
histórico. Nossos interesses pessoais foram consumidos em favor das
metas mais amplas de uma nova sociedade coletiva.
Em 1921, gradua-se na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Kazan,
bem como começa a ter aulas de medicina, das quais conclui dois anos e interrompe por um
tempo.
Demonstra, desde cedo, seu interesse pela psicologia, desenvolvendo estudos
referentes à relação entre as emoções e as reações motoras. Sua experiência possibilitou sua
ida para Moscou, em 1923, sendo convidado a integrar a equipe de Kornilov, no Instituto
de Psicologia de Moscou, onde conhece Leontiev.
Buscava-se nesse momento a reconstrução da psicologia russa. A resposta veio no
ano de 1924, quando conhece Vigotski, no Segundo Congresso de Psiconeurologia, em
Leningrado, o qual é convidado para integrar a equipe do Instituto, formando assim o grupo
denominado Troika, o qual edificou as bases da Psicologia Histórico-Cultural, esta
assentada na teoria marxista, como já mencionado acima.
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No período de 1924 até a morte de Vigotski, em 1934, desenvolve vários estudos, dos
quais se destacam as pesquisas com analfabetos e semi-analfabetos na Ásia Central1, bem
como os estudos com gêmeos fraternos e idênticos no Instituto Médico-Genético de
Moscou2.
Cabe aqui uma importante consideração sobre a vinculação inconteste de Luria aos
postulados vigotskianos:
Na breve década compreendida entre a chegada de Vigotski a Moscou,
e sua morte por tuberculose em 1934, sua inteligência e sua energia
criaram um sistema psicológico que, sem dúvida, ainda não fora
completamente explorado. Praticamente, todos os ramos da psicologia
soviética, na teoria como na aplicação prática, foram influenciados por
suas idéias. Esses mesmos dez anos alteraram definitivamente o curso
de meu trabalho. Sem destruir os impulsos básicos que me haviam
atraído à psicologia, Vigotski me proporcionou um entendimento
incomparavelmente mais amplo e profundo do empreendimento em
que minha pesquisa precoce se incluía. No final da década de 20, o
curso futuro de minha carreira estava terminado. Eu passaria o resto
de meus anos desenvolvendo vários aspectos do sistema psicológico
de Vigotski. (Luria, 1992, p. 60).
Luria, portanto, concentrou-se nas ideias de Vigotski, buscando demonstrar a origem
social e a estrutura mediada dos processos psicológicos superiores. Acrescenta que, na
época da sua morte, ele e seus colegas, com o objetivo de identificar a relação entre os
fatores biológicos e sociais na estrutura das funções psicológicas superiores, desenvolveram
duas estratégias complementares:
A primeira estratégia consistia em investigar o desenvolvimento
dessas funções a partir das funções naturais, biologicamente
determinadas, que as precediam. A segunda estratégia era o estudo da
dissolução das funções psicológicas superiores, como resultado de
algum distúrbio que afetasse o organismo. (Luria, 1992, p. 60).
Em 1936, contudo, Luria é impedido pelo stalinismo de continuar os trabalhos que
vinha desenvolvendo (as pesquisas com analfabetos e semi-analfabetos, bem como os
1
Luria planejou, com apoio de Vigotski, uma expedição pela Ásia Central, escolhendo as aldeias e os
assentamentos nômades do Uzbequistão e de Khirgizia, onde era possível estudar de perto as mudanças
socioeconômicas e culturais após a Revolução de 1917. Por tratar-se de um momento de transição, podiam
observar tanto os grupos iletrados e não desenvolvidos, que habitavam as aldeias, quanto os grupos já
envolvidos com a vida moderna, que experimentavam as mudanças ocorridas com o realinhamento social
(Luria, 1992).
2
A pesquisa com gêmeos fraternos e idênticos foi realizada a fim de compreender as devidas contribuições da
hereditariedade e do ambiente em algumas características humanas particulares. Tinha como pressuposto que
“as contribuições genéticas ao comportamento refletir-se-iam mais diretamente naquelas tarefas que
demandassem processos cognitivos naturais do que nas que evocassem processos culturalmente mediados”
(Luria, 1992, p. 89).
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estudos com gêmeos), sob a orientação das ideias de Vigotski3. Nesse contexto, volta a
freqüentar o curso de medicina. No período de 1937 a 1941, desenvolve seus primeiros
estudos no campo da neuropsicologia. Destacam-se os anos seguidos à Segunda Guerra
Mundial, pela participação ativa no reconhecimento, tratamento de lesões cerebrais e
reabilitação das funções prejudicadas.
A psicologia soviética passa por uma nova agitação durante a Guerra Fria,
principalmente no âmbito da genética. Nesse período, intensificam-se as repressões
stalinistas. Luria, no início de 1950, dispensado do Instituto de Neurocirurgia, volta-se para
os deficientes mentais, no Instituto de Defectologia. Pavlov 4 tornou-se o referencial da
psicologia soviética, devendo ser seguido rigorosamente, impossibilitando Luria de seguir
abertamente as ideias de Vigotski, o qual passa a desenvolver dois tipos de trabalhos, um na
linguagem pavloviana e outro na perspectiva vigotskiana - os estudos referentes a esta
última foram publicados nas décadas de 1960-1970, quando a censura havia abrandado 5.
A maioria dos seus trabalhos com o jargão pavloviano foi revisto e reformulado pelo
próprio autor. Nesse período, intensificam novamente as investigações teóricas e
experimentais, dando continuidade às ideias de Vigotski, as quais foram mantidas por Luria
até o fim de sua vida, em 1977, ficando expressas nos seus inúmeros trabalhos.
Mediante à compreensão de que Luria se manteve fiel aos princípios da Psicologia
Histórico-Cultural, assentada, por sua vez, no marxismo, buscaremos a seguir analisar em
que medida o tratamento conferido pelo autor às categorias trabalho e linguagem guardam
correspondência com os fundamentos da ontologia marxiano-lukacsiana.
Trabalho e linguagem na obra de Luria
O homem, enquanto ser social, reflete o mundo real no qual vive não através, unicamente,
de uma impressão imediata do que o circunda, mas pode ultrapassar os limites da
experiência sensível, penetrando de forma profunda na essência das coisas.
Luria (1986) lembra que Lenin ressaltou como objeto do conhecimento e,
consequentemente, da ciência a relação existente entre as coisas e não estas em si. Assim,
mais uma vez, assevera que o homem forma conceitos abstratos que possibilitam atingir a
essência das coisas, ultrapassando os limites da experiência sensorial. Em outras palavras:
3
Com a ascensão e consolidação do regime stalinista, por volta de 1930, inicia-se um processo de censura
política e ideológica. Nesse contexto, os psicólogos da Escola de Vigotski tentaram fundar seu próprio
departamento de psicologia, mas não obtiveram êxito, pois nenhuma instituição de Moscou aceitou todo o
grupo e, principalmente, o intuito de montar um currículo e um programa próprios. Formaram, então, um
novo departamento de psicologia no Instituto Psiconeurológico da Universidade de Kharkov. Em 1936,
muitos psicólogos soviéticos foram postos sob escrutínio, tendo seus estudos interrompidos e muitos foram
obrigados a negar suas posições. Podemos citar ainda a proibição das obras de Vigotski, o qual, durante o
período de censura, ficou desconhecido no seu próprio país.
