A estória de João de Maria
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A estória de
João de Maria
Nelson A. Natalino
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O cenário apresenta uma casa de um cômodo, onde estão os móveis
básicos de uma casa. O fogão( se possível a lenha), as panelas estão
penduradas (são poucas) as louças amontoadas sobre uma pequena
pia. Uma cama de casal, sem lençóis.
Uma mesa rústica com duas cadeiras. Uma gaiola vazia, com a
portinhola aberta, pendurada na parede. Num canto qualquer, uma
viola.
João está só, agachado no meio do palco. Tem entre as pernas uma
enxada.
Apóia-se com as duas mãos nela. Luz em crescendo sobre ele.
João
-
( LEVANTANDO-SE, CAMINHA ATÉ A JANELA E OLHA PARA
FORA. VIRA-SE, OLHANDO PARA A GAIOLA VAZIA) Óia lá fora,
sabiá... Só tem o vento que sacode a rérva... A tarde tá caindo,
já. Mansa, mansa.
( PAUSA ) Conta quí, preu, sabiá... Ocê já sabia di tudo, num
é? (OLHA PARA AS MÃOS) Essas mão...
Tão dura di
calejada... ói aquí... Sabe o qui é ? É a enxada... ( PAUSA) Eu
num tinha qui tá aquí, não... Eu tinha qui tá é lá fora, rancando
da roça as erva daninha imprestávi.... Mai que o quê, sabiá ! Já
se foro os tempo da bonança... Eu saio agora é pra carpí
esperança... Esperança di um tempo mió... mió só um poco...
Apaga o foco sobre João. O palco fica escuro total. Acende spot sobre
o narrador, no canto do palco.
Narrador - (SÉRIO, OLHA PARA TODO O PÚBLICO, SEM DEMONSTRAR
NEM UM TIPO DE SENTIMENTO) Vocês vieram ? Bom!
(PAUSA - APONTA PARA O PALCO) Tá lá um João... Não é um
João Qualquer, um João Ninguém, não . Esse João carpia a
esperança de um tempo melhor, só um pouco...
Mas ele já vivia melhor que qualquer louco daquela cidade
grande vazia. Vazia de amor.
E de amor João vivia... João como muito João também tinha
sua Maria... Maria de João e João de Maria.... (VIRA-SE PARA
O PALCO)
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Apaga o foco do narrador. No palco, Maria está no fogão e João está
sentado numa cadeira, dedilhando a sua viola. Na gaiola que estava
vazia na cena anterior, deve estar um sabiá.
João
- ( PÁRA DE DEDILHAR A VIOLA E FICA OLHANDO UM TEMPO
PARA MARIA) Ocê tá bunita, Maria...
Maria
-
Tá mi oiando, João ?
João
-
Si num tô...
Maria
-
Pra mó di quê, home ? Poi num mi vê todos dia, tar i quar ?
João
-
Pra mó di vê tua boniteza, qui nunca é inguar, dia adispois di
dia, noite adispois di noite, ano adispois di ano...
Maria
-
( FAZENDO UMA DOCE REPREENSÃO)
SEUS AFAZERES)
João
-
Ô Maria... Ocê si lembra du dia qui eu ti cunhecí ?
Maria
-
Si mi lembro...
João
-
Eu olhei procê... ocê olhô pra mim...
Maria
-
Olhei não! Baxei os óio di vergonha...
João
-
Ocê tava oiando pra mim, quando eu ví...
Maria
-
Qui tava, tava. (ENVERGONHADA) Quano eu te ví a primera
veiz, João, meu coração bateu disparado, qui só égua
desgrenhada !
João
-
É... ocê avermeiô nas bochecha...
Maria
-
Tava pegano é fogo... Se o pai tivesse perto dava inté pra
acendê o cigarro de paia nas bochecha... (OS DOIS DÃO
RISADA DA SITUAÇÃO)
João
-
Era o amô fazeno traquinage no nosso coração...
Maria
-
É...
João ! (VOLTA A
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João
-
Ocê ama eu ainda, Maria ?
Maria
-
(VIRA-SE PARA JOÃO MUITO SÉRIA) Ocê num mi pregunte
isso anssim, não, João... Parece inté qui num ti dô carinho e
amô... Pois ti digo qui amo e amo di muito...
João
-
Fica brava cumigo, não... Foi só uma pregunta de mau jeito...
