REVISTA DA FUNDAÇÃO ESCOLA SUPERIOR
DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO
FEDERAL E TERRITÓRIOS
EDIÇÃO ESPECIAL
VI Concurso de Monografias
As Sucessivas Reformas do Código de Processo Civil e a Classificação
das Sentenças por sua Eficácia Preponderante
Gabriel Menandro Evangelista de Souza
A Reclamação Constitucional perante o Supremo Tribunal Federal
Graziela Maria Picinin
A Tutela Penal dos Cybercrimes e o Projeto de Lei contra
os Crimes de Informática
José de Castro Meira Júnior
Erro Médico: Aspectos Criminais
Luciane Bastos Lage Vieira
Desconsideração da Personalidade Jurídica Inversa?
Thiago Bueno de Oliveira
Ano 15 - Edição Especial
FUNDAÇÃO ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO
PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS
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Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal
e Territórios. Brasília: FESMPDFT, Ano I, n. 1, jul./set., 1993 –
Edição Especial
Trimestral em 1993. De 1994 a 2003, semestral. A partir de 2004, anual.
ISSN 1517-5286
1. Direito – Periódicos I. Fundação Escola Superior do Ministério Público
do Distrito Federal e Territórios.
CDD 340
Acompanhamento editorial e gráfico: Profa Ângela de Almeida Martins
Revisão de texto: Profa Ângela de Almeida Martins
Editoração eletrônica: Technoarte Bureau (por Paulo H. Barros)
Capa: Grifo Design
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APRESENTAÇÃO
É com imensa satisfação que a Fundação Escola Superior do Ministério
Público do Distrito Federal e Territórios - FESMPDFT leva ao conhecimento da
comunidade jurídica os trabalhos contemplados no VI Concurso de Monografias
do Curso Ordem Jurídica e Ministério Público.
A FESMPDFT, celeiro de destacados profissionais da área jurídica, preocupase em estimular o aluno a repensar o direito. A sociedade é dinâmica, novas leis
são editadas em ritmo acelerado. Exige-se, cada vez mais, do advogado, do juiz e
do promotor constante atualização e eficiência no exercício das suas atividades.
Dessa forma, o certame proposto visa estimular os alunos da Escola não
apenas ao estudo, mas também ao engajamento, na busca de uma sociedade
mais livre, justa e solidária, na esteira do que foi proposto pelo legislador
constituinte.
A Comissão Julgadora, como não poderia deixar de ser, contou com a
participação de destacados membros do MPDFT. Não menos brilhantes foram
os trabalhos inscritos, entre os quais, evidenciam-se os temas que envolvem
a Reclamação perante o Supremo Tribunal Federal, a desconsideração da
personalidade jurídica, a classificação das sentenças, os crimes de informática e
o erro médico. A tudo isso soma-se a excelência dos orientadores, o que reforça a
certeza de que os trabalhos foram o resultado de invulgar pesquisa e estudo.
Segundo Delacroix (1798-1863), nos seus Escritos, “o mais belo triunfo do
escritor é fazer pensar os que podem pensar”. E não é outro, senão este, o objetivo
da FESMPDFT, afinal de contas, pensar é a eterna sina e o prazer de quem trabalha
com conceitos por vezes tão díspares: Direito e Justiça.
Newton Cezar Valcarenghi Teixeira
Diretor Editorial
SUMÁRIO
As Sucessivas Reformas do Código de Processo Civil e a Classificação
das Sentenças por sua Eficácia Preponderante
Gabriel Menandro Evangelista de Souza.............................................................
7
A Reclamação Constitucional perante o Supremo Tribunal Federal
Graziela Maria Picinin.............................................................................................
69
A Tutela Penal dos Cybercrimes e o Projeto de Lei contra
os Crimes de Informática
José de Castro Meira Júnior....................................................................................
117
Erro Médico: Aspectos Criminais
Luciane Bastos Lage Vieira....................................................................................
160
Desconsideração da Personalidade Jurídica Inversa?
Thiago Bueno de Oliveira.......................................................................................
231
AS SUCESSIVAS REFORMAS DO CÓDIGO DE PROCESSO
CIVIL E A CLASSIFICAÇÃO DAS SENTENÇAS POR SUA
EFICÁCIA PREPONDERANTE*
Gabriel Menandro Evangelista de Souza
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem por objetivo principal estudar a classificação das
sentenças segundo a eficácia preponderante, especialmente em razão da celeuma
que envolve a doutrina a respeito da admissão pelo ordenamento jurídico de três
ou cinco tipos de provimentos judiciais.
Nesse passo, buscar-se-á fazer uma conexão dos conceitos clássicos e
modernos das sentenças com os instrumentos de tutela existentes no Código de
Processo Civil, para perquirir se nosso ordenamento jurídico suporta três ou cinco
tipos de cargas eficaciais.
De fato, a maior controvérsia situa-se no conceito de sentença condenatória,
pois, possuindo uma co-relação com o processo de execução, costuma-se considerar
que todas as pretensões de direito material, consistentes em uma prestação, são
tuteladas por meio dela.
De outro lado, a doutrina apegada à classificação quinária dos provimentos,
influenciada pelos estudos iniciais de Pontes de Miranda, considera que as
pretensões de direito material não são todas tuteláveis por meio da sentença
condenatória, visto que o ordenamento jurídico dá suporte à existência autônoma
dos provimentos mandamentais e executivos lato sensu.
Nesse ponto, sumariamente, sob o aspecto procedimental, costuma-se
sustentar que o aspecto diferencial entre o provimento condenatório, de um
lado, e os mandamentais e executivos lato sensu, de outro, situa-se no fato de,
no primeiro, as atividades executivas darem-se em processo separado, e, nos
últimos, isso não ocorre.
Todavia, acreditamos na insuficiência dessa diferenciação para considerar o
caráter autônomo dos provimentos mandamentais e executivos lato sensu, o que
*
Monografia apresentada como requisito para conclusão do curso de Pós-Graduação Ordem Jurídica e Ministério
Público da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios - FESMPDFT.
Orientador: Professor Jorge Hage Sobrinho.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
7
nos estimula a observar as peculiaridades que o direito material impõe para ser
efetivado a fim de estabelecermos uma diferenciação mais convincente.
Para tanto, faremos uma breve e superficial incursão histórica para
avaliarmos a influência do direito romano primitivo no conceito de jurisdição e,
conseqüentemente, na classificação das sentenças e na separação das atividades
jurisdicionais de conhecimento e execução em processos distintos.
Nesse viés, buscaremos estudar o Código de Processo Civil antes das recentes
e sucessivas reformas processuais para demonstrar sua idealização segundo a
classificação ternária das sentenças, apesar de existirem certos procedimentos que
já consagravam o caráter unitário (conhecimento e execução na mesma relação
jurídica processual) para tutelar certas pretensões.
Estudaremos também as sucessivas reformas processuais que culminaram
em modernizar o Código de Processo Civil, tornando-o mais coerente sob o
viés constitucional e também sob a ótica de seu próprio sistema, ao prestigiar o
procedimento unitário para a tutela de todas as pretensões de direito material.
De fato, se aceitarmos que a única diferença entre os provimentos
mandamentais e executivos lato sensu, de um lado, e condenatório, de outro, reside
no seu aspecto procedimental, então atualmente já não há diferença, dado que todas
as pretensões são tuteladas por meio do procedimento unitário.
Portanto, com os olhos voltados para o direito material e a forma préconcebida para sua efetivação (a técnica jurídica de tutela), estudaremos a
classificação das sentenças na tentativa de avaliarmos a existência autônoma dos
provimentos mandamentais e executivos lato sensu.
Nessa direção, buscaremos concluir se, em decorrência das sucessivas
reformas processuais, o nosso ordenamento jurídico voltou-se plenamente para
aceitar a classificação quinária dos provimentos.
1
EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE JURISDIÇÃO
1.1
INFLUÊNCIA DO CONCEITO PRIMITIVO DE JURISDIÇÃO
NA DICOTOMIA DE PROCESSOS E NA CLASSIFICAÇÃO DAS
SENTENÇAS
O nosso direito processual, indubitavelmente, recebeu influência do
direito primitivo romano, especialmente no que diz respeito à compreensão de
jurisdição.
8
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
Isso porque, na jurisdição primitiva romana, havia nítida separação entre a
atividade jurisdicional propriamente dita e a atividade tendente à prática de medidas
executivas. Nesse sentido, Humberto Theodoro Júnior leciona que:
O exercício do direito de ação fazia-se, primeiramente, perante
o praetor (agente detentor do imperium), e prosseguia em face
do iudex (um jurista, a quem o praetor delegava o julgamento de
uma controvérsia – iudicium). A setentia do iudex dava solução
definitiva ao litígio (res iudicata), mas seu prolator não dispunha de
poder suficiente para dar-lhe execução. [...] Dentro desse prisma,
somente por meio de outra ação se tornava possível obter a tutela
da autoridade pública (imperium) para levar a cabo a execução do
crédito reconhecido pelo iudex, quando o devedor não se dispunha
a realizá-la voluntariamente. Daí a existência da actio iudicati, por
meio da qual se alcançava a via executiva.1
Desse modo, entendia-se que somente a atividade desempenhada pelo iudex
era eminentemente jurisdicional (apesar de tratar-se de um juiz privado), dado
que era investido pelo praetor do poder de solucionar os conflitos por meio da
aplicação do direito positivado. Todavia, não dispondo de poderes de império para
transformar o direito reconhecido em fatos, somente com a invocação do praetor
era que se praticavam atos executivos propriamente ditos.2
Com base nisso, observa-se que a jurisdição romana tinha um caráter
eminentemente declaratório, na medida em que não se admitia a prática de atos
executivos no “processo de conhecimento” de alçada do iudex.
Evidentemente, como a jurisdição implicava declarar o direito, impunhase reconhecer que, encerrado o momento cognitivo com a prolação de uma
condenação, encerrava-se também a atividade jurisdicional, sendo necessário
invocar o praetor para transformar o direito em fatos. Nesse sentido, ao comparar
a jurisdição primitiva romana com a contemporânea, Ovídio Batista afirma que:
Se nos fosse possível reinstalar em nosso direito a estrutura do
processo civil romano do período formular, diríamos que ao iudex
seriam reservadas as funções de juiz do processo de conhecimento,
em que, por definição, não pode haver execução, como atividade
subseqüente à sentença de procedência, na mesma relação processual.
1
2
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 97-98.
SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 25.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
9
Quer dizer, tal como acontecia em direito romano, a sentença
condenatória exauria a atividade jurisdicional.3
Nesse sentido, apesar de, hodiernamente, até mesmo a atividade executiva
ser considerada função jurisdicional, nosso ordenamento jurídico processual
indubitavelmente sofreu influência do direito romano primitivo ao consagrar as
atividades de conhecimento e execução em momentos distintos.
Isso porque, concebido o processo de conhecimento como o “local” onde se
declararia o direito, tal como propagado pela compreensão primitiva de jurisdição,
necessário seria criar um processo autônomo onde seriam praticados atos tendentes
a entregar o direito, erigindo a sentença condenatória como o instrumento que
possibilitaria a “passagem” de um processo ao outro.
Em virtude disso, acreditamos que a classificação ternária das sentenças,
assim como a separação das atividades de conhecimento e execução em processos
distintos, tendo como pressuposto a sentença condenatória, foi concebida segundo
a ótica do conceito primitivo de jurisdição.
Todavia, importa esclarecer que a compreensão primitiva de jurisdição (como
simples declaração de direitos) não se compatibilizava com técnicas processuais
já consagradas no ordenamento jurídico (mesmo antes das reformas do processo
civil), nas quais há prática de atos materiais na mesma estrutura processual, tal
como o procedimento das ações possessórias, reivindicatórias e do despejo.
Ora, sendo possível a prática de atos materiais para propiciar a entrega do bem
litigioso em relação processual única (processo sincrético), então, provavelmente,
existem categorias diversas de sentenças que não sejam a condenatória, dado que
esta pressupõe (como eficácia processual) um processo autônomo para a satisfação
plena do direito.
Com acerto são as lições de Ovídio Batista, que, ao dissertar sobre o tema,
ressalta:
O que caracteriza o procedimento privado da actio do direito romano
era justamente a ausência de atividade executória em seu interior,
de modo que defender a autonomia do Processo de Execução (por
créditos) e ao mesmo tempo admitir o “sincretismo” de certas ações
como um fenômeno natural e irrelevante para descaracterizar o
processo de conhecimento e a condenatoriedade que lhe é essencial
3
10
SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 181-182.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
é não apenas incidir em contradição lógica, mas igualmente anular
4
o próprio conceito de condenação.
Razão da proclamada contradição lógica é a existência de discussão
doutrinária a respeito do reconhecimento das sentenças mandamentais e executivas
lato sensu como categorias autônomas, visto que, segundo a classificação quinária
dos provimentos, uma de suas características é justamente permitir a prática de
conhecimento e execução na mesma relação processual.5
Pela mesma razão, soa difícil a tentativa de alguns doutrinadores de defender
a universalidade da ação condenatória, no sentido de que a ela cabe a tutela de
todas as pretensões de direito material que envolvam prestação, mesmo sabendo
da existência das ações sincréticas no ordenamento jurídico.6
De todo modo, o conceito de jurisdição desenvolveu-se como conseqüência
da evolução do próprio direito, que deixou de ser identificado com a lei7 e passou a
ser interpretado segundo a ótica dos direitos fundamentais, bem como por meio de
cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados, conferindo aos magistrados
significativa discricionariedade na aplicação do direito aos casos concretos.
Nesse sentido, como conseqüência da evolução do conceito de jurisdição,
torna-se necessário rever as classificações das sentenças segundo a eficácia
preponderante e avaliar a sua compatibilidade de acordo com a estrutura do
processo moderno, ao prestigiar o processo unitário como regra para dar satisfação
às relações jurídico-substanciais.
1.2
ESTRUTURA ORIGINAL DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO
O Código de Processo Civil brasileiro, idealizado por Alfredo Buzaid, desde
sua concepção adotou a dicotomia entre os processos de conhecimento e os de
execução, notadamente influenciado pela classificação ternária das sentenças.
4
5
6
7
SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 24.
Todavia, veremos adiante que o fato das atividades de conhecimento e execução darem-se na relação processual
não esgota a diferença entre os provimentos.
Dinamarco empenha-se em salvar a universalidade da ação condenatória, a ponto de desprezar a circunstância
de serem certas demandas, como ele diz, “sincréticas” e conterem, na mesma relação processual, a sentença de
procedência e sua execução, mesmo que a impossibilidade de misturaram-se, num mesmo processo, a atividade
cognitiva e executiva seja, talvez, uma das poucas características universalmente aceitas como propriedade
essencial das sentenças condenatórias. SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição
romano-canônica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 19.
Essa concepção, fiel à doutrina da separação dos poderes, identifica o direito com a lei e confia aos tribunais
a missão de estabelecer os fatos dos quais decorrerão as conseqüências jurídicas, em conformidade com o
sistema de direito em vigor. PERELMAN, Chaïn. Lógica jurídica: nova retórica. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2004, p. 32.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
11
Entretanto, desde a concepção do Código de Processo Civil, essa dicotomia
já se demonstrava falha e contraditória se avaliada sob a ótica das ações sincréticas
consagradas pelo estatuto processual, as quais não apresentavam compatibilidade
com a tentativa de universalização da sentença condenatória. Nesse viés, a
manifestação precisa de Araken de Assis:
Tão artificial se afigura a divisão tricotômica dos “processos”, e postiça
a pureza funcional dessas estruturas, que acaba sem explicações, e
insatisfatoriamente compreendido, o motivo por que há cognição no
processo executivo ou cautelar e por qual insondável motivo atos
executórios ocorrem no “processo” de conhecimento.8
De todo modo, a estrutura clássica de divisão dos processos pode ser facilmente
constatada pela própria sistemática do Código de Processo Civil, ao consagrar a
separação em livros: Livro I – Processo de Conhecimento; Livro II – Processo de
Execução; Livro III – Processo Cautelar; Livro IV – Procedimentos especiais.
De fato, não obstante outros livros virem a ser tratados de forma perfunctória,
o que interessa para o objeto da presente monografia adstringe-se à analise dos
Livros I e II, principalmente em razão da rigidez das atividades jurisdicionais dar-se
separadamente. Nessa direção, havia dispositivos, já revogados, que expressavam
a separação entre os processos, tais como os arts. 162, § 1º, 267, 269 e 463, todos
do Código de Processo Civil.
Assim, o art. 162, § 1º, preconizava que a “sentença é o ato pelo qual o juiz
põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa”, deixando evidente a
compreensão equivocada de o processo ter seu fim com a prolação da sentença.
Com efeito, mesmo antes das reformas do estatuto processual, constituía
equívoco afirmar que o processo encerrava-se com a prolação da sentença, visto
que vários atos são realizados depois dela, tal como o pagamento das despesas do
processo, não se olvidando, também, da possibilidade de interposição de recurso
pelas partes.
No mesmo viés proclamado, o art. 267 do Código de Processo Civil
disciplina algumas hipóteses que levam à “extinção do processo sem julgamento
de mérito” (e.g. quando o juiz indefere a petição inicial ou quando não concorre
qualquer das condições da ação).
Semelhantemente, o art. 269 do Código de Processo Civil adotava a expressão
“extingue-se o processo com julgamento de mérito”, para, depois, disciplinar as
hipóteses que dariam ensejo ao encerramento do processo (e.g. quando o juiz
acolhesse ou rejeitasse o pedido do autor ou quando as partes transigissem).
8
12
ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 75.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
Nesse sentido, merece atenção a adoção do verbo “extinguir” por
ambos os dispositivos, demonstrando findar o processo com a prolação da
sentença que apreciava, ou não, o mérito. Entretanto, a adoção de tal verbo
não condiz com a realidade do processo, pois a sentença não o extingue,
conforme destacado alhures.
Além disso, o art. 463 do Código de Processo Civil estatuía que, “ao publicar
a sentença de mérito, o juiz cumpre e acaba o ofício jurisdicional”. Todavia,
constitui equívoco afirmar que o juiz cumpre e acaba o ofício jurisdicional com a
publicação da sentença de mérito, pois, na maioria das vezes, a mera declaração
da certeza jurídica do direito não elimina de vez o conflito, dependendo da atuação
do comando concreto exarado pelo juiz.9
A doutrina também entende que a ratio desse dispositivo é de que, uma
vez publicada a sentença, o juiz não poderia rejulgar ou modificar aquilo tornado
público. Todavia, a mesma corrente não olvida da possibilidade de interposição
de recursos, em especial da apelação, a qual deverá ser processada pelo juízo que
proferiu a sentença.10
De qualquer modo, depois de esgotadas todas as atividades a serem realizadas
após a prolação da sentença, inclusive ocorrendo formação da coisa julgada, na
hipótese de buscar-se tutela condenatória, é viável entender que há verdadeira
extinção do processo de conhecimento, vindo reiniciar-se a atividade jurisdicional
com a propositura do processo de execução.
Nesse passo, o Código de Processo Civil, em sua estrutura originária, era
claro ao evidenciar que a sentença condenatória abria a via do processo de execução,
variando as medidas executivas de acordo com a natureza da obrigação.11
Com acerto, isso determinava à sentença condenatória que reconhecia a
obrigação de entregar coisa possibilitar a execução por entrega de coisa (arts. 621
a 631); uma condenação em fazer ou não fazer gerar execução de fazer ou não
fazer (arts. 632 a 643); uma condenação em pagar gerar uma execução por quantia
certa contra devedor solvente e suas variantes (arts. 646 a 786-A).
Desse modo, pela estrutura originária do estatuto processual, a execução
da sentença condenatória dava-se de acordo com o tipo de obrigação pleiteada e
já reconhecida na prévia cognição, o que denota a influência do direito material
no processo.
9
10
11
ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 73.
BUENO, Cássio Scarpinella. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil. 1. ed. São Paulo: Saraiva,
2006, p. 25-26.
BUENO, Cássio Scarpinella. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil. 1. ed. São Paulo: Saraiva,
2006, p. 280.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
13
Além disso, os dispositivos citados confirmam a tentativa do legislador de
universalizar a sentença condenatória, a ponto de considerá-la capaz de tutelar
todas as pretensões de direito material que envolvam prestação.
Nesse viés, segundo sua concepção original, o Código de Processo Civil era,
no mínimo, contraditório, dado que seus pressupostos (compreensão primitiva de
jurisdição; classificação ternária das sentenças; dicotomia dos processos), apesar de
se relacionarem, não se compatibilizavam com a estrutura do estatuto processual,
se interpretados sob o ângulo sistemático.
Isso porque é incoerente defender a universalidade da sentença condenatória,
que pressupõe a necessária precedência da cognição sobre a execução, diante da
existência, no estatuto processual civil, de procedimentos ditos sincréticos (e.g.
ações possessórias), mesmo antes das recentes reformas.
Na mesma direção, a tentativa de universalizar a sentença condenatória,
de modo a não aceitar a existência autônoma dos provimentos mandamentais e
executivos lato sensu, constitui claro equívoco, se observarmos que estes últimos
provimentos dispensam a propositura de novo processo.12
De qualquer modo, para este capítulo importa observar que o processo civil
brasileiro, não obstante a existência das ações sincréticas, adotou a dicotomia entre
os processos de conhecimento e execução, constituindo a sentença condenatória a
porta de acesso para a prática de atos executivos em nova estrutura processual.
Abstraído o fato de a separação entre as atividades jurisdicionais
importar em demora na solução dos litígios, há o equívoco de impor à sentença
condenatória a qualidade de solução a todas as pretensões de direito material
que envolvam prestação.
Em razão disso é que o processo civil brasileiro sofreu sucessivas alterações
a fim de torná-lo coerente sistematicamente, bem como para ressaltar as garantias
fundamentais do texto constitucional, principalmente sob o ângulo da prestação
jurisdicional adequada e efetiva, conforme se demonstrará a seguir.
1.3
PRESTAÇÃO JURISDICIONAL SOB A ÓTICA DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988
Segundo a doutrina clássica, jurisdição implica o dever do Estado de dar
solução aos conflitos por meio da declaração do direito.
12
14
Apesar de demonstrarmos a seguir que o fato das atividades de conhecimento e execução dar-se na mesma
relação processual, não esgota a diferenciação entre os provimentos. Todavia, não há como negar que essa
peculiaridade impulsionou os estudos iniciais de tentativa de considerar os novos instrumentos de tutela como
categorias autônomas.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
Todavia, essa declaração do direito não se mostra suficiente para resolver,
de forma definitiva, o litígio, visto que, muitas vezes, é necessário que o EstadoJuiz determine a prática de atos tendentes a efetivar o direito material previamente
reconhecido. Em outras palavras, além de declarar o direito, o Poder Judiciário
tem o dever de entregar ao requerente o bem material objeto da lide, adotando
medidas executivas para tanto.13
Em vista desse dever, parece correto sustentar que a divisão das atividades
judicantes em processos separados (cognição precedida de execução) implicava
excessiva demora na prestação jurisdicional, comprometendo a imagem do Poder
Judiciário como o eleito do Estado para dar solução aos conflitos.
Além disso, o rigor da separação dos processos criava a situação irracional
e embaraçosa de submeter as partes à nova citação em decorrência da propositura
do processo de execução, além da possibilidade de embargos do devedor.14
Em face disso, o advento da Constituição de 1988 conferiu importante
contribuição à formulação da estrutura moderna do Código de Processo Civil, ao
estabelecer princípios norteadores15 das recentes reformas processuais.
Para o objeto desta monografia, digno de atenção é o princípio da
inafastabilidade da jurisdição, preconizado no art. 5, inciso XXXV, da Constituição
Federal, ao estabelecer que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário,
lesão ou ameaça a direito”.
Com efeito, a nosso sentir, referido princípio tem duas óticas: a primeira
delas é um comando para o legislador prover a sociedade e o Poder Judiciário
de instrumentos que permitam realizar materialmente o direito; a segunda é
direcionada ao Poder Judiciário que não deve admitir prestação jurisdicional
baseada somente na declaração do direito.
Em razão disso, pode-se afirmar que o princípio da inafastabilidade
da jurisdição conferiu altíssima contribuição à sociedade, em razão de servir
de contorno à atuação legislativa no fomento de novas leis propiciadoras da
13
14
15
Interessante observação faz Araken de Assis: “Em sede cognitiva, a missão judicial transforma o fato em
direito; na execução, o direito, ou seja, a regra jurídica concreta, há de traduzir-se em fatos”. ASSIS, Araken
de. Manual do processo de execução. 8 .ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 95.
Quanto ao interesse prático em estabelecer-se uma forma de tutela jurisdicional que preste satisfatividade final
e definitiva a determinados direitos materiais, sem a exigência irracional e mortificante de ter o litigante de
percorrer o árduo caminho do procedimento executivo autônomo, com todos os percalços e inconvenientes
da defesa (embargos do executado), parece, ao menos, com os juristas familiarizados com nossa experiência
forense, assunto que dispensa maiores justificações. SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução
na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 11.
“[...] os princípios são constitutivos da ordem jurídica, revelando os valores ou os critérios que devem orientar
a compreensão e a aplicação das regras diante das situações concretas.” MARINONI, Luiz Guilherme. Estudos
de direito processual civil. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 27.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
15
modernização do Código de Processo Civil, em especial voltadas à atuação
jurisdicional adequada e eficaz.
Evidentemente, para que o Poder Judiciário possa prestar uma tutela
satisfativa, de forma a desincumbir-se de seu dever perante a sociedade, necessário
é ser dotado de instrumentos legais capazes de efetivar, plena e adequadamente, o
direito. Nesse viés, são as palavras de José Miguel Garcia Medina:
Falar-se em jurisdição estatal destituída de instrumentos que permitam
realizar materialmente o Direito implicaria reduzir significativamente
sua importância e razão de ser, especialmente se se considerar que,
na sociedade moderna, cada vez mais tem sido a preocupação com
a materialização dos direitos.16
Assim, o conceito moderno de jurisdição expressa o dever do Poder
Judiciário de declarar o direito e, em ato contínuo, buscar satisfazê-lo por meio
da efetiva alteração no mundo dos fatos, demonstrando, desse modo, preocupação
com as necessidades de direito material.
De outro lado, importante princípio constitucional é aquele esculpido no
art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal, ao preconizar que, “a todos, no
âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo
e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Destarte, além de tornar o processo civil coerente sistematicamente ao ampliar
o mecanismo unitário de tutela,17 as sucessivas reformas do estatuto processual
buscaram viabilizar as garantias fundamentais aplicáveis ao processo.