4
Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936), fisiólogo russo.
5
Tuleski (2007) ressalta que as décadas de 1960 e 1970, com a dissolução da censura, a psicologia foi se
estabelecendo novamente no âmbito acadêmico e no ensino. Em 1966, fundou-se a Faculdade de Psicologia
da Universidade de Moscou, bem como, em 1972, criou-se o Instituto de Psicologia na Universidade de
Leningrado, além da abertura em diversas universidades de outras faculdades e sessões de psicologia. Foram
realizadas, ainda, inúmeras investigações teóricas e experimentais, formulando ideias e orientações, muitas
deram continuidade às ideias de Vigotski, as quais marcaram o desenvolvimento da psicologia soviética.
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O homem não só pode captar as coisas mais profundamente do que lhe
permite a percepção sensível imediata, mas também tem a
possibilidade de tirar conclusões, não sobre a base da experiência
imediata, mas sim com base no raciocínio. Tudo isto permite
considerar que no homem existem formas muito mais complexas de
recepção e elaboração da informação do que as da percepção imediata
(Luria, 1986, p. 12).
Além de um conhecimento sensorial, ele possui também um conhecimento racional,
este que permite penetrar mais profundamente na essência das coisas do que é possível
através dos órgãos dos sentidos, ou seja, “com a passagem do mundo animal à história
humana, dá-se um enorme salto no processo de conhecimento desde o sensorial até o
racional”. O autor acrescenta, ainda, que “os clássicos do marxismo, com absoluto
fundamento, disseram que a passagem do sensorial ao racional resulta não menos
importante que a passagem da matéria inerte à vida” (Luria, 1986, p.12).
Luria (1979, p. 75, grifos do autor) anuncia que “a ciência histórica destaca dois
fatores, que servem de fonte à transição da história natural dos animais à história social do
homem”: 1. “o trabalho social e o emprego dos instrumentos de trabalho” e 2. “o
surgimento da linguagem”, passando a examinar o papel desempenhado por eles na origem
e formação da atividade psíquica do homem.
O trabalho: ato originário da atividade consciente do homem
Afinado com o pressuposto marxiano, de que o trabalho 6 funda o ser social, Luria (1986, p.
21) entende que o homem se distingue do animal pela mudança radical do seu
comportamento, através da “passagem à existência histórico-social, ao trabalho e às formas
de vida social a ele vinculadas”. O trabalho, atividade vital humana, é pressuposto “numa
forma em que ele diz respeito unicamente ao homem” (Marx, 1866, p. 255):
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma
abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia.
Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor
abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de
construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a
um resultado que já estava presente na representação do trabalhador
no início do processo, portanto, um resultado que já existia
idealmente. Isso não significa que ele se limite a uma alteração da
forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao mesmo tempo,
seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, o tipo e o modo de
sua atividade e ao qual ele tem de subordinar sua vontade.
6
O trabalho é apreendido por Marx (1866, p.255) como “um processo entre o homem e a natureza, processo
este que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza”. O
processo de trabalho “é atividade orientada a um fim – a produção de valores de uso -, apropriação do
elemento natural para a satisfação de necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre homem
e natureza, perpétua condição natural da vida humana e, por conseguinte, independente de qualquer forma
particular dessa vida, ou melhor, comum a todas as suas formas sociais” (Marx, 1866, p. 261).
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No trabalho, para suprir uma determinada necessidade humano-social, o homem
estabelece fins e procura os meios adequados para atingi-los. O homem, através do
trabalho, não só modifica a natureza, produzindo o novo, mas projeta na sua consciência a
sua ação sobre ela, diferenciando-se dos animais que, sobre sua base biológica, reproduzem
sempre o mesmo.
A atividade vital humana caracteriza-se pelo trabalho social e este,
mediante a divisão de suas funções, origina novas formas de
comportamento, independentes dos motivos biológicos elementares. A
conduta já não está determinada por objetivos instintivos diretos.
Desde um ponto de vista biológico, não há nenhum sentido em atirar
sementes na terra em lugar de comê-las, em espantar a presa ao invés
de capturá-la diretamente ou afiar uma pedra se não se tem em conta
que essas ações serão incluídas em uma atividade social complexa. O
trabalho social e a divisão do trabalho provocam a aparição de
motivos sociais de comportamento. É precisamente em relação com
todos esses fatores que no homem criam-se novos motivos complexos
para a ação e se constituem essas formas de atividade psíquica
específicas do homem. (Luria, 1986, pp. 21-22).
O homem, ao ser livre do determinismo de sua base genética, responde de forma ativa
e consciente aos seus carecimentos. Enquanto que a atividade vital dos animais, decorrente
imediatamente do seu ser biológico, caracteriza-se como uma resposta cega, muda e fixa
voltada, essencialmente, a sua sobrevivência e reprodução da sua espécie.
Destarte, enquanto as condições biológicas desempenham papel determinante na
formação do comportamento do animal, as condições sócio-históricas é que cumprem esse
papel na formação do comportamento humano, as quais criam novas formas de relação com
a realidade, mediada pelo trabalho. Para Marx e Engels (1846), o ser social é um produto
histórico, resultado do trabalho - relação ineliminável de transformação da natureza pelo
homem.
A preparação de instrumentos de trabalho muda radicalmente a atividade do homem
primitivo, distinguindo-se do comportamento animal. A partir do trabalho, a consciência
humana deixa de ser um mero epifenômeno, ultrapassando a simples adaptação ao meio
ambiente. Embora a consciência dos animais, especialmente dos mais evoluídos, pareça um
fato inegável, “ela se mantém sempre como um pálido momento parcial subordinado ao seu
processo de reprodução biologicamente fundado e que se desenvolve segundo as leis da
biologia” (Lukács, 1976, p. 62).
No decorrer de seus trabalhos, ao desenvolver um estudo sobre a evolução do
psiquismo, Luria diferencia a atividade consciente do homem do comportamento dos
animais, explicitando, a partir de três características, a distinção radical do primeiro para o
segundo.
A primeira concerne ao fato de que se o comportamento animal tem base puramente
biológica, limitando-se à adaptação, à sobrevivência e à reprodução, a atividade consciente
do homem não está ligada diretamente às necessidades biológicas, mas às necessidades
sociais. Noutros termos, enquanto o comportamento do animal “conserva sua ligação com
os motivos biológicos e não pode ultrapassar-lhes os limites”, tendo, sempre, “por base as
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inclinações biológicas ou necessidades (necessidade de alimento, autoconservação ou
necessidade sexual)” (Luria, 1979, p. 68); a atividade consciente do homem “não se baseia
em quaisquer inclinações ou necessidades biológicas”, mas “é regida por complexas
necessidades, frequentemente chamadas de ‘superiores’ ou ‘intelectuais’” (Luria, 1979, p.
71).
A segunda característica consiste no fato de que o animal tem seu comportamento
determinado pela experiência imediata ou pela experiência anterior, portanto, sua ação está
presa a essas influências diretas, sendo, assim, impossível de abstração. O homem, por sua
vez, consegue abstrair a impressão imediata, estabelecer relações entre as coisas, a partir de
um conhecimento mais profundo da realidade. Conforme o autor,
A atividade consciente do homem não pode tomar como orientação a
impressão imediata da situação exterior e sim um conhecimento mais
profundo das leis interiores dessa situação, razão por que há todo
fundamento para afirmar-se que o comportamento humano, baseado
no reconhecimento da necessidade, é livre. (Luria, 1979, p. 72 – grifo
do autor).
