O BOM PROFESSOR: DO COMPORTAMENTO EXIGIDO
Vera Lucia Gaspar da Silva1/FAED-UDESC
O presente trabalho tem origem em pesquisa2 realizada para elaboração de tese de
doutorado3, na qual as atenções estiveram centradas no estudo de um período da história da
profissão docente do Ensino Primário – a passagem do século XIX para o XX, considerado
o período áureo de sua expansão no mundo ocidental -, na perspectiva de se captar sentidos
a ela atribuídos. Organizada na forma de estudo comparado, a pesquisa envolveu
testemunhos de docentes do Ensino Primário e a legislação que o conforma de dois Estados
brasileiros – Santa Catarina e São Paulo -, e de Portugal. Entre os elementos que
despontaram como importantes na construção destes sentidos, a formação das condutas que
retratavam o homem civilizado que a escola pretendeu formar apareceu com força singular.
O cenário no qual se desenrola é aquele em que a escola se consolida como uma das mais
fortes e importantes agências sociais de “civilização” de um conjunto mais alargado da
população. Mais do que socializar conteúdos, a escola popular esteve preocupada em
socializar modos civilizados de ser e estar em sociedade. A forte regulamentação tecida
para estabelecer limites nas condutas físicas e morais, e a incorporação de aspectos desta
ordem nos discursos dos professores o atestam. Afirmar que uma agência ou instituição
social possa ter sido concebida e estruturada com base nesta ordem significa admitir que
um grupo se considerava mais civilizado que outro e, com isso, propunha a civilização do
conjunto maior. Mas, como afirma Norbert Elias, isto não significa atribuir um valor
positivo ou negativo a um ou outro (1989, p. 18); significa apenas reconhecer que uns
grupos ou indivíduos tiveram mais força para impor seus parâmetros.
Cidadãos comuns foram recrutados nos campos e nas cidades para compor os
quadros do magistério primário e ocupar um lugar central num “processo civilizador” sem
precedentes na história dos espaços-chave desta pesquisa, a ser desempenhado pela escola.
Recrutar profissionais de comprovado “bom comportamento moral e civil” e estabelecer
mecanismos coercitivos capazes de mantê-los sob controle é uma preocupação dos Estados
freqüente nos documentos analisados. Cabe lembrar que esta não é uma preocupação
1
Professora do Centro de Ciências da Educação – FAED da Universidade do Estado de Santa Catarina –
UDESC.
2
Esta pesquisa contou com financiamento da CAPES.
3
Apresentada no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo –
USP em abril de 2004.
restrita à formação dos quadros do magistério, mas se estende à formação dos quadros do
funcionalismo público. A máquina governamental buscava propagar com discursos e ações
um modo de vida moral para o povo e, ainda que retoricamente, exigia de seus fiéis
colaboradores uma moral ilibada e a escola primária tem um lugar central nesta tessitura,
assumindo, como bem o afirma Heloísa Fernandes, uma “missão colonizadora”, num
empreendimento que buscava a moralização das crianças “...obrigando-as à cópia do adulto
normal: obediente, sacrificante e submisso ao desejo do Outro4” (1994, p. 145). A escola
seria “uma vacina” que, formando para uma vida regrada, isenta de imoralidades, de
promiscuidade, asseguraria a ordem e a assepsia social. O fato de ser ela, já neste período,
uma instituição que gozava de certo prestígio social fragilizava as reações contrárias à
obrigatoriedade escolar - contrapor-se a ela não era tarefa fácil. Como bem o estaca Jorge
Ramos do Ó, esta instituição se tornou, ou foi tornada, desde o século XVIII, um espaço
fundamental de construção de corpos e consciências disciplinados; desde este período, a
família veio perdendo espaço para outras instituições neste trabalho propriamente
disciplinar, que foi se instalando em:
...instituições directamente relacionadas com a normalização dos indivíduos: as
escolas, as oficinas e os exércitos. Isto significa que para se gerir uma população
tendo em conta a obtenção de resultados globais, o importante não está em agir no
plano externo, como se suporia à primeira vista, mas antes trabalhar
detalhadamente, de modo racional e inteligente, sobre o particular. Por outras
palavras: em profundidade, com minúcia e no detalhe (2003, p. 37).
