Fibra (ótica) de herói (A mão e a luva – e o dedo na ferida)
Bárbara Adriana Pereira de Oliveira Silva de Assis
1º lugar no Concurso de Crônicas Machado de Assis
“Alô!... Não... Foi engano.”
É... E ainda dizem que a escravidão no Brasil foi abolida... Infelizmente, é preciso
reconhecer que existem determinadas categorias que ainda não se livraram deste crime.
Entreouve-se... “Alô... Sim... Não... Por nada...”
Como eu dizia, entreouve-se por aí, no meio das conversas cruzadas de muita gente,
alguns assuntos que acabam esbarrando... “Tecle 1, para...” – ãh... – acabaram esbarrando
numa situação muito delicada: exemplos de pessoas que não se incomodam em... – bem... –
não se envergonham de escravizar. Isso mesmo, ES-CRA-VI-ZAR. Veja:
“Você acredita que eu só cheguei atrasada hoje, porque meu despertador parou de
funcionar? Onde já se viu? Como pode? Funcionava bem numa hora; na outra, quebrado...” –
disse alguém.
“O quê? ‘Cê ‘tá usânu aquéia carça dins di nôvu? Ih, mininu! É mió, meu fio, tu botá
‘sa carça pra lavá. Éia já ‘tá cási andânu sozinha, né?” – sugeriu a mãe horrorizada.
“Não. Eu não vou lavar o tênis! Enquanto eu não tiver dinheiro pra comprar outro, ele
vai continuar andando comigo!” – determinou um outro alguém.
Ouviu? Q-quer dizer, viu? É isso mesmo. Alguém na mesma posição que eu ouve muito
dessas conversinhas fiadas. Sei que, talvez, você pense que, do meu ponto de vista, seja muito
cômodo pensar assim. Mas, isso, definitivamente, tem que acabar! Eu sou um telefone muito,
MUITO ocupado! Eu preciso, todos os dias, ouvir muitas denúncias, muitos pedidos de
socorro... Pode não parecer, mas eu salvo muitas vidas – sou, praticamente, um super-herói! –
Só que, por mais que a gente faça, os homens sempre querem mais... E por mais tempo!
“Para emergência, tecle 1. Para informações sobre telefones úteis, tecle 2... Opção
invá...”. É por essas e por outras que eu me sinto escravizado. Trabalho dia e noite, vinte-equatro-horas, sem parar e tem gente que ainda encontra tempo para passar trote! Ai, meu
Deus!
Você... Aaai! Você, por favor, espere um pouco...
(Esta é a hora da troca de telefonistas. Sai, Eugênia... um amor de delicadeza. Vou me
calar uns momentos, ‘tá?)
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Oi. Voltei. Prefiro emudecer-me voluntariamente. Senão, você ouviria meus gritos
desesperados. Esse é o horário da Virgília. Ela é Vivi pra todos nós daqui. Vivi faz comigo o
que quer. Tem que ver como ela me pega e me vira pra lá; depois pra cá... No fim, ela sempre
me aperta... Uh!
Ó... Ela já está ligando... Pro namorado, pra mãe, pras amigas... E os cidadãos
necessitados buscando ajuda...
Por falar em necessitados, você viu o caso da Bolsa? Não? Da Bolsa de Valores
despencando, levando a economia do mundo consigo, ralo abaixo? É mais um caso de
escravidão. Os homens escravizaram a economia, só que, agora, a grita foi geral. Como é que
pode alguém querer lucro – e lucro dobrado! – hipotecando uma casa e recebendo duas vezes
o seu valor? Todos sabem que se isso acontece e a coisa fica ruça, o indivíduo só vai
conseguir, vendendo a casa, metade do montante da dívida... Mas isso não me interessa...
Nem casa eu tenho...
Meu ofício é aqui na Polícia, mas vê só o telefone, lá do Corpo de Bombeiros. Ele
também sofre com essa escravidão – dia de chuva: gente ligando, pedindo socorro, às vezes,
em três lugares diferentes da cidade ao mesmo tempo; dia de sol: gente ligando, pedindo
socorro, porque a pressão subiu... estão passando mal... E, entre uma coisa e outra, tem gaiato
dizendo que a casa do vizinho está pegando fogo! É um corre-corre... uma ansiedade...
E no outro dia, que era pra acudir um alguém que, além de tudo, também tinha um
coração-escravo... Sabe esses caras, que não dão folga pra bomba, vivem pra cima e pra
baixo, na ânsia de matar o leão do dia e a cota do mês? Pois bem. Era o careca estatelado
entre as ruas do Ouvidor e da Quitanda. Um sem-número de curiosos à volta e uma curiosa
dona, até bem arrumadinha... Pois bem, na hora que a tal dona ligou pra pedir ajuda, depois de
desafogá-lo de sua própria gravata, disseram, já havia um incêndio em andamento. Bobagem.
Não tinha nada. Mas o danado do escravocrata-cardíaco ficou sem atendimento, enquanto a
lorota era deslindada e – pirulito! – cantou pra subir!
Mas, tudo isso contaram aí pra Vivi – com “v” de violenta, isso sim! – não foi comigo,
não. Assunto inacreditável mesmo, eu ouvi por essas fibras óticas, por esses fones que, se
Deus quiser, ainda hão de escangalhar logo, logo. Foi assim:
“Arô? Éi da púriça? Óia, éi qui eu, sábi, eu robei um carru. Foi ari na rua do Carmo, 38,
na frenti du ‘Bar do Zé’. Só qui tinha um bebê dentru...”
“O quê?”
“Éi qui eu quiria robá um carru, não um bebê, sábi? Intão, eu devorvi...”
“Devolveu?”
“É... Devorvi, sábi? Mas, ói, eu tô ligânu pa falá qui issu num éi legau... abandoná u
pópriu fio, dentru dum carru naquêi lugá... i na frenti dum pé suju... uma birosca, moça...”
“É mesmo? E o que o senhor realmente deseja?”
“Iêu?? U qui eu... Ah... Iêu quéru éi qui ocês pégui êis, dê uma dura nêis i avisi qui si
eu robá u carru dêis, di nôvu, cum bebê dentru, eu matu aquêis irresponsárvis!”
E desligou. Vivi deu alarme. Acho que o pessoal deu conta da situação, mas até hoje,
ninguém, neste Departamento de Polícia, sabe quem foi o ladrão que ligou naquele dia. A
gente só desconfia que alguém tão fora dos padrões, como ele, com um senso de proteção tão
grande assim, cheio de ética e cidadania, possa ter fugido lá da Casa Verde, na Vila de
Itaguaí.
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