NOTAS SOLTAS SOBRE APELAÇÃO E AGRAVO
Na breve apresentação que me é solicitada imponho-me, em
primeiro lugar, dar nota de quanto me sinto honrado com a oportunidade
que tenho de proferir algumas despretensiosas palavras no lugar de saber
que constitui a Universidade em geral e esta casa, a Escola de Direito da
U.M., em particular.
Os meus sinceros agradecimentos, por isso, à Escola de Direito,
na pessoa do seu Director, sr. Prof. Luís Couto Gonçalves.
O relatório do Gabinete de Política Legislativa sobre Avaliação
do Sistema de Recursos, em matéria de Processo Civil traz-nos algumas
ideias e propostas interessantes, que comentarei em função de alguns
dados empíricos da minha experiência, em conjunto com uma ou duas
propostas da minha lavra, que também proponho à discussão.
Penso que a ideia mais básica e mais sã de que qualquer
reformador possa pretender partir é a de que não temos, nem o pior, nem o
melhor sistema de recursos do mundo – temos o nosso sistema de recursos,
caldeado no balanço de muitos anos, de centenas de anos diríamos, entre
as ideias (designadamente a teorização dos académicos) e a forma como as
colocámos em prática, os advogados, os magistrados, as partes, o público,
no dia-a-dia dos tribunais.
Nem nos nossos parceiros europeus mais próximos e
desenvolvidos existem sistemas ideais passíveis de importação imediata
para Portugal – aliás, sempre que me falam dos sistemas de recurso
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alemães, holandeses, franceses, espanhóis, e outros, ocorre-me perguntar
se essas nacionalidades se importam tanto com o nosso sistema de recursos
como nós próprios com o deles.
Este mito do desenvolvimento, da produtividade, e a
idealização de outros sistemas são uma superstição comum aos países
subdesenvolvidos (António José Saraiva, Crónicas, pg.444).
Sendo certo que, ao ler o relatório, respiguei esta conclusão –
“os nossos tribunais superiores são dos mais céleres da Europa”. A
conclusão, como conclusão que é, vale o que vale, certo porém que não
constitui mera afirmação emocional ou acrítica proferida em tom
dogmático (os dogmas, como se sabe, prescindem da comprovação pela
experiência).
Vejamos então o que nos suscita o relatório.
Desde logo a constatação de que, em matéria de agravo, a
prática dos tribunais é a de permitir a respectiva subida imediata, nos autos
ou em separado, aqui, por certo, por via de uma interpretação generosa do
disposto no artº 734º nº2 C.P.Civ., naturalmente em 1ª instância, mas com
o beneplácito do tribunal de recurso.
Obviamente que o recurso em separado, independentemente do
efeito suspensivo ou devolutivo, permite uma apreciação tão célere quanto
possível da matéria impugnada.
De facto, uma consulta aos meus arquivos permitiu-me
constatar que apenas um doze avos (1/12) dos agravos por mim relatados
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desde Setembro de 2003 corresponde ao paradigma processual da subida
diferida, em processo declarativo ou executivo.
Por sua vez, desses 1/12, apenas a quarta parte implicou a
anulação de actos processuais que se seguiram ao despacho agravado.
Mas afinal, de que universo falamos, quando referimos o
recurso de agravo?
Basicamente de recursos de decisões finais, mas de decisões
finais incidentais: seja de excepções formais julgadas procedentes no
saneador, seja de decisões finais de incidentes com tramitação própria, seja
de providências cautelares, seja de despachos liminares (v.g., em
execução), entre tantas outras.
Por sua vez, quando não nos encontramos perante decisões
finais de incidentes, o agravo beneficia da já citada interpretação generosa
da absoluta inutilidade em que se tornariam, no caso de retenção (artº 734º
nº2 cit.), o que permitiu, só neste ano, que tivesse apreciado, em separado,
questões relativas ao depósito da indemnização, em processo de
expropriação, à questão do sigilo bancário (após prolação do despacho que
ordena a produção de prova), a questão do exercício do direito de remição,
em execução, diversas questões relativas à tramitação do processo
declarativo (denegação de intervenção principal espontânea, incidente de
falta de citação, decisão sobre incompetência em razão da matéria),
decisão sobre custas em execução, diversas decisões sobre o despacho
determinativo da penhora, denegação da passagem de certidões, recurso da
decisão que julgou procedente uma providência cautelar, e outros.