Juntamente com a criação de um aparelho normativo, regulador de condutas,
interessava veicular idéias que fossem incorporadas pelos indivíduos de forma que eles se
auto-regulassem. Os Estados não pouparam esforços neste investimento. Nunca é demais
lembrar que o Estado não é, neste estudo, concebido como entidade abstrata. As idéias e
práticas que o regulam são produtos da relação humana e constroem-se num jogo de
tensões nada desprezível. Mas o aparelho de Estado e seus representantes, com maior ou
menor grau de legitimidade, têm meios bastante favoráveis para impor determinadas
normas e regular a vida dos cidadãos. Embora instituição concreta e formada por seres
humanos, o Estado em muitos momentos é colocado como que desprendido desta natureza
humana e assume forma e força próprias. Assim, as prescrições emanadas de suas
instituições são apresentadas como neutras, impessoais, sem serem reconhecidas como
4
As reflexões desta autora têm por base os escritos de Émile Durkheim; ver especialmente o capítulo “A
Missão Colonizadora da Escola” da obra “Sintoma Social Dominante e Moralização Infantil: um estudo
sobre a educação moral em Émile Durkheim” (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo – Editora
Escuta, 1994).
produtos da ação humana, como formas de conduta (sejam elas de mercado, sejam de
comportamento...) que um dia um conjunto de homens desejou ver implantadas e teve
força para transformá-las em peças legais.
No caso do período em foco neste trabalho, os comportamentos recomendados e
que caracterizariam o homem civilizado eram típicos do sujeito “esclarecido” – não por
acaso, muitos deles ocupavam os parlamentos. A escola, lugar onde se adquiriria este nível
de esclarecimento, era, então, também o lugar legítimo de aprendizagem de uma forma
civilizada de estar em sociedade. Aqueles que não passavam por seus bancos não portavam
as marcas da civilidade. Atendo-se especificamente à Escola Primária, as prescrições que
regulavam a vida de normalistas e professores – ou seja, os cidadãos formados para exercer
a docência neste nível de ensino - revelam não só um perfil do profissional autorizado pelo
Estado para exercer a função docente como dão mostras da imagem de povo e de criança
que se tinha. As prescrições, ao buscarem moldar um profissional exemplar, a servir de
modelo, delineiam o cidadão que se pretendia formar pela ação da escola. Se a escola
deveria formar cidadãos de hábitos saudáveis, com vidas regradas, com modos comedidos,
é fácil deduzir que aqueles que estivessem fora dela eram considerados desregrados, de
hábitos pouco louváveis, no limite, degenerados. Os incultos eram todos aqueles que não
possuíam as marcas que a escola deveria imprimir nos corpos e mentes. É preciso lembrar,
contudo, que a passagem por ela não significava participação nas decisões das políticas
públicas; o povo era chamado a participar da construção da nação, provavelmente como
“obreiro”, portando as ferramentas que a escola oferecia.
Não por acaso, nos projetos de expansão da Escola Primária, a educação moral é
dita e assumida como componente freqüente da gramática escolar e deveria ser conduzida,
de preferência, pelo exemplo, um exemplo bastante assente no comportamento civilizado,
nos bons modos e nos bons costumes, “...comportamentos que mais não eram do que um
exercício de autocontrole” (Crespo, 1990, p. 500). Se o pretendido era a organização de
uma sociedade civilizadamente democrática, havia necessidade de preparar o indivíduo
para uma vida autônoma, que, necessariamente, passaria pela capacidade de autocontrole.
A autonomia seria concedida a corpos e mentes educados num processo que envolvia uma
série de regulações para inibir comportamentos mais espontâneos e sedimentar
comportamentos controlados; “...aprendidas nas práticas escolares, as boas maneiras
impregnariam todas as práticas sociais” (Vago, 2002, p. 143). Para ensiná-las, os Estados
investiam na formação de professores primários e anunciavam a contratação de professores
cuja moral fosse incontestável. As evidências podem ser dimensionadas no rol de
dispositivos de controle de base moral presentes nos documentos e nos testemunhos
consultados.