A terceira se refere às limitações das fontes do comportamento dos animais, estas
podem ser os programas com base na experiência de espécie, no comportamento instintivo
ou na experiência imediata de dado indivíduo (comportamento individualmente variável ou
reflexivo-condicionado). No homem acrescenta-se mais uma fonte que é a capacidade de
assimilar e transmitir os conhecimentos e habilidades produzidos historicamente pela
humanidade. Luria (1979, p. 69) assevera, ainda, que
Os animais não têm nenhuma possibilidade de assimilação da
experiência alheia e de um indivíduo transmiti-la assimilada a outro
indivíduo, e muito menos de transmitir a experiência formada em
várias gerações. Os fenômenos que se descrevem como “imitação”
ocupam lugar relativamente limitado na formação do comportamento
dos animais, sendo antes uma forma de transmissão prática direta da
própria experiência que uma transmissão de informação acumulada na
história de várias gerações, que lembre o mínimo sequer a assimilação
da experiência material ou intelectual das gerações passadas,
assimilação essa que caracteriza a história social do homem.
Deste modo, diferentemente do animal, que tem seu comportamento restrito aos
limites da experiência sensível imediata e de seus instintos, o homem assimila a experiência
social acumulada por longos anos. Vigotski (1996, pp. 64-65) assinala o caráter
extraordinariamente amplo da experiência herdada pelo homem em comparação à
experiência animal:
O homem não se serve apenas da experiência herdada fisicamente.
Toda nossa vida, o trabalho, o comportamento baseiam-se na
utilização muito ampla da experiência das gerações anteriores, ou seja,
de uma experiência que não se transmite de pais para filhos através do
nascimento.
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Consideramos oportuno registrar aqui a similitude da análise de Leontiev (1978, pp.
339-340 - grifos do autor), ao tratar do desenvolvimento mental na criança, na qual o autor
diferencia-o do desenvolvimento do comportamento nos animais, pois estes são ausentes de
“um processo essencial no desenvolvimento da criança: o processo de apropriação da
experiência acumulada pela humanidade ao longo da sua história social”.
A criança, de acordo com Leontiev (1978, p. 340), desde o nascimento, “é rodeada
por um mundo objetivo, criado pelos homens”, apropriando-se dos objetos e fenômenos
humanos que a cercam. O autor distingue o processo de apropriação da criança do processo
de adaptação dos animais:
[...] a adaptação biológica é um processo de modificação das
faculdades e caracteres específicos do sujeito e do seu comportamento
inato, modificação provocada pelas exigências do meio. A apropriação
é um processo que tem por resultado a reprodução pelo indivíduo de
caracteres, faculdades e modos de comportamento humanos formados
historicamente. Por outros termos, é o processo graças ao qual se
produz na criança o que, no animal, é devido à hereditariedade: a
transmissão ao indivíduo das aquisições do desenvolvimento da
espécie. (Leontiev, 1978, p. 340 - grifos do autor).
Nessa mesma direção, Vigotski (1996, p.64) afirmara que:
[...] O homem não se serve apenas da experiência herdada fisicamente. Toda
nossa vida, o trabalho, o comportamento baseiam-se na utilização muito
ampla da experiência das gerações anteriores, ou seja, de uma experiência
que não se transmite de pais para filhos através do nascimento.
A criança, portanto, não nasce pertencente ao gênero humano, isso quer dizer que
somente com a apropriação da experiência histórico-social é que ela vai adquirindo as
capacidades e habilidades especificamente humanas.
São as condições histórico-sociais que permitem uma mudança, a partir da passagem
à história social, da estrutura do comportamento humano, demarcando três fontes sob as
quais residem as formas superiores de comportamento: os programas de comportamentos
consolidados por via hereditária, a influência da experiência passada do próprio indivíduo e
a transmissão e assimilação da experiência de toda a humanidade (Luria, 1979). Nos termos
do referido psicólogo russo:
Junto com os motivos biológicos do comportamento, surgem os motivos
superiores (“intelectuais”) de necessidades, concomitantes com o
comportamento que depende da percepção imediata do meio. Surgem formas
superiores de comportamento, baseadas na abstração das influências
imediatas do meio, e, juntamente com as duas fontes do comportamento – os
programas de comportamentos consolidados por via hereditária e a
influência da experiência passada do próprio indivíduo -, surge uma terceira
fonte formadora da atividade: a transmissão e assimilação da experiência de
toda a humanidade. (Luria, 1979, p. 75).
Luria (1979) lembra que, diferentemente dos animais, o homem não só utiliza os
instrumentos de trabalho, mas os prepara. Engels (1876, p. 13) destaca que “nenhuma mão
simiesca jamais construiu um machado de pedra, por mais tosco que fosse”. Se a pedra
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lascada é o instrumento de trabalho mais primitivo, no período posterior já surgem os
instrumentos preparados especialmente pelo homem (flecha, lâmina). Essa preparação de
instrumentos já muda radicalmente a atividade do homem primitivo, pois não se trata de
uma simples atividade, voltada para uma necessidade biológica imediata (Luria, 1979).
Compreende-se, então, que:
A preparação dos instrumentos (que às vezes subentendia também a
divisão natural do trabalho) por si só já mudava radicalmente a
atividade do homem primitivo, distinguindo-a do comportamento do
animal. O trabalho desenvolvido na preparação dos instrumentos já
não é uma simples atividade, determinada por motivo biológico
imediato (a necessidade de alimento). Por si só a atividade de
elaboração da pedra carece de sentido e não tem qualquer justificativa
em termos biológicos; ela adquire sentido somente a partir do uso
posterior do instrumento preparado na caça, ou seja, exige, juntamente
com o conhecimento da operação a ser executada, o conhecimento do
futuro emprego do instrumento. É esta a condição fundamental, que
surge no processo de preparação do instrumento de trabalho, e pode
ser chamada de primeiro surgimento da consciência, noutros termos,
primeira forma de atividade consciente. (Luria, 1979, p. 76, grifos do
autor).
Podemos compreender que o trabalho, para o autor, consoante com a concepção
ontológica, constitui a base originária da consciência, imprimindo uma mudança radical no
comportamento humano. Ao produzir seus meios de trabalho (instrumentos), o homem
modifica sua atividade e seu comportamento. “Agindo sobre a natureza externa [...], ele
modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza” (Marx, 1866, p.255). O comportamento
do homem, na preparação dos instrumentos de trabalho, implica um quantum de ações não
dirigidas imediatamente para satisfação de necessidades de primeira ordem, passando a
ocupar, como esclarece Luria (1979, p.76), “posição cada vez mais marcante na atividade
consciente do homem”. Nas suas palavras,
[...] adquiria caráter de estrutura complexa; da atividade voltada para
a satisfação imediata de uma necessidade, separa-se uma ação
especial, que adquire seu sentido posteriormente, quando o produto
dessa ação (preparação do instrumento) será empregado para matar a
vítima e deste modo satisfazer a necessidade de alimento. A mudança
mais importante da estrutura geral do comportamento – surgida no
processo de transição da história natural do animal à história social do
homem – dá-se quando, a atividade geral, separa-se uma “ação” que
não é dirigida imediatamente por motivo biológico e só adquire
sentido com o emprego posterior dos seus resultados. Percebe-se
facilmente que, na medida em que se tornam mais complexas a
sociedade e as formas de produção, essas ações, não dirigidas
imediatamente por motivos biológicos, começam a ocupar posição
cada vez mais marcante na atividade consciente do homem. (Luria,
1979, p. 76, grifos do autor).
