DA FIXAÇÃO DO REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA
NOS CRIMES HEDIONDOS
Fernando Natal Batista
Advogado e Colaborador da Defensoria Pública
do Distrito Federal
SUMÁRIO: Considerações gerais sobre o sistema de fixação do regime de cumprimento de
pena; O advento da Lei 8.072/90; A sentença
penal condenatória omissa e o efeito da coisa
julgada; Conclusão.
A justiça penal é um mal necessário. Se ultrapassa os limites da necessidade, é apenas um
mal. (Claus Roxin)
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O SISTEMA DE FIXAÇÃO DO
REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA
Antes de examinar a problemática omissão de algumas sentenças
quanto a fixação do regime de cumprimento da pena nos crimes hediondos,
cumpre recordar brevemente os institutos que rodeiam o objeto de estudo,
para que, uma vez revistos os aspectos que norteiam a prolação da sentença
e suas conseqüências, possamos compreendê-la e criticá-la.
Com a reforma da Parte Geral do Código Penal em 1984, o legislador
ordinário consagrou o sistema progressivo do regime prisional, objetivando
a reintegração do infrator no seio da sociedade, bem como, assegurou-lhe a
possibilidade de reconquistar a sua liberdade. Tal garantia encontra-se
expressa no artigo 33, § 2°, do CP, cujo teor afirma que “as penas privativas
de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito
do condenado”.
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Portanto, o órgão-juiz, ao prestar a tutela jurisdicional, respeitado o
princípio da individualização da pena (art. 5°, inciso XLVI, da CF/88),
deverá ao privar o criminoso de sua liberdade, fixar-lhe o regime no qual
irá iniciar a cumprir a reprimenda penal (art. 59, inc. III, do CP).
Assim, consagrou a Carta Democrática de 1988 um direito inalienável
a todos os condenados, qual seja, a individualização da pena que compreende
três fases, a saber: cominação, fixação e execução. Deve o Estado-Juiz ao
prolatar a sentença, escolher e ajustar a pena cominada, considerando os
dados objetivos da infração penal e os subjetivos do infrator; e, quando da
sua execução, deve o juiz da execução criminal respeitar os limites objetivos
da pena imposta, efetivando-a em conformidade com o disposto nos artigos
1° e 112, da Lei 7.210/84.
O ADVENTO DA LEI 8.072/90
A promulgação da Lei de Crimes Hediondos foi uma tentativa dos
representantes populares de coibir o aumento dos delitos de maior
reprovabilidade social. Promoveu-se nessa lei, um verdadeiro ato de
vingança privada que culminou na redução do rol de direitos dos presos,
sendo que a principal delas foi a perda do direito de progressividade da
pena pelo agente de infração penal inserida na taxatividade da enumeração
disposta no artigo 1º da Lei 8.072/90, que deveria ser cumprida integralmente
no regime fechado (art. 2°, § 1°).
Perdeu-se, assim, parte do utilitarismo da pena, transformando-a em
mero castigo. A pena no direito penal moderno é, preponderantemente, o
instrumento de ressocialização do condenado, posicionamento este, que
procura excluir a retributividade da sanção penal, objetivando, deste modo,
instituir um movimento de política criminal humanista fundado na idéia de
que a sociedade somente é defendida e preservada à medida que se proporciona
a progressiva adaptação e recuperação do condenado ao meio social (objeto
da teoria ressocializadora) e não apenas castigo a ser ministrado.
Dizendo do direito, magistrados negaram-se a dar aplicação à norma,
por entenderem que a mesma chocava-se com o princípio da
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individualização da pena. Quer na primeira instância como nos Tribunais
de Justiça, assim se entendeu. Mesmo o Superior Tribunal de Justiça, tendo
como ponteiro o sempre citado Luiz Vicente Cernicchiaro, foi claro: não
poderia o legislador impedir a individualização da pena.