Eu tomém amo ocê pur dimais... pur isso qui tava aquí
trocando um dedo di prosa cum a minha viola e ti oiando ficá
mais bunita cada dia qui passa... parece inté qui tem parte co
demo...
Maria
-
Esconjuro, Juão ! Vira essa boca pra lá, home! Tá besta ? Num
si fala anssim no cão sarnento, qui ele vem pra mó di cobrá!
Esconjura ocê tomêm!
João
-
Uai! Mai foi só uma brincadera, Maria...
Maria
Maria
-
Tanto pió ! (DESESPERADA) Esconjura home ! Esconjura !
João
-
Tá bão... Se ocê qué mermo, esconjuro, uai...
Maria
-
E num brinca mais co nome do tinhoso, de jeito manera !
se ocê brinca cum ele, i ele cisma di vim brincá cum ocê ?
João
-
Deus mi livre, Maria ! Já esconjurei, pronto...
Maria
-
Tá na hora di jantá... Guarda essa viola...
E
Apaga a luz sobre João e Maria. Acende spot sobre o narrador, no
canto do palco.
Narrador - Esse é o nosso João. Homem humilde... Ligava pra pobreza,
não. Nào sentia a pobreza. Vivia respirando a natureza... Tinha
seu sitiozinho a beira da estrada, seu cavalinho, a verdura
para consumo plantada... tinha até uns pares de galinhas de
criação. Só não tinha rádio nem televisão. Nào via novela. Mas
também não ficava sabendo das desgraças do mundo, não.
Dormia cedinho, acordava com a manhã clarinha, pegava a
sua enxadinha, sorria seu sorriso banguela pra Maria, e ia
cuidar do plantio. Lá ia ele. Chapéu de palha na cabeça, a
caminho da roça... e não há no mundo quem possa, imaginar
com que satisfação iam a enxada, o cavalo e João, debaixo do
gostoso sol da manhã. Era apear do cavalo e já movia a
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enxada. O sol lhe queimava a pele já queimada. Mas João,
sem ligar pra nada batia com fé sua enxada na terra que
comprou do Juca Topeira, fazia dez anos. Comprou com toda
a sua economia. Fora o presente de casamento para Maria. O
terreno e uma casinha de tijolos feitos na olaria do pai de João
- Que Deus o tenha em bom lugar - Esse lhe deixou como
herança alguns mil réis que João usou para plantar o seu
milharal.
(VIRA-SE PARA O PALCO)
Maria está sozinha em cena. Está sentada costurando um remendo na
calça de João.
Maria
-
Êta, sabiá ! Ocê num pode cantá um poco pra mó di alegrá
meu dia? Num farta muito vem o João em riba do cavalo
alazão, bunito qui só...
Eu tenho aquí qui ficá oiando pra fora, pra mó di vê quando ele
aponta lá na picada , lá longe, preu corrê e lhi abrí a portera...
Sabe, sabiá, carece di vê a filicidade do home quando vo-lhe
abrí a portera... Eu fico oiaindo ele lá de baixo... ele em cima
daquele baita cavalão... fica pur dimais garboso... Ele lá di
cima mi sorrí aquele surriso banguelo e cheio de mimo dele... (
PAUSA) Inté a banguelice dele é bunita... Ói... óia lá, sabiá... lá
vem ele... Vô lá. (SAI).
Apaga a luz do palco. Acende spot sobre o narrador.
Narrador - Maria. Mulher. Tinha para o seu homem, olhos e pensamento .
Nada lhe era sofrimento. Como João queria. Assim sempre
seria. A felicidade custa pouco, quando da vida não se exige
muito. (PAUSA ) ( FALA DO SENTIMENTO DE MARIA)
O verde despertou na plantação. (PAUSA )
Dormia
abraçadinha com João. (PAUSA ) Isso para Maria, posso dizer
sem medo da verdade... Isso pra Maria tinha só um nome. Se
chamava felicidade. (PAUSA )
Só uma coisa de ruim
acontecia. Deus negou o filho que João tanto queria... Mas
joão se acostumou com isso.
(VIRA-SE PARA O PALCO)
Apaga o foco do narrador - sai. Maria entra em cena correndo.
Maria
-
Sabiá, sabiá ! João tá cheio de alegria... Foi lá pra cochera pra
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mó de guardá o alazão. ( CORRE PARA A MESA - ARRUMA OS
PRATOS - PEGA DOIS COPOS E A MORINGA D’ÁGUA E
COLOCA-OS NA MESA. FAZ TUDO ANSIOSA, A ESPERA DA
ENTRADA DE JOÃO)Pruquê qui ele tá demorano tanto, sabiá ?