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Luria (1979, p. 77) ressalta que a estrutura da atividade durante a passagem à história
social do homem não se limita à mudança mencionada acima. A preparação dos
instrumentos de trabalho exige vários procedimentos e modos, ou seja, “a separação de
várias operações auxiliares”, esta constitui a “sucessiva complicação da estrutura da
atividade”, pois é dirigida “pelo objetivo consciente”. Complementa:
O surgimento de várias “operações” auxiliares por meio das quais se
executa essa atividade é o que constitui a mudança radical do
comportamento, que é o que representa uma nova estrutura de
atividade consciente do homem. A complexa organização de “ações”
conscientes, que se separa da atividade geral, leva ao surgimento de
formas de comportamento, que não são diretamente dirigidas por
motivos biológicos, podendo inclusive opor-se algumas vezes a eles.
Assim é, por exemplo, a caça na sociedade primitiva, durante a qual
um grupo de caçadores “assusta” e afugenta a caça que deve ser
apanhada, enquanto outro grupo arma emboscada para ela; aqui
poderia parecer que as ações do primeiro grupo contradizem as
necessidades naturais de apanhar a caça e só adquirem sentido a partir
das ações do segundo grupo cujo resultado é a caça da vítima pelos
caçadores. (Luria, 1979, p. 77).
O exemplo da caça na sociedade primitiva também é utilizado por Lukács (1976)
para exemplificar os pores teleológicos secundários7, os quais buscam induzir o
comportamento de outros homens, surgidas pela necessidade de colaboração, no processo
de trabalho:
As dimensões, a força e a periculosidade dos animais a serem caçados
tornam necessária a cooperação de um grupo de homens. Ora, para
essa cooperação funcionar eficazmente, é preciso distribuir os
participantes de acordo com funções (batedores e caçadores). Os pores
teleológicos que aqui se verificam realmente têm um caráter
secundário do ponto de vista do trabalho imediato; devem ter sido
precedidos por um pôr teleológico que determinou o caráter, o papel, a
função etc. dos pores singulares, agora concretos e reais, orientados
para um objeto natural. Desse modo, o objeto desse pôr secundário do
fim já não é mais algo puramente natural, mas a consciência de um
grupo humano; o pôr do fim já não visa a transformar diretamente um
objeto natural, mas, em vez disso, a fazer surgir um pôr teleológico
que já está, porém, orientado a objetos naturais; da mesma maneira, os
meios já não são intervenções imediatas sobre objetos naturais, mas
pretendem provocar essas intervenções por parte de outros homens.
(Lukács, 1976, pp. 83-84).
7
Os pores teológicos secundários são aqueles “que não têm por fim a transformação, a utilização etc. de um
objeto da natureza, mas que têm a intenção de levar outros homens a executarem, por sua vez, um pôr
teleológico desejado pelo sujeito do enunciado” (Lukács, 1976, p.161).
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Voltando as afirmações de Luria (1979) quanto ao exemplo da caça na sociedade
primitiva, podemos encontrar consonância com o excerto lukacsiano. O autor soviético
explicita que as operações auxiliares ou as ações conscientes dos homens não estão
diretamente ligadas às necessidades naturais. Na explicitação de Lukács (1976), os pores
teleológicos, mencionados no exemplo da caça, não têm como objetivo a transformação
direta da natureza, mas da consciência dos homens que estão envolvidos na atividade, para
atingir o fim último, que corresponde à satisfação de uma necessidade biológica. Para que a
caça do animal se realize, é necessária a divisão das tarefas e parte destas não corresponde à
finalidade primária que é pegar o animal para a alimentação.
Podemos relacionar, ainda, as afirmações de Luria à concepção marxiano-lukacsiana
de dever-ser, no qual o homem tem seu comportamento determinado por finalidades
sociais. A partir da posição do fim, o homem regula suas ações para alcançar o objetivo
almejado. Lukács (1976, p.104) afirma que “a essência ontológica do dever-ser no trabalho
dirige-se, certamente, ao sujeito que trabalha e determina não apenas seu comportamento
no trabalho, mas também seu comportamento em relação a si mesmo enquanto sujeito do
processo de trabalho”.
Ainda sobre o domínio do comportamento humano pela consciência, corroborando
com os pressupostos expressos acima, Vigotski e Luria (1996, p.89) afirmam que “o
processo do trabalho exige que o homem tenha certo grau de controle sobre seu próprio
comportamento. Esse controle sobre si mesmo baseia-se, essencialmente, no mesmo
princípio em que se baseia nosso controle sobre a natureza”.
Deste modo, a “atividade consciente do homem não é produto do desenvolvimento
natural de propriedades jacentes do organismo, mas resultado de novas formas históricosociais de atividade-trabalho” (Luria, 1979, p. 77). O trabalho, portanto, é o primeiro ato
responsável pelo surgimento da consciência.
A linguagem e seu papel na formação da atividade consciente do homem
Luria (1979, p. 77) destaca o surgimento da linguagem como “a segunda condição que leva
à formação da atividade consciente de estrutura complexa do homem”. Vale citar que foi
mérito de Engels, conforme lembra Lukács (1976, p. 46), ter posto o trabalho no centro da
humanização dos homens. O teórico revolucionário alemão “deriva imediatamente do
trabalho a sociabilidade e a linguagem”.
Entende-se comumente por linguagem um sistema de códigos através dos quais se
designam os objetos do mundo exterior. Luria ressalta essa compreensão da linguagem,
afirmando ser esta exclusivamente humana:
[...] um complexo sistema de códigos que designam objetos,
características, ações ou relações; códigos que possuem a função de
codificar e transmitir a informação, introduzi-la em determinados
sistemas [...]. Na realidade, todas estas características são próprias
apenas da linguagem no homem. A “linguagem” dos animais, que não
possui estas características, é uma “quase-linguagem”. Quando o
homem diz “pasta”, não somente designa uma coisa determinada,
também a inclui em um determinado sistema de enlaces e relações.
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Quando o homem diz “marrom”, se abstrai desta pasta, separando
apenas sua cor. Quando diz “está”, abstrai o objeto e sua cor e assinala
sua posição. Quando o homem diz “esta pasta está sobre a mesa” ou
“esta pasta está perto da mesa”, expressa uma relação entre os objetos,
dando uma informação completa. Portanto, a linguagem desenvolvida
do homem é um sistema de códigos suficientes para transmitir
qualquer informação, inclusive fora do contexto de uma ação prática.
(Luria, 1986, p. 25 – grifos do autor).