Portanto, representa avanço, no direito brasileiro, a estrutura que goza o
estatuto processual contemporâneo, pois, coerente com seu próprio sistema e com
as garantias fundamentais, constitui resposta às demandas por efetividade do direito,
ao passo que desmistifica a fictícia a tentativa doutrinária de considerar a obsoleta
sentença condenatória como resposta a todas as pretensões de direito material.18
Nesse viés, adotamos as lições de Humberto Theodoro Júnior, ao assim se
posicionar:
Daí por que as últimas e mais profundas reformas do processo civil
têm-se voltado para a via da execução civil. Seu maior objetivo
tem sido, nessa linha, a ruptura com figuras e praxes explicáveis no
16
17
18
16
MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil: teoria geral: princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 32.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 113.
SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 47.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
passado, mas completamente injustificáveis e inaceitáveis dentro das
perspectivas sociais e políticas que dominam o devido processo legal
em sua contemporânea concepção de processo justo e efetivo.19
2
REFORMAS NA SISTEMÁTICA DO PROCESSO CIVIL
2.1
LEI N. 8.952/1994. TUTELA ANTECIPADA. OBRIGAÇÕES DE
FAZER OU NÃO FAZER
As reformas do estatuto processual tiveram como ponto de partida a alteração
do art. 273 do Código de Processo Civil, materializada pela Lei n. 8.952/1994, ao
introduzir, em nosso ordenamento jurídico, o instituto da tutela antecipada.
De fato, o instrumento da tutela antecipada teve o mérito de inaugurar,
no processo civil, a possibilidade de cognição e execução darem-se na mesma
estrutura processual, importando isso em uma mitigação do princípio da autonomia
do processo de execução.
Isso porque, segundo o art. 273 e §§, se houver fundado receio de dano ou
ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou, ainda, manifesto propósito
protelatório do réu, torna-se possível a adoção imediata de medidas executivas
dentro do próprio processo de conhecimento, antes mesmo de ser proferida sentença
definitiva do pedido deduzido.20
Desse modo, no procedimento da tutela antecipada, é possível serem
praticadas medidas executivas antes mesmo da definição final acerca da procedência
ou não do pedido do autor, o que implica a conclusão de que há verdadeira inversão
das atividades jurisdicionais, pois a adoção de medidas executivas antecede à
cognição exauriente (mas dá-se necessariamente depois da cognição sumária21).
Em função disso, a correlação entre sentença condenatória e seu cumprimento
por meio do processo de execução entrou em colapso, na medida em que se
19
20
21
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 93.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 104.
“O juiz, quando decide com base em cognição sumária, não declara a existência ou inexistência de um direito;
o juízo sumário é de mera probabilidade. [...] Isso porque o desenvolvimento do contraditório, com a produção
de novas provas, possa fazer com que o julgador chegue a uma conclusão diversa a respeito do direito que foi
suposto provável.” MARINONI, Luis Guilherme. A antecipação da tutela. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2004,
p. 195.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
17
admite execução fora do processo de execução. Nesse sentido, exato se afigura o
ensinamento de Humberto Theodoro Júnior:
Dessa maneira, a reforma do art. 273, ao permitir genericamente
o recurso à antecipação de tutela, sempre que configurados os
pressupostos nele enunciados, na verdade abalou, em profundidade, o
caráter declaratório do processo de conhecimento. De ordinária, a ação
de conhecimento se tornou interdital, pelo menos em potencial.22
Além disso, não vigora no estatuto processual, a separação entre os processos
de conhecimento e execução relativamente às ações de obrigação de fazer e não
fazer, dado que, nesse caso, a adoção das medidas executivas dá-se no mesmo
processo, logo após o deslinde da fase cognitiva.
Nessa direção, a Lei n. 8.952/1994 promoveu a alteração do art. 461 para
assegurar que, no caso de ação de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz possa
conceder a tutela específica da obrigação ou, caso seja procedente o pedido,
determinar providências que assegurem o resultado prático equivalente ao
do adimplemento.
Com efeito, merece destaque a opção do legislador pela busca da tutela
específica no caso de ação que objetive o cumprimento de um fazer ou não fazer
ao conferir poderes ao Juiz (e.g. multa) a fim de propiciar a efetiva entrega da
tutela jurisdicional.23
Ademais, o atual art. 461, com a redação dada pela Lei em comento, conferiu
ao Juiz a possibilidade de concessão liminar da tutela pretendida, desde que
seja relevante o fundamento da demanda e haja fundado receio de ineficácia do
provimento final (art. 461, § 3º), podendo, ainda, impor multa diária ao réu como
forma de compeli-lo a obedecer ao comando jurisdicional (§ 4º do art. 461).
Todavia, o aspecto essencial da alteração promovida no art. 461 do
estatuto processual foi de revigorar os embates doutrinários a respeito da
existência das ações mandamentais no ordenamento jurídico como forma
autônoma de tutela jurisdicional.
Com base nisso, a doutrina apegada à classificação pontiniana entende que
o ato jurisdicional arrematador de uma ação de obrigação de fazer ou não fazer
seria uma sentença mandamental, pois, sendo imediata, não daria ensejo à clássica
separação entre as atividades de conhecimento e execução.
22
23
18
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 105.
ZAVASKI, Teori Albino. Antecipação da tutela e obrigações de fazer e de não fazer. In: WAMBIER, Teresa
Arruda Alvim (Coord). Aspectos polêmicos da antecipação de tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997,
p. 462-468.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
Isso porque, para Pontes de Miranda, na sentença mandamental “o ato do juiz
é junto, imediatamente, às palavras (verbos) – o ato, por isso, é dito imediato. Não
é mediato, como o ato do juiz a que a sentença condenatória alude (anuncia).” 24
De outro lado, há quem entenda que a sentença mandamental nada mais é
do que uma espécie da sentença condenatória, defendendo, para tanto, que ambos
os provimentos tratam-se de sentenças de repercussão física25 ou, de outro lado,
sustentando o fato de a execução dar-se na mesma estrutura processual não ser
suficiente para desnaturar o caráter da condenatoriedade.26
De qualquer forma, evidente a contribuição operada pela Lei n. 8.952/1994
ao inaugurar o procedimento da tutela antecipada e ao modificar o processamento
das ações de obrigação de fazer e não fazer, permitindo, em ambos os casos, a
prática de medidas executivas na mesma relação processual.
Não é demais sustentar que referidas alterações constituem agradável resposta
aos anseios da sociedade de dispor de instrumentos capazes (potencialmente) de
satisfazer e realizar suas pretensões de direito material.
2.2
LEI N. 10.444/2002. ATIPICIDADE DAS MEDIDAS EXECUTIVAS
E OBRIGAÇÃO DE ENTREGAR COISA
Nesse passo, merece atenção a inclusão do § 5º ao art. 461, promovida pela
Lei n. 10.444/2002, ao estabelecer que:
Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado
prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento,
determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa
por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e
coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva,
se necessário com requisição de força policial.
24
25
26
MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo I. 1. ed. Campinas-SP: Bookseller, 1998, p. 224.
O liame unificador da categoria residiria em tratar-se de sentenças de “repercussão física”: sentenças cuja atuação
prática, no mundo dos fatos, implica não efeitos principais ideais, estritamente jurídicos (como as constitutivas
e declaratórias), mas, também, e sobretudo conseqüências concretas, materiais. TALAMINI, Eduardo. Tutelas
mandamental e executiva lato sensu. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord). Aspectos polêmicos da
antecipação de tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 148.
“[…] a sentença condenatória, antes executada necessariamente em outro processo (de execução), passa a ser
executada no mesmo processo. Houve, assim, unificação procedimental entre a ação condenatória e a ação de
execução.” WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia.
Breves comentários à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 133.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
19
De fato, com os olhos voltados para a efetivação da tutela específica, fica
claro o propósito do legislador de conferir ao magistrado a opção de escolher qual
medida executiva ele usará para transformar o direito reconhecido em fatos.
Com efeito, a afirmação supra se coaduna em razão da utilização pela lei da
expressão “tais como”, o que demonstra o caráter meramente exemplificativo das
medidas que podem ser adotadas pelo Juiz para a efetivação da tutela específica.
Assim, o dispositivo ora em comento culminou por mitigar o princípio da
tipicidade das medidas executivas, consagrado para o processo de execução, no
qual, para cada tipo de obrigação, existia um prévio procedimento de quais atos
deveriam ser praticados pelo juiz para propiciar a entrega do direito material. Nesse
sentido, importa trazer à baila os ensinamentos de Cássio Scarpinella Bueno:
O que caracteriza este novo modelo executivo é, pois, sua atipicidade,
assim entendida a possibilidade de o magistrado ser criativo o
suficiente para criar modelos executivos que mais se mostrem idôneos
para dar ao credor a satisfação que o inadimplemento do devedor lhe
vedou. É este o contexto no qual deve ser analisado, interpretado e
entendido o art. 461, §5º do CPC.27
No afã de dar uniformidade ao sistema, a Lei n. 10.444/2002 alargou o
procedimento unitário para abranger as ações cujo objeto seja entregar coisa,
estabelecendo, por meio da inclusão do art. 461-A, que, “na ação que tenha por
objeto a entrega de coisa, o juiz, ao conceder a tutela específica, fixará o prazo
para o cumprimento da obrigação”.
Sobressai da análise do dispositivo o caráter direto que assume o processo
relativamente ao cumprimento de entregar coisa, visto que, uma vez reconhecido
o direito do demandante, o juiz fixará prazo para o cumprimento da obrigação na
mesma estrutura processual.
De outro lado, segundo a dicção do § 2ºdo art. 461-A, caso o demandado
não cumpra o comando no prazo fixado pelo juiz, este expedirá mandado de
busca e apreensão ou imissão na posse, conforme tratar-se de coisa móvel ou
imóvel, respectivamente.
Ademais, desde que oportuno para a efetivação da tutela específica, na ação
de entregar coisa o juiz poderá fazer uso dos poderes conferidos pelos §§ do art.
461, que, por força do § 3º do art. 461-A, aplicam-se a esse procedimento.
Isso signifi ca que o juiz, segundo critérios de proporcionalidade e
adequação, adotará as medidas necessárias para dar cumprimento ao comando
27
20
BUENO, Cássio Scarpinella. Cumprimento da sentença e processo de execução: ensaio sobre o cumprimento
das sentenças condenatórias. In: A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil. 1. ed. São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 289.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
judicial, sem a necessária observância a um procedimento de atos prévios e
específicos, consistindo isso na consagração do princípio da atipicidade das
medidas executivas.
De qualquer modo, o importante é que, para as ações cujo objeto seja
entregar coisa, são praticados atos de conhecimento e execução na mesma estrutura
processual, podendo o juiz, após a expiração do prazo fixado anteriormente e
desde que não obedecido seu comando, adotar as medidas voltadas à satisfação
da prestação inadimplida.
Em face disso, assim como ocorreu em relação às ações que tenham
por objeto um fazer ou não fazer, a inclusão do art. 461-A serviu de amparo
a forte corrente doutrinária filiada à classificação quinária das sentenças, de
idealização de Pontes de Miranda.
De fato, por serem praticados atos de cognição e execução na mesma
relação processual, torna-se difícil a defesa de ser a sentença condenatória
aquela que resolve o conflito na ação de entregar coisa, dado ela pressupor
processo de execução autônomo para a tutela material.28
Desse modo, a doutrina apegada à classificação quinária das sentenças
passou a defender que a sentença resolutória de uma ação de entregar coisa
seria executiva lato sensu, cuja finalidade reside em retirar algo que está no
patrimônio do demandado e colocá-lo no do demandante.29 Com efeito, Garcia
Medina leciona que:
As ações que têm por objeto a entrega de coisa, assim, por conter em
seu bojo as atividades cognitivas (tendentes à definição da existência
do direito) e execução (voltadas à realização do direito declarado),
enquadram-se na categoria denominada pela doutrina de ações
executivas lato sensu, aplicando-se a elas, portanto, as peculiaridades
procedimentais desta categoria de ação.30
Diante dessas alterações, a doutrina quase chegou a um consenso acerca
da adoção pelo nosso sistema da classificação quinária das sentenças, restando a
sentença condenatória para dar solução às ações de obrigação de pagar quantia
28
29
30
Apesar de demonstrarmos a seguir que o fato de as atividades de conhecimento e execução darem-se na mesma
relação processual, não esgota a diferenciação entre os provimentos. Todavia, não há como negar que essa
peculiaridade impulsionou os estudos iniciais de tentativa de considerar os novos instrumentos de tutela como
categorias autônomas.
MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo I. 1. ed. Campinas-SP: Bookseller, 1998, p. 225.
MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil: teoria geral: princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 337.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
21
certa, dado que, para esse tipo de obrigação,31 ainda resistia à necessidade de propor
processo de execução para satisfazer materialmente o direito reconhecido.
2.3
LEI N. 11.232/2005. TÍTULOS EXECUTIVOS JUDICIAIS E
OBRIGAÇÃO DE PAGAR QUANTIA
Com o advento das alterações promovidas pela Lei n. 11.232/2005,
acirraram-se os embates doutrinários acerca da adoção pelo nosso sistema de três
ou cinco categorias de sentenças.
De fato, quando tudo caminhava no sentido de reconhecer as sentenças
mandamentais e executivas lato sensu como categorias autônomas de tutela, a Lei
n. 11.232/2005 tratou de embaralhar os conceitos ao prestigiar o processo unitário
para todas as espécies de obrigação.
Isso porque, atualmente, até mesmo a sentença condenatória executa-se na
mesma estrutura processual, o que fez desaparecer um dos pilares que a distinguia
das tutelas mandamentais e executivas lato sensu, dado que ela (o provimento
condenatório) pressupunha processo de execução em separado para a efetivação
material do comando jurisdicional.
Diante disso, a Lei n. 11.232/2005 culminou por extinguir, finalmente, a
dualidade entre os processos de conhecimento e execução para as ações cujo objeto
seja pagar quantia. Isso porque o art. 475-I, introduzido pela lei em comento,
disciplina que:
Art. 475-I. O cumprimento da sentença far-se-á conforme os arts. 461
e 461-A desta Lei ou, tratando-se de obrigação por quantia certa, por
execução, nos termos dos demais artigos desse Capítulo.
Esse dispositivo deixou às claras aquilo que já vinha sendo adotado como
praxe no Poder Judiciário relativamente ao cumprimento das sentenças de
obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa. Ou seja, adota-se o procedimento
unitário para o cumprimento da sentença.
Isso porque os arts. 461 e 461-A conferiram aos magistrados a possibilidade
de optar pela medida executiva a ser adotada no caso concreto para efetivar
31
22
“Não há, no sistema de direito material, uma obrigação de pagar – quantia certa ou incerta – porque, são os
civilistas que dizem, o pagar dinheiro nada mais é do que um comportamento humano subsumível ao conceito
de dar ou entregar coisa.” BUENO, Cássio Scarpinella. Cumprimento da sentença e processo de execução:
ensaio sobre o cumprimento das sentenças condenatórias. In: A nova etapa da reforma do Código de Processo
Civil. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 283.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
o cumprimento do comando judicial (atipicidade das medidas executivas),
dispensando, destarte, a propositura de processo de execução para tal fim.
De outro lado, concernente ao cumprimento de sentença que reconhece
obrigação de pagar quantia, o art. 475-I estabelece que deverão ser observados os
demais artigos inseridos no capítulo X do Código de Processo Civil. Nesse sentido,
o art. 475-J assim preconiza:
Art. 475-J. Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa
ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o
montante da condenação será acrescido de multa no percentual de
dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto
no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora
e avaliação.
Portanto, fica clara a adoção do processo “sincrético” para dar solução às
demandas cujo objeto seja pagar quantia, visto que, uma vez reconhecido o direito
do demandante à prestação de quantia certa, desde logo terá ele o prazo de 15 dias
(contados do trânsito em julgado) para cumprir o comando judicial.
Em ato contínuo, caso não se efetue o pagamento, será acrescido multa sobre
o valor da condenação e, caso o credor requeira por simples petição, expedir-se-á
mandado de penhora e avaliação, tudo na mesma estrutura processual.
Interessante observar que, diferentemente do procedimento das ações cujo
objeto seja fazer ou não fazer e entregar coisa, nas ações que tenham por objeto
pagar quantia, há um procedimento prévio e específico a ser observado pelo juiz
e pela parte para dar cumprimento ao comando judicial.
Em face disso, o art. 475-J expressamente deixa consignado o valor
percentual de multa a ser acrescido à condenação caso o condenado não cumpra
voluntariamente a sentença. Além disso, não pode o Juiz, de ofício, determinar a
expedição de mandado de penhora e avaliação, pois, para tanto, a lei condiciona
ao requerimento do credor (princípio do dispositivo).
Ademais, após a expedição do mandado de penhora e avaliação, e desde
que resolvida eventual impugnação com efeito suspensivo, deverão ser observadas
as normas que regem o processo de execução por título extrajudicial (art. 475-R)
para se proceder à expropriação dos bens penhorados e propiciar a entrega do
bem da vida.32
32
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 143.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
23
Assim, fica claro que, nesse procedimento, vigora o princípio da tipicidade
das medidas executivas, visto que a lei (e não o juiz) determina quais medidas
executivas devem ser adotadas para a efetivação do direito material.33
Conforme veremos adiante, essa diferença de tratamento para a tutela das
pretensões de prestação pecuniária é determinante para a defesa da permanência da
sentença condenatória em nosso ordenamento jurídico, bem como para a existência
autônoma dos provimentos mandamentais e executivos lato sensu.
De outro lado, surge um problema para todos que se empenham em definir
a natureza jurídica das sentenças, em razão da redação do dispositivo que regula
os títulos executivos judiciais, ao assim estabelecer:
Art. 475-N. São títulos executivos judiciais:
I – a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência
de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia;
Com efeito, a redação do dispositivo é clara ao demonstrar o propósito do
legislador de se esquivar acerca da celeuma que envolve a definição da natureza
jurídica das sentenças, principalmente em razão de não ter mantido expressamente
a sentença condenatória como título executivo judicial (art. 584 do Código de
Processo Civil – dispositivo revogado pela Lei n. 11.232/2005).
Todavia, o que acima afirmado não se harmoniza com a exposição de motivos
da Lei n. 11.232/2005, cujos fundamentos para a abolição da separação entre os
processos foram assim explicitados:
A efetivação forçada da sentença condenatória será feita como etapa
final do processo de conhecimento, após um tempus iudicati, sem
necessidade de um processo autônomo de execução (afastam-se
princípios teóricos em homenagem à eficácia e brevidade); processo
sincrético no dizer de autorizado processualista.34
Em face disso, a posição da comissão de juristas responsável pela elaboração
da Lei n. 11.232/2005 é pela manutenção da sentença condenatória em nosso
ordenamento jurídico, ao fazer menção de que esta seria efetivada como etapa
final do processo de conhecimento.
Todavia, qual seria o motivo determinante para não manter expressamente no
Código de Processo Civil a sentença condenatória como título executivo, dado que a
própria comissão de juristas da Lei n. 11.232/2005 entende que ela permanece?
33
34
24
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves
comentários à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 144.
Apud THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 110.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
Acredita-se que, a par de se esquivar da polêmica sobre a adoção de três
ou cinco categorias de sentenças pelo nosso ordenamento, o legislador brasileiro
foi influenciado pelo parágrafo único do art. 4º do Código de Processo Civil ao
preconizar que é cabível a ação declaratória ainda que já tenha ocorrido a violação
do direito.
Em outras palavras, atenta ao fato de não somente a sentença condenatória
poder ser dotada de eficácia executiva, a comissão de juristas resolveu dar uma
conceituação genérica do que seriam títulos executivos judiciais, justamente
para albergar outros tipos de provimentos. Nesse sentido, as lições de Humberto
Theodoro Júnior:
Ao descrever o título executivo judicial básico, o art. 475-N, redigido
pela Lei 11.232, de 22.12.2005, não mais o restringe à sentença
condenatória civil, pois considera como tal toda “sentença proferida
no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer,
não fazer, entregar coisa ou pagar quantia. Alargou-se, desta forma,
a força executiva das sentenças para além dos tradicionais julgados
de condenação, acolhendo corrente doutrinária e jurisprudencial
que, antes mesmo da reforma do CPC, já vinha reconhecendo
possibilidade, em certos casos, de instaurar execução por quantia
certa também com base em sentenças declaratórias.35
De qualquer forma, não há muita lógica em sustentar que o título executivo
judicial referido no art. 475-N trata-se de sentença condenatória se levado em
consideração que o nosso ordenamento processual já não consagra o processo
autônomo de execução.36
Do mesmo modo, se o título executivo judicial referido no art. 475-N tratarse de provimento condenatório, então as sentenças mandamentais e executivas
lato sensu também o são, dado que o regime para todas parece ser o mesmo
(conhecimento e execução na mesma estrutura processual).37
Em face disso, patente que a modificação no conceito de títulos executivos
judiciais culminou em intensificar as dúvidas acerca da existência das tutelas
mandamentais e executivas lato sensu como categorias autônomas de sentenças.
35
36
37
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 132.
Com exceção, é claro, da execução por títulos extrajudiciais (art. 576), execução contra a Fazenda Pública (arts.
730 a 731) e execução de prestação alimentícia (arts. 732 a 735), que continuam segundo o regime anterior.
Todavia, há uma diferença entre os regimes, pois, no procedimento da ação de obrigação de pagar quantia,
adota-se o princípio da tipicidade das medidas executivas. Além disso, o demandante vitorioso tem que requerer
a expedição de mandado de busca e apreensão e penhora. Diferentemente ocorre no procedimento das ações
de obrigação de fazer e não fazer e entrega de coisa, nas quais o juiz pode, de ofício, determinar medidas
executivas, não necessitando, para tanto, de requerimento do credor.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
25
De qualquer modo, não se pode deixar de considerar a atitude louvável do
legislador brasileiro ao promover ditas alterações, visto que optou por romper com
conceitos e teorias clássicas aplicáveis ao processo para dar proeminência à busca
da satisfação efetiva e célere das demandas. Nesse viés, são as sóbrias lições de
Humberto Theodoro Júnior:
As reformas do Código de Processo Civil, tendentes à implantação
da executio per officium iudicis, correspondem, inquestionavelmente,
a um sadio projeto de medidas aparentemente singelas, mas que
com sabedoria penetram na estrutura de nosso sistema processual,
para, em nome das garantias fundamentais voltadas para a meta do
processo justo, extirpar reminiscências do romanismo anacrônico,
incompatíveis com os modernos anseios de maior presteza e
efetividade na tutela jurisdicional.38
Apesar disso, impera o questionamento acerca da possibilidade de distinção
entre, de um lado, as sentenças mandamentais e executivas lato sensu e, de outro, os
provimentos condenatórios, em face do processo unitário que atualmente adotamos.
Isso porque, se o que diferencia o provimento condenatório dos mandamentais
e executivos lato sensu é o fato de que esses provimentos são executados na
mesma estrutura processual, então já não há mais diferença para com a sentença
condenatória, visto que, atualmente, ela também é executada na mesma relação
processual. Nesse sentido, a posição da doutrina:
Na realidade, a Lei 11.232, de 22 de dezembro de 2005, parece ter
eliminado do processo civil brasileiro regido pelo Código de Processo
Civil o conceito e mesmo a categoria das sentenças condenatórias
puras. Todas as sentenças que declarem a existência de obrigação a
ser cumprida pelo réu comportarão efetivação sine intervallo, ou seja,
mediante o prosseguimento do mesmo processo no qual houverem sido
proferidas, sem apresentação de uma petição inicial, sem citação do
demandado e, portanto, sem o processo executivo distinto autônomo
(sine intervallo). E essas sentenças, às quais a lei outorga a eficácia
de título executivo (art. 475-N, inciso I), serão (a) mandamentais
quando afirmarem a existência de uma obrigação de fazer, não fazer ou
entregar coisa certa ou (b) executivas lato sensu quando se referirem a
uma obrigação em dinheiro. [...] Não sobra espaço, pois, no âmbito do
Código de Processo Civil, para as sentenças condenatórias puras.39
38
39
26
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 109.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
geral do processo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 321-322.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
Apesar do peso da doutrina acima transcrita, entendemos que há espaço para
as sentenças condenatórias em nosso ordenamento jurídico, visto que o fato de as
atividades de conhecimento e execução, atualmente, ocorrerem na mesma relação
processual não esgota a possibilidade de distinguirem-se os provimentos.
Em face disso, por meio de um estudo perfunctório da eficácia preponderante
das sentenças, buscar-se-á estudar as diferenças entre os provimentos judiciais
de acordo com os critérios utilizados para sua classificação e as sucessivas
reformas processuais.
3
DA CLASSIFICAÇÃO DAS SENTENÇAS PELA EFICÁCIA
PREPONDERANTE
3.1
TERNÁRIA E QUINÁRIA: DIFERENÇAS
Não se olvidando acerca da existência de outras formas de classificar
as sentenças,40 para o objeto desta monografia tem importância a classificação
que leva em conta a eficácia preponderante dos provimentos, que se divide em
ternária e quinária.
A classificação segundo a eficácia preponderante procura identificar, de
acordo com a pretensão do autor, a eficácia principal da sentença. Em outras
palavras, procura estabelecer qual eficácia a sentença deve produzir para tutelar
adequadamente a pretensão veiculada pelo demandante.
Nesse viés, Sérgio Muritiba sustenta que “quem postula em juízo tem
sempre determinada pretensão orientada pelo direito material, mas, ao ter que se
submeter ao processo, deve adequá-la a um dos tipos de provimentos colocados
à sua disposição”.41
Apesar de não olvidarmos a concepção autonomista do direito processual em
face do direito material, não se pode negar a co-relação entre os dois ramos do direito,
especialmente se avaliarmos a tendência instrumental do processo moderno.
Com efeito, o mérito da fase autonomista do processo foi de torná-lo uma
ciência independente do direito material, o que contribuiu decisivamente para
o delineamento do sistema, bem como para o amadurecimento dos conceitos
inerentes ao processo.42
40
41
42
Tal como a que divide as sentenças pelo alcance da decisão, as quais podem ser terminativas ou definitivas.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 36.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
geral do processo. 22 .ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 48.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
27
Todavia, apesar de continuar sendo uma ciência autônoma, o processo
moderno deve ser avaliado sob o ângulo externo, por meio da verificação da sua
capacidade de alcançar resultados práticos. Nesse sentido, a prestigiada doutrina
leciona que:
A fase instrumentalista, ora em curso, é eminentemente crítica. O
processualista moderno sabe que, pelo aspecto técnico-dogmático, a
sua ciência já atingiu níveis muito expressivos de desenvolvimento,
mas o sistema continua falho na sua missão de produzir justiça entre
os membros da sociedade. É preciso agora deslocar o ponto-de-vista e
passar a ver o processo a partir de um ângulo externo, Isto é, examinálo em seus resultados práticos.43
Nesse viés, uma das formas de buscar a efetividade do processo é olhando
mais para as vicissitudes do direito material, reconhecendo que a classificação
trinária dos provimentos judiciais não se enquadra em todas as formas de tutela
jurisdicional residentes no ordenamento jurídico.