(PAUSA).
João entra sorrindo e joga o chapéu longe. Maria corre para os seus
braços.
Beijam-se.
Maria
-
( ACANHADA) Tava cum sardade !!!
João
-
Eu tomém tava... Ah! Maria ! Ocê num sabe! ( FALA COM
ALEGRIA ) Nascero os brotinho!!! Carece di vê! Tudo verdin,
pequinin anssim, ó... brotando da terra qui é mãe di todos,
como quem qué botá a cara pra fora no mundo... e si espaiaro
tudo, pela roça toda! Acho que num faiô uma semente !
Maria olha-o com atenção, como que se encantando pelas palavras
dele.
Maria
-
Num diga, home de Deus ! Tava
sintindo que tava
acontecendo coisa boa... Assenta na mesa, qui vô lhe serví a
janta...
João
-
Num é só isso, não !
Maria
-
Tem mais ? ( VAI SERVINDO O JANTAR ENQUANTO JOÃO
FALA - DEVEM COMER ENQUANTO CONVERSAM)
João
-
Pois num disse ? Craro qui tem. A parte mais mió. O seo Zeca
di Bibí me percurô na roça. Disse anssim qui o verdume que o
miaral mostra di pequeno promete colheta boa. Disse que
compra a produção toda. É só coiê qui ele paga preço bão.
Maria
-
Êta ! Será qui vai dá pra comprá uma cabra ? Quiria tê leitinho
fresquinho...
João
-
Sei não... mai acho qui dá sim... Botá uns reboque nessas
parede...
Maria
-
Ih, João... vai ficá lindo dimais... E mais umas galinha
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poedera? Será qui dá ?
João
-
Isso cum certeza ! (PAUSA - COMEM - JOÃO FALA COM
RECEIO).
Maria... (ELA LEVANTA OS OLHOS SEM RESPONDER) Maria...
num sei como falá... (PAUSA)
Maria
-
Fala João...
João
-
Sabe o que eu quiria memo ? Eu quiria tentá di novo... ocê
sabe... fazê um fio nocê. Tá tudo dando certo... quem sabe...
numa hora dessas...
Maria
-
Puis é, Juão... ia memo te falá disso... Tô sintindo memo qui tô
nos dia de emprenha... quem sabe, né?
João
-
Ô Maria... ocê ia mi fazê o home mais feliz du mundo... Já
pensô, ocê buxuda... cum aquele barrigão anssim, ó...
Maria
-
Eu tomem ia sê muito feliz se isso contecesse di verdadi...
(PAUSA)
João
-
(DESCONVERSANDO UM POUCO) muié... essa comida tava
dimais di boa! (BATE NA BARRIGA E ARROTA - OS DOIS RIEM
MUITO)
João se levanta da mesa e vai até a janela. Maria olha com ar de
apaixonada.
João
-
Óia lá Maria... já tá cheio de pirilampo alumiando a noite...
Tão esperando eu ir pra varanda, pra mó di ouvi minha viola...
(PAUSA) Iscuita... iscuita... o sapo... os grilo... tão tudo mi
isperanu...
Maria
-
(PEGANDO A VIOLA E ENTREGANDO NA MÃO DE JOÃO)
Entonce vai lá , home... num podi deixá os bichinho
esperanu....
João pega a viola, dá um beijo em Maria e sai. Ouve-se em off o som
da viola. Maria dá um sorriso.Ouve-se a voz de João na varanda, cantando
uma modinha Maria ouve feliz.
Quando a lua beija a cor do entardecer
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E a viola seu lamento vem cantar
A passarada parte pra se recolher
Pois a noite não foi feita pra voar
E o luar então se espalha no horizonte
E na fonte faz a água alumiar
E alumia a mata virgem, o rio, monte
E as picadas vendo o mato rarear
Eu dedilho a viola neste avarandado
Canto a festa dessa noite de luar
E a noite traz também seus convidados
Pirilampos e cigarras a cantar
Quando a lua se faz dona até de mim
Chama a brisa e vem o orvalho gotejar
Então se espalha um cheiro de terra e capim
E das flores os odores pelo ar
Então eu calo da viola essa tristeza
Pois já sei que até a lua percebeu
Que o intruso nessa bela natureza
É o canto da viola e sou eu...