Luria (1979, p. 78) esclarece, portanto, que “essa linguagem não existe entre os
animais e surge somente no processo de transição à sociedade humana”. Os animais,
embora possuam meios de expressão de seus estados, os quais são percebidos por outros
animais, podendo influenciar o comportamento destes, são determinados por sua base
genética. A comunicação dos animais, derivada do seu ser biológico-natural, trata-se apenas
de sinais que, por mais precisos e desenvolvidos, “transmitem relações fixas
constantemente reiteradas numa determinada constelação vital” (Lukács, 1976, p.161) – o
perigo, a alimentação, a reprodução sexual. A “linguagem” natural do animal “expressa
apenas um estado ou uma vivência” (Luria, 1986, p.25 – grifos do autor), não fornece uma
informação objetiva, ou seja,
[...] simplesmente contagia os estados em que se encontra o animal
que emite o som (como ocorre no caso do guia do bando de grous ou
dos cervos) e provoca certos movimentos determinados pelo afeto. O
grou experimenta ansiedade, esta se manifesta em seu grito e esse
excita o resto do bando. O cervo reage ante o perigo levantando as
orelhas, virando a cabeça, contraindo os músculos do corpo, fugindo,
gritando. Desta forma expressa seu estado e os demais animais se
contagiam dele, se “incluem” nele. Portanto, o sinal dos animais é
uma expressão de seu estado afetivo e a transmissão do sinal é a
transmissão deste estado, a inclusão nele dos outros animais e mais
nada8. (Luria, 1986, p.25 – grifos do autor).
Portanto, nos animais não existe o complexo da linguagem, tal como se apresenta nos
homens, já que eles não dão nome às coisas, nem, tão pouco, distinguem ações e
qualidades, mas apenas expressam os seus estados afetivos, os quais são determinados pela
sua consciência epifenomênica.
Contudo, como bem lembra o autor, o surgimento da linguagem constitui um
problema que é objeto de inúmeras hipóteses e teorias – algumas “consideram a linguagem
manifestação do campo espiritual” e outras, “seguindo as tradições do positivismo
naturalista, tentam, inutilmente, ver a linguagem como resultado da evolução animal”. A
solução científica desse problema tornou-se possível quando a filosofia e a ciência
deixaram de procurar a origem da linguagem no cerne do organismo, bem como nas
peculiaridades da alma ou do cérebro, compreendendo que “as condições que originaram o
8
Sobre a “linguagem” artificial dos macacos, o autor afirma que se deve ter uma interpretação diferente das
experiências de aprendizagem com estes animais, ressaltando que “existem todas as bases para pensar que,
neste caso, trata-se de formas complexas de elaboração de reações condicionadas artificiais que fazem
recordar a linguagem humana apenas pelos seus traços externos, mas que não constituem uma atividade
natural dos macacos” (Luria, 1986, p.26).
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fenômeno devem ser procurados nas relações sociais do trabalho cujos primórdios de
surgimento remontam ao período de transição da história natural à história humana” (Luria,
1979, p. 78-79).
Luria (1979, p. 79) destaca que “há muitos fundamentos para se pensar que o
surgimento da linguagem teve seus primórdios nas formas de comunicação contraídas pelos
homens no processo de trabalho”, ou seja, a linguagem surgiu da necessidade de
comunicação estreita entre as pessoas no processo da atividade laboral. A existência da
divisão social do trabalho, “por mais baixo que seja o seu nível, faz com que se origine do
trabalho outra determinação decisiva do ser social, a comunicação precisa entre os homens
que se unem para realizar um trabalho: a linguagem” (Lukács, 1976, p.160). Nas primeiras
etapas da história, “esta linguagem esteve estritamente ligada aos gestos, os sons
inarticulados podiam significar tanto ‘cuidado’ como ‘esforça-te’ etc., ou seja, o significado
do som dependia da situação prática, das ações, dos gestos e da entonação com que era
pronunciado” (Luria, 1986, p.22 – grifos do autor).
O psicólogo soviético demonstra corroborar com o postulado marxiano de que, sendo
o trabalho o ato-gênese do ser social, todos os complexos são originados por ele, incluindo,
assim, a linguagem, que “nasce, tal como a consciência, do carecimento, da necessidade de
intercâmbio com outros homens” (Marx e Engels, 1846, p. 34).
Nos termos da ontologia marxiano-lukacsiana, portanto, à medida que o trabalho foi
se complexificando, foram criados outros complexos, os quais foram se desenvolvendo ao
longo do processo histórico-social; dentre tais complexos destaca-se a linguagem.
Lembramos, ainda, a compreensão marxiano-lukacsiana de que a linguagem, como
complexo fundado pelo trabalho e médium de sua continuidade, mantém com ele uma
relação de dependência ontológica e autonomia relativa – ao mesmo tempo em que
contribui no processo de desenvolvimento e complexificação do trabalho, vai se tornando
mais rica (Lukács, 1976).
O trabalho cria a necessidade de transmitir aos outros, determinadas informações,
estas não devem ficar restritas “à expressão de estados subjetivos (vivências), devendo, ao
contrário, designar os objetos (coisas ou instrumentos) que fazem parte da atividade do
trabalho conjunto” (Luria, 1979, p. 79). A esse respeito, esclarece, pois, que:
[...] seria incorreto pensar que os sons, que assumiram paulatinamente
a função de transmitir certa informação, eram “palavras” capazes de
designar com independência os objetos, suas qualidades, ação ou
relações. Os sons, que começavam a indicar determinados objetos,
ainda não tinham existência autônoma. Estavam entrelaçados na
atividade prática, eram acompanhados de gestos e entonações
expressivas, razão por que só era possível interpretar o seu significado
conhecendo a situação evidente em que eles surgiam. Além do mais,
nesse complexo de meios de expressão parece que, a princípio, coube
posição determinante aos atos e gestos; estes, segundo muitos autores,
constituíram os fundamentos de uma original linguagem ativa ou
“linear” e só bem mais tarde o papel determinante passou a ser
desempenhado pelos sons, que propiciaram a base para a evolução
paulatina de uma linguagem de sons independente. Durante muito
105
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tempo, porém, essa linguagem manteve a mais estreita ligação com o
gesto e o ato e por isto o mesmo complexo de sons (ou
“protovocábulo”) podia designar o objeto para o qual a mão apontava,
a própria mão e ação produzida com esse objeto. Só depois de muitos
milênios a linguagem dos sons começou a separar-se da ação prática e
a adquirir independência. É a essa época que pertence o surgimento
das primeiras palavras autônomas, que designavam objetos e bem
mais tarde passaram a servir para distinguir as ações e qualidades dos
objetos. Surgiu a língua como um sistema de códigos independentes,
que durante um longo período histórico posterior de desenvolvimento
assumiu a forma que distingue as línguas atuais. (Luria, 1979, p. 79).
A linguagem, portanto, como “segundo fator decisivo que determina a passagem da
conduta animal à atividade consciente do homem”, surgiu da necessidade imprescindível de
comunicação entre as pessoas, na designação da situação laboral (Luria, 1986, p.22).
Deste modo, a linguagem é entendida pelo autor como surgida pela necessidade de
comunicação no processo de trabalho, inicialmente, e por um longo período, esteve
estritamente ligada à atividade humana concreta. Somente com um longo processo de
complexificação das formas de existência, foi progressivamente se separando da prática e
se tornando “um sistema de códigos suficientes para transmitir qualquer informação,
inclusive fora do contexto de uma ação prática” (Luria, 1986, p.25). Esta afirmação
encontra consonância com o excerto a seguir:
[...] temos de considerar melhor um fenômeno, já por nós abordado,
derivado diretamente do trabalho, isto é, o surgimento da relação
“sujeito-objeto” e o distanciamento entre sujeito e objeto que
necessariamente advém daí. Esse distanciamento cria imediatamente
uma base imprescindível, dotada de vida própria, do ser social dos
homens: a linguagem. (Lukács, 1976, p. 127 – grifo do autor).