De qualquer forma, para a classificação tradicional das sentenças, os
provimentos de procedência do pedido são classificados em três grupos (ternária),
denominados declaratório, constitutivo e condenatório.
De fato, nesse momento importa sabermos qual critério foi utilizado pelo
direito processual para classificar as sentenças nesses três grupos. Com efeito, a
doutrina nos ensina que:
Em termos de teoria geral do processo civil, podemos afirmar que
grande parte da doutrina utiliza como critério classificatório das ações
e dos processos os tipos de provimentos jurisdicionais postulados
pelo autor. Para tanto, levam em consideração as eficácias que lhes
são previamente atribuídas, ou seja, as funções técnico-processuais
que esses provimentos ensejam.
Entretanto, essa mesma doutrina tradicional ou clássica, ao
estabelecer dogmaticamente a eficácia processual de cada um dos
tipos de provimentos por ela apontados, por meio de uma postura
metodológica essencialmente autonomista, ignora as situações
jurídico-substanciais carentes de prestação jurisdicional.44
Portanto, por influência da concepção autonomista da ação como direito
autônomo e abstrato, o critério classificatório utilizado foi estritamente processual,
43
44
28
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
geral do processo. 22 .ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 49.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 187-188.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
consistente na eficácia que o provimento produz para tutelar adequadamente
pretensão guerreada pelo demandante.
Nesse viés, a mesma doutrina nos dá uma preciosa lição acerca das eficácias
dos provimentos, nesses termos:
Assim, sucintamente, podemos afirmar que o provimento
condenatório é tipificado por sua aptidão para habilitar o processo
de execução; o constitutivo, pela possibilidade de modificar
uma relação jurídica material; e, finalmente, o declaratório, pela
indiscutibilidade jurídica que pode produzir numa certa relação
jurídica material ou situação de fato.45
Com efeito, patente que a tipologia clássica dos provimentos não dá
suporte a todas as situações jurídico-substancias dependentes de tutela, sendo
impositivo considerar a existência de outras categorias, desde que por critérios
estritamente processuais.
Atento a isso, Pontes de Miranda foi um dos primeiros a relativizar a
classificação clássica das sentenças segundo sua eficácia preponderante, criando as
tutelas mandamentais e executivas lato sensu, desencadeando, então, a classificação
quinária das sentenças. Nesse sentido, o renomado jurista assim se posiciona:
A preocupação da ciência do direito até há pouco foi a de conceituar as
ações e classificá-las como se cada uma delas só tivesse uma eficácia:
uma fosse declarativa; outra, constitutiva; outra, condenatória; outra,
mandamental; outra, executiva. O que nos cumpre é vermos o que as
enche, mostrarmos o que nelas prepondera e lhes dá lugar numa das
cinco classes, e o que vem dentro delas, em espectração de efeitos. Não
só, por conseguinte, vermo-las por fora, mas também por dentro.46
Desse modo, ao lado da contribuição conferida ao direito processual civil
de identificar que nenhum provimento judicial tem somente uma eficácia,47 Pontes
de Miranda lançou as bases para a criação de novos tipos de sentenças com vistas
à efetivação do direito material, dado que erigiu os provimentos mandamentais e
executivos lato sensu como categorias autônomas de provimentos.
Em seus estudos, Pontes de Miranda visualizou categorias de tutela que
não se enquadram no conceito clássico da sentença condenatória, dado que não
45
46
47
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 190.
MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo I. 1. ed. Campinas-SP: Bookseller, 1998, p. 140.
“Não há nenhuma ação, nenhuma sentença, que seja pura. Nenhuma é somente declarativa. Nenhuma é somente
constitutiva. Nenhuma é somente condenatória. Nenhuma é somente mandamental. Nenhuma é somente executiva.” MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo I. 1. ed. Campinas-SP: Bookseller, 1998, p. 137.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
29
pressupõem a separação entre processos para serem efetivadas materialmente no
mundo dos fatos.
Nesse ponto, reside uma das maiores controvérsias do direito processual
brasileiro, pois, de um lado, a doutrina tradicional reluta fortemente em considerar
as sentenças mandamentais e executivas lato sensu como espécies do gênero
sentença condenatória; e, de outro lado, há forte tendência de considerá-las como
categorias autônomas.
Desse modo, o ponto nodal dos embates doutrinários reside em saber se a
sentença condenatória mantém-se no ordenamento jurídico pátrio em virtude da coexistência de atividades cognitivas e executivas na mesma relação processual.
Isso porque, segundo a conceituação clássica, a sentença condenatória
seria o provimento que garantiria a abertura do processo de execução, por meio
da formação de título executivo judicial, ficando claro existir entre a sentença
condenatória e o processo de execução uma necessária co-relação.
Todavia, não existindo mais processo de execução em separado, seria possível
ainda pressupor a existência da sentença condenatória? E existe a possibilidade de os
provimentos mandamentais e executivos lato sensu serem considerados categorias
autônomas, assim como a sentença condenatória, ou aqueles provimentos estão
embutidos nessa última?
Com apoio nessa acirrada discussão doutrinária, este trabalho monográfico
visará definir se o nosso atual sistema processual reconhece três ou cinco tipos de
eficácias sentencias, tendo como base a estrutura processual recente e o critério
processual utilizado para classificar as sentenças.
3.2
ESPÉCIES DE SENTENÇAS
3.2.1 SENTENÇA DECLARATÓRIA
A sentença declaratória caracteriza-se por declarar a existência ou a
inexistência de uma relação jurídica ou a autenticidade ou a falsidade de um
documento (art. 4º, caput, do Código de Processo Civil).
Portanto, destina-se o provimento declaratório a afastar a dúvida acerca
de uma relação jurídica.48 Em face disso, não há a pretensão de um algo mais, no
48
30
“A ação declarativa é ação a respeito de ser ou não ser a relação jurídica. Supõe a pureza (relativa) do enunciado
que se postula; por ele, não se pede condenação, nem constituição, nem mandamento, nem execução. Só se
pede que se torne claro (de-clare), que se ilumine o recanto do mundo jurídico para se ver se é, ou se não é, a
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
sentido de que a prestação jurisdicional “acaba” quando se afasta a incerteza que
influenciou a propositura da demanda.
Dito de maneira diversa, em razão da própria natureza do provimento,
não há a intenção de serem adotadas medidas tendentes a executar a sentença
declaratória, pois, ao postular-se uma pretensão declaratória, estar-se-ia limitando
a atividade jurisdicional à mera declaração do direito. Nesse sentido, a doutrina
leciona que:
Em resumo: a ação meramente declaratória é cabível nos casos em que
se pretende certificação de relação jurídica com intenção de induzir
a parte passiva a determinado comportamento, ou em situações
nas quais, mesmo dependendo, a restauração da ordem jurídica e a
satisfação plena do autor, de alteração fática ou jurídica, a pretensão
do autor limita a atividade jurisdicional, apenas certificando da
violação da norma, mas não agindo para torná-la concreta.49
Em razão disso não há mais atividade alguma a ser desempenhada pelo órgão
estatal, estando satisfeita a parte vitoriosa com a simples declaração judicial.50
Com efeito, nos dizeres de Pontes de Miranda, o interesse jurídico pela
declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica pode produzir
“direito, pretensão, ou ação, ou exceção, ou se há de o autor defender-se, ou
excepcionar, no futuro, quanto a tal direito, pretensão ou faculdade”.51
Todavia, apesar de a pretensão declaratória ter interesses jurídicos embutidos
(e ainda não tuteláveis),52 não é demais reiterar que a sua finalidade limita-se à
simples verificação e declaração do direito ao caso concreto, não se revestindo de
força executiva.
Com efeito, a compreensão clássica da sentença declaratória, como o
provimento que se limita à declaração do direito, desprovido de qualquer eficácia
49
50
51
52
relação jurídica de que se trata. O enunciado é só enunciado de existência. A prestação jurisdicional consiste
em simples clarificação.” MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo I. 1. ed. Campinas-SP: Bookseller,
1998, p. 132.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 41.
Isso fica mais evidente ao se analisarem os exemplos, já citados, de ações declaratórias, tais como a ação tendente a afastar a existência ou inexistência de uma relação jurídica ou declarar a autenticidade ou a falsidade
de um documento, nas quais, com a mera declaração judicial, positiva ou negativa, dá-se, de pleno, a função
jurisdicional, não restando mais o que pedir de atuação do julgador.
MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo I. 1. ed. Campinas-SP: Bookseller, 1998, p .133.
Por isso que Pontes de Miranda sustentava que a pretensão declaratória “trata-se de pretensão, a que talvez falte
ação de direito material”. MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo I. 1. ed. Campinas-SP: Bookseller,
1998, p. 211.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
31
executiva, ajusta-se à concepção arcaica de jurisdição e ressalta a autonomia do
processo de execução.53
Todavia, podemos afirmar que o conceito de sentença declaratória sofreu
considerável abalo em razão da redação do parágrafo único do art. 4º do estatuto
processual, ao dispor que “é admissível a ação declaratória, ainda que tenha ocorrido
a violação do direito”.
Assim, a estrutura original do Código de Processo Civil de 1973 já dava
viçosos sinais acerca da possibilidade de executar-se um provimento de natureza
declaratória. Apenas a doutrina e a jurisprudência ainda não tinham evoluído para
conceber essa faculdade.
Desse modo, pela redação do dispositivo trazido a lume, nos casos em que
já tenha ocorrido a violação do direito, o sistema processual passa a admitir a
ação “meramente declaratória”. Entretanto, o que significa isso? Significa dizer
que, embora sendo cabível a ação condenatória, pois já foi violado o direito, o
demandante pode optar pela via declaratória.
De fato, violado o direito, o mais apropriado seria propor uma ação
condenatória, pois, caso procedente a pretensão, estaria aberta a via do processo
de execução, qualidade (ou eficácia) que não possui a ação declaratória.
Entretanto, optando o demandante pela propositura da ação declaratória
e estando confirmada, em ampla cognição, a efetiva violação do direito e a
conseqüente obrigação a ser cumprida pelo demandado, poderia aquele executar
o provimento de natureza declaratória?
Nesse caso, a resposta é positiva, desde que a sentença declaratória contenha
todos os elementos da obrigação, tal como defende a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça em acórdão proferido pelo Ministro Teori Zavascki:
O art. 4º, parágrafo único do CPC considera “admissível a ação
declaratória ainda que tenha ocorrido a violação do direito”,
modificando, assim, o padrão clássico da tutela puramente
declaratória que a tinha como tipicamente preventiva. Atualmente,
portanto, o Código dá ensejo a que a sentença declaratória possa fazer
juízo completo a respeito da existência e do modo de ser da relação
jurídica concreta. Tem eficácia executiva a sentença declaratória
que traz definição integral da norma jurídica individualizada. Não
há razão alguma, lógica ou jurídica, para submetê-la, antes da
execução, a um segundo juízo de certificação, até porque a nova
53
32
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 43.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
sentença não poderia chegar a resultado diferente do da anterior, sob
pena de comprometimento da garantia da coisa julgada, assegurada
constitucionalmente.54
Em razão disso, patente a flexibilização do conceito clássico da sentença
declaratória pela jurisprudência e pela doutrina55 pátrias, dado que reconhecem a
possibilidade de esse provimento ser dotado de força executiva, desde que traga
em si a definição integral da obrigação.
Nesse ponto, merece destaque a jurisprudência pátria, que, influenciada
pela redação do parágrafo único do art. 4º do estatuto processual e mesmo
antes das recentes reformas processuais, já entendia ser possível que a sentença
declaratória fosse dotada de força executiva, mesmo que isso fosse contrário à
essência do provimento.
Todavia, em razão da redação dada ao art. 475-N, inciso I, do estatuto
processual pela Lei n. 11.232/2005, fica bem menos complexa a tarefa de sustentar
a qualidade de título executivo judicial às sentenças declaratórias.
Isso porque o dispositivo supracitado, conforme já discutido, sustenta tratarse de título executivo judicial a sentença que reconhece a existência de um fazer,
não fazer, entregar coisa ou pagar quantia.
Em face da adoção do verbo “reconhecer” para conceituar os títulos
executivos judiciais do inciso I do art. 475-N, a doutrina vem sustentando que
não apenas a sentença condenatória pode formar título executivo judicial, mas,
também, no caso, a sentença declaratória, desde que ela reconheça a existência de
uma obrigação. Nesse sentido, a doutrina leciona:
A expressão ‘reconheça a existência de uma obrigação’, segundo
entendemos, significa que a sentença deve conter todos os elementos
da relação jurídica obrigacional, identificando, precisamente, partes
credora e devedora, natureza e objeto da obrigação, etc.56
Desse modo, afinada à consagrada jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça, a doutrina vem admitindo a possibilidade de executar-se uma sentença
54
55
56
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 1ª Turma. REsp n. 588.202 – PR. Relator: Teori Albino Zavascki.
Brasília, DF, 10 fev. 04. DJ de 25.02.04, p. 123.
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo de execução: parte geral. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004,
p. 307-313; THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. 1. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 132-138; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA,
José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006, p. 165-168.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves
comentários à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 167.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
33
declaratória, desde que ela reconheça a existência de uma obrigação certa e exigível,
ainda que ilíquida.57
No entanto, ignorando a jurisprudência pátria, bem como a redação do
parágrafo único do art. 4º do estatuto processual, há quem entenda que o art.
475-N, inciso I, do Código de Processo Civil regula o provimento condenatório,58
em nítido apego à classificação ternária dos provimentos.
Todavia, pela pretensão veiculada pelo autor da demanda, torna-se possível
distinguir se a parte deduz um pedido preponderantemente declaratório, constitutivo
ou condenatório. Assim, se a parte deduz uma pretensão notadamente declaratória,
mesmo quando já violado o direito, a sentença final reconhecedora da violação do
direito e da conseqüente obrigação estaria fechada à execução?
Levando em consideração a estrutura processual recente, bem como a
necessidade de prestar uma tutela jurisdicional adequada e justa, acreditamos
poder mitigar o conceito clássico da sentença declaratória para passar a admitir
sua execução, tal como se sentença condenatória fosse.
Isso porque se a sentença declaratória conferir um juízo de certeza acerca
do direito a ser tutelado, regulando a obrigação de direito material com todos
seus elementos, não haverá diferença para a sentença condenatória, ressalvando
a possibilidade de este último provimento abrir a via do processo de execução.
Nessa direção, Eduardo Talamini leciona que:
A sentença condenatória apenas se diferencia da declaratória quando já
houve ‘violação do direito’ (CPC, art.4º, parágrafo único) por autorizar
posterior processo executivo – ou seja, ‘algo que lhe é exterior’, mas
cuja origem está no próprio conteúdo do provimento.59
De tal modo, ainda que deduzida uma pretensão notadamente declaratória
quando já violado o direito, se a sentença contiver todos os elementos da obrigação,
somente por pura incoerência lógica seria sustentável admitir o fechamento da via
executória com fundamento na impossibilidade de um provimento de natureza
declaratória não poder ser dotado de eficácia executiva. No mesmo viés, Humberto
Theodoro Júnior leciona:
57
58
59
34
“Caso a sentença declaratória contenha todos os elementos da obrigação, mas não faça referência ao valor
devido, admitir-se-á sua liquidação, tal como ocorre com a liquidação da sentença condenatória.” WAMBIER,
Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova
sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 167.
BUENO, Cássio Scarpinella. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil. 1. ed. São Paulo: Saraiva,
2006, p. 132-137.
TALAMINI, Eduardo. Tutelas mandamental e executiva lato sensu e a antecipação da tutela ex vi do art.461,
§3º, do CPC. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos da antecipação de tutela. 1.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 147.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
Seria pura perda de tempo exigir, em prejuízo das partes, e da
própria Justiça, a abertura de um procedimento condenatório em tais
circunstâncias. Se o credor está isento da ação condenatória, bastando
dispor de instrumento particular para atestar-lhe o crédito descumprido
pelo devedor inadimplente, melhor será sua situação de acesso à
execução quando estiver aparelhado com prévia sentença declaratória,
onde se ateste a existência de dívida líquida e já vencida.60
Assim, verifica-se a tendência da processualística moderna ao prestigiar a
capacidade do processo de concretizar resultados efetivos, estimulando, desse modo,
uma releitura da classificação das sentenças segundo o efeito preponderante.
3.2.2 SENTENÇA CONSTITUTIVA
Com efeito, por meio de uma sentença constitutiva, a parte pretende a
constituição, a modificação ou a extinção de uma relação jurídica. Com base nisso,
a doutrina de Pontes de Miranda sustenta que “a constitutividade muda em algum
ponto, por mínimo que seja, o mundo jurídico”.61
Assim, nas ações constitutivas, a declaração é ato que antecede à constituição
positiva, modificativa ou extintiva de uma relação jurídica. Nesse sentido, precisas
são as palavras de Sérgio Muritiba:
Podemos apontar, na elaboração de um provimento constitutivo,
dois momentos sucessivos: o da verificação da procedência de uma
pretensão à modificação – quando declara existir vontade concreta da
lei nesse sentido – e o momento da modificação – quando passa a fazer
parte do conteúdo da sentença constitutiva o ato de modificar.62
Portanto, a sentença declaratória assemelha-se à sentença constitutiva,
mas dela difere, pois esse provimento vai além da mera declaração do direito,
para, em momento posterior, mas contínuo, constituir, modificar ou extinguir
uma relação jurídica.
De fato, é notório que as partes podem livremente constituir relações
jurídicas como decorrência do princípio da autonomia privada. Assim, a
celebração de um contrato entre as partes “a” e “b” configura hipótese de
60
61
62
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 135-136.
MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo I. 1. ed. Campinas-SP: Bookseller, 1998, p. 216.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 45.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
35
constituição de uma relação jurídica negocial, pela qual, hipoteticamente, ficará
pactuado que “a” obriga-se a um fazer perante “b”, e este ficará obrigado a pagar
quantia pelo serviço prestado.
Desse modo, se as partes podem, livremente, constituir relações jurídicas,
também podem desconstituí-las sem a necessidade de ingressar com uma ação no
Judiciário para esse fim. Todavia, essa afirmação é em parte verdadeira, dado que,
em determinadas hipóteses, somente por meio de ação pode-se constituir, modificar
ou extinguir uma relação jurídica, pois a lei assim determina. Nesse viés, Pontes
de Miranda leciona que:
Às vezes, a eficácia constitutiva, positiva, negativa, ou modificativa,
pode ocorrer com a simples declaração de vontade. Outras vezes, é
preciso que se exerça a ação constitutiva, com prazo preclusivo, ou
sem prazo preclusivo, conforme a lei que reja a espécie.63
Por essas razões, somente por meio de ação constitutiva pode-se decretar
um divórcio, a anulação de um casamento, a interdição de uma pessoa, o
reconhecimento de uma paternidade, entre outras espécies de tutela constitutiva.
Com efeito, o preceito obtido por uma sentença constitutiva é capaz, por si
só, de provocar a alteração na situação jurídica das pessoas envolvidas no litígio,
não demandando a adoção de medidas concretas para fazer atuar o direito.
Em suma, o comando da sentença constitutiva incide na esfera jurídica das
partes independentemente da realização de qualquer medida material.64 Nesse
sentido, exemplo corrente é o da ação de divórcio, pois a decretação da dissolução
do casamento, desde logo, produz o efeito jurídico de romper o vínculo existente
entre as partes.
3.2.3 SENTENÇA CONDENATÓRIA
É controversa a polêmica que envolve o estudo da sentença condenatória,
ficando a doutrina dividida entre considerar o provimento condenatório universal,
de modo a englobar os provimentos mandamentais e executivos lato sensu, ou
considerar esses últimos como categorias autônomas.
63
64
36
MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo III. 1. ed. Campinas-SP: Bookseller, 1998, p. 40.
“Nesta tarefa, constatamos que o preceito obtido na sentença constitutiva é passível de ser concretizado,
incidindo diretamente na esfera das pessoas em litígio, sem que nada mais precise ser feito pelas partes da
relação jurídica processual. Dessa forma, a sentença constitutiva é, por si só, suficiente para atuação do direito,
dando-se por satisfeito o autor, com a simples emissão da sentença de procedência.” MURITIBA, Sérgio. Ação
executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 46.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
Com efeito, a tradicional classificação ternária das sentenças somente
considera existente três tipos de provimentos (declaratório, constitutivo e
condenatório), vindo, posteriormente, os provimentos mandamentais e executivos
lato sensu a serem considerados categorias autônomas de tutela segundo os estudos
de Pontes de Miranda.
De todo modo, considerar as tutelas mandamentais e executivas lato sensu
como categorias autônomas implica, lógica e necessariamente, reconhecer a
existência de diferenças técnico-jurídicas desses provimentos em relação à sentença
condenatória, de modo a justificar a impossibilidade de enquadrá-los na mesma
categoria jurídica.
Nesse passo, a doutrina concebia a sentença condenatória como sendo o
provimento que, reconhecendo a existência de um direito violado, aplicava a
sanção correspondente, consistente na abertura da via do processo de execução
forçada, apto a fazer cumprir o comando judicial (caso o condenado não o cumpra
voluntariamente)65.
De fato, o conceito clássico de sentença condenatória influenciou a estrutura
original do processo civil pátrio ao separar, em processos distintos, as atividades
jurisdicionais de conhecimento e execução, dado notar-se uma necessária correlação
entre o provimento condenatório e o processo de execução.
Em primeira análise, a doutrina apegada à classificação quinária dos
provimentos sustenta a impossibilidade de introduzir os provimentos mandamentais
e executivos lato sensu no gênero sentença condenatória, porque, naqueles
provimentos, as atividades de conhecimento e execução dão-se na mesma estrutura
processual.
Desse modo, coexistindo conhecimento e execução na mesma relação
processual, não seria possível enquadrar os novos provimentos na categoria da
sentença condenatória, pois esta pressupõe a propositura de um novo processo
para adotarem-se medidas executivas.
De qualquer modo, a existência de procedimentos diferenciados na estrutura
original do processo civil brasileiro já sinalizava que a classificação ternária
dos provimentos não dava respaldo a todas as necessidades do direito material,
conforme já mencionado alhures.
Isso porque, a título exemplificativo, somente por equívoco classificar-se-ia
a sentença da ação possessória como sendo condenatória, justamente porque, no
65
“Em outras palavras, é a sentença condenatória, entre as demais espécies de sentença, a única que participa
do estabelecimento, a favor do autor, de um novo direito de ação (ação executiva, ou executória), que é o
direito à tutela jurisdicional executiva.” CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 324.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
37
procedimento desta ação, conhecimento e a execução são atividades da mesma
relação processual, sem a separação de processos que caracteriza, classicamente,
o provimento condenatório.
Em face disso, notadamente influenciada pelos estudos iniciais de Pontes
de Miranda, a doutrina passou a projetar novas formas de tutela das necessidades
de direito material, que, dificilmente, se enquadram no conceito de sentença
condenatória.
Em face disso, Eduardo Talamini, ao citar as impressões de Liebman acerca
do direito italiano, dá exemplo interessante sobre a dificuldade de conceber formas
diferenciadas de tutela (tais como os provimentos mandamentais e executivos lato
sensu) como sendo espécies do gênero condenatório, nesses termos:
Liebman, por exemplo, assumiu posição coerente. Afirmou como
característico das condenatórias os dois aspectos mencionados em
a e b acima. Só que, diante de novas formas de tutela estabelecidas
pelo direito positivo italiano, com as características típicas das
mandamentais (a sentença de reintegração de empregado e o decreto
que ordena a cessação de comportamentos “anti-sindicais”), não
ousou classificá-las como condenatórias. Tratou de chamá-las de
“figuras anômalas”.66
Apenas para ilustrar, o problema maior na doutrina que defende a
classificação ternária dos provimentos é não focar nas peculiaridades do direito
material que, muitas vezes, requer a prestação de uma tutela jurisdicional imediata,
sem a injustificável necessidade de propor outro processo (de execução) para obter
a satisfação da pretensão perseguida em juízo.
Em outras palavras, diante das peculiaridades que o direito material impõe
para ser efetivado, às vezes é necessário que o provimento judicial seja dotado de
eficácia diferenciada, que não seja, obviamente, a consistente em impor a satisfação
de o direito dar-se em processo separado, com todos os seus percalços.
Nesse passo, há quem defenda que a sentença condenatória sequer poderia
ser considerada como instrumento jurídico de tutela do direito material, haja vista
a necessidade de se ajuizar outra ação para propiciar a tão esperada modificação
no mundo dos fatos (com a entrega do bem litigioso).67
Com efeito, merece razão a doutrina mencionada, pois, se a sentença
condenatória, ao reconhecer a violação do direito, somente constitui título
66
67
38
TALAMINI, Eduardo. Tutelas mandamental e executiva lato sensu e a antecipação da tutela ex vi do art. 461,
§ 3º, do CPC. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos da antecipação de tutela.
1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 148.
MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil: teoria geral: princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 302.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
executivo hábil a abrir a via do processo de execução, claro está que ela não tutela
satisfatoriamente o direito material, que somente será efetivado com a propositura
do processo executório.
Em razão disso é que a doutrina, principalmente a moderna, passou a
contestar o conceito clássico da sentença condenatória, bem como o modelo
processual concebido para a tutela da pretensão condenatória. Nesse sentido,
precisas são as palavras de José Miguel Garcia Medina:
Nesses termos, considerando que deve ser realizada, como princípio,
cognição tendente a verificar a existência do direito afirmado pelo
autor da demanda, e que a pretensão do demandante diz respeito à
obtenção do bem devido, cremos que a atual sentença condenatória
deveria ser substituída por outra, que compreendesse a realização
das duas atividades referidas acima (cognição e execução) na mesma
relação jurídico-processual68.
Pelo que foi até aqui afirmado, parece correto supor que a diferença entre os
provimentos condenatórios, de um lado, e os mandamentais e executivos lato sensu,
de outro, residiria na desnecessidade, para os dois últimos provimentos, de propor
ação de execução em separado para dar satisfação material ao demandante.69
Todavia, para o objeto deste trabalho de monografia, cumpre-nos ir adiante
e focar mais para o aspecto interno das sentenças condenatórias, mandamentais e
executivas lato sensu para estabelecermos maiores diferenças entre os provimentos,
que não seja a fundamentada tão-somente no aspecto exterior ou procedimental
das ações.70
Desse modo, buscaremos concluir algo além da afirmação de que as
sentenças mandamentais e executivas lato sensu nada mais são do que sentenças
condenatórias executadas na mesma relação jurídico-processual.
Ab initio, as sucessivas reformas processuais culminaram por prestigiar
a execução de provimentos na mesma estrutura processual, em clara mitigação
do conceito clássico de sentença condenatória, se observado sob o aspecto
procedimental.
68
69
70
MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil: teoria geral: princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 305.