A moralidade dos aspirantes à Escola Normal, o comportamento durante o percurso
escolar, a moralidade do aspirante ao magistério primário, bem como dos professores e da
escola, além do local de sua residência, são preocupações constantes dos legisladores da
época. O crivo pelo qual passavam os aspirantes à Escola Normal e ao magistério primário,
e aquele com que se avaliava sua atuação e os acompanhava podem ser dimensionados no
quadro5 abaixo, no qual estão descritos, à esquerda, os dispositivos de controle localizados
na legislação e, à direita, está registrado o ano (ou anos) de publicação dos documentos
consultados e dos quais foram extraídas as informações apresentadas.
Ano
Dispositivos de Controle Moral
SC
SP
Pt
Exigência de “atestado de moralidade” (ou similar como atestado de bons
1890
1880
costumes) ou ter “bom comportamento moral e civil” para requerer matrícula
1893
1919
na Escola Normal
1902
“Moralidade” do aspirante à Escola Normal
1911
1918
Exigência de apresentação de certificado de registro criminal para requerer
1911
matrícula nas Escolas Normais
1912
Veda a matrícula na Escola Normal de candidato que tivesse sido expulso de
1896
algum estabelecimento de instrução
Comportamento na Escola Normal
Estabelece entre as atribuições do Conselho das Escolas Normais julgar, no
1880
princípio de cada mês, as faltas cometidas pelos professores e alunos no mês
anterior
Condiciona a transferência dos alunos de uma para outra Escola Normal à
1880
apresentação
1896
de
atestado
da
escola
anterior,
comprovando
bom
comportamento moral durante a freqüência
1902
Prevê restituição dos valores recebidos pelos alunos pensionistas nos casos
1880
de expulsão por mau procedimento ou mau comportamento
Impede a readmissão ou nomeação como professor público estadual do aluno
1890
expulso da Escola Normal
Considera falta disciplinar, passível de exclusão definitiva, a agressão ou
5
1896
Os itens registrados neste quadro têm como propósito apresentar alguns dos dispositivos encontrados na
legislação pesquisada. Eles não representam a totalidade nem esgotam todos os textos. Foram pinçados para
apresentação apenas os que mais diretamente se referiam ao controle moral, pois havia outros requisitos
exigidos para ingresso na Escola Normal e no magistério, assim como outros motivos para aplicação de
penas ao longo da carreira e para demissão.
violência praticada por aluno da Escola Normal, cujo motivo consista em
ofensa à moral
Institui o livro de “registro de penas” interpostas aos alunos; a estes o diretor
1896
poderia negar matrícula no ano seguinte
Prevê, entre as atribuições dos secretários das Escolas Normais, “fazer affixar
1902
no atrio do edificio, no fim de cada mês, um boletim, copia das notas de
frequencia, faltas e comportamento dos alumnos em cada classe, relativo ao
mês anterior”
Registro na caderneta escolar de “apreciação do valor moral do aluno”
1911
1916
1919
Exige dos futuros educadores um “procedimento moral digno e modelar”
1920
“Moralidade” do aspirante ao magistério primário
Exige apresentação de “atestado de moralidade”
1899
1921
1926
Exigência de “atestado de moralidade” (ou similar, como atestado de bons
1902
costumes) ou ter “bom comportamento moral e civil” para candidatar-se a
vagas do magistério primário
Exigência de apresentação de registro criminal para candidatar-se a vagas do
1902
magistério primário
Impede exercício àquele que tenha sofrido condenação por crime contra a
1907
moral e os bons costumes
Impede nomeação daquele que tenha “notoriamente maus costumes”
1910
1913
“Moralidade” do professor primário
Exigência de apresentação de atestado acerca do comportamento moral para
1886
requerimento de benefício
Avaliação da capacidade moral do professor para provimento definitivo
1896
Previsão de penas disciplinares por atos ofensivos à moral e aos bons
1896
costumes
Previsão de pena de demissão quando o professor “tiver mau procedimento
1893
moral”
Prevê suspensão para professores que, entre outros motivos, dessem “maus
1912
exemplos” ou inoculassem “maus princípios no animo dos alumnos”; àqueles
que entre os alunos fomentassem imoralidades ou tivessem comportamento
contrário aos bons costumes
Institui livro de “registro de penas” disciplinares interpostas aos professores
1912
“Moral” da Escola Primária
Atribui ao governador civil tarefa de enviar ao governo, anualmente, um
1880
relatório acerca do estado moral das escolas