O trabalho que, na produção do novo, faz surgir a relação sujeito-objeto e,
consequentemente, a distância entre eles, faz derivar desta a linguagem.
A linguagem, formada historicamente, tem na palavra, de acordo com Luria (1986,
p.27), o seu elemento fundamental – “a palavra designa as coisas, individualiza suas
características. Designa ações, relações, reúne objetos em determinados sistemas. Dito de
outra forma, a palavra codifica nossa experiência”. Lukács (1984, p. 296 – grifo do autor)
escreve que as palavras:
[...] não são como aqueles sinais não formulados e não formuláveis
com os quais o mundo animal se comunica em sua adaptação passiva,
ligados especialmente ao hic et nunc concreto, como um perigo, mas
expressam, na medida em que isso fosse então reconhecível, a
generidade de seus objetos, entendida como universal, isto é, nos fatos
aos quais reagem, orientam-se espontaneamente para sua
essencialidade categorial imediatamente perceptível. Por isso, só o
gênero pode, na linguagem, nas palavras em geral, expressar a
tendência para o categorial. Isso ocorre mesmo na mais primitiva das
línguas, e seu desenvolvimento, já nos tempos “pré-históricos”, se
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dirige para uma intensificação cada vez maior dessa tendência para o
genérico-categorial, isto é, para essa constituição abstrativa das
palavras.
Sobre o nascimento da palavra, Luria (1986, p. 28) é enfático:
Possuímos uma ampla base para pensar que a palavra, como signo que
designa um objeto, surge do trabalho, e que é na história do trabalho e
da comunicação, como repetidamente assinalou Engels, onde se deve
buscar as raízes do surgimento da primeira palavra.
A palavra, que tem sua gênese no trabalho e na comunicação surgida neste,
inicialmente esteve estritamente ligada à atividade prática; sem essa vinculação não seria
possível ainda uma existência independente, ou seja, “nas primeiras etapas do
desenvolvimento da linguagem, a palavra possuía um caráter simpráxico” (Luria, 1986, p.
28), pois:
[...] Pode-se pensar que, nas etapas da pré-história humana, a palavra
recebia sua significação somente inserida na atividade prática
concreta. Quando o sujeito realizava algum ato laboral concreto,
elementar, juntamente com outros indivíduos, a palavra entrelaçava-se
com este ato. Por exemplo, se o grupo necessitava levantar um objeto
pesado – o tronco de uma árvore – a palavra “aj” podia significar
“cuidado” ou “ergue mais a árvore”, “esforça-te”, “vigia o objeto”,
mas o significado desta palavra mudava dependendo da situação e
tornava-se compreensível somente a partir dos gestos (particularmente
o gesto indicador dirigido ao objeto), da entonação e de toda a
situação circundante. (Luria, 1986, p. 28 – grifos do autor).
Luria (1986, p. 29 – grifos do autor) realça que toda a história posterior da linguagem:
[...] é a história da emancipação da palavra do terreno da prática, da
separação da fala como atividade autônoma e seus elementos – as
palavras – como um sistema autônomo de códigos. Ou seja, é a
história da formação da linguagem quando nela se foram incluindo
todos os meios indispensáveis para a designação do objeto e a
expressão da idéia. Este caminho de emancipação da palavra do
contexto simpráxico é a passagem à linguagem como um sistema
sinsemântico, quer dizer, como sistema de signos que estão enlaçados
uns aos outros por seus significados e que formam um sistema de
códigos que podem ser compreendidos, inclusive, quando não se
conhece a situação.
Assim, conforme o psicólogo soviético, a história da linguagem corresponde à
passagem do contexto simpráxico, do estreito enlace da palavra com a atividade prática, até
a separação da linguagem como um sistema sinsemântico, ou seja, um sistema de códigos
autônomo.
Para que possamos compreender melhor esses pressupostos, destacamos o que Luria
(1986, p. 29) explicita sobre a origem da palavra na ontogênese (desenvolvimento da
107
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criança), esta que “nunca se repete à filogênese (desenvolvimento da espécie), como em um
tempo se considerava”:
O desenvolvimento da linguagem na ontogênese da criança não
transcorre dentro do processo do trabalho, para o qual ela não se
encontra preparada; transcorre no processo de assimilação da
experiência geral da humanidade e da comunicação com os adultos.
No entanto, a formação ontogenética da linguagem é também, em
certa medida, a emancipação progressiva do contexto simpráxico e a
elaboração de um sistema sinsemântico de códigos.
Luria (1986) esclarece que a linguagem nasce na criança não dos primeiros sons
emitidos pelo lactente, mas sim das palavras que ela assimila na relação com o adulto, o
qual corresponde a um longo processo. Explica o autor:
O início da verdadeira linguagem da criança e a aparição da primeira
palavra, que é o elemento desta linguagem, está sempre ligado à ação
da criança e à sua comunicação com os adultos. As primeiras palavras
da criança, diferentes de seus primeiros sons, não expressam seus
estados, mas sim estão dirigidas ao objeto e o designam. No entanto,
essas palavras possuem no início um caráter simpráxico, estão
fortemente enlaçadas com a prática. Se a criança brinca com um
cavalinho e diz “tpru”, este “tpru” pode significar tanto “cavalo”,
quanto “trenó”, “senta”, “vamos”, “pare”, conforme a situação, a
entonação e os gestos que a acompanham. Portanto, mesmo que a
primeira palavra da criança se dirija ao objeto, ainda é inseparável da
ação, ou seja, possui um caráter simpráxico. (Luria, 1986, pp. 30-31 –
grifos do autor).
A linguagem, assim, surge na criança a partir da fala do adulto, da sua relação com
este. Inicialmente, as primeiras palavras usadas pela criança apresentam uma relação direta
com a sua ação. Somente “na etapa seguinte a palavra começa a separar-se da ação e a
adquirir progressivamente autonomia” (Luria, 1986, p. 31).
Luria (1986) destaca que a palavra tem como função principal seu papel designativo
ou referência objetal, termo utilizado por Vigotski, como bem lembra o autor.
A palavra, como elemento da linguagem humana, possibilita ao homem que a
domina duplicar o seu mundo, ou seja, ele pode não só lidar com os objetos diretamente,
mas operar com estes mentalmente. Em termos mais amplos,
Com a ajuda da linguagem, que designa objetos, passa a se relacionar
com o que não percebe diretamente e que antes não entrava em sua
experiência. A palavra duplica o mundo, dando ao homem a
possibilidade de operar mentalmente com objetos, inclusive na
ausência deste. O animal possui um mundo – o mundo dos objetos e
situações percebidos sensorialmente; o homem possui um mundo
duplo, que inclui o mundo dos objetos captados diretamente e o
mundo das imagens, ações, relações e qualidades que são designadas
pelas palavras. O homem pode evocar voluntariamente estas imagens,
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independente da presença real dos objetos, e dirigir voluntariamente
este segundo mundo. Pode dirigir não apenas sua percepção, suas
representações, mas também sua memória e suas ações [...]. Dito de
outra forma, da palavra nasce não só a duplicação do mundo, mas
também a ação voluntária, que o homem não seria capaz de cumprir se
carecesse de linguagem. (Luria, 1986, pp. 32-33).