Assim, os provimentos mandamentais e executivos lato sensu são dotados de força executiva imediata, na
medida em que dispensam a propositura de processo de execução, característico da sentença condenatória,
para dar cumprimento à decisão judicial.
Conforme já salientado, pelo aspecto procedimental, a sentença condenatória caracteriza-se pela necessidade
de propor-se ação de execução em separado para dar cumprimento à decisão judicial; ao passo que as mandamentais e executivas lato sensu caracterizam-se, justamente, pela execução da sentença dar-se no mesmo
processo em que ela foi proferida.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
39
Em face disso, sob o aspecto procedimental, o conceito clássico de sentença
condenatória perdeu sua importância, visto que mitigado, mas isso não significa,
logicamente, sustentar sua inexistência no ordenamento jurídico, conforme será
destacado no capítulo seguinte.
Com efeito, com o foco para o caráter interno do provimento, importa
sabermos o que a sentença condenatória, no fundo, pretende tutelar e se, para tanto,
necessário se faz a propositura de processo de execução em separado.
Nesse sentido, já foi consignado que a sentença condenatória possui a
finalidade de, reconhecendo a violação do direito, aplicar a sanção que, por meio
da formação do título executivo, abre a via da execução forçada, a dar-se em
processo separado.
Nesse ponto, a sentença condenatória assemelha-se à sentença declaratória,
com exceção da característica de formar título executivo, dado que se limita a
reconhecer a violação do direito. No mesmo viés, Garcia Medina leciona que “a
sentença condenatória nada reprime ou previne, apenas reconhece (= declara) a
violação ocorrida e a sanção a ser aplicada”.71
Assim, a satisfação do direito reconhecido pelo provimento condenatório
somente se efetivará se, não cumprida espontaneamente a obrigação, o demandante
propuser o processo de execução.
Todavia, há alguma razão jurídica, especialmente influenciada pelo direito
material, que justifique as atividades cognitivas e executivas realizarem-se em
processos separados, mesmo já havendo cognição completa, consubstanciada pela
sentença condenatória?
Por meio dos ensinamentos de Ovídio Batista, parece que a resposta à
indagação, além de jurídica, é histórica:
A sentença condenatória, por sua própria natureza e função, conserva
os traços essenciais da obligatio romana, mantendo-se fiel ao princípio
de sua originária incoercibilidade, a ponto de reduzir-se a condenação
a uma mera exortação que a sentença faz ao condenado, confiando
em que ele, espontaneamente, cumpra o julgado.72
Na mesma direção, o festejado doutrinador sustenta que a obligatio romana
caracterizava-se por um vínculo eminentemente pessoal entre credor e devedor,
destituída de cárater de patrimonialidade, o que tornava juridicamente incoercível o
71
72
40
MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil: teoria geral: princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 400.
SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 57.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
dever que recaía sobre o obrigado.73 Em razão disso, diante do devedor condenado,
ficava o credor impotente para obter, sem a colaboração daquele, a satisfação de
seu direito, haja vista a não-patrimonialidade da obrigação do direito romano.74
Como consequência da ausência de patrimonialidade da obrigação e sua
incoercibilidade jurídica, Ovídio Batista alerta para a inexistência, no direito
romano, de uma execução processual tal como existente no direito moderno.75
Desse modo, ausente a patrimonialidade e incoercível juridicamente a
obligatio romana, não havia a possibilidade de sujeitarem-se os bens do devedor ao
cumprimento da obrigação, restando ao credor aguardar o cumprimento espontâneo
da obrigação pelo devedor, para, caso este não se manifestasse, buscar a tutela de
seu direito por meio da propositura da actio iudicati, perante o pretor.
Essa estrutura procedimental de tutela do direito obrigacional romano
apresenta semelhanças com a nossa atual sentença condenatória, na medida em
que nosso ordenamento jurídico também privilegia o cumprimento espontâneo da
obrigação. Nesse sentido, Ovídio Batista leciona que:
[…] essa originária incoercibilidade do vínculo obrigacional,
determinante da natureza e função da condemnatio – a pressupor o
espontâneo cumprimento por parte do condenado – conserva seus
traços muito visíveis no direito moderno, não obstante a natureza
patrimonial de nossa execução e seu caráter jurisdicional, a prescindir
inteiramente da vontade do executado.76
Nesse viés, a estrutura do processo moderno, ao prestigiar o intervalo entre
as atividades de conhecimento e execução,77 dá a oportunidade para o condenado
cumprir espontaneamente a obrigação, ficando clara a influência do procedimento
da actio romana na formação do sentido da sentença condenatória78.
73
74
75
76
77
78
SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 50.
“[…] a obligatio correspondia, como era de sua natureza, desde as origens, a um vínculo de sujeição, de que
o obrigado haveria de libertar-se através de um ato pessoal e voluntário de prestação”. SILVA, Ovídio Araújo
Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997,
p. 50.
SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 51.
SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 52.
Conforme se observa da redação do art. 475-J do CPC, ao exprimir que o devedor condenado ao pagamento
de quantia terá o prazo de 15 dias para efetuar o pagamento, e, caso não seja efetuado, o devedor subordina-se
a adoção de medidas executivas ao pedido do credor.
Com efeito, isso se mostra evidente pela redação do art. 580 do Código de Processo Civil (revogado pela Lei
11.382/2006): Art. 580. Verificado o inadimplemento do devedor, cabe ao credor promover a execução. Parágrafo único. Considera-se inadimplente o devedor, que não satisfaz espontaneamente o direito reconhecido
pela sentença, ou a obrigação, a que a lei atribuir a eficácia de título executivo.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
41
Com efeito, no direito romano, o procedimento da actio foi inicialmente
concebido para a tutela das pretensões de direito obrigacional, existindo, de outro
lado, o instrumento da vindicatio para a tutela das pretensões de direito real. Nesse
sentido, importa trazer à baila as lições de Ovídio Batista:
Originariamente existiam somente dois meios jurídicos: a ação e a
reivindicação. Toda reivindicação era dirigida pelo pretor, enquanto
a fórmula da actio apoiava-se no fato de que o pretor dava um iudex.
O direito real corresponde à reivindicação, e o direito das obrigações
corresponde à ação.79
Vê-se, então, que, no direito romano primitivo, tutelava-se o direito material
de forma diferenciada, pois, enquanto na reivindicatória o demandante vitorioso
poderia buscar privadamente a realização do seu direito, no procedimento da actio era
diferente em razão da natureza da obligatio romana, impondo ao credor aguardar o
cumprimento espontâneo da obrigação. Nesse sentido, Ovídio Batista leciona que:
Enquanto o proprietário que fora vitorioso na ação reivindicatória
realizava privadamente seu direito, apossando-se da coisa, o credor,
ao lançar mão do devedor condenado, permanecia tão impotente
quanto antes para obter, sem a colaboração do obrigado, a satisfação
do seu crédito, tendo em vista a não-patrimonialidade da obligatio
nas fases primitivas do direito romano.80
Nessa direção, a diferença marcante entre um e outro instrumento de tutela
das pretensões romanas reside na imediatidade que caracterizava o procedimento
da vindicatio, pois, uma vez procedente a pretensão do demandante, ele poderia
buscar privadamente a realização do seu direito, retirando o possuidor considerado
ilegítimo de sua propriedade.81
De outro lado, no procedimento da actio não era dado essa possibilidade,
pois, concebida para a tutela das pretensões de direito obrigacional que não
possuíam a característica de patrimonialidade e coercibilidade jurídica, impunha
ao credor aguardar o cumprimento espontâneo da obrigação.82
Nesse viés, cumpre-nos ressaltar que, no direito romano clássico, a obligatio
era concebida como uma relação de direito pessoal, conforme já visto, pois alguém se
79
80
81
82
42
SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 64.
Apud MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil: teoria geral: princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004, p. 313.
“Se a propriedade é um direito absoluto, seu exercício não pode ser impedido, razão pela qual se permitiria
ao proprietário restituir-se na posse da coisa por sua própria força.” MEDINA, José Miguel Garcia. Execução
civil: teoria geral: princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 314.
Logicamente, verificado que o devedor não cumpriu espontaneamente sua obrigação, poderia o credor buscar
a tutela de sua pretensão por meio da actio iudicati, que tramitava perante o pretor.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
obrigava perante outrem a um dar, fazer ou não fazer. Desse modo, originariamente,
a obligatio não era propriamente uma relação de débito-crédito.83
Todavia, existia uma relação jurídica prévia entre o devedor e o credor
que os ligava. Dito de maneira diferente, a obligatio pressupunha a existência de
um prévio acertamento de encargos entre os contratantes, criando uma relação
jurídica entre eles.
Apesar de existir o direito a uma prestação, fundado na preexistente relação
jurídica entre as partes, na hipótese de inadimplemento o credor ficava adstrito
a aguardar o cumprimento voluntário da obrigação, pois o caráter pessoal e
não patrimonial da obligatio, somado à jurisdição notadamente declaratória
daquela época, impedia a possibilidade de uma atuação jurisdicional romana
mais efetiva.84
De outro lado, na hipótese de apossamento ilegítimo de uma propriedade
(direito real), não há como sustentar a preexistência de uma relação jurídica entre
o usurpador e o proprietário. Logo, não havia qualquer prestação a ser cumprida
pelo esbulhador, que deveria tão-somente suportar a ação do proprietário para
reaver seu domínio.
Com isso, no fundo, o que realmente diferenciava o direito real (como
direito absoluto) de um lado, do direito obrigacional (direito pessoal), de outro,
era a ausência de prestação a ser cumprida pelo usurpador de uma propriedade,
visto que ele somente deveria suportar a ação do legítimo proprietário para reaver
seu domínio.
Todavia, os estudos relativos à doutrina das ações terminaram por equiparar,
no âmbito do processo, os direitos absolutos, relativos, pessoais e reais, ao ponto
de sujeitá-los todos ao tratamento da sentença condenatória. Nesse sentido,
Chiovenda afirma que, “falando de obrigação, entende-se todo direito a uma
prestação, porquanto, como vimos, todo direito, absoluto ou relativo, se apresenta
como obrigação no momento do processo”.85
Essa equiparação é tratada por Ovídio Batista como a universalização da
sentença condenatória, na medida em que todas as pretensões de direito material
ficaram albergadas sob o manto desse provimento.86
83
84
85
86
SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 50.
Ressalvada a possibilidade, já mencionada, de recorrer-se ao pretor por meio da propositura da actio iudicati.
Apud SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 48.
“Vê-se, então, com bastante clareza, que a generalização da ação condenatória, tanto para o direito de propriedade quanto para os direitos de crédito, exigiu a redução de todo o Direito Material a uma relação obrigacional
de débito-crédito”. SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 49.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
43
Por esse motivo, passou-se a entender que até mesmo o esbulhador de uma
propriedade alheia tinha uma prestação a cumprir em favor do legítimo proprietário,
consistente em restituir aquilo que não é seu mesmo que não houvesse uma relação
jurídica prévia entre eles.
Assim, sustenta Ovídio Batista, houve verdadeira inversão no papel
assumido pelo “devedor” de uma relação de direito real, pois, doravante passou
a agir positivamente para satisfazer o interesse do legítimo detentor do direito,
enquanto, no direito romano primitivo, apenas suportava a atividade do titular do
direito dirigida à satisfação do seu interesse.87
Com efeito, assumindo que, no exemplo do usurpador de propriedade alheia,
não existe uma relação jurídica anterior entre este e o legítimo proprietário, pode-se
afirmar que o alargamento do conceito de obrigação pela doutrina processualística
findou por permitir a criação de obrigações em razão do proferimento de uma
sentença. Nessa direção, Ovídio Batista sustenta que:
[...] uma vez proposta a ação real, uma imaginária litis contestatio,
faria surgir “várias obrigações”, das quais, como diz Voci, a última
seria a de prestar, como devedor, a obrigação reconhecida na sentença,
mesmo que antes da demanda nenhuma obrigação existisse entre as
partes. O usurpador torna-se devedor em virtude de sentença! Mais:
torna-se devedor, como disse Chiovenda, em razão de processo!88
Todavia, somente com o passar dos anos, percebeu-se que a sentença
condenatória, por vezes, é obsoleta ao representar verdadeiro obstáculo para a
tutela efetiva de certas pretensões de direito material. Nesse sentido, Ovídio Batista
leciona que:
Somente agora, passado mais de um século, é que os juristas procuram
restabelecer o elo perdido entre processo e direito material, seja para
resgatar o princípio da instrumentalidade do processo, seja, a partir
desta idéia fundamental, para investigar os instrumentos de tutela
processual, de modo que o direito material se liberte da servidão a
que fora submetido pela ciência processual.89
87
88
89
44
“Em última análise, a prestação que correspondia ao obrigado, e num sentido mais genérico ao devedor, era
uma obrigação de tolerar, ou de sofrer, a ação do titular do direito, não como agora uma obrigação positiva de
dar ou fazer, que implicasse uma ação positiva do obrigado.” SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e
execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 53.
SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 69-70.
SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 172.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
Voltando à primeira indagação proposta,90 chegamos à conclusão de que o
direito material não influenciou a estruturação do processo moderno sob seu caráter
dúplice, muito pelo contrário, visto que tratou de considerar todas as pretensões
semelhantes, de modo a receber a mesma tutela jurídica.
De qualquer modo, não se pode ignorar a influência da jurisdição romana
na formação do conceito de sentença condenatória, notadamente inspirada no
procedimento da actio, que demandava do credor a invocação do Estado por duas
vezes para ver cumprido materialmente seu direito.91
Com efeito, para reforçar aquela resposta, cumpre-nos lembrar que isso
decorre da teoria autônoma e abstrata do direito de ação, aceita pela doutrina
majoritária, ao entender que “o direito de ação independe da existência efetiva
do direito material invocado”.92 Isso porque, conforme veremos adiante, a
desvinculação do direito material à ação foi decisiva na classificação das ações e
das sentenças segundo critérios de natureza estritamente processual.
Após essa digressão histórica sobre a influência do direito romano primitivo
na formação do conceito hodierno de sentença condenatória, cumpre-nos perscrutar
quais são as pretensões de direito material adequadas para esse tipo de provimento,
já que, no plano empírico, é sabido que ela não tutela a todas satisfatoriamente.
Nesse sentido, a doutrina entende que o campo específico de atuação da
sentença condenatória situa-se nos direitos de prestação, ou seja, “temos de
pressupor a necessidade do ato de prestar do titular passivo da relação jurídica,
seja no sentido de dar, fazer ou não fazer”.93
Ressaltou-se linhas atrás que a sentença condenatória tem uma co-relação
com o processo de execução, pois ela possibilita, por meio da formação do título
executivo, que o demandante postule a satisfação de seu direito por meio de medidas
executivas a serem determinadas pelo Estado-Juiz.
90
91
92
93
Se há alguma razão de ordem jurídica, influenciada pelo direito material, que justifique as atividades cognitivas
e executivas realizarem-se em processos separados, mesmo já havendo cognição completa, consubstanciada
pela sentença condenatória.
Humberto Theodoro leciona que, no direito primitivo romano, a ação iniciava perante o pretor, que dava
um iudex. Todavia, esse iudex não detinha poderes para, ele mesmo, satisfazer a pretensão do demandante,
pois, além da obligatio romana ter o cárater de pessoalidade e não-patrimonialidade, a jurisdição romana era
notadamente declaratória. Desse modo, necessário seria o demandante ingressar com uma nova ação, a actio
iudicati, perante o pretor, para compelir o devedor ao cumprimento da obrigação. THEODORO JÚNIOR,
Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 97-98.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
geral do processo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 268.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 62-63.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
45
Desse modo, a sentença condenatória, com a formação do título executivo,
abre a via do processo executivo na qual serão praticados atos materiais voltados
ao cumprimento das obrigações de dar, fazer ou não fazer.
Com efeito, já que o direito reconhecido na sentença condenatória será
efetivado no processo de execução, é imperioso ter notícia do conceito de execução
segundo a doutrina, in verbis: “no sentido técnico-processual, somente pode ser
considerada atividade executiva o conjunto de atos destinados à consecução do
bem outorgado pelo direito, aptos a produzir modificações empíricas necessárias,
independentemente da vontade do obrigado”.94
Por esse viés, possuindo a execução a finalidade de, independentemente do
concurso da vontade do obrigado, tornar concreta no mundo dos fatos a obrigação
descumprida, claro está que a ação condenatória não é o instrumento jurídico
adequado para a tutela das obrigações de fazer ou não fazer.
É em razão disso que Sérgio Muritiba, com apoio em notável corrente
doutrinária, sustenta que “a ação condenatória, na visão de Liebman, de Carnelutti
ou de Calamandrei, apenas habilita a execução forçada, ou seja, aquela que se
desenvolve por meios executivos de sub-rogação”.95
Nesse ponto, o meio executivo de sub-rogação caracteriza-se pela ação
positiva do Estado-Juiz em conseguir o bem da vida esperado pelo credor,
independentemente da participação do devedor.96
Em virtude disso, entende-se que a ação condenatória não é o instrumento
jurídico adequado para a tutela de obrigações de fazer ou não fazer, justamente por
esses direitos serem personalíssimos e, por isso, insuscetíveis de serem contornados
pela atividade estatal por meio da sub-rogação.97
Isso porque é evidente que, se a obrigação corresponde a um fazer ou não
fazer, somente a parte passiva da relação obrigacional a pode cumprir, sendo
impossível a substituição da vontade do devedor pelo Estado-Juiz, por meio da
sub-rogação, para tutelar a pretensão do credor.
Com efeito, quando a obrigação consiste em uma ação positiva do devedor,
ou seja, um fazer, uma vez descumprida tal obrigação, o Estado não tem como,
94
95
96
97
46
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 65.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 66.
ZAVASKI, Teori Albino. Processo de execução: parte geral. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.
95.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 67.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
sem o concurso da vontade daquele, satisfazer a pretensão do credor, a não ser que
utilize meios de coerção98 para compelir ao cumprimento.
De qualquer modo, ainda que utilizados meios de coerção, se o devedor
persistir em não cumprir a obrigação, restará ao credor somente a indenização por
eventuais perdas e danos em razão do descumprimento, passando ao largo o dever
do Judiciário de buscar entregar a tutela específica.
De outro lado, tratando-se de uma obrigação de cunho negativo (um não
fazer), Sérgio Muritiba leciona que:
Para o titular do direito somente dois caminhos se tornam possíveis:
ou se requer técnica processual que consagre os meios de coerção,
convencendo o demandado a não praticar o ilícito, ou se utiliza
a técnica condenatória. Nesse caso, a condenação só poderia ser
utilizada depois de descumprida a obrigação, cuidando de garantir
o desfazimento do ato, desde que possível a sub-rogação, ou
concedendo o equivalente pecuniário (perdas e danos).99
De fato, surgindo o interesse somente quando já violado o dever de abstenção,
fica evidente a insuficiência da sentença condenatória para tutelar o exato direito
pretendido pelo credor, consistente no cumprimento específico da obrigação.
De qualquer modo, nesse ponto, conclui-se que a sentença condenatória
somente se presta a tutelar as obrigações passíveis de sub-rogação, ou seja, aquelas
obrigações em que o Estado pode substituir a vontade do devedor para, por meio
da agressão ao seu patrimônio, satisfazer o direito do credor.
No mesmo sentido, Sérgio Muritiba sustenta a existência de um campo
mais específico de atuação da sentença condenatória, apesar de ela ser concebida
como o instrumento jurídico de tutela das pretensões que admitem a utilização de
meios de sub-rogação.100
Para tanto, por meio de uma incursão histórica, o doutrinador leciona que,
no séc. XIX, influenciado pela ideologia liberal, que defendia valores como o nãointervencionismo estatal e a livre circulação de mercadorias, houve o crescimento
dos chamados direitos patrimoniais, fazendo surgir o dogma segundo o qual,
98
99
100
Humberto Theodoro leciona que “os meios de coerção, citam-se a multa e a prisão, que se apresentam como
instrumentos intimidativos, de força indireta no esforço de obter o respeito às normas jurídicas. Não são medidas próprias do processo de execução, a não ser em feitio acessório ou secundário”. THEODORO JÚNIOR,
Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. II. 36. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 8.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 68.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 72.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
47
violado um direito, a sanção sofrida pelo transgressor era quase sempre uma
prestação pecuniária.101
Em face do crescimento dos direitos patrimoniais, naquela época passouse a entender ser necessário criar um instrumento adequado à entrega do valor
pecuniário, mesmo que ele decorra da violação a um direito de natureza diversa.
Nesse viés, Sérgio Muritiba afirma que “todo direito haveria de ter um preço ao
ser violado e a sentença, ao condenar o réu, afirmava não só a existência desse
direito, mas também quanto ele valia”.102
Em razão disso é que a atividade executiva passou a orientar-se no sentido
de possibilitar a entrega de tal bem (dinheiro), justificando-se, desse modo, a
razão da existência do processo de execução forçada, pelo qual o Estado-Juiz, por
meio da sub-rogação e da expropriação, atua para extrair valores do patrimônio
do devedor.103
Todavia, arremata o mesmo doutrinador que por motivos de coerência, “a
estrutura já desenvolvida para execução no modelo expropriatório-pecuniário foi
erigida como paradigma para as demais formas de execução”,104 justificando-se
o fato de a execução das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa seguir
o mesmo tratamento jurídico das execuções que têm por escopo uma prestação
pecuniária.
Nesse ponto, ao analisar o Código de Processo Civil após as sucessivas
reformas processuais, podemos afirmar que Sérgio Muritiba está com razão ao
considerar a sentença condenatória o instrumento jurídico adequado para a tutela
das pretensões que envolvam entregar quantia.
Apesar de, no processo civil clássico, todas as obrigações estarem submetidas
ao processo de execução, observa-se na estrutura processual recente que o legislador
optou por conceber formas diferenciadas de tutela processual, deslocando algumas
obrigações do processo executivo autônomo.
101
102
103
104
48
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 72-75.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 75.
“Se o processo de execução, numa visão dominante, cuida de submeter o patrimônio do devedor para que dele
se extraiam valores para satisfazer um direito violado, nada melhor que a criação de um processo somente para
isso. Nesse contexto, devido à grande complexidade do procedimento expropriatório, cercado de formalidades
a fim de garantir aos litigantes máxima segurança, passa a haver o interesse prático no desenvolvimento do
processo de execução.” MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2005, p. 77.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 78.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
Com efeito, essa opção do legislador certamente foi influenciada pelas
peculiaridades do direito material, que, muitas vezes, necessita ser tutelado de
forma imediata, sem a necessidade de um processo de execução em separado.
Em razão disso, com as sucessivas reformas processuais, retiraram-se
do processo de execução as obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa, que
passaram a ser tuteladas por meio de um processo unitário. Assim, restou somente
a obrigação de pagar quantia a ser tutelada por meio do processo de execução.
Todavia, em virtude da adoção do processo unitário também para as
obrigações de pagar quantia, poder-se-ia afirmar que continua sendo condenatório o
provimento que resolve todos os tipos de obrigação que envolva prestação, apenas
diferenciando de seu conceito clássico pelo fato de ser materializado na “fase
processual de execução”, não mais em processo de execução em separado.
De qualquer modo, ainda que todas elas sejam atualmente tuteladas por meio
de um processo unitário, há uma diferença primordial que separa o tratamento
jurídico dispensado às obrigações de pagar quantia das obrigações de fazer, não
fazer e entregar coisa, reforçando o fato dessas últimas pretensões serem tuteladas
por categoria diversa de provimento.
Nesse sentido, observamos que a antiga sistemática processual executiva
consagrava um prévio procedimento dos atos que seriam perpetrados para tutelar
cada tipo de obrigação, consubstanciado no princípio da tipicidade das medidas
executivas.105
Assim, para cada tipo de obrigação, existia um procedimento prévio, fechado
(pois deles o magistrado não poderia se desviar), dos atos a serem praticados
para proporcionar a entrega do bem jurídico litigioso por meio da propositura do
processo de execução.
Todavia, além de deslocar as obrigações de fazer, não fazer e entregar
coisa para o procedimento unitário de tutela, as recentes reformas processuais
prestigiaram o princípio da atipicidade das medidas executivas, podendo o juiz,
por meio de critérios de adequação e proporcionalidade, escolher o meio executivo
adequado para satisfazer a pretensão do demandante.106
De outro lado, manteve-se, para as obrigações de pagar quantia, o princípio
da tipicidade das medidas executivas, pois a lei expressamente prevê quais atos
materiais deverão ser praticados para tutelar a pretensão do demandante.107
105
106
107
De acordo com o princípio da tipicidade das medidas executivas, a esfera jurídica do executado somente poderá ser afetada por formas executivas taxativamente estipuladas pela norma jurídica. MEDINA, José Miguel
Garcia. Execução civil: teoria geral: princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004,
p. 406.
Essas questões foram abordadas no subcapítulo 2.2.
Vide subcapítulo 2.3.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
49
Realmente, como o processo de execução foi concebido para dar tutela às
pretensões de natureza pecuniária, desenvolveu-se um procedimento detalhado
de atos próprios a interferir no patrimônio do devedor para retirar o bem material
suscetível de dar satisfação ao credor.
Nesse viés, como a intromissão no patrimônio constitui uma verdadeira
agressão, na medida em que o Estado-Juiz, imperativamente, retira algo do
patrimônio alheio que possa ser convertido em pecúnia, necessário era o demandado
ter “previsibilidade acerca dos modos de atuação executiva possíveis, porquanto a
existência de um rol expresso de medidas executivas permite antever de que modo
a execução se vai realizar”.108
Nesse ponto, reside a diferença primordial alegada linhas atrás.
Com efeito, ao fazer uma comparação da estrutura retrógrada com a atual,
percebemos que, apesar de hoje o processo unitário ser regra, a estrutura processual
recente manteve para a tutela das pretensões que envolvam prestação pecuniária a
tipicidade das medidas executivas, conforme pode ser observado pela análise do
art. 475-J ao impor ao Juiz a fixação de multa no valor de 10% da condenação no
caso de descumprimento da obrigação.
Desse modo, não se dá ao Juiz a oportunidade de optar por tal ou qual
medida, visto que a lei expressamente impõe a medida adequada a ser aplicada
ao caso concreto (e.g. multa sobre o valor da condenação).
De outro lado, observamos que a estrutura processual recente ainda prestigia
o intervalo entre a fase de conhecimento e de execução para que o condenado
cumpra espontaneamente a obrigação, consubstanciado no art. 475-J, ao estabelecer
prazo de quinze dias para o devedor efetuar o pagamento.
Por fim, pela análise do mesmo dispositivo, evidencia-se que o EstadoJuiz não detém poderes para, de ofício, abrir a fase processual de execução, pois
a norma condiciona essa abertura ao requerimento do demandante (princípio
do dispositivo). Assim, somente com o pedido do credor poderá ser expedido o
mandado de penhora e avaliação.