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Tudo isto, para concluir, com o Relatório da Avaliação, que não
só a distinção dos recursos entre agravo e apelação, no nosso quadro
processual e na nossa tradição, se justifica por inteiro, mas, mais ainda, o
agravo tem inteiro cabimento dentro do nosso ordenamento processual
(como sabemos todo ele mais dominado por regras estritas que pela
concessão de poderes de julgamento “ex aequo et bono”, arquitectura
processual essa a cuja defesa ou contestação não somos chamados, neste
momento).
“Last but not the least”, que o agravo apenas em casos
contadíssimos é causa de atrasos ou de atrasos significativos ou da
inutilidade de actos processuais praticados.
E tal, pese embora entendamos que o recurso de agravo é mais
vezes provido que o recurso de apelação.
Não foi essa, curiosamente, a conclusão da Comissão de
Avaliação, que entende que, entre 1990 e 2004, podemos falar de 38% de
provimentos, sendo igual a percentagem da apelação e do agravo; e ainda
que, em 2004, existiu uma média de 44% de provimentos, sendo 21%
deles parciais, na totalidade dos recursos.
Entendamo-nos, porém, quando falamos de confirmação parcial
da sentença ou provimento parcial do agravo.
Por vezes, com demasiada facilidade se entende haver
confirmação apenas parcial de uma sentença, no caso da apelação – figurese, como num caso que relatei há dias, se não se reconhece a
compropriedade do Autor sobre uma faixa de terreno, mas, no que
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concerne o substancial do recurso, se confirma o decidido quanto ao
direito que o Autor tem de passar por tal faixa de terreno.
Este é um caso frequente de confirmação ou provimento parcial
que, no entanto, tem apenas um pequeno ou quase insignificante interesse
substancial; como este poderíamos figurar inúmeros outros casos, como,
por exemplo, as pequenas divergências na fixação de um montante
indemnizatório entre a Comarca e a Relação – trata-se, no entanto, para o
que nos interessa de provimentos ou confirmações parciais que, como tal,
figuram nas estatísticas, desde que a Relação não reproduza por inteiro a
decisão da 1ª instância.
Penso, por isso, que é mais impressivo o genérico provimento
dos agravos que, normalmente, são apreciados “in totum”, na decisão do
recurso; é que, por outro lado, e na sua maioria, constituem questões
relativas a pequenos “topismos” de processo, nem sempre de solução legal
evidente, que, por essa razão, podem conduzir mais rapidamente ao
provimento do recurso.
Tenho assim para mim, ainda que fale apenas em nome da
minha experiência prática, que o agravo é mais vezes provido que a
apelação e que esta conduz normalmente à confirmação da decisão de 1ª
instância (em contas generosas, podemos empiricamente configurar uma
revogação, por cada três confirmações).
Seja como for, mais ou menos provido, o recurso é um direito
das partes, e concordo com a conclusão da Comissão de que a restrição do
recurso em um grau (para a Relação), designadamente por via de um
relativo aumento da alçada da Comarca, não deve ser incentivado.
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Pelo contrário, as excepções às regras da alçada devem ser
promovidas – lembro-me, por exemplo, dos recursos em matéria de Apoio
Judiciário (um exemplo apenas, no que concerne as decisões sobre
honorários ou despesas de advogado, que usualmente não serão
susceptíveis de recurso, pela regra da alçada).
Isto se afirma sem prejuízo da sugestão de actualização da
alçada da Comarca, dos actuais € 3 740,98, para € 6 000 (considerada a
inflação e a alçada de 1977, a actualização atingiria até € 8 276,58).
Vejamos agora, das soluções propugnadas pelo Relatório,
aquelas que entendemos desejáveis ou aquelas que entendemos menos
desejáveis:
Não nos parece que a solução de impugnação de despachos
interlocutórios proferidos no processo, por recurso de agravo, possa ter a
solução do artº 511º nº3 C.P.Civ. – impugnação de tais decisões no recurso
interposto da decisão final.
Virtualmente tal solução conduziria a uma potencial rediscussão de todas as pequenas e grandes questões que o processo
suscitara, assim tornando-se apto à renovação da substância do processado
em 1ª instância agora na Relação.