Prevê punições que os professores poderiam utilizar para castigar alunos que
1902
praticassem atos de indisciplina, dentro ou fora da escola, ou se mostrassem
“refractarios” ao ensino
Prevê penalidades a serem aplicadas aos professores que cometessem
1902
infrações, particularmente através de processos disciplinares
Prevê a interrupção do funcionamento de qualquer escola, caso fosse
1904
constatada a ausência das necessárias condições de higiene e “cujo professor
não possua a moralidade necessária ao exercício do magistério”
Registro biográfico
O Regulamento Disciplinar dos Funcionários Civis prevê que “na folha ou
1913
registro biográfico de cada funcionário serão sempre anotadas as suas faltas,
punições, licenças, louvores e quaisquer outros despachos ou resoluções
referentes ao seu bom desempenho ou mau serviço”
Local de residência
Proíbe os professores de, durante o tempo letivo, se ausentarem da sede do
1896
seu cargo sem licença prévia concedida pela autoridade competente
1915
1919
Estabelece regras que disciplinam a residência dos professores
1907
1909
1910
1919
1913
1914
1928
Permite aos professores casados, residentes em freguesias cujas escolas não
1917
distem entre si mais de 5 quilómetros, “viverem em comum” durante o ano
1919
letivo, “mas sujeitos ao regulamento disciplinar”
Para o ingresso no magistério primário e em igualdade de circunstâncias,
1919
seria dada preferência ao concorrente natural da localidade da escola
Fonte: Legislação do ensino normal e primário de Santa Catarina e de São Paulo referentes ao
período de 1889 a 1930 e, de Portugal, referente ao período de 1878 a 1920.
É possível visualizar, pelo quadro acima, que para ingressar na Escola Normal e no
magistério era preciso comprovar uma série de quesitos e que, durante a formação e a
carreira, um conjunto de dispositivos estava à disposição da máquina governamental para
assegurar que nas escolas os docentes fossem portadores de uma moral “x”. Nas fichas
biográficas dos professores – lembre-se que muitos aspectos que hoje seriam classificados
como de ordem privada eram considerados de ordem pública – poderiam ser registradas
informações acerca de seu comportamento moral, da mesma forma que se procedia para os
registros acerca do desenvolvimento antropométrico das crianças. Pode-se falar aqui de
uma espécie de antropometria moral, um processo ou técnica de mensuração da moral dos
professores em diferentes aspectos. Como já foi mencionado, este processo não se limitava
aos professores. O Regulamento Disciplinar dos Funcionários Civis portugueses de 1913,
por exemplo, prevê que “...na folha ou registro biográfico de cada funcionário serão
sempre anotadas as suas faltas, punições, licenças, louvores e quaisquer outros despachos
ou resoluções referentes ao seu bom desempenho ou mau serviço6”. No mesmo ano, o
Regulamento Disciplinar dos Professores Primários7 traz texto com as mesmas palavras.
Mesmo com texto semelhante, a organização de um regulamento disciplinar para os
professores primários mostra o quanto esta categoria tinha de específico e de
regulamentação própria. Se, na ausência de regulamentação específica, os professores eram
conduzidos pelas leis comuns do funcionalismo, como mostra o exemplo que segue, esta
possibilidade parece ter sido insuficiente para regrar a vida do professorado.
Por despacho de 11 do corrente mês: José Inácio Rijo de Oliveira, professor
primário da escola de Arrabalde, freguesia de Rio de Moinhos, concelho de Borba,
círculo escolar de Estremoz - mandado repreender disciplinarmente, fazendo-se-lhe
sentir ao mesmo tempo que outra pena mais grave lhe será aplicada se reincidir nos
erros cometidos.8
A organização de regimentos disciplinares ou códigos disciplinares específicos para
o magistério revela a necessidade e o desejo de um controle mais preciso da máquina
estatal sobre o professorado. Em São Paulo, no ano de 1912, foi aprovada a “Consolidação
das leis, decretos e decisões sobre o ensino primario e escolas normaes9”. Esta medida foi
tomada sob o argumento da “...conveniencia e necessidade de reunir-se em um só corpo as
diversas leis e regulamentos em vigor sobre o ensino primario e as escolas normaes, com
exclusão das disposições derogadas e abrogadas”. Um dos itens que compõem esta
“Consolidação” é chamado Código Disciplinar (Parte V) e traz todos os dispositivos
disciplinares vigentes em leis, começando com a menção daquele aprovado pelo artigo 40
da Lei n.º 169, de 7 de agosto de 189310.