Com efeito, essa última prescrição normativa adequa-se fielmente ao
conceito clássico de sentença condenatória, ao expressar que ela somente exorta
o devedor ao cumprimento da obrigação, que, caso descumprida, somente poderá
ser efetivada em processo de execução autônomo a ser proposto pelo credor.
Ademais, a recente lei processual consagra que após a expedição do mandado
de penhora e avaliação, deverão ser observadas as normas que regem o processo
108
MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil: teoria geral: princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 406.
50
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
de execução por título extrajudicial (art. 475-R) para proceder à expropriação
dos bens penhorados e propiciar a entrega do bem da vida, ficando claro que a lei
prevê, passo a passo, como se dará a atividade executiva.
Portanto, podemos afirmar que o campo específico de atuação da sentença
condenatória situa-se nas pretensões que envolvam prestação pecuniária, pois,
conforme visto, o processo de execução clássico foi idealizado para sua tutela.
Nesse viés, apesar de o processo unitário ser atualmente regra no processo
civil, acredita-se que a sentença condenatória ainda é o instrumento jurídico
de tutela das pretensões que envolvam prestação pecuniária, uma vez que
continua a se submeter aos mesmos princípios aplicáveis segundo a égide da
sistemática anterior.
Desse modo, necessário somente adequar o conceito clássico de sentença
condenatória, para o provimento que produz a eficácia consistente em possibilitar
a abertura da “fase processual de execução”, no qual serão observados o princípio
do dispositivo, da tipicidade de medidas executivas e do procedimento previsto na
lei processual que regula a expropriação de bens do devedor.
3.2.4 SENTENÇA EXECUTIVA LATO SENSU
Com efeito, nos próximos dois subcapítulos, estudaremos se é possível
sustentar a existência autônoma dos provimentos executivos lato sensu e
mandamentais, de modo a afastar a compreensão de Dinamarco de que elas nada
mais são do que sentenças condenatórias, com a peculiaridade de serem executadas
na mesma relação processual em que geradas.109 Até mesmo porque essa afirmação
pode ganhar relevo diante das recentes reformas do estatuto processual brasileiro,
ao contemplar o procedimento unitário (no qual conhecimento e execução são
atividades da mesma relação processual) para a tutela de todas as pretensões de
direito material que envolvam prestação.
Diante disso, Pontes de Miranda, precursor da tutela executiva lato sensu, a
definiu como o provimento que “retira valor que está no patrimônio do demandado,
ou dos demandados, e põe-no no patrimônio dos demandantes”.110
Até aqui, todavia, não encontramos diferença alguma do provimento
condenatório, é certo. Entretanto, o mencionado autor assim se posiciona:
109
110
Apud MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 156.
MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo I. 1. ed. Campinas-SP: Bookseller, 1998. p. 225.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
51
Quem reivindica, em ação, pede que se apanhe e retire a coisa, que
está, contrariamente a direito, na esfera jurídica do demandado e lha
entregue. Nas ações de condenação e executivas por créditos não se
dá o mesmo: os bens estão na esfera jurídica do demandado acorde
com o direito; porque o demandado deve, há a condenação dele e
a execução que é a retirada do bem, que está numa esfera jurídica
para outra [...].111
Nesse ponto, co nforme já sustentado no subcapítulo anterior, Ovídio
Batista foi um dos doutrinadores que prosseguiu nos estudos de Pontes de Miranda,
analisando inclusive historicamente as razões da existência dos provimentos
executivos lato sensu em nosso ordenamento jurídico.112
Com base na sua digressão histórica, Ovídio Batista sustenta que a essência
das ações executivas lato sensu é extraída da distinção da actio (de natureza
obrigacional) para a vindicatio (de natureza real), ambos instrumentos de tutela
processual do direito romano primitivo.
Com efeito, pressupondo a existência de um direito real para o manejo da
vindicatio, entendia-se que usurpador de uma propriedade alheia somente deveria
suportar a ação do legítimo proprietário para reaver seu domínio, dado inexistir
uma relação jurídica anterior entre eles.
Com base nisso, para Ovídio Batista a atual ação executiva lato sensu
corresponde à primitiva vindicatio romana, na medida em que ambas destinam-se a
retirar algo que está no patrimônio alheio contrariamente ao direito para colocá-lo
no patrimônio do real proprietário da coisa.113
Desse modo, Ovídio Batista sustenta que a adequação das ações executivas
lato sensu, é tão-só, à tutela das pretensões de natureza real. Todavia, nesse
ponto, o citado doutrinador equivoca-se, pois não distingue as pretensões de
natureza real das pretensões de natureza obrigacional que objetivam a entrega
de coisa certa.
Dito de maneira diferente, há casos em que a pessoa possui um determinado
bem (um cavalo, por exemplo) que lhe é retirado arbitrariamente, o que lhe permite
111
112
113
52
Apud SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 16.
Ovídio Batista salienta que, apesar de Pontes de Miranda ter atingido o ponto crucial da diferença entre
sentenças condenatórias e executivas, ao estabelecer que, na ação executiva, o bem que o autor postula está
no patrimônio do réu, contrariamente ao direito, “não investigou Pontes de Miranda e nem o fizeram Satta
e Carnelutti, as razões históricas e ideológicas que impuseram o obscurecimento dessa clara distinção entre
as duas formas de tutela jurisdicional, contentando-se todos em permanecer no terreno do puro dogmatismo
[...]” SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 17.
De outro lado, existira a actio para tutelar as pretensões de dar, fazer e não fazer.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
acionar o Judiciário para buscar a defesa de seu direito (real). De outro lado, há a
hipótese daquela mesma coisa ser objeto de uma relação obrigacional, pela qual
uma pessoa se obriga a entregá-lo e não entrega. Nessa hipótese, também o credor
poderá buscar a tutela de seu direito, que, apesar ter natureza real, deriva de uma
relação obrigacional.
A crítica à posição de Ovídio Batista, ao sujeitar tão-somente as pretensões
de natureza real ao instrumento jurídico executivo lato sensu, é de que, no exemplo
acima, somente haveria tutela jurídica por esse instrumento na primeira hipótese,
em que o legítimo proprietário foi desprovido de seu bem. Essa assertiva é bem
trabalhada por Sérgio Muritiba, in verbis:
Já nos casos de direito obrigacional, para Batista da Silva, mesmo que
se tratasse de pretensão obrigacional de obtenção de coisa certa, ainda
que certificada pelo juiz a existência de obrigação e o cometimento
da infração, a ação material de recuperação da coisa perseguida não
poderia emergir imediatamente, ou seja, sem processo de execução. A
coisa devida não poderia ser imediatamente retirada da esfera jurídica
do demandado, pois lá estaria conforme o direito, ou melhor, seria coisa
de sua propriedade. Teria, então, que haver condenação à prestação,
que, se não cumprida, daria ensejo ao processo de execução, único
capaz de possibilitar o ingresso no patrimônio do devedor.114
Em face desse pensamento, Ovídio Batista limita a ação executiva lato sensu
à existência de um vinculo de natureza real entre o demandante e a coisa. De outro
lado, se o bem fosse de propriedade do devedor, que, apesar de ter se obrigado a
entregar ao credor, assim não o fez, a sentença deveria aguardar o cumprimento
voluntário da prestação, apenas condenando-o.
Nesse viés, aderimos à posição de Sérgio Muritiba, contrário a Ovídio
Batista, ao entender que o que determina a adoção de um ou outro instrumento
de tutela não é a natureza jurídica do direito (se é de natureza real, obrigacional,
etc.), mas, sim, as peculiaridades que esse direito impõe, no caso concreto, para
ser efetivado. Nesse sentido, o citado doutrinador leciona que:
Partindo da busca pela efetividade da prestação jurisdicional, devemos
verificar o bem da vida outorgado pelo direito, as características
dos tipos de deveres envolvidos e, finalmente, a técnica processual
que haverá de viabilizá-lo ao seu merecedor, sempre levando em
consideração as circunstâncias nas quais é postulado em juízo.115
114
115
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 165.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 174.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
53
Assim é que, no exemplo dado, uma vez reconhecida a ilegitimidade da
posse do devedor, em ato contínuo, a força executiva imediata caracterizadora da
sentença executiva lato sensu tratará de colocar o bem no patrimônio do credor,
conforme dispõe o art. 461-A do estatuto processual, independentemente de tratarse esse direito de natureza real ou obrigacional.116
Apesar das valiosas lições que extraímos da obra de Sérgio Muritiba, de
uma, ao menos, encorajamo-nos a discordar:
Tornando-se lei o anteprojeto que trata do cumprimento da sentença
que determina o pagamento de quantia certa, passará esta, a nosso
sentir, ter natureza executiva lato sensu. [...] acreditamos tratarse sentença executiva lato sensu, por não ter a eficácia de tornar
adequado o processo de execução, eficácia esta que particulariza a
condenação.117
Com efeito, um dos objetivos deste trabalho é justamente tentar demonstrar
que o fato de o legislador processual ter optado por consagrar o processo unitário
para todas as espécies de pretensões não é suficiente para descaracterizar o
provimento condenatório, a ponto de passar a ser considerado provimento executivo
lato sensu conforme sustenta Muritiba e outros.118
Conforme já destacado por meio das lições desse mesmo doutrinador, o
que demandou a sistemática processual civil retrógrada consagrar a separação
entre os processos de conhecimento e de execução foi ter sido ele idealizado para
dar tutela às pretensões de valor pecuniário. Nesse sentido, o doutrinador que ora
criticamos alega que:
Nesses casos, por não ser possível a prévia individualização dos bens
sobre os quais haverá de recair a atividade executória, estaria o processo
de execução justificado, controlando-se a atividade de encontrar bens
de propriedade do devedor para, então, serem convertidos em dinheiro
mediante meio executório de expropriação. 119
Em face disso, sustentamos que a sentença condenatória continua sendo
o provimento que dá tutela às pretensões de cunho pecuniário, pois, apesar de
116
117
118
119
54
Nesse sentido, Muritiba nos adverte que “o art. 461-A tornou adequada a ação executiva lato sensu para todas
as pretensões quem tenham por objeto entregar coisa certa, obrigação esta tomada no seu sentido lato, ou
seja, derivada de direito real, obrigacional ou ex lege”. MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação
mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 171.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 170.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
geral do processo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 321-322.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 168.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
hoje ser também submetida ao procedimento unitário, ela ainda se submete aos
princípios aplicáveis ao processo de execução, tais como o da tipicidade das
medidas executivas e o do dispositivo, este último revelando a necessidade de o
credor efetuar o pedido de abertura da fase executiva, ante a vedação de o juiz agir
de ofício, conforme se extrai da dicção do art. 475-J, in verbis:
Art.475-J. Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa
ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de 15 dias, o montante
da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento
e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso
II, desta lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação.
Assim, além de estarem expressamente previstas em lei as medidas que o
Juiz pode adotar para compelir o devedor ao cumprimento da obrigação, a fase
executiva somente se inicia com requerimento do credor, justificando, assim, a
permanência do provimento condenatório no nosso ordenamento jurídico, dado
que ainda se submete aos princípios aplicáveis à execução.
Além disso, some-se o fato de a estrutura processual recente ainda pressupor
o intervalo entre a condenação e a abertura da fase de execução, revelando ser a
sentença condenatória a mera exortação do condenado ao pagamento, significando
dizer que não ela comporta força executiva imediata, dado submeter-se a novo
pedido do credor.
De todo modo, conforme já consagrado pela doutrina nacional, o fato
de o cumprimento da sentença condenatória dar-se no mesmo processo que a
originou não descaracteriza o provimento, necessitando, para tanto, somente de
uma adequação de seu conceito clássico às recentes reformas processuais, para
ser concebida, então, como o instrumento que possibilita a abertura da “fase
processual de execução”.
Em face disso, acreditamos que a observação feita por Sérgio Muritiba em
sua obra foi fruto de descuido, dado não se compatibilizar com as demais opiniões
nela expostas.
De outro lado, há quem afirme que a sentença condenatória de nada difere das
sentenças mandamentais e executivas lato sensu, pois o seu conteúdo é o mesmo,
ou seja, todas buscam a imposição ao cumprimento de uma prestação, seja fazer,
não fazer ou dar (aqui se encontram pagar quantia ou entregar coisa).
Nessa direção, ao defender ser necessário conceituar a sentença condenatória
por meio da observação de seu conteúdo, ou seja, do direito material, Alexandre
Freitas Câmara sustenta que:
Parece-nos, pois, que a única forma de conceituar a sentença
condenatória levando-se em consideração seu conteúdo, e não seus
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
55
efeitos, é adotando a posição de Couture e Fazzalari, e afirmar a
existência na sentença condenatória de um elemento consistente num
comando, uma imposição dirigida pelo juiz ao reu (relembre-se que
apenas as sentença de procedência estão aqui sendo consideradas), a
fim de que este cumpra uma prestação de dar, fazer ou não fazer.120
De outro lado, concernente às sentenças mandamentais e executivas lato
sensu, o doutrinador expõe o mesmo raciocínio, ao afirmar que:
A categoria das sentenças mandamentais, a nosso juízo, é desnecesssária,
assim como a das sentenças executivas, pois que o conceito de sentença
condenatória é amplo o suficiente para incluí-las. [...] A nosso sentir, a
sentença condenatória, contém um comando dirigido ao demandado,
para que este cumpra uma prestação de dar, fazer ou não fazer, da
mesma forma que nas sentenças condenatórias.121
Todavia, apesar do entendimento descrito, acreditamos que a classificação
das sentenças foi erigida segundo critérios estritamente processuais, e, assim,
totalmente desvinculada do direito material. Desse modo, defender que os
provimentos não diferem, pois todas têm o mesmo conteúdo, é utilizar critério
diverso do empregado para classificar as ações e as sentenças. Nesse sentido,
Muritiba leciona com precisão:
Se tipificarmos um provimento a partir de uma perspectiva
estritamente processual, assim como ocorreu com a classificação
trinária, não devemos cogitar sobre o tipo de direito material em jogo,
nem sobre os resultados substanciais por ele produzidos. [...] Desta
maneira, no conteúdo provimento executivo lato sensu devemos
localizar algo de natureza processual.122
Nesse passo, a doutrina conceitua o que se entende por sentença
executiva lato sensu, por seu aspecto exterior, in verbis: “A pretensão
que nelas se deduz não é a de condenação, mas, sim, desde logo,
a de execução forçada. Não haverá, aqui, intervalo entre sentença
e execução. Proferida a sentença, executa-se imediatamente o seu
comando [...]”123
120
121
122
123
56
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol. 1. 15. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2006, p. 456.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol. 1. 15. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2006, p.462.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 193.
ZAVASKI, Teori Albino. Processo de execução: parte geral. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004,
p. 44.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
Portanto, sob o aspecto processual, o que particulariza a sentença executiva
lato sensu é o fato de ela conter uma eficácia executiva imediata, dispensando
a necessidade de a execução dar-se em separado. Dito de maneira diversa, sua
finalidade é executar, imediatamente, o comando judicial, conferindo o bem jurídico
ao litigante vitorioso.
Nesse viés, o fato de as atividades de conhecimento e execução hoje daremse na mesma estrutura processual não descaracteriza o provimento executivo
lato sensu para o condenatório, como poderiam sustentar alguns, pois, para a sua
execução, não há o intervalo que caracterize o provimento condenatório.
Em decorrência disso, a abertura da fase de execução no provimento
executivo lato sensu prescinde de pedido do autor nesse sentido, pois a sua eficácia
executiva é imediata. Diferentemente ocorre com o provimento condenatório, que
possui eficácia executiva mediata.
Outro aspecto diferencial já trabalhado é de que vigora atualmente para
a execução de uma sentença executiva lato sensu o princípio da atipicidade das
medidas, podendo o juiz, no caso concreto, optar pelo meio mais adequado para
tutelar a pretensão.
Com efeito, apesar de a classificação das sentenças ter sido idealizada
segundo aspectos preponderantemente processuais, a doutrina alerta que a total
separação do direito material não se sustenta. Nesse viés, Luiz Flávio Yarshell,
lembrado por Sérgio Muritiba, ressalta que:
A tipologia tradicional ou clássica procura levar em conta um dado
essencialmente processual, ainda que reconheça que, embora isso seja
cientificamente correto, essa pureza não se sustenta – ou ao menos
não satisfaz plenamente – porque assim como não se completa o
pedido imediato sem o mediato, não há como pensar no resultado do
processo – exatamente por ele ser instrumental – sem a conjugação
das eficácias processual e material do provimento final”.124
Na mesma direção, apesar de a classificação das sentenças ter adotado
critérios processuais, levando em consideração as funções técnico-processuais que
os provimentos ensejam (ou seja, sua eficácia), Sérgio Muritiba entende que:
[...] inicialmente foi pressuposta a ligação da eficácia processual de
cada provimento com a situação jurídico-substancial que o mesmo
deveria tutelar. Entretanto, por força de uma postura autonomista,
essa ligação foi propositalmente esquecida, pressupondo-se não ser
124
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 193.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
57
mais necessário investigá-la novamente. Delimitada a eficácia dos
tipos de provimento, nada mais teria que ser investigado no campo
material, devendo-se adequar todos os tipos de pretensões materiais
aos tipos de provimentos já existentes.125
Portanto, do ponto de vista técnico processual,126 o provimento executivo lato
sensu distingue-se dos demais provimentos por possuir uma eficácia diferenciada,
na medida que imediata e consistente em executar.
Todavia, dificilmente pode-se sustentar que essa eficácia é totalmente
desvinculada do direito material que ela visa tutelar, visto que ao comando
“executar” é dirigida a vontade do Estado-Juiz para tutelar uma pretensão jurídica
determinada. Assim, a eficácia processual (executar, na executiva lato sensu)
é dirigida para a satisfação da situação substancial. Nesse sentido, as lições de
Sérgio Muritiba:
Noutras palavras, no provimento executivo lato sensu há o ato de
executar, assim como no constitutivo o de modificar e no condenatório
e de condenar. Nesses provimentos, por meio dos verbos “executo”,
“modifico” e “condeno”, há representações das respectivas ações de
direito material, mediante as quais o Estado haverá de proporcionar a
efetiva realização do direito subjetivo. Todos estes verbos integram o
conteúdo das respectivas sentenças executivas lato sensu, constitutiva
e condenatória, bastando que sejam retirados para que falte a cada
uma delas a eficácia que as tipifica.127
Desse modo, é claro que, quando uma pessoa postula em juízo, ela tem uma
pretensão orientada pelo direito material, que, para ser tutelada, necessita de uma
eficácia processual específica (executar; condenar; constituir; mandar).
De fato, não se olvidando que as técnicas processuais foram idealizadas
para tutelar o direito material, não é igualmente possível classificar os provimentos
sem, contudo, observar, dentro das circunstâncias do caso, a eficácia processual
que aquele direito necessita para uma prestação jurisdicional adequada. Nesse
sentido, Sérgio Muritiba leciona que:
Por tais razões, mesmo levando em consideração como conteúdo do
provimento executivo lato sensu apenas o direito à prestação, ainda
assim este haveria de ser diferente quando estivesse sendo veiculado
125
126
127
58
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p.189.
Critério adotado para classificar as ações e sentenças, conforme já visto.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 196.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
num provimento de natureza condenatória. A circunstância na qual
o direito subjetivo é postulado em juízo (v.g. presença de urgência),
imprime nele caracteres especiais capazes de justificar uma técnica de
tutela mais célere que a condenatória. Portanto, mais adequada.128
Portanto, no provimento executivo lato sensu, existe um direito
material que, para ser alcançado, necessita de um agir físico mediante os atos
executórios que a eficácia executiva habilita, consistente na desnecessidade
do intervalo entre o conhecimento e a execução e por meio da adoção de
medidas executivas atípicas.
Desse modo, não se pode invocar o direito material para negar a autonomia
da sentença executiva lato sensu se tal critério nem ao menos foi utilizado para
classificar as ações e as sentenças. Ademais, a adoção desse critério invalidaria
a própria classificação trinária, pois não seria possível “diferenciar uma ação
meramente declaratória de uma ação condenatória, posto que, em ambas, no
conteúdo de seu provimento existiria apenas um direito à prestação”.129
A sentença executiva lato sensu tem existência autônoma, pois, como vimos,
possui a eficácia executiva imediata para proporcionar a entrega do direito material,
sem submeter-se ao intervalo entre conhecimento e execução e à tipicidade das
medidas executivas que caracterizam o provimento condenatório.
Portanto, apesar de possuir conteúdo idêntico ao da sentença condenatória,
pois se dirige a proporcionar uma prestação, dela difere em sua eficácia processual,
consubstanciada em sua execução imediata.
Em síntese, o que determina a classificação autônoma de uma técnica
processual não é seu conteúdo, apesar de o direito processual ser dirigido para
a satisfação das situações substanciais, mas a eficácia que esse provimento
deve produzir para, em face das circunstâncias, tutelar adequadamente o direito
perseguido em juízo.
Nesse viés, exemplo interessante de circunstância concreta que pode
levar à adoção da técnica executiva lato sensu é quando o demandante ingressa
em juízo pleiteando o pagamento de dinheiro para custear despesas médicohospitalares, requerendo, para tanto, efi cácia executiva imediata, dado o
dinheiro encontrar-se in natura no patrimônio do devedor, “superando-se a
128
129
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 200.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p.197-198.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
59
dificuldade gerada pela necessidade de transformar bens em dinheiro, por meio
do expediente expropriatório”.130
3.2.5 SENTENÇA MANDAMENTAL
Nesse passo, para início de estudo da sentença mandamental, cumpre-nos
desvendar as lições de Pontes de Miranda, um dos primeiros a se posicionar acerca
de sua existência autônoma, nestes termos:
Na sentença mandamental, o ato do juiz é junto, imediatamente às
palavras (verbos) – o ato, por isso é dito imediato. Não é mediato,
como o ato executivo do juiz a que a sentença condenatória alude
(anuncia); nem é incluso, como o ato do juiz na constitutiva. [...] Na
ação mandamental, pede-se que o juiz mande, não só que declare
(pensamento puro, enunciado de existência), nem que condene
(enunciado de fato e de valor); tampouco se espera que o juiz por
tal maneira fusione o seu pensamento e o seu ato que dessa fusão
nasça a eficácia constitutiva. Por isso mesmo, não se pode pedir que
dispense o “mandado”. Na ação executiva, quer-se mais: quer-se o
ato do juiz fazendo, não o que devia ser feito pelo juiz como juiz,
sim o que a parte deveria ter feito. No mandado, o ato é ato que só o
juiz pode praticar, por sua estatalidade.131
Portanto, a sentença mandamental possui uma semelhança com a sentença
executiva lato sensu, na medida em que ambas proporcionam alteração no mundo
dos fatos dispensando execução autônoma, haja vista seu caráter imediato.
De outro lado, da sentença executiva lato sensu difere, pois quem busca uma
tutela mandamental requer uma ordem, um mandamento do juiz para que outrem
cumpra determinado comportamento. Portanto, conforme se extrai das lições de
Pontes de Miranda, sua característica principal consiste em uma ordem.
Além disso, na executiva lato sensu, requer-se a substituição da conduta
inadimplida da parte pelo ato do juiz, e na mandamental espera-se que, com o
mandamento, o devedor determine-se a fazer aquilo que ele mesmo deve fazer.
Também se deteve ao estudo da sentença mandamental o doutrinador Ovídio
Batista, que, por meio de uma incursão histórica, afirma que esse tipo de provimento
descende dos interditos romanos, de competência do pretor.
130
131
60
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 217.
MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo I. 1. ed. Campinas-SP: Bookseller, 1998, p. 224.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
Para tanto, Ovídio Batista compara a função estabelecida pelo iudex, na
condição de juiz privado que dava resolução às funções que seriam hoje as mesmas
do processo de conhecimento, por meio do instrumento da condenação, com as
funções do pretor, que, por meio dos interditos, “vetava certos comportamentos
ou ordenava que os particulares praticassem determinadas atividades, autorizando
as imissões na posse (missiones in possessionem), função esta eminentemente
executiva”.132
Em face disso, assim como Pontes de Miranda, Ovídio Batista defende que a
diferença marcante entre a sentença mandamental e a executiva lato sensu residiria
no fato de esta buscar a substituição da vontade do particular, e aquela, por conter
uma ordem imperativa, dado que fundada na estatalidade do Juiz, buscaria impelir
o devedor a cumprir ele mesmo a obrigação.133
Manifestando-se contrário tanto a Ovídio Batista como a Pontes de Miranda,
Sérgio Muritiba sustenta que o conteúdo da ordem manifesta no provimento
mandamental não constitui critério suficiente para uma definição precisa, pois
todo e qualquer tipo de provimento jurisdicional é imperativo. Assim, posicionase esse último doutrinador:
Todo e qualquer tipo de provimento jurisdicional, simplesmente por
decorrer do exercício de uma atividade jurisdicional, é imperativo,
não sendo possível auferirmos, por esse critério, uma hierarquia
entre eles.
[...]
Entretanto, se por um lado é impossível atestarmos uma maior carga
de imperatividade no provimento mandamental do que em relação
aos demais tipos de provimento, por outro, é lícito concluirmos que
nele existe determinação segundo os ditames do direito material,
denominado por Chiovenda “vontade concreta da lei”.134
Desse modo, cumpre-nos apresentar os fundamentos desse último doutrinador
para encerrarmos a exposição da sentença mandamental.
Com efeito, Sérgio Muritiba entende que a sentença mandamental é o único
provimento que o Juiz utiliza para constranger o devedor ao exato cumprimento
132
133
134
SILVA, Ovídio Araújo Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 181.
Apud MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 229.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 229.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
61
da prestação por ele assumida, porque ela se faz acompanhada do meio executivo
de coerção.135
Portanto, para compelir o devedor ao cumprimento da prestação, não bastaria
somente o Juiz determinar que ele assim o fizesse, mas que esse comando se fizesse
acompanhado de uma técnica processual que incutisse no demandado o dever de
cumprir ao que se obrigou.
Assim, defende Muritiba que a definição da sentença mandamental não está
fundada somente na ordem dirigida ao cumprimento da obrigação, mas na técnica
processual que a habilita, que, no caso, seria por meio da utilização de meios de
coerção. Nesse sentido, são as palavras do doutrinador:
Com efeito, se desconsiderarmos a relação material subjacente na
ação mandamental, ou seja, se analisarmos esta ação partindo de
uma perspectiva essencialmente processual, podemos dizer que esse
segundo elemento por si só já define a ação mandamental, pois a
tipifica levando em consideração a eficácia processual que habilita.
Assim, ao pronunciar o verbo pertinente (ordeno, determino...), o
juiz faz integrar ao conteúdo do provimento mandamental a eficácia
processual que habilita, ou seja, torna possível a utilização dos
meios de coerção.136
De fato, Sérgio Muritiba parte do pressuposto correto de que a sentença
mandamental, assim como o provimento executivo lato sensu, visa ao
adimplemento de uma obrigação, que, in casu, seria um dever a ser prestado pelo
próprio devedor.