Eu dedilho a viola neste avarandado
Canto a festa dessa noite de luar
E a noite traz também seus convidados
Pirilampos e cigarras a cantar...
Luz desce até apagar o palco. Foco no narrador.
Maria dá um sorriso. Luz desce até apagar o palco. Foco no narrador.
Narrador - João corria pra se sentar na varanda com a sua viola,
dedilhava uma ciranda ou modinha... e quando via o vagalume
com sua luzinha se punha a cantar. E cantavam com ele o
sapo, o grilo e todos animaizinhos do mato. Então o céu se
enchia de estrelas, a lua iluminava a mata e João fazia
serenata a té o sono bater. Então João se levantava de sua
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cadeira de balanço, e em passo de ganso ia se deitar. Maria
como sempre estaria a cochilar. João deitava de mansinho,
abraçava Maria de levinho e se punha a noite a escutar. O pio
da coruja... O latido do cachorro lá longe... O vento a
chacoalhar a árvore... A água batendo no regato.
O tempo foi passando. Dia após dia. Quando na roça João
olhava para o sol a pino, marcando meio-dia, pegava o seu
cavalo alazão e corria, corria até chegar em casa e ver Maria
terminando o almoço no fogão a lenha. João fazia sua oração
a Nossa Senhora da Penha, lavava as mãos de terra ,
agradecia o almoço e comiam, ele e Maria, aquela comida
gostosa que só Maria sabia fazer. João comia com todo o
prazer e depois estendia a rede nos arvoredos, se deitava na
sombra e dormia uma hora inteirinha. Então Maria vinha, lhe
beijava o rosto. João acordava, espreguiçava e sem demora se
levantava, e no lombo do alazão, voltava pra roça carpir... Era
assim todos os dias . E quando caía a tardinha, Maria jogava
milho pras galinhas, estendia a roupa no varal e depois
voltava ao fogão de lenha pra preparar o jantar de João.
E a noite voltava então... a luz de lampião Maria ouvia o cavalo
alazão,
via o vulto da enxada... o vulto de João na picada e corria feliz
pra lhe receber... Mas nessa noite...algo estranho parecia
acontecer...
(VIRA-SE PARA O PALCO)
Maria está sozinha em cena. Anda de um lado para outro, nervosa.
Fala com o sabiá, meio chorosa.
Maria
-
Ô, sabiá ! Hoje, nem teu canto pode me alegrá... João tá
chegando e hoje eu não queria vê o João chegá... Sabe,
passarin... Tem dia que a gente num sabe porque qui
amanhece... por que qui inzinsti dia anssim, ruim qui nem a
peste... (BATE NA BOCA). Deus que me perdoe...
João chama Maria em off. Ela corre para a porta. João já vem
entrando.
João
-
Ô Maria.. qui susto ocê mi deu... Oce num foi lá fora abri a
portera... qui nem tudo dia... I aí eu já pensei bestera...
Maria
-
Adicurpi João.. tavaquí tarefada cum minhas coisa qui nem vi
a hora passá...
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João
-
Maria.. hoje o dia num foi dos meió não...
Maria
-
Qui qui conteceu, home ?
João
-
Sabe o tar di Zeca di Bibï ?
Maria
-
O tar que vai comprá os mio ?
João
-
Pois intão... foi lá pra mó de proseá cumigo i dicidí os preço
que podi pagá pelo miaral...
Maria
-
Intonce?
João
-
Intonce ? Intonce Maria ? Teve o dispaupério de oferecê cento
e cinquente mil réis pelo miaral..
Maria
-
E ocê ? ocê aceitô João ?
Óia qui o home mi pegô meio de carça curta... mai intão eu
disse prele qui isso mar dava pra comprá uma cabritinha
leitera procê... Ocê sabe o que ele falô ?
João
Maria
-
Sei não, João...
João
-
Qui era um home bondoso, e sabedô das nossa carencia... qui
intão alem dos 150 mil réis, ele dava uma cabritinha leitera
procê.
Maria
-
Intonce ?
João
-
Intonce, Maria eu acho qui fiquei vermeio de réiva e toquei o
home cum quente e dois fervendo pras banda da terra dele...
Maria
-
Ocê feiz isso, home?
João
-
Mais si num fiz, Maria... Essi num vorta nunca mais...
Maria
-
E agora, João ?
João
-
E agora dexa nas mão de Deus, Maria... Tem mais Deus pra dá
que o tinhoso pra tirá ! Esconjuro di novo esse nome do
safado sarnento... mais é verdade... Deus dá...