Luria (1986) ressalta, ainda, que a palavra, ao possibilitar a duplicação do mundo,
garante a possibilidade da assimilação da experiência acumulada pelas gerações anteriores,
bem como da transmissão da experiência de indivíduo a indivíduo. A linguagem, como
fonte de informação, permite ao homem receber a experiência de outros indivíduos, sem ser
obrigado a recorrer sempre a sua experiência pessoal. Lukács (1976, p.127) expõe que:
[...] a reprodução realizada através do signo verbal se separa dos
objetos designados por ela e, por conseguinte, também do sujeito que
a realiza, tornando-se expressão conceptual de um grupo inteiro de
fenômenos determinados, que podem ser utilizados de modo análogo
por sujeitos inteiramente diferentes em contextos inteiramente
diferentes.
Outra importante função da palavra, destacada por Luria (1986, p.36) é o significado
“categorial” ou “conceitual”, denominado por Vigotski, de acordo com o autor, de
“significado propriamente dito”. Eis sua definição:
Por significado categorial da palavra, que sai dos marcos da referência
objetal, entendemos a capacidade para não apenas substituir ou
representar os objetos, não apenas provocar associações parecidas,
mas também analisar os objetos, para abstrair e generalizar suas
características. A palavra não somente substitui uma coisa, também a
analisa, a introduz em um sistema de complexos enlaces e relações.
Chamamos de significado categorial a essa função de abstrair, analisar
e generalizar que a palavra possui. (Luria, 1986, p. 36 – grifos do
autor).
Nesse sentido, a palavra não só designa um objeto, mas separa o traço característico
desse objeto e o analisa. E, além disso, “a palavra generaliza uma coisa, a inclui em uma
determinada categoria, ou seja, possui uma complexa função intelectual de generalização”
(Luria, 1986, p. 37).
O autor realça, ainda, que a palavra, ao generalizar as coisas, transforma-se “em um
instrumento de abstração e generalização, que é a operação mais importante da
consciência”. Isso quer dizer que “a palavra não é somente um meio de substituição das
coisas, é a célula do pensamento, precisamente porque a função mais importante do
pensamento é a abstração e generalização” (Luria, 1986, p. 37 – grifos do autor).
Vale ressaltar aqui, de acordo com o autor, que tanto a referência objetal da palavra
como o seu significado não permanecem imutáveis no decorrer do desenvolvimento da
criança. Luria (1986, p. 43) atribui esta descoberta a Vigotski, afirmando que:
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[...] foi formulada por ele como a tese de que o significado das
palavras desenvolve tanto no relativo à sua estrutura como ao sistema
de processos psíquicos que se encontram em sua base. Vigotski
denominou esta proposição fundamental, proposição sobre o
desenvolvimento semântico e sistêmico do significado da palavra.
O desenvolvimento semântico do significado da palavra, no entendimento de
Vigotski, corresponde ao fato de que, na ontogênese,
[...] tanto a referência da palavra ao objeto como a separação de suas
correspondentes características, a codificação dos traços dados e a
inclusão do objeto num determinado sistema de categorias não
permanecem imutáveis, mudam à medida que a criança se desenvolve.
(Luria, 1986, p. 43).
O desenvolvimento sistêmico do significado da palavra consiste na compreensão de
que:
[...] por trás do significado da palavra nas diferentes etapas do
desenvolvimento, encontram-se diferentes processos psíquicos; sendo
assim, com o desenvolvimento do significado da palavra, muda não só
sua estrutura semântica, mas também sua estrutura sistêmica
psicológica. (Luria, 1986, p. 43).
Segundo o autor, Vigotski uniu o desenvolvimento da palavra ao desenvolvimento da
consciência. À medida que a criança se desenvolve, muda não só o significado da palavra,
mas também o reflexo dos enlaces e relações que, por meio da palavra, determinam a
estrutura de sua consciência. (Luria, 1986).
Além do significado, a palavra apresenta também um sentido. O significado é “o
sistema de relações que se formou objetivamente no processo histórico e que está encerrado
na palavra”, ou seja, é um sistema de generalizações criado na experiência social,
conservado por todas as pessoas. Já o sentido é “o significado individual da palavra,
separado deste sistema objetivo de enlaces, este está composto por aqueles enlaces que têm
relação com o momento e a situação dados” (Luria, 1986, p.45 – grifo do autor).
Conforme o autor, uma mesma palavra possui um significado, formado no
desenvolvimento histórico-social, igualmente utilizado por todos os indivíduos, e, junto
com ele, um sentido, que consiste na separação, neste significado, de aspectos relacionados
a uma dada situação e às vivências afetivas da pessoa.
Nesse contexto, destaca-se o que Vigotski diferenciou de conceitos cotidianos, os
quais “evocam um sistema de enlaces reais-imediatos”, e os conceitos científicos, que
“introduzem o objeto em um sistema de determinações lógico-verbais” (Luria, 1986, p. 60).
Os conceitos cotidianos estão presentes nas etapas iniciais de desenvolvimento da criança,
que não determina por completo o significado das palavras, mas reproduz algum traço ou
função do objeto ou, ainda, insere-o numa situação prática.
Luria (1986, p. 67) assevera que:
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[...] somente com a alfabetização, com a passagem a formas sociais
mais complexas de produção, [...] passam a dominar facilmente a
forma “categorial” de generalização dos objetos. Isto mostra
convincentemente que os avanços fundamentais nas distintas
operações cognitivas são provocados por fatores sócio-econômicos e
culturais.
A partir do exposto, verifica-se que os conceitos cotidianos não estão presentes
somente nas crianças pequenas, mas nas pessoas que, por determinadas condições
socioeconômicas, não tiveram acesso ao conhecimento sistematizado. E que, portanto, para
que haja a passagem dos conceitos cotidianos aos científicos, é necessária a aquisição
destes através da escola, da transmissão do conhecimento sistematizado pelo professor9.
Nessa direção, retornamos às funções da palavra, que, ao abstrair o traço essencial e
generalizar o objeto, é não só instrumento do pensamento, mas é também meio de
comunicação.
Assim sendo, Luria (1986, p. 37) apresenta, ainda, a transmissão do conhecimento
acumulado historicamente pela humanidade como uma função mais profunda e importante
da palavra:
[...] Em uma linguagem desenvolvida, a palavra não só separa a
característica do objeto e generaliza a coisa, incluindo-a em uma
determinada categoria; além disso, a palavra executa um trabalho
automático de análise do objeto que passa desapercebido para o
sujeito, transmitindo-lhe a experiência das gerações anteriores,
experiência acumulada na história da sociedade.
Ao transmitir a experiência acumulada na história social, a palavra permite ao homem
ir além dos limites da experiência sensível, permite penetrar no plano racional,
convertendo-se, nas palavras de Luria (1986), em um instrumento poderoso de análise do
mundo.
De acordo com Luria (1986, p. 22), a linguagem, como resultado da história social,
[...] transformou-se em instrumento decisivo do conhecimento
humano, graças ao qual o homem pode superar os limites da
experiência sensorial, individualizar as características dos fenômenos,
formular determinadas generalizações ou categorias. Pode-se dizer
que, sem o trabalho e a linguagem, no homem não se teria formado o
pensamento abstrato “categorial”.