Desta forma, a regra da interposição necessária do recurso do
despacho de que se pretende agravar deve manter-se.
Porém, já nos parece de toda a lógica que se repristine a
solução original do Código de 39 e 61, possibilitando a apresentação das
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alegações apenas no momento da subida do recurso de agravo – artº 746º
nº1 C.P.Civ.61.
Desta forma ainda se dispensaria a obrigatória especificação,
pelo agravante, de quais os agravos que mantêm interesse – artº 748º
C.P.Civ. – especificação necessariamente implícita na apresentação das
alegações relativas ao agravo no momento da subida do recurso que faz
subir esse mesmo agravo, que assim manteria interesse.
Em matéria de apelação ou de agravo, sou totalmente favorável
à solução de dispensar, por regra, o visto prévio (apenas o aconselhando no
caso de especial complexidade da matéria a julgar, precisamente o
contrário da solução actual da lei, que dispensa os vistos apenas em casos
acentuadamente simples – artº 707º nº2 C.P.Civ.).
Com tal procedimento, apenas se consagraria aquilo que a
prática seguida pelas Relações tornou habitual, que é o facto de o juiz
adjunto do colectivo da Relação tomar contacto com o processo no
momento em que lhe é entregue o projecto de acórdão pelo relator.
Repare-se como este procedimento em nada aligeira a
necessária ponderação exigida ao Adjunto – o projecto é, na prática,
entregue, pelo Relator, entre um mês a uma semana antes de o processo ser
inscrito em tabela (pois a celeridade varia naturalmente com os diferentes
relatores e o momento da inscrição em tabela pode também ser algo
aleatório), o que confere tempo suficiente ao Adjunto para reflectir sobre a
bondade ou acerto do que lhe é proposto.
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Se acaso o Adjunto tem dúvidas, ou não concorda com a
solução do projecto, tem tempo suficiente para formar uma opinião.
Todavia, se necessitar de consultar o processo, ele é-lhe presente pela
Secretaria, pois que, apresentado o projecto, o Relator fez o seu trabalho.
Se ainda assim as dúvidas subsistirem no espírito de alguém,
acerca do sentido da decisão ou da fundamentação, no dia indicado para a
publicação do acórdão, a solução é simples e é abundantemente seguida
pela Relação – adia-se a publicação do acórdão para a sessão da semana
seguinte ou para outra sessão ulterior.
Os vistos, tal como existem e são praticados, constituem um
certo anacronismo e neles se poderão consumir, grosso modo, entre quinze
dias e um mês de tramitação, sem qualquer utilidade prática, desde logo
porque os Juízes apenas “vêem” ou “sugerem”, e com toda a lógica, a
partir do momento em que o relator lhes propõe uma solução para a
questão “sub judicio”.
Dessoutra questão da apresentação simultânea do requerimento
de interposição de recurso e das alegações, à semelhança do processo
criminal, penso que não resultará verdadeiramente um ganho de tempo.
Pelo contrário, se tal solução, como sugerido, conduzir a uma ampliação
do prazo para recorrer, não resultará daí expressamente qualquer ganho,
acrescendo ainda que a dita solução, em vez de conduzir a uma melhor
ponderação do bem fundado do recurso, pode antes conduzir ao inverso, à
precipitação dos argumentos avançados nas alegações, por maior escassez
de prazo de ponderação.
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Para além da questão da abolição, por regra, do “visto prévio”,
outra pequena cirurgia poderia agilizar o processado na Relação.
Referimo-nos aos acórdãos proferidos em Conferência, por
reclamação de despachos do relator, em momento prévio ao do
conhecimento do recurso.
A questão reveste hoje alguma acuidade, posto que a apelação
possui, por regra, efeito devolutivo.
Ora, este efeito traduz-se na potencial execução da decisão quer
dentro do processo, quer fora do processo em que foi proferida (é a
solução propugnada pela doutrina, designadamente Teixeira de Sousa,
Estudos, pg. 406).
A parte vencedora em 1ª instância pode assim atrasar o
conhecimento do recurso, na medida em que tal lhe confira tempo para
executar extraprocessualmente, e para os efeitos práticos que tenha por
convenientes, a decisão; para o efeito, bastará o suscitar de incidentes e
algumas reclamações para a Conferência, que sempre farão atrasar o
conhecimento da parte substancial do recurso.