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Maria
-
Amém...
João
-
Amém nóis dois... (PAUSA) Vô inté a casinha pra mó di mi
lavá... tem toaia ?
Na casinha...
Maria
João sai de cena. Maria fica nervosa, andando de um lado para outro
de novo.
Maria
-
Ô, sabiá ! Me ajuda, passarin... Como é que vou conversá
coesse home que te um dia anssim? Cumo é que eu vô falá
cum ele ? Meu Deus me acuda ! (PAUSA - MARIA SENTA-SE
NA MESA, PÕE AS MÃOS NO ROSTO E CONTINUA FALANDO,
SEM PERCEBER QUE JOÃO VOLTOU PRA LHE FALAR
ALGUMA COISA) Me ajuda, sabiá... Eu tenho que falá pro
João... ele vai ficá danado di triste... será que vai brigá
cumigo? Nem janta eu fiz ainda, nesse dia mardito !!
João
-
Maria ! O que conteceu, muié ? (MARIA LEVANTA-SE
ASSUSTADA)
Maria
-
João ! ocê taí... nem percebí ocê entrá...
João
-
É qui num tem toaia na casinha...
Maria
-
É mermo ! taquí ó...
João
-
O que ocê tem pra mi falá Maria ? Purque eu ia brigá cocê ?
Maria
-
Ai, João... uma desgracera !
João
-
Intão fala !
Maria
-
João...(CHORANDO) João... conteceu qui me veio as regra !!
João
-
(CARINHOSO) Maria, Maria... Temportância... Nóis sabia
disso... eu é que sô uma mula teimosa... Se Deus Nosso
Sinhô qué anssim, qui qui si há di fazê ?? Num carece di
chorá desse jeito... (MARIA CONTINUA CHORANDO) chorá
num dianta nada... ói... numsi fala mais nesse assunto i
pronto.. tácabado. Se Deus num qué... assim será !
Maria
-
(AINDA CHORANDO) João... ai, João... ocê quiria tanto esse
fio...
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João
-
Intonce, Maria, ocê pára di chorá... fica bunita preu, que hoje
ocê vai lá pra varanda cumigo pra mó di cantá umas modinha
pros bichinho... Elis nem sabe qui ocê canta bunito qui nem o
teu sabiá...
Maria abraça João, João beija-lhe a testa e ficam abraçados até cair
toda luz do palco. Foco sobre o narrador.
Narrador - O tempo passou rapidamente. Todo o carinho que João
colocou em cada semente, converteu-se em vida e alimento...
A terra fora generosa . O milharal se estendia a cada palmo de
solo, cada milimetro do chão, exuberante e graúdo, como
jamais se vira na região...Tinha em sí cada gota de suor, cada
gesto de amor, cada dia de vida de Maria e de João..
Aprazava o momento da colheita. e João orgulhoso olhava sua
plantação. (PAUSA) Até que um dia... (VIRA--SE PARA O
PALCO)
João
-
Sei lá, Maria, sei não.... Num tarda e passa do ponto essa hora
da coieta...
Maria
-
I qui qui ocê qué fazê João ?
João
-
Careço di í inté a cidade pra vendê esse mio, qui daqui a poco
só servi pra mó di animar ruminadô...
Maria
Maria
-
Vrige Santa ! Intonce num vai valê nada...
João
-
Nem os cento e cinquenta qui aproveitadô do Zeca de Bibí
fereceu vai valê...
Maria
-
Mai a cabritinha leitera, né Jão ?
João
-
Puis é...
Maria
-
Intonce percura ele, home !
João
-
Ocê tá maluca da cabeça, Maria? Adispois di tudo qui eu falei
prele naquele dia o home é capaiz inté di querê mi batê...
Maria
-
Intonce, João vai lá na cidade e... (ALGUEM BATE PALMAS EM
OFF - PAUSA - MARIA OLHA ASSUSTADA PARA JOÃO) Quem
havéra de sê João ? (PALMAS EM OFF NOVAMENTE)
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João
-
Num sei, não... devi di sê argum viajante cum fome ou com
sêde. Deixa eu vê...
Vóz em offoff- ô de casa !!! Tem alguém aí ?