Todavia, essa prestação define em parte o provimento mandamental, na
medida em que constitui somente seu conteúdo material, ou seja, aquilo que a
sentença visa obter.
Desse modo, a utilização dos meios de coerção, por constituir técnica
processual e por influir na vontade do devedor, seria o instrumento que possibilitaria
o exato cumprimento daquela prestação, consistindo, por essa razão, no critério
que distingue a sentença mandamental dos demais tipos de provimento.
Com base nisso, Sérgio Muritiba apresenta os fundamentos finais de
sua defesa:
Em resumo, na sentença mandamental não há simples determinação de
conduta, fato esse que se observa mesmo na esfera substancial. Antes
135
136
62
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p.230.
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 239.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
da sentença mandamental temos simples dever de conduta; após, temos
mais: temos conduta já constrangida. A necessidade dos recursos aos
meios de coerção é essencial ao conceito de ação mandamental, de
modo que não basta afirmar que existe ordem. A própria vontade do
demandado é pressuposta pelo legislador no momento da criação desta
técnica de tutela. Se não houvesse o elemento vontade do obrigado,
a própria finalidade da ação mandamental desapareceria, passando a
situação jurídico-substancial ser processualmente tutelada por meio
da técnica executiva lato sensu.137
De fato, conforme se pode evidenciar de todos os fragmentos extraídos da
obra de Sérgio Muritiba, o autor empenha-se em definir, pelo aspecto processual,
o caráter autônomo dos provimentos mandamentais e executivos lato sensu.
Com efeito, merece atenção os fundamentos do autor, principalmente pelo
fato de a classificação das sentenças ter sido erigida segundo critérios processuais,
como decorrência da teoria da ação segundo direito autônomo e abstrato, ou seja,
independente do direito material.
Todavia, de fato a classificação das sentenças não abstraiu o direito material
totalmente, até porque não se pode esquecer que os instrumentos jurídicos de tutela
processual foram concebidos para dar efetividade às relações substanciais. De todo
modo, o que determina a essência do provimento mandamental não é o fato de ele
ser dirigido a tutelar um fazer ou não fazer, mas, sim, a eficácia processual (meios
de coerção) que possibilita o exato cumprimento da conduta devida.
Portanto, a eficácia processual do provimento mandamental é a habilitação do
uso de medidas coercitivas, que, agindo na esfera psicológica do devedor, incutirá
a necessidade de cumprir, ele mesmo, a prestação a que se obrigou.138
CONCLUSÃO
Nesse momento, apresentaremos em forma de itens as principais conclusões
advindas do estudo da classificação das sentenças por sua eficácia preponderante
em relação à estrutura processual civil contemporânea:
137
138
MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005. p. 240.
Nesse sentido, o autor se posiciona: “Pelo ato processual “mandar sob pena de...’, o juiz aumenta o conteúdo
do provimento mandamental, imprimindo nele a sua eficácia processual, ou seja, tornando-o processualmente
hábil à efetivação do comando material, mediante o constrangimento causado pela aplicação de algum meio
de coerção”. MURITIBA, Sérgio. Ação executiva lato sensu e ação mandamental. 1. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005. p. 244.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
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Com efeito, por meio do estudo do direito romano primitivo, pudemos
observar a influência da compreensão clássica de jurisdição na formação dos
alicerces do Código de Processo Civil retrógrado ao consagrar a separação entre
as atividades de conhecimento e execução em processos separados.
Isso porque a jurisdição primitiva romana tinha por finalidade declarar o
direito, sendo patente que, àquela época, as atividades direcionadas à prática de atos
executivos não eram consideradas propriamente jurisdicionais. Assim, havia nítida
separação entre as atividades praticadas pelo iudex (juiz privado que resolvia os
litígios, aplicando o direito) com as atividades executivas praticadas pelo pretor.
De todo modo, o mais significativo do direito primitivo romano era a
compreensão de que à jurisdição caberia somente declarar o direito, aspecto esse
fundamental para visualizar a influência daquele direito na separação das atividades
de conhecimento e execução em processos distintos até há pouco tempo pelo nosso
ordenamento jurídico.
Ainda na seara do direito primitivo, estudamos, por meio da obra de Ovídio
Batista, a correspondência por ele propagada entre a actio romana e a atual sentença
condenatória; bem como a correlação dos interditos com a sentença mandamental
e a vindictio com a tutela executiva lato sensu, o que nos foi essencial para
compreendermos a origem de tais provimentos.
Vimos ainda que a equiparação dos direitos materiais (direito obrigacional,
direito real, direito pessoal, etc.) ao conceito de obrigação, no sentido processual
de “prestação”, constituiu fator primordial para a universalização da sentença
condenatória, passando-se a entender que esse provimento seria adequado para a
tutela de todas as pretensões de direito material.
Nesse viés, apesar do brilhante estudo de Ovídio Batista, acreditamos que,
a partir dessa generalização operada pelo direito processual, a ponto de considerar
todas as pretensões de direito material como direitos à prestação, não há como
defender a existência de uma ação específica para a tutela de um direito específico,
sendo necessário o direito material adequar-se às tutelas processuais existentes em
nosso ordenamento jurídico.
De todo modo, apesar do acima afirmado, não olvidamos que a classificação
ternária dos provimentos, em especial a sentença condenatória, não se adequa aos
variados reclamos que o direito material impõe para ser efetivo, sendo necessário,
nesse ponto, revisitar o direito material para conceber novas formas de tutela, ou,
simplesmente, aceitar as já formuladas pela doutrina.
Nesse passo, como decorrência da teoria da ação como direito autônomo
e abstrato, observamos que as sentenças e as ações foram classificadas tendo
64
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
como base critério estritamente processual, consistente na eficácia produzida pelo
provimento para tornar adequada a prestação jurisdicional.
Assim, não se sustenta a posição de alguns doutrinadores de conceituar
as sentenças olhando para seu conteúdo, ou seja, aquilo que o provimento
almeja concretizar. Isso porque, se o direito processual utilizou-se de um critério
estritamente processual para classificar as ações, é evidente que somente podemos
distinguir os provimentos com base nesse mesmo critério.
Desse modo, o que difere os provimentos condenatórios, de um lado,
dos executivos lato sensu e mandamentais, de outro, não é o fato de todos eles
buscarem uma prestação (um fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia),
mas, sim, a eficácia processual que habilita esses provimentos a tutelarem
adequadamente o direito.
Com base nisso, aqui sustentamos que o motivo pelo qual a doutrina
“criou” os provimentos mandamentais e executivos lato sensu como categorias
autônomas reside justamente no fato de que a eficácia processual que a sentença
condenatória habilita (consistente em conhecimento e execução darem-se em
processos separados) não tutela adequadamente todas as pretensões.
Por meio dos estudos voltados às recentes e sucessivas reformas processuais,
percebemos que, apesar de o processo unitário ser atualmente regra, o tratamento
dispensado à prestação de pagar quantia difere das demais, o que nos levou a
sustentar a permanência desse provimento como instrumento de tutela jurídicoprocessual, apesar de forte corrente doutrinária em sentido contrário.
Isso porque, apesar de a eficácia processual que habilita a sentença
condenatória não mais propiciar a instauração de processo de execução em
separado, os princípios aplicáveis ao desencadeamento das atividades executórias
típicas de prestação pecuniária continuam a ser os mesmos (e.g. princípio
dispositivo, princípio da tipicidade das medidas executivas, etc.).
Com efeito, sustentamos a permanência da sentença condenatória, dado ela
produzir a eficácia adequada para a tutela das pretensões que envolvam prestação
pecuniária, consistente em submeter os bens do devedor à expropriação por
meio de um rígido e típico procedimento de execução, garantindo ao devedor
máxima segurança.
Desse modo, necessário se faz apenas uma mitigação do conceito clássico de
sentença condenatória para passar a admitir que a eficácia processual que ela habilita
consiste em possibilitar a abertura da “fase processual” de execução, submetendo-se
ao princípio do dispositivo, à tipicidade das medidas executivas e ao procedimento
previsto na lei processual que regula a expropriação de bens do devedor.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
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No mesmo sentido, conforme visto, impende ser mitigado, também, o
conceito de sentença declaratória, para passar a admitir que ela seja dotada de
eficácia executiva, quando, já ocorrida a violação do direito, ela contenha todos
os elementos da obrigação.
Nesse viés, aceitando-se que, verdadeiramente, o critério utilizado para
classificar as ações e as sentenças é estritamente processual, cabe-nos apresentar
os conceitos de cada um dos provimentos.
A sentença declaratória seria o provimento dotado de eficácia consistente em
retirar a dúvida acerca da existência ou da inexistência de uma relação jurídica ou
de um fato, podendo, desde que já tendo ocorrido a violação do direito, ser dotada
de eficácia executiva conforme a peculiaridade que o direito material impõe para
ser tutelado.
A sentença constitutiva, a nosso ver, habilita a eficácia consistente em
modificar, extinguir ou criar uma relação jurídica, operando-se, de forma imediata,
seus efeitos.
A sentença condenatória produz a eficácia consistente em, reconhecida a
violação do direito, abrir a “fase processual executiva” do processo unitário, cujo
desencadeamento das atividades executivas dar-se-á em observância aos princípios
do dispositivo e da tipicidade das medidas executivas.
A sentença executiva lato sensu produz a eficácia consistente em permitir a
execução imediata por meio da adoção de medidas executivas atípicas.
Em última análise, por meio da eficácia que produz, consistente na utilização
da técnica de coerção, o provimento mandamental incute no demandando o dever
de cumprir a prestação tal como se obrigou.
Dessa feita, conclui-se pela defesa da compatibilidade da classificação quinária
dos provimentos com a recente estrutura processual e, conseqüentemente, com a
existência autônoma dos provimentos mandamentais e executivos lato sensu.
De fato, por meio da adoção de um critério estritamente processual, não
destoando, portanto, do critério utilizado para classificar as ações e as sentenças,
foi possível constatar a existência de eficácias diferenciadas entre os provimentos,
o que permitiu distingui-los com razoável clareza, apesar de sumariamente.
Por fim, importante é perceber que o direito material influi decisivamente
na formulação de novos instrumentos jurídicos de tutela, entretanto, o critério
utilizado para definir os provimentos não se baseia em seu aspecto substancial,
mas, sim, na eficácia que o legislador deverá imputar àquele provimento para que
ele possa tutelar adequadamente as pretensões jurídicas.
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Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
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ZAVASKI, Teori Albino. Antecipação da tutela e obrigações de fazer e de não
fazer. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos da
antecipação de tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José
Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controle das decisões judiciais por meio de
recursos de estrito direito e da ação rescisória.1. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001.
68
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 07-68, Dez. 2007.
A RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL PERANTE O
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL*
Graziela Maria Picinin
1
INTRODUÇÃO
A reclamação constitucional é um instituto decorrente de longa construção
jurisprudencial e constitui-se instrumento de extrema importância na garantia da
efetividade das decisões dos tribunais.
O fato de a literatura sobre o tema ser escassa despertou o interesse pelo
desenvolvimento do presente trabalho, no qual se objetiva o estudo da reclamação
constitucional perante o Supremo Tribunal Federal especificamente na hipótese
de desrespeito à autoridade de decisão por ele proferida.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 102, inc. I, alínea l,1 conferiu
ao Supremo Tribunal Federal competência originária para o processo e o julgamento
da reclamação como instrumento de preservação de sua competência e garantia
da autoridade de suas decisões.
As controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais envolvendo a figura da
reclamação são muitas, sobretudo no que diz respeito à sua natureza jurídica, o que
acaba refletindo em outros aspectos, como legitimidade, cabimento e possibilidade
de sua instituição por parte de tribunais outros que não o Supremo Tribunal Federal
e o Superior Tribunal de Justiça – únicos expressamente legitimados para tanto,
nos termos da Constituição.
Não obstante, é correto afirmar que a recente jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal revela verdadeira revolução no uso da reclamação no controle
concentrado de normas, v.g., quando assentou, no julgamento do Agravo Regimental
na Reclamação 1.880/SP,2 a legitimidade ad causam de todos aqueles que
comprovem prejuízo oriundo de decisões jurisdicionais ou de atos administrativos
*
1
2
Monografia apresentada como requisito para conclusão do curso de Pós-Graduação Ordem Jurídica e
Ministério Público da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
- FESMPDFT. Orientador: Professor Paulo Gustavo Gonet Branco.
“Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I –
processar e julgar, originariamente: (...) l) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia
da autoridade de suas decisões”. O mesmo instrumento foi disponibilizado ao Superior Tribunal de
Justiça no art. 105, inc. I, alínea f, da CF/88.
DJU de 19/03/2004.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
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contrários a julgado do Tribunal, ampliando, sensivelmente, o rol de legitimados
para a propositura da reclamação.
Com efeito, a análise das informações apresentadas pelo Banco Nacional
de Dados do Poder Judiciário – BNDPJ revela o crescente aumento no número de
reclamações distribuídas à Suprema Corte desde 1990. Confira-se:
Ano
Número de
processos
distribuídos
Número de
processos
distribuídos
Ano
1990
20
1999
200
1991
30
2000
522
1992
44
2001
228
1993
36
2002
202
1994
45
2003
275
1995
49
2004
491
1996
49
2005
933
1997
62
2006
837
1998
275
2007
464*
* Dados atualizados até 30/06/2007.
Verifica-se a mesma tendência inovadora nos precedentes que reconhecem
a transcendência dos motivos determinantes de decisões definitivas proferidas
em controle concentrado, as quais, em face de seu efeito vinculante, também
autorizam a propositura da reclamação e o mesmo entendimento pode ser visto nas
recentes decisões proferidas pelo Ministro Gilmar Mendes – ainda pendentes de
apreciação pelo Plenário do STF – nos autos das Reclamações 4.987/PE e 4.335/
AC, em que sustentam, respectivamente, a “possibilidade de se analisar, em sede
de reclamação, a constitucionalidade de lei de teor idêntico ou semelhante à lei que
já foi objeto da fiscalização abstrata de constitucionalidade” e a eficácia geral das
decisões definitivas sobre a inconstitucionalidade de determinado ato normativo
proferidas em sede de controle incidental de constitucionalidade.3
3
70
Rcl 4.987 MC/PE, decisão monocrática proferida em 07/03/2007, DJU de 13/03/2007, em que se
sustenta a possibilidade, em sede de reclamação, da declaração incidental de inconstitucionalidade de
norma ainda não apreciada pelo Plenário do STF; Rcl 4.335/AC: voto proferido pelo Ministro Gilmar
na Sessão Plenária de 1º/02/2007, noticiada no Informativo STF 454. Na Sessão Plenária de 19/04/2007,
o Ministro Eros Grau apresentou seu voto, acompanhando o relator. Os Ministros Sepúlveda Pertence
e Joaquim Barbosa, por outro lado, votaram, respectivamente, no sentido da improcedência e do nãoconhecimento da reclamação. O julgamento foi adiado em razão do pedido de vista do Ministro Ricardo
Lewandowski, conforme noticiado no Informativo STF 463.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
Tais precedentes demonstram que a reclamação vem assumindo,
gradativamente, o papel de ação especial voltada à proteção da ordem constitucional
como um todo.
Merece destaque, ainda, o fato de que a Emenda Constitucional 45/2004
consagrou a súmula vinculante no âmbito da Suprema Corte, prevendo o cabimento
da reclamação na hipótese de “ato administrativo ou decisão judicial que contrariar
a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar” (§ 3º do art. 103-A da
Constituição, na redação dada pela EC 45/2004).
2
HISTÓRICO
A figura da reclamação, tal como se vê na atualidade, é fruto de lenta
construção pretoriana, inspirada, inicialmente, na doutrina constitucional norteamericana sobre os poderes implícitos – inherent powers –, cunhada no julgamento
do caso Mc Culloch versus Maryland,4 segundo a qual existem poderes, além
daqueles enumerados pela própria Constituição, sem o que seriam apenas teóricos
ou de impossível efetivação os poderes expressos.
Valendo-se da aludida doutrina, o ilustre Ministro Rocha Lagoa, ao
fundamentar o voto no sentido da admissibilidade da Rcl 141/SP,5 na qual se
sustentava que acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo teria
desrespeitado a autoridade de decisão do Supremo Tribunal Federal proferida
em recurso extraordinário, invocou o fato de que, na vigência da Constituição de
1891, já decidira a Suprema Corte que não constituiria inovação ou acréscimo de
jurisdição o conhecimento, por meio de apelação, de causas não explicitamente
mencionadas na Constituição, mas que, por seu evidente caráter federal, deveriam
ser inclusas na competência das justiças da União, v.g., quando reconheceu como
implícita a competência federal para os crimes de moeda falsa, contrabando e
peculato dos funcionários federais.6
Assim, recorrendo o Ministro à lição de Black, em seu Hand-book of american
constitucional law, § 48,7 afirmou que “tudo que fôr necessário para fazer efetiva
alguma disposição constitucional, envolvendo proibição ou restrição da garantia
de um poder, deve ser julgado implícito e entendido na própria disposição”.
4
5
6
7
Disponível em: <htpp://biotech.law.lsu.edu/cases/adlaw/mcculloch.htm>. Acesso em: 06/04/2007.
STF, Rcl 141/SP, Plenário, DJU de 25/01/1952, vencidos os Ministros Abner de Vasconcelos, Hahnemann
Guimarães e Edgard Costa.
Acórdão 350, de 21/09/1898.
BLACK, Henry Campbell. Handbook of American Constitucional Law. 3. ed. St. Paul: West Publishing
Company, 1910.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
71
Prevaleceu, à época, pois, o entendimento de que, a despeito da ausência
de norma legal prevendo a figura da reclamação, estaria na própria vocação do
Supremo Tribunal a adoção de instrumento que fizesse prevalecer seus próprios
pronunciamentos, acaso desrespeitados pelas justiças locais.8
A orientação tomada no julgamento da citada Rcl 141, por meio da qual
teve início a primeira entre as quatro fases da evolução histórica do instituto,9 ficou
sintetizada, no que interessa, na seguinte ementa, in verbis:
A competência não expressa dos tribunais federais pode ser ampliada
por construção constitucional. Vão seria o poder, outorgado ao
Supremo Tribunal Federal de julgar em recurso extraordinário as
causas decididas por outros tribunais, se não lhe fôra possível fazer
prevalecer os seus próprios pronunciamentos, acaso desatendidos
pelas justiças locais.
A criação dum remédio de direito para vindicar o cumprimento fiel
de suas sentenças está na vocação do Supremo Tribunal Federal e na
amplitude constitucional natural de seus poderes.
Necessária e legítima é assim a admissão do processo de reclamação,
como o Supremo Tribunal tem feito.
A segunda fase da evolução histórica se inicia com a expressa previsão
do instituto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, em deliberação
tomada na Sessão Administrativa de 02 de outubro de 1957, a partir de proposta
do Ministro Ribeiro da Costa,10 com fundamento no inciso II do artigo 97 da
8
9
10
72
No mesmo sentido é a lição de Pinto Ferreira, ao afirmar que, “quando o constituinte concede a
determinado órgão ou instituição uma função (atividade-fim), implicitamente, estará concedendo-lhe
os meios necessários ao atingimento do seu objetivo, sob pena de ver frustrado o exercício do múnus
constitucional que lhe foi cometido”. In: Comentários à Constituição Brasileira. Vol. II, Saraiva, 1989,
p. 32.
Conforme entendimento de José da Silva Pacheco, em minucioso estudo sobre a figura da reclamação,
para quem há quatro fases distintas na evolução histórica do instituto da reclamação: 1ª fase – da
criação do Supremo até 1957; 2ª fase – de 1957, com a inserção da medida no Regimento Interno do
STF, até 1967; 3ª fase – a partir da autorização conferida ao STF pela CF/67, reproduzida na EC 01/69,
de estabelecer, em seu regimento interno, o processo e o julgamento dos feitos de sua competência
originária ou recursal; 4ª fase – desde o advento da CF/88, que traz a previsão expressa do instituto,
constante dos artigos 102, inc. I, alínea l, e 105, inc. I, alínea f. PACHECO, José da Silva A ‘reclamação’
no STF e no STJ de acordo com a nova Constituição. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 78, v. 646,
ago. 1989. E PACHECO, José da Silva O mandado de segurança e outras ações constitucionais típicas.
Revista dos Tribunais, São Paulo, 1998, p. 602.
Conforme noticia o voto proferido pelo Ministro Amaral Santos nos autos da Rcl 831/DF, julgada em
11/11/1970.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
Constituição de 1946, segundo o qual competiria à Suprema Corte a elaboração
de seu próprio regimento.11
A terceira fase é instaurada com a autorização conferida ao Supremo Tribunal
Federal pela Constituição de 1967, mantida pela Emenda Constitucional 1 de
1969,12 para estabelecer, em seu regimento interno, “o processo e julgamento dos
feitos de sua competência originária ou recursal e da argüição de relevância da
questão federal”.
Com isso, conferiu-se legitimidade à inclusão da figura da reclamação no
regimento interno daquela Corte, que passa a ter força de lei.
Por fim, a quarta fase se dá com a constitucionalização do instituto, inserido
expressamente entre os processos de competência do Supremo Tribunal Federal
e do Superior Tribunal de Justiça pela Constituição de 1988, em seus artigos 102
e 105, respectivamente.13
A matéria está, atualmente, regulamentada pelos artigos 13 a 18 da Lei
8.038/90.
3
NATUREZA JURÍDICA
A natureza jurídica da reclamação é questão controvertida na doutrina e
na jurisprudência desde a criação do instituto e afeta diretamente, a depender
da posição que se adote, a conclusão sobre a legitimidade de sua propositura, a
possibilidade de sua instituição por tribunais outros que não o Superior Tribunal
de Justiça e o Supremo Tribunal Federal e o seu cabimento.
A título de exemplificação, cabe informar que a reclamação já teve sua natureza
jurídica qualificada como: ação (Pontes de Miranda, Comentários ao Código de
Processo Civil, tomo V/384, Forense; José da Silva Pacheco, A “reclamação” no
STF e no STJ de acordo com a nova Constituição, RT 78/646; Marcelo Navarro
Ribeiro Dantas, Reclamação constitucional no direito brasileiro, Porto Alegre:
Fabris; Leonardo Lins Morato, Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000; Alexandre Moreira Tavares dos Santos, Da
11
12
13
CF/46, art. 97: “Compete aos Tribunais: (...) II – elaborar seus Regimentos Internos e organizar os
serviços auxiliares, provendo-lhes os cargos na forma da lei”.
CF/67, art. 115: “O Supremo Tribunal Federal funcionará em Plenário ou dividido em Turmas.
Parágrafo único – O Regimento Interno estabelecerá: (,,,) c) o processo e o julgamento dos feitos de
sua competência originária ou de recurso.
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendolhe: I – processar e julgar originariamente: (...) l) a reclamação para a preservação de sua competência
e garantia da autoridade de suas decisões;”.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
73
Reclamação, Revista dos Tribunais, ano 92, v. 808, fev. 2003, p. 123-165); recurso
ou sucedâneo de recurso (Amaral Santos, Alcides de Mendonça14); recurso em
sua ampla conceituação (Ministro Maurício Corrêa, em voto proferido nos autos
do Agravo Regimental na Rcl 1.880/SP); medida de nítido conteúdo processual
(Ministros Maurício Corrêa, Nelson Jobim e Moreira Alves, nos votos proferidos no
julgamento de mérito da ADI 2.212/CE); procedimento (Ministro Carlos Velloso,
em voto proferido no julgamento da ADI 2.212/CE, no qual reafirmou posição
anteriormente defendida no MS 89.855, quando ainda integrava o TFR); medida
processual de caráter excepcional (Ministro Djaci Falcão, RTJ 112/504); remédio
incomum (Ministro Orosimbo Nonato, apud Cordeiro de Mello, O processo no
Supremo Tribunal Federal, v. 1/280); remédio processual constitucional (Cândido
Rangel Dinamarco, A reclamação no processo civil brasileiro, Revista Forense,
v. 366/10-15); incidente processual (Moniz de Aragão, A correição parcial, p.
110, 1969; Ministro Marco Aurélio, no voto proferido na ADI 2.212/CE); simples
representação ou direito de petição (Ministro Nelson Hungria, no voto proferido
na Rcl 141/DF; Ministra Ellen Gracie, no voto proferido na citada ADI 2.212/CE,
Ada Pellegrini Grinover; Antonio Scarance Filho; Antonio Magalhães, Recursos
no Processo Penal, Revista dos Tribunais, 2001).
Por ocasião do julgamento da Rcl 831/DF, em 11/11/1970,15 o Supremo
Tribunal, tendo presentes as finalidades jurídicas do instituto, na linha do voto
traçado pelo Ministro Amaral Santos, enfrentou a questão concernente à sua
natureza jurídica e concluiu que a reclamação mais se aproximaria de um recurso
criado com base na Constituição do que de uma ação. A partir dessa premissa,
definiu-se que os pressupostos para seu cabimento seriam: a) a existência de
uma relação processual em curso e b) a prática de um ato que se pusesse contra a
competência do STF ou em contrariedade à decisão por ele proferida nessa relação
processual ou em outra dela dependente.
No entanto, a incerteza quanto à conclusão então adotada persistiu na
Suprema Corte, conforme se depreende do trecho abaixo transcrito, tirado da
ementa referente ao acórdão prolatado na Representação 1.092/DF, julgada em
31/10/1984,16 o qual bem sinaliza a aridez do tema:
14
15
16
74
Conforme citação no voto do Ministro Maurício Corrêa, nos autos da Rcl 1.880-AgR/SP, verbis:
“(...) Como leciona Moacyr Amaral Santos, ‘a reclamação se destina a corrigir um desvio na relação
processual em andamento, que desconheça ou viole a competência do Supremo Tribunal Federal ou
negue autoridade a sua decisão nessa relação processual’, concluindo que a espécie aproxima-se muito
mais do recurso que da ação (RTJ 56/547). No mesmo sentido, LIMA, Alcides de Mendonça. O Poder
Judiciário e a Nova Constituição. Aide Editora, 1989, p. 80.
DJU de 19/02/1971.
DJU de 19/12/1984.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
(...)
Como quer que se qualifique – recurso, ação, ou medida processual
de natureza excepcional, é incontestável a afirmação de que somente
ao Supremo Tribunal Federal em face primacialmente, da previsão
inserida no art. 119, § 3º, letra c, da Constituição da República, é
dado, no seu Regimento Interno, criar tal instituto, não previsto nas
leis processuais. (Grifo nosso.)