Propugno assim que a decisão da Conferência, proferida sobre a
matéria da reclamação, seja apreciada obrigatoriamente no próprio acórdão
em que se aprecie a matéria do recurso.
A
actual
solução
(apreciação
facultativa
no
acórdão,
aconselhando-se a apreciação separada em função da necessidade de
decisão imediata – artº 700º nº4 C.P.Civ.) é passível de equívocos e
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favorece as delongas, relativamente a quem não deseja que o processo siga
rapidamente os seus trâmites normais.
A solução proposta definiria, por força, desde logo, os direitos,
sem prejuízo dos recursos a que houvesse lugar (v.g., da parte do acórdão
relativa à Conferência).
É patente a razão da Comissão quando invoca ser na 1ª
instância que o processo se mostra mais apto ao atraso.
Nessa conformidade, não nos parecem adequadas algumas das
propostas.
A primeira – o reforço dos poderes do juiz quanto ao
conhecimento do valor da causa. A solução actual é suficiente – o juiz
pode suscitar a questão, findos os articulados – artº 315º nº1 C.P.Civ.
E bastas vezes suscita. Se não o faz mais vezes é pela
necessidade de não atrasar mais o processado, dado que a fixação do valor
implica uma decisão, um trânsito, eventualmente uma perícia.
Tornar a intervenção obrigatória é sobrecarregar ainda mais o
juiz de 1ª instância. Aliás, se não se encontra em causa o direito de
recorrer, na maior parte dos casos em que o juiz corrige o valor da acção, o
que indirectamente se visa é a possibilidade de recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça – ora, a generalização dos recursos para o Supremo
poderá e deverá antes ser refreada por outros meios (desde logo me parece
muito adequada a consagração da regra da “dupla conforme”).
No que concerne as questões sobre competência.
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Talvez não exista questão mais premente, quanto à necessidade
de reforma, que esta mesma questão dos conflitos de jurisdição ou
competência.
O complicado processado dos artºs 115º a 121º C.P.Civ. deve
ser integralmente substituído pela resolução do conflito através de
despacho do Presidente da Relação perante o qual o conflito é suscitado,
ou seja, o Presidente da Relação que integra a Comarca que suscita o
conflito, despacho esse proferido de imediato no processo, seja pelo
Presidente, seja pelo Juiz da Relação em quem o Presidente delegar.
Portanto, a reforma dos conflitos não deverá passar, uma vez
mais, por sobrecarregar o Juiz da 1ª instância, designadamente o juiz de
círculo, sendo certo que nas mais importantes comarcas do país, nas quais
existem tribunais de competência especializada ou mista para o
conhecimento das questões cíveis superiores à alçada da relação, tal figura
(a do juiz de círculo) ou o seu equivalente, inexistir mesmo de todo.
Quanto à possível ponderação de uma discussão oral mais
aprofundada do processo, entre as partes, reciprocamente, e entre as partes
e o tribunal, solução não propugnada pelo Relatório, a questão prende-se,
de facto, com a nossa tradição legal e processual.
Se o direito, mesmo o direito processual, se encontra
tendencialmente todo ele escrito, obedecendo os juízes à legalidade, então
não faz sentido o apelo ao “aligeirar” das decisões, normalmente
associadas à oralidade ou à decisão oral – só faz sentido uma
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racionalização adequada, com apoio nas regras, legais ou doutrinais, por
forma ponderada e, naturalmente, escrita.
Se alguém pretender o inverso, “sonha”, propondo, na prática,
uma completa mudança ou revolução de mentalidades, como se preferir,
mais que do sistema.
Não menos certo, porém, não entrevejo qualquer reivindicação
mínima, por eventuais interessados, no sentido apontado do reforço da
oralidade do processo perante as Relações.
E basta essa constatação para afastar o possível reforço da
oralidade em 2ª instância.
Estes os comentários que, em breve bosquejo, me suscita o
exaustivo Relatório de Avaliação do Sistema de Recursos em Processo
Civil da autoria da equipa de consultores do GPLP do Ministério da
Justiça, trabalho cuja clareza prática e proficiência, nem sempre habituais
em textos do género, são dignas dos maiores encómios.
José M. C. Vieira e Cunha
(Juiz do Tribunal da Relação de Guimarães)
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Dr. José Vieira e Cunha