(NA PORTA) ( PARA MARIA) É um cavaleiro.... ( PARA FORA)
Apeie, cavaleiro, vamo entrá... (PAUSA - O HOMEM CHEGA À
PORTA)
João
-
Homem
- Licença... (CURIOSA E DESCARADAMENTE ELE OLHA
DETALHE DA CASA DE JOÃO - MARIA ENVERGONHADA SE
ESCONDE ATRÁS DE JOÃO)
A casa é di pobre, sim sinhô... mais tá sempre aberta pra quem
qué um copo di água, um prato di comida ou mermo o
discanso do corpo... A mó di que o sinhor veio ?
João
-
Homem
- (O HOMEM CAI EM SÍ) Ah! Pois é... Desculpe eu entrar assim
nas suas terras... mas a porteira estava aberta, e aí...
senhor que é o dono desse milharal que tá lá fora ?
O
(DESCONFIADO) Eu mermo... mó di que o sinhô qué sabê?
João
-
Homem
- Sabe o que é ? Eu tava passando pela estrada e não pude
deixar de adimirar sua plantação...
Gradeço... Mai... é só mio, dotô...
João
João
-
Homem
- Pois é o meu negócio... (TENTA FAZER COM QUE JOÃO FALE
O SEU NOME) “seo”... “seo”.... (JOÃO OLHA PARA MARIA E
NÃO ENTENDE)Qual é o seu nome, mesmo ?
Ah! É João, sim sinhô.... ao seu dispô...
João
-
Homem
- Muito prazer... meu nome é Aderbal... Aderbal Conceição
Tavares...
Pois então... como eu dizia... milho é o meu negócio... tenho aí
pelas estradas uma tal de Tenda da Pamonha... já ouviu falar?
( SEM TIRAR OS OLHOS DO HOMEM) nunca ouví falá, não
sinhô Arde... Ardebaldo... Ardebal... Sinhô Tavaris
João
-
Homem
- Bem... isso não importa... São lugares nas estradas onde os
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viajantes param para comer um cucuz... um curauzinho... um
milhozinho quente... umas pamonhas...
Apois ?
João
-
Homem
- Apois ? Bom, apois me interessa sua palantação... porque faz
muito tempo que não vejo um milharal tão bem cuidado e
milho de tão boa qualidade...
João
Apois ?
-
Homem -
Sua plantação há de me garantir o bom andamento do
negócio..
João
Apois ?
Homem
-
- Bom... eu acho que esse seu “apois” quer dizer dinheiro, é
isso ? Posso lhe garantir que dou um bom dinheiro pela sua
colheita...
Ara ! Quanto ?
João
-
Homem
- Trezentos !
João
-
Homem
- Quinhentos... (JOÃO FICA PASSIVO E NÃO RESPONDE)
Quero não ! (MARIA BELISCA JOÃO POR TRÁS) Quieta, muié !
É poco...
setecentos e nem mais um tostão...
Maria
-
(COTUCANDO JOÃO) Ói João... Setecentos home ! Setecentos
!
João
-
Só si fô setecentos mai uma cabritinha leitera aquí pra Maria...
aí intão tá feito ! (ESTICA A MÃO PARA O HOMEM)
Homem
- Concordo. Bom ! Muito bom ! Vou mandar fazer o contrato e
trazer aquí para o senhor assinar.
Carece nada disso não ! O sinhô manda o dinhero, leva o mio
e tá cabado ! É no fio do bigode. Nem siná meu nome eu sei...
João
-
Homem
- Então está acertado ! É no fio do bigode ! (APERTAM
NOVAMENTE AS MÃOS)
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Sim sinhô ! Im déis dia podi manda vi panhá o mio que vai tá
tudo ensacado pro sinhô !
João
-
Homem
- Então tá fechado! Até a vista Sr. João... até logo senhora!
Pode
esperar
sua
cabritinha
leiteira...(MARIA
ENVERGONHADA DÁ UM TCHAUZINHO DE TRÁS DE JOÃO )
Inté Seu Ardebal... Ardebal... Tavaris !(O HOMEM SAI - JOÃO
GRITA DA PORTA) Num isqueci di mandá tomém o dinhero!
Setecentos e cinquenta !
João
-
Homem
- ( EM OFF) Setecentos Sr. João... Setecentos ! Pode deixar !
João encolhe os ombros sorrindo e depois abraça Maria - Saem
pulando e rindo de felicidade.
João
- Sim sinhô ! Vai dá inté pra ponhá o reboque nas parede...
Maria
-
E eu vô ganhá minha cabrinha leitera...
João
-
I eu vô comprá uns par de galinha...
Maria
-
I pato, i ganso...
João
-
Dois leitãozinho...