6
Fonte: Portugal, Acto de 22 de fevereiro de 1913.
Fonte: Portugal, Decreto n. 132, de 12 de setembro de 1913.
8
Fonte: Portugal, Acto de 15 de março de 1913.
9
Fonte: São Paulo, Decreto n. 2.225, de 16 de abril de 1912.
10
Menciona também as “Disposições Penaes do regulamento mandado observar pelo decreto n. 518 de 11 de
Janeiro de 1898, que modificaram o mesmo Código Disciplinar em virtude do disposto no artigo 7º da lei n.
520 de 26 de Agosto de 1897, e nas estabelecidas em outras leis e regulamentos sobre o ensino”.
7
Em Santa Catarina, não se localizou documentação tão específica. As penalidades
estavam previstas, em geral, nos regulamentos internos dos estabelecimentos de ensino. O
Regulamento da Escola Normal de 1896, por exemplo, prevê que o regime disciplinar
seguiria o estabelecido para o Gymnasio Catharinense, instituição de referência criada sob
inspiração do Colégio Pedro II da Capital Federal. Se Santa Catarina não organizou um
corpo legal específico, sua legislação não deixou de fora os itens que compõem os textos
dos demais lugares. Todas as regulações estavam presentes, seja em regulamentos, seja em
regimentos, ou esparsas pela legislação educacional, possibilitando o controle moral do
professorado. Contudo, mesmo antes da organização de códigos específicos para
disciplinar a conduta, os professores já eram objeto de regulação. Em Portugal, a atuação
do Conselho Disciplinar antecedeu a aprovação do Regulamento Disciplinar - mas já se
guiava por princípios que mais tarde passariam a integrar o Regulamento -, como se pode
ver no texto abaixo.
Tendo sido instaurado processo disciplinar contra o professor da freguesia de
Macieira, concelho de Felgueiras, José de Jesus Ferreira de Sousa:
Ouvido o Conselho disciplinar do Ministério de Instrução Pública, e conformandose com o seu parecer;
Usando da faculdade que me confere o n.º 4 do artigo 47.º, da Constituição Política
da República Portuguesa: hei por bem, sôbre proposta do Ministro de Instrução
Pública, decretar que o referido professor seja transferido disciplinarmente, para a
escola central da sede do concelho de S. Pedro do Sul.11
As medidas disciplinares podiam ser decretadas por diversos motivos, mas é muito
provável que o argumento de preservar a moralidade do ambiente escolar tenha servido de
escudo para dirimir desavenças políticas. Ao listar comportamentos a serem reprimidos, os
textos legais falam de condutas a serem adotadas pelos professores, ainda que por
exclusão. Tomando-se estes textos como mensagens discursivas de uma época, poder-se-á
dimensionar, ainda que com ressalvas, a “ação” destes preceitos na construção de sentidos
para a profissão docente. São preceitos que, embora acionados burocraticamente (ou
administrativamente) em alguns momentos, atuavam com intensidade na construção de um
“trabalho moral interno”. O ser moral ao qual os professores deveriam corresponder se
apresentava como um estado elevado a ser atingido, o qual seria socialmente reconheci do
por uma série de dispositivos que buscavam compensar o trabalho zeloso dos professores,
os quais, para serem recompensados, ainda que mais simbólica do que materialmente,
deveriam ser fiéis ao regime instituído.
11
Fonte: Portugal, Acto publicado no Diário de Governo n. 199, de 1913 (p. 3.219).
Não se pode, porém, deixar de mencionar, ao mesmo tempo, toda a luta dos
profissionais da educação para estabelecerem uma carreira própria. O forte aparato
regulador das atitudes do professorado, expresso em regulamentos e outros dispositivos
legais e sociais, revela que, para além da regulamentação da profissão e da carreira, os
professores tinham a própria vida regulada, o que, de certa forma, provoca uma espécie de
fusão entre o “eu pessoal” e o “eu profissional”. Apesar de corresponderem a muitas das
exigências – seja por concordância, seja pela falta de espaço para a discordância -,
resistiam a outras, através de estratégias particulares ou coletivas (como as associações), e
participaram, cada um a seu modo, da construção desta carreira que, certamente, não foi
organizada gratuitamente pelos Estados.
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