Entretanto, objeto de análise no Supremo Tribunal Federal, foi esta
inovação considerada constitucional, sob o argumento de que “à lei ordinária
compete fixar os parâmetros dentro dos quais o julgador poderá efetivar ou
a concreção ou a individualização da pena. Se o legislador ordinário dispôs,
no uso da prerrogativa que lhe foi deferida pela norma constitucional, que
nos crimes hediondos o cumprimento da pena será no regime fechado,
significa que não quis ele deixar, em relação aos crimes dessa natureza,
qualquer discricionariedade ao juiz na fixação do regime prisional” (HC
n.° 69603/SP - Tribunal Pleno. Rel. Min. Paulo Brossard, data do julgamento:
18.12.1992, DJ 23.04.93).
Em crítica severa a esta restrição de direito, o mestre FRANCISCO
ASSIS TOLEDO, registrou a sua irresignação:
(...) É lamentável que um legislador desatento e mal assessorado tenha retirado da Administração Pública esse precioso instrumento de manutenção da disciplina no interior dos
estabelecimentos penais. Sim, porque, sem o benefício do
sistema progressivo, o condenado só terá um caminho para
antecipar a liberdade: à rebelião ou à fuga.1
A SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA OMISSA E O EFEITO
DA COISA JULGADA
A sentença tem como principal efeito pôr termo ao processo, dando a
prestação da tutela jurisdicional do Estado ao caso concreto.
No âmbito do processo penal brasileiro, a sentença, pronunciamento
do Estado-Juiz decidindo a lide penal, deve ser formulada atendendo os
requisitos formais previstos no artigo 381 do Código de Processo Penal,
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Apud FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 3ª ed., 1994, p. 149.
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sejam eles: o relatório (incisos I e II), a motivação (inciso III); e, a conclusão
ou dispositivo (incisos IV e V).
Tem-se que dispositivo, parte em que o juiz, coerentemente com a
fundamentação, aplica a lei ao caso concreto condenando ou absolvendo o
acusado, apontando os dispositivos legais que incidem na hipótese.2
Portanto, a sentença penal condenatória deverá expressamente, em
seu dispositivo, definir, fundamentadamente, o regime de cumprimento da
pena, pois, esta é a parte do decisum, em que o magistrado implementa a
tutela jurisdicional, viabilizando a pretensão punitiva do Estado. Consagrado
pela Constituição Federal, o princípio da motivação das decisões do Poder
Judiciário instituiu que todos seus atos decisórios serão fundamentados (art.
93, inc. IX), assegurando a observância do princípio do devido processo
legal; obriga, também, ao juiz motivar o regime de cumprimento da pena.
Pois, não é possível olvidar que o princípio maior constitucional do
resguardo à liberdade do indivíduo somente poderá ser atacado pelo Estado
se devidamente motivado.
Regulamentando a matéria, a Lei de Execuções Penais, em seu artigo
3º, dispôs que ao condenado e ao internado serão assegurados todos os
direitos não atingidos pela sentença.
Ocorre, entretanto que algumas sentenças, quando proferidas,
encontram-se omissas quanto à fixação do regime de cumprimento de pena
nas infrações penais reguladas pela Lei de Crimes Hediondos, quando de
seu advento. Certos da vigência do princípio tempus regit actum, deveriam
estas sentenças, em seu corpo, expressamente remeterem-se a referida lei,
justificando o porquê de sua fixação. No entanto, na prática isso não ocorreu,
e os Tribunais de Justiça decidiram, forçosamente, ainda que ausente de
motivação ou remissão, encontrar a fixação do regime inicial da pena
implícita no dispositivo. Indubitavelmente, esqueceram-se de que os
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GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. São Paulo: Ed. Saraiva, 1993.
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princípios da motivação e da publicidade existem para exteriorizar de forma
concisa e clara a manifestação do Poder Judiciário aos casos que lhe são
apresentados.
Ora, omissa a sentença do juízo de condenação, caberia ao Ministério
Público ter provocado a sua correção, mediante embargos de declaração,
contudo, tendo a sentença transitado em julgado para a acusação, não poderá
o Juiz da Execução modificá-la, eis que coberta pela garantia constitucional
da coisa julgada.