Maria
-
Ara, João é bão dimais pra sê verdade...
Quero inté comprá um vistido novo procê lá na cidade...
João
Maria
-
Num credito, João !
João
-
Num ti falei qui tem mais Deus pra dá qui o Tinhoso...
esconjuro... pra tirá ?
Maria
-
Tem memo qui gradecê a Deus num é?
João
-
Poi intão num gradeçu todo dia, Maria... dia bão e dia ruim...
(PAUSA)
Maria.. daquí dois dia eu cumeçu a coieta..
Maria
-
Pois queru ti ajudá...
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A estória de João de Maria
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João
-
Carece disso, não, Maria...
Maria
-
Num importa... quero qui quero memo....
João
-
Uai... ocê é qui sabe... pra mim vai sê bão, né ?
Maria
-
Ô João... João... amo ocê dimais....
Maria abraça João, beijam-se e ficam abraçados até cair toda luz do
palco. Foco sobre o narrador.
Narrador - João de Maria.... Maria de João... João dos calos na mão...
Maria do sabiá-passarin e do fogão...
Sairam para a
plantação... Um dia e mais outro... trabalho duro sob o sol a
pino. Mas nesse dia.... João chega, trazendo em seus braços...
Maria.
(VIRA-SE PARA O PALCO)
João entra com Maria em seus braços. Coloca-a sobre a cama.
João
-
Tá doendo Maria?
Maria
-
Tá ardendo João...
João
-
Acho qui vô chamá o Dotô.
Maria
-
Carece não... Amanhã tô boa...
João
-
Deixa eu vê o pé aquí... (EXAMINA O PÉ DELA) Óia aquí... Tá
vermeio qui só a peste... Tem uma marquinha aquí... Tú num
viu qui bicho foi esse, Maria ?
Maria
-
Num ví João... o danado entro di baxo das paia antes di eu
vê...
João
-
Acho méio chamá o dotô... i si foi um bicho peçonhento qui ti
mordeu aí?
É pirigoso, Maria.
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Original de Nelson A. Natalino
A estória de João de Maria
pag. 17
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Maria
-
Num carece não, João... é só ponhá uma água com sar pra tirá
essa inchadura... amanhã tô boa... ocê vai vê só...
João prepara um pano com água e sal, coloca sobre o ferimento de
Maria. Fica acariciando os cabelos de Maria. A luz vai descendo
suavemente. João deita ao lado de Maria. Acordes suaves de viola.
De repente, ecoa fortemente um trovão. Barulho de chuva forte.
Tempestade. Raios. Novos trovões.
Narrador - Essa noite choveu. Choveu que fez dó. Quando o dia
amanheceu, não se viu a cara do sol. O dia parecia noite...
Caia um aguaceiro danado que parecia uma açoite, sobre a
casa de João de Maria. Mas já era dia. E João, não quiz
acordar Maria pra nada. Saiu sorrateiro pra roça. Sem a sua
companheira... e sem a sua enxada.
(VIRA-SE PARA O PALCO)
João levanta-se e sai - Novos acordes de viola. Chuva ao fundo. Maria
geme de quando em vez. João entra correndo, ensopado de chuva.
João
-
Maria ! Qui disgraça! Chuveu pedra di gelo, muié ! O miaral tá
todo alagado... Os pé tão tudo quebrado... as ispiga qui nóis
coiemo tão lá, boiando na água... (MARIA NÃO
RESPONDE)carece di vê qui tristeza!
Maria.. quando eu cheguei lá e ví tudo... mi deu um nó na
garganta...
mi deu um aperto no peito... qui só ocê venu... (MARIA NÃO
RESPONDE)
Maria ! Maria ! (CORRE PARA PERTO DA CAMA - PÕE A MÃO
NA TESTA DE MARIA )Nossa Senhora da Penha! Ocê tá ardeno
em febre... Eu vo lá buscá o dotô... i si foi um bicho
peçonhento qui ti mordeu ? Num falei, Maria !
É pirigoso, Maria.
João levanta-se e sai - acordes de viola. Chuva ao fundo. Maria
permanece quieta. Um tempo de silêncio total, com luz baixa. Apaga a
luz por instantes. Deve ser retirada a gaiola com o pássaro e
colocada a gaiola vazia com a porta aberta. João chega com o
médico.