Sobre a relação trabalho, pensamento e linguagem é esclarecedora a seguinte
passagem de Lukács (1976, p. 85):
[...] É sem dúvida possível deduzir geneticamente a linguagem e o
pensamento conceitual a partir do trabalho, uma vez que a execução
do processo de trabalho põe ao sujeito que trabalha exigências que só
9
Vale ressaltar que hodiernamente, na sociabilidade capitalista, presenciamos a negação, cada vez mais
ampliada, do conhecimento científico, sistematizado. O professor deve desenvolver sua aula a partir do saber
cotidiano dos seus alunos e permanecer neles, pois estes que serão necessários na prática imediata-utilitária.
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Teoría y crítica de la psicología 4, 92-114 (2014). ISSN: 2116-3480
podem ser satisfeitas reestruturando ao mesmo tempo quanto à
linguagem e ao pensamento conceitual as faculdades e possibilidades
psicofísicas presentes até aquele momento, ao passo que a linguagem
e o pensamento conceitual não podem ser entendidos nem em nível
ontológico nem em si mesmos se não se pressupõe a existência de
exigências nascidas do trabalho e nem muito menos como condições
que fazem surgir o processo de trabalho. É obviamente indiscutível
que, tendo a linguagem e o pensamento conceitual surgido para as
necessidades do trabalho, seu desenvolvimento se apresenta como
uma ininterrupta e ineliminável ação recíproca, e o fato de que o
trabalho continue a ser o momento predominante não só não suprime a
permanência dessas interações, mas, ao contrário, as reforça e as
intensifica.
Luria (1986, p. 22) afirma que “as origens do pensamento abstrato e do
comportamento ‘categorial’, que provocam o salto do sensorial ao racional, devem ser
buscadas não dentro da consciência nem dentro do cérebro, mas sim fora, nas formas
sociais da existência histórica do homem”.
O autor apresenta esta formulação como a “tese fundamental da psicologia marxista”
(Luria, 1986, p. 22), apresentando, deste modo, a atividade consciente do homem como o
principal objeto da psicologia. Assim,
Conserva-se o problema da consciência e do pensamento como as
questões fundamentais da ciência psicológica e se coloca a tarefa de
fazer uma análise científica determinista das formas complexas da
atividade consciente do homem, de dar uma explicação destes
complexíssimos fenômenos. (Luria, 1986, pp. 22-23 – grifos do
autor).
Segundo Luria (1979, p. 80), a linguagem desempenhou importante papel na
reorganização posterior da atividade consciente humana. Noutros termos, esclarece que, “a
par com o trabalho, a linguagem é o fator fundamental da consciência”. Essa ideia encontra
seu fundamento na filosofia marxista, como poderemos perceber na afirmação de Lukács
(1976, p.129) a seguir:
Como ocorre com o trabalho, também com a linguagem se consumou
um salto do ser natural para o social; também aqui esse salto é um
processo lento, cujos primeiros começos permanecerão desconhecidos
para sempre, ao passo que, com a ajuda do desenvolvimento das
ferramentas, podemos estudar e, dentro de certos limites, abarcar em
seu conjunto a orientação de desenvolvimento, com um conhecimento
post festum.
Em sintonia com os preceitos da Psicologia Histórico-Cultural, Luria (1979, p.80-81)
destaca três mudanças essenciais à atividade consciente do homem com o surgimento da
linguagem: 1. ao designar objetos e eventos exteriores com palavras isoladas ou
combinadas, permite “discriminar esses objetos, dirigir a atenção para eles e conservá-los
na memória”; 2. abstrai das coisas suas propriedades fundamentais, relacionando-as a
determinadas categorias; 3. permite ao homem se apropriar do conhecimento
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historicamente acumulado, sendo “o veículo fundamental de transmissão de informação,
que se formou na história social da humanidade”.
Considerações finais
O estudo apresentado aqui buscou explicitar que Luria, mesmo após a morte de Vigotski e
o momento de grande censura no período do stalinismo, não se desvinculou do
materialismo histórico-dialético, bem como do enfoque histórico-cultural. O próprio autor
reafirma o seu reconhecimento à Vigotski, ressaltando que, depois da influência deste,
tornou-se seu seguidor durante toda a sua vida, afirmação esta expressa na epígrafe
escolhida para este artigo.
Tal resgaste contribui, ainda, para responder aqueles que, a despeito das próprias
afirmações do autor, tentam desassociá-lo de Vigotski (e de Leontiev), bem como da
perspectiva do materialismo histórico-dialético, apropriando-se indevidamente dos seus
escritos, distorcendo as categorias do autor, retirando destas os pressupostos marxistas.
Verificamos, ao contrário, que os entraves vivenciados por Luria ao longo do
desenvolvimento dos seus estudos não o impediram de continuar com a linha desenvolvida
pela Troika, cujo corpus teórico encontra-se consubstanciado na Psicologia HistóricoCultural.
Partindo dessa compreensão, ao analisarmos nas obras de Luria as categorias trabalho
e linguagem, identificamos a premissa central da ontologia marxiano-lukacsiana: o trabalho
como o ato gênese do ser social.
Luria apresenta o trabalho, e posteriormente a linguagem, como o fator da passagem
do ser natural dos animais ao ser social do homem, distinguindo o comportamento animal,
determinado pelas condições biológicas, da atividade consciente dos homens, a qual tem
por base as leis sócio-históricas.
O psicólogo soviético estudado atribui à preparação de instrumentos pelo homem,
através do trabalho, a mudança radical promovida no comportamento humano. Além disso,
o comportamento do homem, no processo de trabalho, requer operações auxiliares, que são
ações dirigidas por um objetivo consciente, não imediatamente ligadas para a satisfação de
necessidades biológicas. Tais ações conscientes proporcionam o surgimento de formas
sociais de comportamento.
O autor compreende, deste modo, a origem da atividade consciente do homem a partir
do trabalho, com a participação fundamental do complexo da linguagem, esta que é
compreendida por Luria, afinado com os preceitos da ontologia marxiano-lukacsiana, como
complexo surgido da necessidade de comunicação entre os homens no processo de
trabalho, estando ligada durante um longo período à atividade laborativa, através da
gesticulação. A partir da complexificação do trabalho, a linguagem vai, de forma
progressiva, separando-se da prática e tornando-se um sistema de código autônomo.
O trabalho faz com que a linguagem se torne um importante instrumento para a
transmissão da riqueza material e intelectual produzida pelas gerações anteriores e que
cumpra, no desenvolvimento mental da criança, o papel de elevar suas funções elementares
a funções psíquicas superiores.
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Reafirmamos, por fim, a partir dos estudos de Luria, a Psicologia Histórico-Cultural,
como a teoria psicológica que, fundamentada no marxismo, compreende a origem ontohistórica do indivíduo, evidenciando a sua constituição a partir das condições sociais
estabelecidas no decurso da história, deixando formulada importantes contribuições para
compreensão do devir humano.
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Vigotski, L. S. (1996). Teoria e método em psicologia. São Paulo: Martins Fontes.
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Fecha de recepción:
10 de octubre 2013
Fecha de aceptación:
26 de febrero 2014
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