Bem antes disso, quando ainda se discutia a legitimidade de a Suprema
Corte instituir, ou não, a figura da reclamação – a despeito da ausência de previsão
legal para tanto –Nelson Hungria, em lúcida ponderação, ao proferir seu voto no
julgamento da Rcl 141/SP,17 sustentou, pela primeira vez ao que parece, a tese hoje
encampada por Ada Pellegrini Grinover18 e pela atual jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, de que não se trata de recurso, mas de simples “representação”,
em que se pede o cumprimento de julgado, tal como nele se contém.
Este o extrato do voto:
A reclamação, dentro do estrito ponto de vista em que a admito,
vai encontrar base até no preceito constitucional sôbre o direito da
representação.
Se um interessado verifica que é mal guardada uma decisão do
Supremo e representa contra esse abuso, é claro que não podemos
cruzar os braços, alheiando-nos ao caso, pouco importando que nosso
regimento seja omisso a respeito.
Partindo do mesmo raciocínio e fazendo expressa remissão ao voto acima
noticiado, Ada Pellegrini Grinover afastou o reconhecimento da natureza de
incidente processual ou recurso, sob o argumento de que a reclamação não visa à
impugnação de uma decisão, mas justamente a assegurá-la; nem tampouco objetiva
reformá-la, esclarecê-la ou integrá-la. Igualmente, não se caracterizaria como ação,
porque nela não se pretenderia o exercício da jurisdição estatal, a qual já teria sido
obtida em provimento anterior, mas apenas assegurar sua eficácia.
De outro lado, e negando, portanto, o caráter contencioso do instituto,
esclareceu que não haveria na reclamação a reabertura da discussão principal e
tampouco se poderia facultar o exercício do contraditório.19
17
18
19
DJU de 25/01/1952.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Da Reclamação. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo,
2002, ano 9, n. 38, p. 76.
Em sentido contrário é o entendimento adotado por Leonardo Lins Morato, com o qual não concordamos,
para quem há a presença de uma lide, decorrente da pretensão de que a competência ou a autoridade da
decisão do STF ou do STJ seja preservada, a qual é resistida pelo reclamado, que se coloca em situação
antagônica. A reclamação prevista na Constituição Federal. MORATO, Leonardo Lins. A reclamação
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
75
Concluiu, destarte, a ilustre jurista, tratar-se de garantia especial subsumida na
cláusula que assegura o direito de petição aos Poderes Públicos, em defesa do direito
ou contra a ilegalidade ou o abuso de poder (CF, art. 5º, inc. XXXIV, alínea a). 20
Em sentido análogo, Cândido Rangel Dinamarco, em estudo sobre o tema,
citando Carnelutti e afastando a idéia de que se trataria de um recurso, afirmou que:
a reclamação enquadra-se na categoria dos remédios processuais,
que é muito mais ampla e abriga em si todas as medidas mediante
as quais, de algum modo, se afasta a eficácia de um ato judicial
viciado, se retifica o ato ou se produz sua adequação aos requisitos
da conveniência ou da justiça.21
E prosseguiu:
Sendo um remédio processual, com toda a segurança a reclamação
consagrada no texto constitucional não é todavia um recurso, seja
porque não consta entre as modalidades recursais tipificadas em lei
(argumento secundário), seja porque não se destina a desempenhar
a missão que os recursos têm, qual seja, impugnar decisão judicial
pretendendo sua reforma ou invalidação, antes, pelo contrário, faz
com que ela seja cumprida ou que fique preservada a competência
da Suprema Corte em determinada hipótese.
Assim, a categoria dos remédios processuais conteria a dos recursos, menos
ampla que a primeira.
Em se tratando de jurisprudência, poder-se-ia afirmar que a questão teria
ficado superada com o julgamento de mérito da ADI 2.212/CE, de relatoria da
Ministra Ellen Gracie, cujo acórdão, no que interessa, consignou que “a natureza
jurídica da reclamação não é a de um recurso, de uma ação e nem de um incidente
processual”, situando-se no âmbito do direito de petição previsto no art. 5º, inc.
XXXIV, alínea a, da Constituição Federal.22
Todavia, análise mais acurada dos votos proferidos no julgamento da aludida
ação direta revela que remanesce algum dissenso no tocante à natureza jurídica
do instituto.
Com efeito, os Ministros Maurício Corrêa, Moreira Alves e Sydney Sanches,
por exemplo, vencidos no aludido precedente, e Nelson Jobim, que acompanhou a
20
21
22
76
prevista na Constituição Federal. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; NERY JR., Nelson (Coords.).
Aspectos polêmicos e atuais dos recursos. São Paulo: RT, 2000, p. 442.
“São a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes
Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.”
DINAMARCO, Cândido Rangel. A reclamação no processo civil brasileiro. Revista Forense, São
Paulo, 2003, v. 99, n. 366, p. 9-15.
Julgada em 02/10/2003, DJU de 14/11/2003.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
conclusão do voto proferido pela relatora, vislumbraram nítido conteúdo processual
no instituto da reclamação. Os Ministros Carlos Velloso e Marco Aurélio, por sua
vez, embora concordando com a conclusão adotada, assentaram para a reclamação
a natureza jurídica de procedimento.23
Tais divergências parecem demonstrar que a questão relativa à natureza
jurídica da reclamação não está plenamente pacificada. Concordamos com a tese
de que a reclamação possui natureza jurídica de petição, pois tal interpretação se
mostra mais consentânea com as finalidades jurídicas do instituto, sobretudo após
a vigência da Constituição de 1988, em que a reclamação constitui-se importante
mecanismo de tutela da ordem constitucional.
4
CABIMENTO – ADMISSIBILIDADE
Conforme disposição constitucional expressa, a reclamação é cabível em
duas hipóteses: para preservação da competência e para garantia da autoridade das
decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
Inicialmente, é importante observar que não cabe reclamação contra decisão
monocrática de relator ou de turma do Supremo Tribunal Federal, por ser ato
juridicamente imputável ao Tribunal e que representa, em sede institucional, a
própria Suprema Corte (Rcl 3.916-AgR/AP, DJU de 25/08/2006), nem contra ato
futuro, pois a reclamação exige a prática de um ato concreto (Rcl 1.859/SP, DJU
de 02/08/2002).
Procuramos enunciar, a seguir, algumas questões controvertidas concernentes
à admissibilidade e ao cabimento da reclamação, especificamente na hipótese de
desrespeito à autoridade de decisões da Suprema Corte.
4.1
A RECLAMAÇÃO PODE SER AJUIZADA A QUALQUER TEMPO
OU SOMENTE APÓS O TRÂNSITO EM JULGADO? ENUNCIADO
734 DA SÚMULA DO STF
A depender da posição adotada sobre a natureza jurídica do instituto, que,
consoante afirmado anteriormente, traz implicações diretas em relação ao seu
cabimento, há três correntes sobre o momento para a interposição da reclamação:
23
Para acompanhar a relatora, o Ministro Nelson Jobim consignou que a instituição da reclamação por
tribunais de justiça seria uma exceção à regra prevista no art. 22, inc. I, da Constituição. O Ministro
Carlos Velloso, por sua vez, sustentou a constitucionalidade dos dispositivos impugnados com base
em voto proferido nos autos do MS 89.995/DF, quando ainda integrava o TFR.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
77
a) somente após o trânsito em julgado da decisão atacada; b) antes do trânsito em
julgado; e c) a qualquer tempo.
Ada Pellegrini Grinover,24 por exemplo, sustenta que a reclamação só
é cabível após encerrada a relação processual, não sendo utilizada antes da
preclusão, mas, ao contrário, depois do trânsito em julgado da decisão que se
quer preservar.
Em contrapartida, para aqueles que, como Pontes de Miranda, vislumbraram
no instituto a natureza jurídica de ação, é possível sustentar o cabimento da
reclamação a qualquer tempo. Outro argumento para a defesa desse entendimento
consiste na afirmação de que os atos que afrontam a competência ou a autoridade
das decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça são
absolutamente nulos, devendo, por isso, ser declarados como tal a qualquer tempo,
isto é, ainda que posteriormente ao seu trânsito em julgado.
Alexandre Moreira Tavares dos Santos, adepto da mesma tese, em artigo
sobre o tema, enfatizou que:
o instituto da coisa julgada, de outro lado, não pode servir de
fundamento para que uma decisão nula de instância ordinária afronte
uma decisão válida do STF ou do STJ, muitas vezes também transitada
em julgado, ou que usurpe suas respectivas competências, prevaleça
com eficácia no mundo real, sem que as cortes superiores possam
fazer valer sua decisão ou preservar sua competência.25
Além disso, conforme salienta o mesmo autor, nem a Constituição, nem a
legislação ordinária a respeito estipularam qualquer prazo para sua propositura.
Todavia, parece-nos que a aceitação do aludido entendimento ofende o
princípio da segurança jurídica, pela exposição da coisa julgada a meio de ataque
permanente e indefinidamente utilizável.
Por outro lado, cabe ressaltar que o mesmo autor, em aparente contradição,
também afirma que o cabimento da reclamação não substitui o recurso, ação
rescisória ou revisão criminal, dado que,
24
25
78
GRINOVER, Ada Pellegrini. Da Reclamação. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo,
2002, ano 9, n. 38, p. 76. No mesmo sentido entende Leonardo Lins Morato – MORATO, Leonardo
Lins. A reclamação prevista na Constituição Federal. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; NERY
JR., Nelson (Coords.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos. São Paulo: RT, 2000, p. 442. Em
sentido contrário é a orientação sustentada por Moniz de Aragão, segundo a qual a reclamação não
pode ser ajuizada após o trânsito em julgado da decisão atacada, que, por isso, assumiria a natureza
jurídica de incidente processual. MONIZ DE ARAGÃO, Egas Dirceu. A correição parcial. Curitiba:
José Bushatsky, 1969.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Da Reclamação. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2003. v. 92-808, p.
122-165. Esse parece ter sido o entendimento adotado pela Suprema Corte no julgamento da Rcl 22
(DJU de 13/03/1974).
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
se a parte tinha um recurso disponível para impugnar uma decisão do
órgão judicante inferior proferida dentro de sua competência, não se
pode ajuizar a reclamação para substituir o recurso que deveria ter
sido interposto. Neste caso, a coisa julgada só pode ser rescindida
por ação rescisória, a qual não pode ser substituída por reclamação.
Revela-se, pois, extremamente subjetivo o critério adotado, porque não
parece razoável que, em determinado caso, a coisa julgada só possa ser rescindida
por ação rescisória e, em outro, que se admita o ajuizamento da reclamação a
qualquer tempo.
De toda forma, eventuais controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais a
respeito – sobretudo no âmbito do STJ –26 parecem ter ficado superadas com
a edição do Enunciado 734 da Súmula do STF,27 segundo o qual, na linha da
orientação já pacificada naquela Corte, “não cabe reclamação quando já houver
transitado em julgado o ato judicial que se alega tenha desrespeitado decisão do
Supremo Tribunal Federal”.
Assim, a efetiva interposição de recurso ou a recorribilidade da decisão passa
a configurar um pressuposto do cabimento da reclamação. O principal fundamento
dos acórdãos que deram margem à edição do Enunciado 734 deriva do fato de que
a reclamação não é sucedâneo de recurso, ação rescisória ou revisão criminal.28
É de se destacar, ademais, que, na linha da jurisprudência do STF, é suficiente
que a reclamação tenha sido ajuizada antes do trânsito em julgado da decisão
atacada, sendo certa a afirmação de que a pendência do julgamento deixa a coisa
julgada que vier a se formar subordinada à futura decisão. Em outras palavras, o
ajuizamento da reclamação impede que transite em julgado o que diz respeito ao
objeto dessa reclamação, seja total ou parcial.
Nesse sentido, merece transcrição a seguinte ementa, na parte que
melhor se aplica, prolatada no julgamento da Rcl 509/MG, da lavra do Ministro
Sepúlveda Pertence:
26
27
28
Cf. STJ, Rcl 576/SP, Corte Especial, relator Ministro Vicente Cernicchiaro, DJU de 09/08/1999, e Rcl
175/MG, Segunda Seção, relator Ministro Dias Trindade, DJU de 30/08/1993. A recente jurisprudência
do STJ passou a adotar o entendimento firmado pelo STF no Enunciado 734 da Súmula, consoante
se depreende, a título de exemplo, dos seguintes precedentes: Rcl 1.535/CE, Terceira Seção, relatora
Ministra Laurita Vaz, DJU de 15/05/2006, e Rcl 1442/SP, Primeira Seção, relatora Ministra Denise
Arruda, DJU de 09/08/2004.
Sessão Plenária de 26/11/2003, DJU de 9, 10 e 11/12/2003.
No mesmo sentido: Moniz de Aragão – MONIZ DE ARAGÃO, Egas Dirceu. A correição parcial.
Curitiba: José Bushatsky, 1969 –, para quem a reclamação esbarra no óbice da coisa julgada. Em sentido
contrário: Leonardo Lins Morato – MORATO, Leonardo Lins. A reclamação prevista na Constituição
Federal. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; NERY JR., Nelson (Coords.). Aspectos polêmicos e atuais
dos recursos. São Paulo: RT, 2000, p. 442 – para quem, “quando for o caso de utilizá-la para garantir
a autoridade de um julgado, somente é cabível se a decisão já estiver transitada em julgado”.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
79
I. Reclamação: Subsistência à coisa julgada formada na sua
pendência.
Ajuizada a reclamação antes do trânsito em julgado da decisão reclamada,
e não suspenso liminarmente o processo principal, a eficácia de tudo quanto nele
se decidir ulteriormente, incluído o eventual trânsito em julgado do provimento
que se tacha de contrário à autoridade de acórdão do STF, será desconstituído pela
procedência da reclamação.29
4.2
C A B I M E N TO D A R E C L A M A Ç Ã O E M FA C E D E ATO
ADMINISTRATIVO CONTRÁRIO À DECISÃO DO STF
Em se tratando de controle incidental de normas, o Supremo Tribunal Federal
adota como pressuposto para o cabimento da reclamação a existência de uma
relação processual em curso, conforme ficou assentado no precedente firmado,
inicialmente, nos autos da Rcl 831/DF.30
No mesmo sentido é o entendimento de Alexandre Tavares Moreira dos
Santos,31 para quem
a reclamação é inadmissível contra ato de autoridade administrativa,
ao menos para assegurar a autoridade das decisões em grau recursal
pelo STF e pelo STJ, uma vez que, como lembra Pontes de Miranda,
‘se os autos baixaram, todos os requerimentos hão de ser dirigidos
ao juiz que dá o cumpra-se. Ele é quem tem de executar, ou desfazer,
em cumprimento do julgado, o que executou’.32
Em sede de controle concentrado, não obstante a existência de manifestação
dos Ministros Sydney Sanches e Ilmar Galvão em sentido contrário,33 tem-se
admitido o cabimento da reclamação contra ato administrativo, sobretudo porque
tais decisões se revestem de eficácia erga omnes e possuem efeito vinculante em
relação a todos os magistrados e à Administração Pública federal, estadual, distrital
e municipal, impondo-se, em conseqüência, sua necessária observância por tais
órgãos estatais.
29
30
31
32
33
80
DJU de 04/08/2000.
DJU de 19/02/1971.
SANTOS, Alexandre Moreira Tavares dos. Da Reclamação. Revista dos Tribunais, ano 92, v. 808, fev.
2003, p. 123-165.
SANTOS, Alexandre Moreira Tavares dos. Da Reclamação. Revista dos Tribunais, ano 92, v. 808, fev.
2003, p. 123-165.
Respectivamente, nas Reclamações 173/DF e 389/PR, no sentido de que a reclamação pressupõe a
prática de um ato jurisdicional. Assim, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal não lhe
conferiria a possibilidade de controle judicial de atos administrativos.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
É o que se depreende da ementa do acórdão proferido nos autos da Rcl
1.987/DF,34 verbis:
Reclamação. Cabimento. Afronta à decisão proferida na ADI 1662-SP.
Seqüestro de verbas públicas. Precatório. Vencimento do prazo para
pagamento. Emenda Constitucional 30/00. Parágrafo 2º do artigo
100 da Constituição Federal.
1. Preliminar. Cabimento. Admissibilidade da reclamação contra
qualquer ato, administrativo ou judicial, que desafie a exegese
constitucional consagrada pelo Supremo Tribunal Federal em sede
de controle concentrado de constitucionalidade, ainda que a ofensa
se dê de forma oblíqua.
Tem prevalecido, portanto, o entendimento de que somente se admite a
reclamação contra ato administrativo na hipótese de controle concentrado de
normas.
4.3
A MÁ INTERPRETAÇÃO DE JULGADO DO STF DÁ MARGEM A
RECLAMAÇÃO?
A má interpretação de julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal,
ou ofensa oblíqua, configura-se, em nosso entendimento, descumprimento frontal,
sendo passível, pois, o ajuizamento de reclamação, pois interpretar mal equivale
a descumprir.
Por ocasião do julgamento da Rcl 217/SP,35 o Ministro Sepúlveda Pertence,
na condição de Procurador-Geral da República, ao aprovar o parecer apresentado
no caso, teve a oportunidade de ressalvar que a reclamação pressupõe apenas a
alegação de descumprimento de julgado do Supremo Tribunal, pois a existência
ou não do alegado desacato diz respeito ao mérito. Concordamos inteiramente
com a aludida ressalva, sobretudo porque não se mostram exatos os limites de
quando uma violação deixa de ser frontal e passa a ingressar no campo da má
interpretação.
Em sentido análogo, Moniz de Aragão e Cândido Rangel Dinamarco tiveram
oportunidade de se manifestar nos seguintes termos, respectivamente:
Na realidade, tanto a usurpação da competência quanto o desrespeito a
julgado do Supremo Tribunal Federal verificam-se concretamente no campo
34
35
DJU de 21/05/2004.
DJU de 26/08/1988.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
81
da interpretação, divergindo dêle os outros órgãos, os quais, por inferioridade
hierárquica, têm de acatar-lhe os pronunciamentos, sem ampliação ou restrição
do que nêles estiver disposto, na linguagem do art. 891 do CPC. E apenas o
Supremo Tribunal é senhor de dizer a exata interpretação de seus julgados,
servindo a reclamação para que essa afirmação seja provocada, caso para o qual,
portanto, é inteiramente cabível.36
Uma vez constatada a exigência de decisão do STF ou do STJ a ser respeitada
pelas instâncias ordinárias, o efetivo cumprimento daquela só se dá quando
atendidos os ditames de seu conteúdo. Por isso, a interpretação e a aplicação errada
de um julgado do STF ou do STJ é, em realidade, seu descumprimento frontal a
ensejar o cabimento da reclamação.37
No julgamento da Rcl 430/PI,38 o Plenário do Supremo Tribunal Federal
parece ter adotado, ainda que não discutida expressamente a questão, a orientação
de que a má interpretação de julgado do STF dá ensejo à propositura de
reclamação.
É o que se depreende do seguinte trecho do voto do Ministro Celso de
Mello, relator:
A destinação constitucional da via reclamatória – além de vinculá-la
à preservação da competência global do Supremo Tribunal Federal –
prende-se ao objetivo específico de salvaguardar a extensão e os efeitos
dos julgados desta Corte, consoante acentua, em autorizado magistério,
o Prof. José Frederico Marques (“Instituições de Direito Processual
Civil”, vol. IV/393, 2ª ed., Forense).
Esse saudoso e eminente jurista, ao justificar a necessidade da reclamação
– enquanto meio processual vocacionado à imediata restauração do imperium
inerente à decisão desrespeitada –, assinalou, em tom de grave advertência, a
própria razão de ser desse especial instrumento de defesa da autoridade decisória
dos pronunciamentos desta Corte (“Manual de Direito Processual Civil”, vol.
3/199-200, item 653, 9ª ed., 1987, Saraiva), verbis:
O Supremo Tribunal, sob pena de se comprometerem as elevadas
funções que a Constituição lhe conferiu, não pode ter seus julgados
desobedecidos (por meios diretos ou oblíquos), ou vulnerada
sua competência. Trata-se (...) de medida de Direito Processual
Constitucional, porquanto tem como causa finalis assegurar os
36
37
38
82
MONIZ DE ARAGÃO, Egas Dirceu. A correição parcial. Curitiba: José Bushatsky, 1969.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A reclamação no processo civil brasileiro. Revista Forense, São
Paulo, 2003, vol. 366.
DJU de 20/08/1993.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
poderes e prerrogativas que ao Supremo Tribunal foram dados pela
Constituição da República.
O caso concreto dizia respeito a um pedido de habeas corpus recebido como
reclamação, no qual se sustentava que o Tribunal de Justiça do Estado do Piauí
descumprira decisão do Supremo Tribunal Federal, por meio da qual fora anulado
o acórdão da mesma Corte, que culminou com a condenação dos reclamantes.
Sustentava-se, na espécie, que o relator do feito, em suposto atendimento à ordem
emanada da decisão da Suprema Corte, redigira, monocraticamente, outro acórdão,
deixando, contudo, de anular o julgamento do feito.
Ao prestar suas informações, o Presidente da Corte estadual aduziu que,
como apenas se determinara a anulação do acórdão, não haveria necessidade da
renovação do julgamento. Parece-nos evidente que houve má interpretação da
decisão do STF, fato que acabou por ensejar a caracterização de ofensa frontal.
Em outra oportunidade, estabeleceu a Corte, claramente, o cabimento da
reclamação, ainda que a ofensa se desse de forma oblíqua (cf Rcl 1.987/DF, julgada
em 1º/10/2003, cuja ementa foi transcrita no item 4.2).
No entanto, mais recentemente, no julgamento da Rcl 657/SP, da relatoria
da Ministra Ellen Gracie, o Plenário do STF, contra os votos dos Ministros Cezar
Peluso, Marco Aurélio e Maurício Corrêa – ausentes os Ministros Celso de Mello
e Sepúlveda Pertence –, concluiu que, “de interpretação de suas decisões, não é
possível inferir qualquer ofensa à autoridade da Corte.39” Considerou-se, na espécie,
que a boa ou má interpretação de acórdão do STF, em sua execução, não enseja
reclamação, pois, ainda que eventualmente equivocadas, tais interpretações hão
de ser resolvidas mediante recursos próprios.
Ao proferir seu voto, o Ministro Cezar Peluso manifestou nítida preocupação
com a jurisprudência que então se firmava, consoante se depreende do seguinte
trecho abaixo transcrito, verbis:
Além de todas as outras razões que expus, tenho receio de que o Tribunal,
neste momento, esteja fixando o seguinte e grave precedente: sempre que as
instâncias de origem resolverem desbordar dos limites dessa mesma decisão, não
39
Julgada em 22/04/2004 (DJU de 03/12/2004). A Ministra Ellen Gracie, em seu voto, fez referência a dois
precedentes do STF, no sentido do não-cabimento de reclamação na hipótese de incorreta interpretação
de seus julgados: Rcl 22/SP, de relatoria do Ministro Luiz Gallotti, (DJU de 13/03/1974); e Rcl 217/
SP, de relatoria do Ministro Oscar Corrêa (DJU de 26/08/1988). No primeiro caso, o Tribunal admitiu
reclamação contra acórdão já transitado em julgado, sob o argumento de que o desacato à autoridade
de decisão da Suprema Corte era tal que ultrapassaria os limites da mera interpretação. Considerouse, por isso, que o interesse do Tribunal na preservação de sua autoridade transcenderia aos próprios
interesses da parte reclamada. No julgamento da segunda reclamação, entendeu o Supremo Tribunal
que a Corte local interpretara o acórdão dentro dos limites traçados pelo STF.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
83
haverá ofensa à autoridade de julgado da Corte. Noutras palavras, as instâncias de
origem estão, a partir de agora, autorizadas a transpor os limites das decisões do
Supremo que devam cumprir, porque, nisso, não se caracteriza descumprimento
suscetível de ser remediado por via da reclamação.
Parece-nos, todavia, que, com a promulgação da Emenda Constitucional
45/2004, que acolheu a súmula vinculante no âmbito da Suprema Corte, abriuse a possibilidade de o STF rever seu posicionamento, uma vez que, em nosso
entendimento, é necessária a interpretação para se avaliar se uma decisão judicial
aplicou indevidamente determinada súmula (§ 3º do art. 103-A da Constituição
Federal).
4.4
CABIMENTO DA RECLAMAÇÃO EM SEDE DE CONTROLE
NORMATIVO ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE
Inicialmente, não se admitia o cabimento da reclamação em sede de controle
normativo abstrato de constitucionalidade, em razão da natureza eminentemente
objetiva do processo de ação direta, no qual não há partes nem existe litígio referente
a situações jurídicas concretas ou individuais.
É o que firmou a Suprema Corte no julgamento do Agravo Regimental na
Rcl 354/DF, de relatoria do Ministro Celso de Mello,40 cujo acórdão, no que nos
serve, ficou sintetizado na seguinte ementa, verbis:
Agravo regimental – Reclamação que busca garantir a autoridade
de decisão tomada em processo de controle concentrado de
constitucionalidade – Inadmissibilidade – Recurso improvido.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido do não
cabimento de reclamação na hipótese de descumprimento de decisão tomada em
sede de controle concentrado de constitucionalidade, dada a natureza eminentemente
objetiva do processo de ação direta. Precedentes da Corte.
Tomando por empréstimo, dada sua clareza, as palavras do Ministro Moreira
Alves,41 as quais expressavam a orientação vigente à época, o desrespeito a tal
julgamento (proferido em sede de controle concentrado de constitucionalidade)
configuraria a aplicação da lei que deixou de existir desde o nascedouro (e isso
daria margem a recurso extraordinário) ou a reedição de norma já tida como
inconstitucional (e o remédio aqui seria a propositura de nova representação de
40
41
84
DJU de 28/06/1991.
Tiradas do voto proferido nos autos da Rcl 173/DF, julgada em 19/03/1986.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
inconstitucionalidade, por se tratar de norma nova, embora com conteúdo igual
à anterior).
É certo que, no julgamento da Rcl 173/DF, por escassa maioria,42 abriu-se
exceção à regra geral, mas tal medida foi tomada com base nas peculiaridades do
caso concreto, não se prestando a influenciar o que a ela se seguiria.
Tratava-se, na espécie, de resolução do TST, que, conquanto declarada
inconstitucional pelo STF em sede de representação de constitucionalidade,
fundamentara a decisão tomada em mandado de segurança pelo TRT da 1ª
Região, a qual, em grau de recurso, foi mantida pelo TST. Considerou-se,
no caso, a peculiaridade de o próprio TST haver confirmado solução que,
imposta anteriormente em resolução sua, de caráter administrativo, foi julgada
inconstitucional pela Suprema Corte.
Ao proferir seu voto, o Ministro Cordeiro Guerra salientou que
as decisões do STF que declaram a inconstitucionalidade de uma
norma não podem ser rediscutidas pelas instâncias inferiores,
quaisquer que sejam os recursos processuais ou pretextos jurídicos
que se usem para desafiar a lição do STF. Essa é a substância do ato,
o resto é sofisma para contornar a decisão.