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Original de Nelson A. Natalino
A estória de João de Maria
pag. 18
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João
-
Podi entrá dotô... Óia alí.. tá lá Maria ardendo em febre! (FICA
OLHANDO POR UM TEMPO O DOUTOR TOMAR O PULSO DE
MARIA-QUANDO ELE EXAMINA A PERNA DE MARIA, JOÃO
SENTA-SE NA MESA) Ô Maria, ocê tinha qui ficá duente?
Carece di vê a roça qui tristeza! (O MÉDICO PEGA O
ESTETOSCÓPIO E PÕE NO PEITO DE MARIA - JOÃO ESTÁ DE
COSTAS PARA ELES)
Maria... Cumé qui nóis vai fazê agora ? Acho qui num sobrô
nada da
prantação... (O MÉDICO BALANÇA A CABEÇA E COBRE A
CABEÇA DE MARIA COM O LENÇOL) num sobrô nada...
Médico
- Seu João...
João
-
Médico
- Seu João...
João
-
(SEM PERCEBER QUE O MÉDICO CHAMA) Alagô tudo... i num
pára di chovê...
(REPETE COMO QUE HIPNOTIZADO) Alagô tudo... i num pára
di chovê...
O médico coloca a mão no ombro de João. João vira-se rápido e
assustado.
Qui qui foi, Dotô... Como é que ela tá ?
João
-
Médico
- Sinto muito ... não posso fazer mais nada...
João
-
Médico
- Ela faleceu João.
João
-
Médico
- João... o que mordeu ela foi um escorpião... Ela devia ter
`Como assim, num posso fazê mais nada? Qui qui foi ? Pru
quê ela tá cuberta ansim?
Não, Dotô... acho qui o sinhô tá inganado... óia lá direito.. éra
só uma febrinha, dotô...
gritado de dor...
João
-
Intonce... ela num gritô não... acho qui o sinho si enganô... vê
direito lá, dotô....
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Original de Nelson A. Natalino
A estória de João de Maria
pag. 19
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Médico
- Sinto muito, João... ela está morta... sinto muito... (SAI)
João caminha hesitante até o leito de Maria. Senta-se na cama. Pega
Maria inerte nos braços.
João
-
Maria... acorda, Maria... num faiz isso cumigo Maria... pruque
qui ocê num gritô ! Pra mó di num mi acordá, muié! Acorda
Maria ! (GRITA) Maria!
Apaga a luz totalmente no palco. Acende foco no narrador.
Narrador - Já não adiantava mais.
João encostou sua cabeça nos seios dela, pegou-lhe as mãos
que o acariciavam tantas noites atrás e chorou... chorou até
não poder mais.
Quem ia cuidar agora dos animais?
Pra quem ele ia sorrir seu sorriso banguela?
Quem ia gargalhar do seu arroto?
E aporteira, quem ia abrir?
Fazer serenata?
Por que tanto desatino?
Agora quando o sol estivesse a pino,
João não tinha mais o almoço pronto, e tonto,
nem mais estenderia a rede, porque não teria quem lhe
acordar.
Não cantaria mais com o sapo e o grilo na varanda,
Não haveria mais modinha ou ciranda,
que lhe alegrasse o coração.
Apaga a luz do narrador e acende foco em João simultaneamente.
João está agachado no centro do palco, como no inicio da peça.
João
-
(DÁ UM GRITO DESESPERADO) Nãããõooo!!!! Deus não existe
não !
Entram alguns homens e mulheres portando velas e cantando uma
música sacra e triste. Vem trazendo uma rede nos ombros. Enquanto
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Original de Nelson A. Natalino
A estória de João de Maria
pag. 20
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João fala eles vão colocando Maria na rede e saindo vagarosamente.
Não param de cantar.
João
-
Que me tirasse a roça tava bão... Me tirasse os dedo... me
tirasse a mão! Eu dava um jeito... Mais Maria??? Por que, meu
Deus ? Será que o Sinhor num é meu amigo ? Não... Deus num
existe, não.
(LEVANTA-SE, VIRA-SE E VAI EM DIREÇÃO À PROCISSÃO)
Narrador - (ENTRANDO EM CENA, ATRÁS DE JOÃO)A enxada ainda
calejaria a mão do pobre João... Fora-se o tempo da bonança...
João agora carpiria a esperança de algum tempo melhor...
Melhor só um pouco.
(SAINDO DE CENA
CASA)
ATRÁS DE JOÃO FECHA A PORTA DA
FIM
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Original de Nelson A. Natalino
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Nelson Natalino – JOÃO DE MARIA