Logo, a questão cinge-se no âmbito do direito processual; e, por
oblíqua, produz conseqüências no direito material, uma vez que o Direito
Constitucional pátrio estabelece que a lei não prejudicará a coisa julgada,
sendo esta, uma garantia inviolável ao seu titular.
O Pretório Excelso reconhecendo a situação desfavorecida do
condenado junto ao processo de execução, censurou a reformatio in pejus,
ao sumular o entendimento de que transitada em julgado a sentença
condenatória, compete ao Juízo das execuções a aplicação da lei mais
benigna (STF, Súmula 661).
Consciente do objetivo da Lei de Execuções Penais, o legislador
ordinário, na exposição de motivos do referido diploma legal,
exteriorizou, aos operadores do direito, a sua vontade ao dizer que o
princípio da legalidade domina o corpo e o espírito do Projeto, de forma
a impedir que o excesso ou o desvio da execução comprometam a
dignidade e a humanidade do Direito Penal, permitindo a analogia in
bonam partem.
Assim, ausente na sentença penal condenatória fundamentada
referência aos ditames legais da Lei de Crimes Hediondos, deve ser
respeitado o princípio maior e geral assegurado no disposto legal do artigo
59, inciso III, do Código Penal, qual seja, a progressividade da pena,
concomitante ao conteúdo do artigo 112 da Lei 8.210/90.
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CONCLUSÃO
Conclui-se que o fato de, na época da condenação do sentenciado,
estar em vigor a Lei n.º 8.072/90, não significa que automaticamente, o
regime de cumprimento da pena seja integralmente fechado. O legislador
do Código Penal consagrou o princípio da progressividade do regime de
cumprimento da pena, de modo que, conforme o artigo 59, inciso III, ao
individualizar a sanção penal, o magistrado fixará o regime inicial de
cumprimento de pena privativa de liberdade, respeitando as particularidades
do condenado.
Com o advento da Lei n.º 8.072/90, os crimes por ela elencados e
praticados durante a sua vigência sofreram severas apenações entre as quais
a prevista no § 1º, do art. 2º, da referida Lei.
Assim, a sentença penal condenatória, enquanto termo da prestação
da tutela jurisdicional, limitando o direito de liberdade face ao direito de
punir do Estado, deverá respeitar os princípios da individualização da pena
e da motivação dos atos judiciais (art. 93, inc. IX, da CF).
Portanto, quando da prolação da decisão, o magistrado deve observar
as peculiaridades do caso concreto, pois, uma vez ocorrendo o confronto
entre o dispositivo da Lei de Crimes Hediondos e do art. 59, inc. III, do CP;
deve o julgador manifestar-se em relação ao regime de cumprimento de
pena, haja vista que, em consonância ao disposto do art. 92, parágrafo único,
do CP, os efeitos da condenação deverão ser motivadamente declarados na
sentença. Respeitado o princípio do due process of law, sendo omissa a
sentença quanto aos rigores da Lei n.º 8.072/90 e o cumprimento integral
da pena, após o trânsito em julgado para a acusação, estará o magistrado a
possibilitar a progressão da pena, porquanto a decisão judicial deverá ser
fundamentada e clara, declarando vigência da lei geral. Não pode extrairse conclusões presumidas, pois, assim estará o magistrado a eivar um ato
decisório de arbitrariedade, contrapondo-se a uma garantia constitucional.
O Estado-Juiz ao limitar um direito fundamental de um indivíduo, no
caso, a liberdade, deve proceder de maneira concisa e motivada, devendo
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os dispositivos da lei em que se funda a sua decisão, estarem declarados em
suas razões, sob pena de afrontar o princípio do devido processo legal.
Destarte, as regras definidoras de restrições a direitos individuais,
principalmente em matéria penal, devem ser interpretadas restritivamente.
Isto posto, não há que se considerar o regime do sentenciado como
integralmente fechado, pois, assim não determinou o Juiz sentenciante. E
nesse diapasão, possível é a progressão do regime.
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