E concluiu: “Ou defendemos a autoridade dos nossos julgados ou perdemos
a autoridade de pronunciá-los”.
Num segundo momento, já sob a vigência da Carta de 1988 – em placar
igualmente apertado –, passou-se a admitir, em nova exceção,43 o cabimento da
reclamação em sede de controle concentrado, nas hipóteses em que a decisão
atacada tivesse partido do mesmo órgão do qual emanara o ato.
O caso concreto versava sobre a promoção a cargo de desembargador de
juiz dos Tribunais de Alçada dos Estados do Paraná e do Rio Grande do Sul, em
afronta à decisão do STF nas Ações Diretas 27/PR e 29/RS, ambas no sentido de
que as vagas do quinto constitucional somente podem ser providas na forma do
art. 94 e parágrafo único da Constituição, isto é, por profissionais da advocacia e
titulares da carreira do Ministério Público.
Considerou-se relevante, nesses precedentes, de igual forma, o fato de o
órgão prolator do ato reclamado ser o mesmo que, no exercício de sua competência
42
43
DJU de 23/02/1990. Ficaram vencidos, quanto ao conhecimento da reclamação, os Ministros Carlos
Madeira, Sydney Sanches, Moreira Alves, Aldir Passarinho e Francisco Rezek.
Reclamações 389/PR, 390/RS e 393/RS, relator p/ o acórdão Ministro Néri da Silveira, julgadas em
23/06/1993, acórdãos publicados no DJU de 09/11/2001. Ficaram vencidos, quanto ao conhecimento
da reclamação, os Ministros Néri da Silveira, Marco Aurélio, Ilmar Galvão, Carlos Velloso e Celso de
Mello.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
85
normativa, editara o ato declarado inconstitucional pelo STF em sede de ação
direta, isto é, o responsável pelo descumprimento coincidia com a parte passiva
no processo objeto de declaração de inconstitucionalidade.
Merece transcrição o seguinte trecho do voto proferido pelo Ministro Paulo
Brossard, que bem reflete a preocupação do Tribunal naquele julgamento:
Tenho para mim, no entanto, que a tese, segundo a qual descabe
tout-cour reclamação em ação direta de inconstitucionalidade, é, pelo
menos, perigosa. Afirmar que, por se tratar de processo objetivo, não
há partes, e dando um passo além, negar a possibilidade do emprego
da reclamação, chegar-se-ia à conclusão de que o Supremo Tribunal
Federal, quando julga ação direta de inconstitucionalidade, não
procede como Tribunal, mas como academia ou sociedade científica, o
que não me parece compatível com a natureza da função jurisdicional
e, até, com a natureza da ação direta de inconstitucionalidade, que
representa uma fase na nova prerrogativa do Poder Judiciário de
pronunciar-se acerca da constitucionalidade das leis. Dizer-se que
cabe reclamação quando se trata de decisão em concreto, e não
cabe quando se trata de decisão em abstrato, importaria em afirmar
que a decisão do Supremo Tribunal Federal, em se tratando de ação
direta de inconstitucionalidade, valeria menos do que a proferida em
litígio entre duas pessoas. Não me parece aceitável e nem mesmo
razoável, pelo menos prima facie, esta assertiva. O contrário se
poderia sustentar, mas não o sustento porque acho que as decisões
do Supremo Tribunal, sem distinções, têm o mesmo peso específico
e o mesmo valor intrínseco.
Posteriormente, a jurisprudência evoluiu, passando a admitir a utilização da
reclamação quando requerida por quem era parte na ação direta cuja decisão fora
desrespeitada. Reconhecia-se, entretanto, a legitimidade daquele que, embora não
sendo parte, tinha legitimidade concorrente para requerer idêntica ação.
Nesse sentido é a ementa do acórdão, aqui transcrita em parte, proferido na
Questão de Ordem na Rcl 397/RJ:44
A expressão “parte interessada”, constante da Lei nº 8.038/90, embora
assuma conteúdo amplo no âmbito do processo subjetivo, abrangendo,
inclusive, os terceiros juridicamente interessados, deverá, no processo
objetivo de fiscalização normativa abstrata, limitar-se apenas aos
órgãos ativa ou passivamente legitimados à sua instauração (CF,
art. 103).
44
86
Julgada em 25/11/1992, DJU de 21/05/1993.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
Ao mesmo tempo, é certo que o Tribunal já vinha admitindo o cabimento de
reclamação, independentemente da condição de parte no processo, nas hipóteses
de desrespeito a decisões proferidas com eficácia vinculante, em sede de ação
declaratória de constitucionalidade.45
No tocante à ação direta, a orientação que vigorava até então ficou superada
com a decisão tomada pela Suprema Corte no julgamento do Agravo Regimental
na Rcl 1.880/SP,46 já na vigência da Lei 9.868/99, na qual se passou a reconhecer
a legitimidade ativa ad causam para a reclamação de todos que comprovassem
prejuízo oriundo de decisões de todos os níveis contrárias a julgado do Tribunal.
Com isso, ampliou-se, sensivelmente, o conceito de parte interessada, previsto
nos artigos 13 da Lei 8.038/90 e 156 do Regimento Interno do STF, na hipótese
de reclamação fundada no desrespeito à autoridade de decisão de mérito proferida
em ação direta.47
Em questão de ordem, o Tribunal reconheceu, preliminarmente, contra
os votos dos Ministros Moreira Alves, Marco Aurélio e Ilmar Galvão, a
constitucionalidade do artigo 28 da Lei 9.868/99, o qual estabelece que a declaração
de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação
conforme à Constituição, e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem
redução de texto têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos
do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
Considerou-se, pois, que, para efeito de controle abstrato de constitucionalidade
de lei ou ato normativo, há semelhança entre a ação direta e a ação declaratória,
pois ambas traduzem manifestação definitiva do tribunal quanto ao enquadramento
de uma norma à Constituição Federal.48
Em outras palavras, afirmou a Corte que o provimento judicial obtido com
a ação declaratória de constitucionalidade, ao qual a Constituição atribuiu o efeito
45
46
47
48
Conforme Rcl 1.822/RN, DJU de 12/09/2001, e Rcl 1.922/RN, DJU de 20/08/2001.
DJU de 19/03/2004.
Cabe enfatizar que o STJ, embora reconheça a orientação atual do STF de que qualquer parte
interessada possui legitimidade para ajuizar reclamação, considerou, recentemente, que, à falta de norma
constitucional a respeito, as ações originárias, incidentes ou recurso propostos no STJ produzem, em
regra, efeitos apenas inter partes, o que restringe a legitimidade para a reclamação às partes litigantes
afetadas por decisão gravosa e em desarmonia com a autoridade das decisões proferidas no curso do
próprio processo. Nesse sentido: AgRg na Rcl 2231/DF, relator Ministro Castro Meira, julgado em
25/10/2006, Primeira Seção, Informativo STJ 302.
Segundo ponto de vista defendido pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento da Rcl 2.256/RN (DJU
de 30/04/2004), uma vez aceita a idéia de que a ação declaratória configura uma ADI com sinal trocado,
tendo ambas caráter dúplice ou ambivalente, afigurar-se-ia difícil admitir que a decisão proferida em
sede de ação direta seria dotada de efeitos ou conseqüências diversas daqueles reconhecidos para a
ação declaratória de constitucionalidade.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
87
vinculante, seria substancialmente idêntico àquele obtido com a ação direta de
inconstitucionalidade, diferenciando-se apenas pelo direcionamento do pedido,
que é de ordem positiva na primeira e negativa na segunda. Assim, vislumbrouse o efeito vinculante para as decisões de mérito proferidas em ação direta de
inconstitucionalidade.49
Nesse sentido, aliás, foi a previsão de Alexandre de Moraes, conforme se
depreende do texto abaixo transcrito, in verbis:
Com o advento da Lei nº 9.868/99 e a previsão de efeitos vinculantes,
conforme já analisado, entendemos que haverá ampliação da
legitimidade para o ajuizamento de reclamações, na hipótese de
desrespeito dos demais órgãos do Poder Judiciário às decisões
proferidas em sede de ação direta de inconstitucionalidade pelo STF,
permitindo-se ao interessado, no caso concreto, a utilização desse
instrumento para a concretização dos efeitos vinculantes.50
Questionava-se, antes, se seria possível ou não atribuir à decisão prolatada
em ação direta o efeito vinculante atribuído pela Constituição de 1988 tão-somente
à decisão de mérito proferida na ação declaratória de constitucionalidade. Há bons
argumentos a favor dos dois posicionamentos.
Os votos vencidos defenderam a tese de que não seria possível a atribuição
de tal efeito por meio de lei ordinária, porquanto não há previsão constitucional
para tanto, bem como porque foi preciso emenda constitucional para que se
conferisse a mesma eficácia à ação declaratória de constitucionalidade. Ou seja,
não poderia a Corte, a partir de mera interpretação, conferir à ação direta um
efeito para o qual, no tocante à ação declaratória, foi necessária a edição de uma
emenda à constituição.
49
50
88
Em sentido contrário, merece transcrição o seguinte trecho do voto proferido pelo Ministro Moreira
Alves no julgamento da questão de ordem na ADC 1/DF (julgada em 27/10/1993, DJU de 16/06/1995),
no ponto em que traçou a distinção entre a ação direta e a ação declaratória de constitucionalidade,
salientando que o efeito vinculante seria próprio da ADC, in verbis: “... do efeito vinculante que lhe é
próprio resulta: a) se os demais órgãos do Poder Judiciário, nos casos concretos sob seu julgamento,
não respeitarem a decisão prolatada nessa ação, a parte prejudicada poderá valer-se do instituto da
reclamação para o Supremo Tribunal Federal, a fim de que este garanta a autoridade dessa decisão;
e b) essa decisão (...) alcança os atos normativos de igual conteúdo daquele que deu origem a ela,
mas que não foi seu objeto, para o fim de, independentemente de nova ação, serem tidos como
constitucionais ou inconstitucionais, adstrita essa eficácia aos atos normativos emanados dos demais
órgãos do Poder Judicário e do Poder Executivo, uma vez que ela não alcança os atos editados pelo
Poder Legislativo”.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2000.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
Com a promulgação da EC 45/2004, cessou a discussão sobre a atribuição
ou não de eficácia vinculante às decisões de mérito proferidas em sede de ação
direta, em razão da expressa autorização nesse sentido.51
Remanesce, no entanto, a controvérsia sobre o efeito vinculante nas decisões
cautelares proferidas em ação direta e em ação declaratória. Há alguns precedentes
em que se atribuiu, manifestamente, efeito vinculante a decisões cautelares tomadas
em controle concentrado,52 autorizando-se, nessas hipóteses, conseqüentemente,
o ajuizamento de reclamação.
Ainda com relação ao controle abstrato de normas, é de se salientar que,
consoante disposição expressa do artigo 13 da Lei 9.882/99, que dispõe sobre o
processo e o julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental,
cabe reclamação contra o descumprimento de decisão proferida pelo STF em
ADPF.
4.4.1 CABIMENTO DA RECLAMAÇÃO PARA PRESERVAR A
AUTORIDADE DA DECISÃO PROFERIDA EM MEDIDA
CAUTELAR EM AÇÃO DECLARATÓRIA
O cabimento da reclamação tanto na ação direta quanto na ação declaratória
de inconstitucionalidade está intimamente relacionado à atribuição, ou não, de efeito
vinculante a tais decisões. É correto afirmar que o desrespeito à eficácia vinculante
de decisão emanada do Plenário da Suprema Corte autoriza o uso da reclamação
pela parte prejudicada. A questão está em saber se as decisões tomadas em medidas
cautelares possuem (ou se lhes pode ser emprestado) tal efeito.
No julgamento da medida cautelar na ADC 4/DF, relator o Ministro Sydney
Sanches, o Tribunal, contra os votos dos Ministros Marco Aurélio e Ilmar Galvão,
entendeu possível a concessão de medida cautelar em ação declaratória de
constitucionalidade – a despeito da ausência de previsão constitucional expressa
para tanto –, sob o argumento, em síntese, de que o poder de acautelar é imanente
51
52
§ 2º do art. 102 da CF/88, na redação dada pela EC 45/2004: “As decisões definitivas de mérito, proferidas
pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias
de constitucionalidade, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais
órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
municipal”. Cabe lembrar, no ponto, que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto das
Ações Diretas 2.277/SP e 2.675/PE (conforme noticiado no Informativo STF 331, acórdão pendente
de publicação), teve oportunidade de assinalar que o efeito vinculante previsto no § 2º do art. 102 da
CF não condiciona o próprio STF, limitando-se aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder
Executivo.
V.g., ADC 4 e ADC 8.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
89
ao poder de julgar. Em seguida, também contra os votos dos Ministros Marco
Aurélio e Ilmar Galvão (e, parcialmente, do Ministro Néri da Silveira, que declarava
a validade da lei impugnada até julgamento final da ação direta), firmou-se que,
em ação dessa natureza, pode a Corte conceder força vinculante à cautelar, a fim
de que se assegure eficácia à futura decisão de mérito.
Salientou-se que não seria razoável afastar o poder cautelar do STF justamente
nos processos objetivos de guarda da Constituição, em que as eventuais decisões
de mérito pela procedência da ação teriam não só eficácia contra todos, mas,
principalmente, efeito vinculante. Destarte, acolheu-se a proposta formulada pelo
Ministro Sepúlveda Pertence de sustar qualquer decisão a respeito da lei impugnada
até o pronunciamento final do STF (ou seja, sem que houvesse declaração liminar
sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da norma).53
Nessas circunstâncias, o eventual descumprimento por juízes ou tribunais
da aludida decisão, porquanto revestida de efeito vinculante, daria margem à
utilização do instrumento constitucional da reclamação, conquanto se tratasse
de julgamento referente a pedido de medida cautelar em ação declaratória de
constitucionalidade.
Tal orientação foi reafirmada no julgamento da medida cautelar na ADC 8/
DF,54 de relatoria do Ministro Celso de Mello, cujo acórdão ficou sintetizado na
seguinte ementa, verbis (citamos o que interessa):
Ação declaratória de constitucionalidade – Outorga de medida
cautelar com efeito vinculante – Possibilidade.
- O Supremo Tribunal Federal dispõe de competência para exercer,
em sede de ação declaratória de constitucionalidade, o poder geral
de cautela de que se acham investidos todos os órgãos judiciários,
independentemente de expressa previsão constitucional. A prática
da jurisdição cautelar, nesse contexto, acha-se essencialmente
vocacionada a conferir tutela efetiva e garantia plena ao resultado que
deverá emanar da decisão final a ser proferida no processo objetivo
de controle abstrato. Precedente.
- O provimento cautelar deferido, pelo Supremo Tribunal Federal, em
sede de ação declaratória de constitucionalidade, além de produzir
eficácia “erga omnes”, reveste-se de efeito vinculante, relativamente
53
54
90
Em sentido contrário, os Ministros Marco Aurélio e Ilmar Galvão sustentaram que a concessão de
liminar com efeito vinculante impediria os juízes de 1º grau, nos casos concretos, de exercitar o controle
difuso de constitucionalidade.
DJU de 04/04/2003.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
ao Poder Executivo e aos demais órgãos do Poder Judiciário.
Precedente.
- A eficácia vinculante, que qualifica tal decisão – precisamente por
derivar do vínculo subordinante que lhe é inerente –, legitima o uso da
reclamação, se e quanto a integridade e a autoridade desse julgamento
forem desrespeitadas.
Mais recentemente, o Tribunal, reportando-se aos fundamentos da solução
adotada no julgamento da ADC 4/DF, contra o voto do Ministro Marco Aurélio,
assentou a mesma orientação quando afirmou a constitucionalidade do art. 21 da
Lei 9.868/99, o qual estabelece que o STF,
por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir
pedido de medida cautelar na ação declaratória de constitucionalidade,
consistente na determinação de que os juízes e os Tribunais suspendam
o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do
ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo.55
4.4.2 CABIMENTO DA RECLAMAÇÃO PARA PRESERVAR A
AUTORIDADE DA DECISÃO PROFERIDA EM MEDIDA
CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA
Consoante afirmado anteriormente, o cabimento da reclamação na hipótese
de descumprimento do que decidido em sede de cautelar, em ação direta, está
condicionado à atribuição, ou não, de efeito vinculante à decisão.
No julgamento da Questão de Ordem na Rcl 2.063/RJ,56 em que se alegava
ofensa à autoridade da decisão proferida na Medida Cautelar na ADI 2.435/RJ, o
Tribunal, contra o voto da Ministra Ellen Gracie, relatora – que resolvia a questão de
ordem no sentido de sustar os efeitos do ato reclamado, determinando a suspensão
do processo, até julgamento final da citada ação direta, por não visualizar distinção
entre a decisão que concede liminar em ADC e a que indefere liminar em ADI –,
indeferiu o pedido de liminar, por considerar que o pedido, nos termos em que
formulado, pretendia atribuir efeito vinculante à decisão que indefere o pedido
de liminar em ação direta de inconstitucionalidade, efeito esse que, segundo foi
estabelecido, ela não possui.
Pouco mais de um ano depois, o Plenário reviu seu entendimento.
55
56
ADI 2.154 e ADI 2.258, ambas do DF, relator o Ministro Sepúlveda Pertence, julgadas em 14/02/2007,
acórdão pendente de publicação, noticiadas no Informativo STF 456.
Julgada em 05/06/2002, DJU de 05/09/2003.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
91
É certo que, por ocasião do julgamento da Questão de Ordem no RE 168.277/
RS,57 já se havia firmado a tese, no âmbito do STF, de que “deve ser suspenso o
julgamento de qualquer processo que tenha por fundamento lei ou ato estatal cuja
eficácia tenha sido suspensa, por deliberação da Corte, em sede de ação direta de
inconstitucionalidade, até final julgamento desta”.
Cuidava-se, na espécie, de recurso extraordinário em que se questionava a
validade de dispositivo de lei estadual cuja vigência fora suspensa pelo STF nos
autos da Medida Cautelar na ADI 656/RS.
Em outras oportunidades, o Tribunal adotou a mesma solução, sem que,
no entanto, examinasse expressamente a questão relativa à aplicação do efeito
vinculante em ação direta de inconstitucionalidade.58 No julgamento da Rcl 2.256/
RN, cujo relator foi o Ministro Gilmar Mendes, todavia, o Tribunal, contra o voto
do Ministro Marco Aurélio, enfrentou a questão para admitir o efeito vinculante
da medida cautelar em ação direta.59
A síntese do julgado ficou consignada na seguinte ementa:
Reclamação. 2. Garantia da autoridade de provimento cautelar na
ADI 1.730/RN. 3. Decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Norte em Mandado de Segurança. Reenquadramento de
servidor aposentado, com efeitos “ex nunc”. Aposentadoria com
proventos correspondentes à remuneração de classe imediatamente
superior. 4. Decisão que restabelece dispositivo cuja vigência
encontrava-se suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal,
em sede de cautelar. 5. Eficácia “erga omnes” e efeito vinculante de
decisão cautelar proferida em ação direta de inconstitucionalidade.
6. Reclamação julgada procedente.
No caso concreto, o relator, após aprofundada análise doutrinária do tema,
concluiu que a suspensão da eficácia de determinado dispositivo equivale à
suspensão temporária de sua própria validade, afetando, portanto, sua vigência
nos planos fático e normativo. Em seguida, concluiu que o deferimento de liminar
em ação direta autoriza o ajuizamento de reclamação.
A construção feita pelo Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, baseia-se,
fundamentalmente, no fato de que o dever político-institucional desempenhado pelo
Supremo Tribunal Federal de zelar pela guarda da Constituição impõe a observância
57
58
59
92
Julgada em 04/02/98, DJU de 29/05/98, relator Ministro Ilmar Galvão.
Situações análogas ocorreram nos autos da Rcl 1.507-QO/RJ (DJU de 1º/03/2002), ADI 1.244-QO/SP
(DJU de 28/05/1999), Rcl 1.652/RJ (DJU de 22/08/2003) e Rcl 935/DF (DJU de 17/10/2003).
Julgada em 11/09/2003, DJU de 30/04/2004.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
por parte dos órgãos jurisdicionais ordinários da interpretação constitucional por
ele conferida, sob pena de se debilitar a força normativa da Constituição.60
Em sentido contrário, votou o Ministro Marco Aurélio, sob o entendimento
de que não cabe reclamação em controle normativo abstrato, senão na hipótese
em que o ato reclamado tenha sido praticado pela mesma autoridade requerida na
ação direta, na linha dos precedentes firmados nas Reclamações 389, 390 e 393.61
Do contrário, em sua opinião, estar-se-ia abrindo a possibilidade de recurso per
saltum ao Supremo, o que não é admissível. Além disso, na dicção do mesmo
Ministro, o § 2º do art. 102 da Constituição Federal não autoriza a atribuição de
efeito vinculante às cautelares, mas apenas às decisões definitivas de mérito.62
Cumpre ressaltar, de outra parte, o fato de que o Ministro Sepúlveda Pertence,
embora não aceite a atribuição de efeito vinculante às cautelares, defende a tese de
que, por aplicação de regra processual constante do art. 265, inc. IV, é possível a
suspensão dos processos em curso até que se profira decisão definitiva de mérito
na ADI ou na ADC. Assim, embora não atribua efeito vinculante às cautelares por
outro fundamento – que as ações em curso penderiam do julgamento de questão
a elas prejudicial –, determina que fiquem os processos suspensos.
4.5
CABIMENTO DA RECLAMAÇÃO EM SEDE DE CONTROLE
INCIDENTAL OU DIFUSO
Em termos gerais, é correto afirmar que, no sistema difuso, qualquer juiz
ou órgão especial de tribunal, em um determinado caso concreto, pode declarar,
incidentalmente, a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, afastando sua
aplicação, a qual opera apenas inter partes, e não se estende de forma automática
a outros litígios que envolvam a validade da mesma lei.
Por outro lado, quando o Supremo Tribunal Federal declara a
inconstitucionalidade de determinado ato normativo em sede de controle incidental
60
61
62
Essa tendência, aliás, vem sendo seguida pela Corte desde o segundo semestre de 2003, quando
tomaram posse os Ministros Cezar Peluso, Carlos Britto e Joaquim Barbosa, como tive oportunidade
de assentar em artigo publicado na Revista de Direito Público nº 4. Nesse sentido, fiz referência aos
seguintes julgamentos: RE 298.694/SP (DJU de 23/04/1994); Rcl 1.987/DF (DJU de 21/05/2004); RE
395.662/RS (DJU de 23/04/2004) e RE 222.874 ED-AgR/SP (DJU de 30/04/2004).
Reclamações 389/PR, 390/RS e 393/RS (julgadas em 23/09/93, DJU de 09/11/2001). Tal entendimento
foi reafirmado no julgamento da Rcl 1.782/AP, DJU de 28/11/2003).
Art. 102, § 2º, na redação dada pela EC 45/2004: “§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas
pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias
de constitucionalidade, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais
órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
municipal”.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
93
de normas, a teor do disposto no inciso X do artigo 52 da Constituição Federal,
competirá ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, do aludido
ato normativo, a fim de conferir eficácia erga omnes à declaração. Já as decisões
do STF tomadas em controle abstrato, pela sua própria índole, já possuem efeito
erga omnes, sendo dispensável a atuação do Senado.
Sucede que está sob apreciação do Plenário do STF uma reclamação
na qual o Ministro Gilmar Mendes defende a tese de que a declaração de
inconstitucionalidade proferida no controle incidental também possui eficácia
erga omnes, independentemente da atuação do Senado Federal, a quem, segundo
alega, cabe apenas, no caso, a tarefa da publicidade.
Trata-se, na espécie, da Rcl 4.335/AC,63 proposta pela Defensoria Pública
da União contra a afirmação, deduzida pelo Juiz de Direito da Vara de Execuções
Penais da Comarca de Rio Branco, por meio de comunicado fixado nas dependências
do Fórum, de que a declaração incidental da inconstitucionalidade do § 1º do art.
2º da Lei 8.072/90,64 proferida pela Suprema Corte no julgamento do HC 82.959/
SP,65 “somente terá eficácia a favor de todos os condenados por crimes hediondos
ou a eles equiparados que estejam cumprindo pena, a partir da expedição, pelo
Senado Federal, de resolução suspendendo a eficácia do dispositivo de lei declarado
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 52, inciso X,
da Constituição Federal”.
No voto proferido, o Ministro Gilmar Mendes apresenta a seguinte
indagação:
Se o STF pode, em ADI, suspender, liminarmente, a eficácia de uma
lei, até mesmo de uma Emenda Constitucional, por que haveria a
declaração de inconstitucionalidade, proferida no controle incidental,
valer tão-somente para as partes?
Observou o Ministro, inicialmente, que a ampliação da legitimidade ativa
para a ação direta pelo texto constitucional de 1988 acabou por reduzir o significado
do controle incidental ou difuso, uma vez que quase todas as controvérsias podem
ser levantadas por meio de controle abstrato. Assim, embora adotemos o sistema
misto de constitucionalidade, nota-se, segundo defende o Ministro Gilmar Mendes,
maior ênfase ao controle concentrado. Para o Ministro, portanto, a tendência, na
convivência entre os dois sistemas, é que predomine o controle concentrado, em
razão da eficácia erga omnes.
63
64
65
94
Julgamento iniciado em 1º/02/2007, conforme noticiado no Informativo STF 454. A conclusão foi
adiada em razão do pedido de vista do Ministro Ricado Lewandowski (Informativo STF 463).
Na redação anterior à conferida pela Lei 11.464/2006: “A pena por crime previsto neste artigo será
cumprida em regime integralmente fechado”.
DJU de 1º/09/2006.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
Segundo assevera em seu voto, uma evidência de que o legislador considerou
possível estender, de forma geral, os efeitos da decisão adotada pelo STF (tanto no
controle abstrato quanto no controle incidental de determinada lei federal, municipal
ou estadual) está na possibilidade conferida pela Lei 8.038/90, e ampliada pelo
CPC, de julgamento monocrático de recursos quando manifestamente incabíveis
ou em confronto com jurisprudência dominante ou sumulada do tribunal.
Por isso mesmo, demonstrou o Ministro que os demais membros da
Suprema Corte vêm aplicando a tese fixada em precedentes nos quais se discutiu
a inconstitucionalidade de lei, em sede de controle difuso, emanada de ente
federativo diverso daquele prolator do objeto do recurso extraordinário sob
exame, com fundamento no disposto no caput e § 1º-A do art. 557 do Código
de Processo Civil, que permite ao relator o julgamento monocrático de recurso
interposto contra decisão que esteja em confronto com súmula ou jurisprudência
dominante no STF.
A partir de uma construção circunstanciada, chamou o Ministro a atenção
para o fato concreto de que diversos precedentes firmados em sede de controle
de constitucionalidade de leis municipais têm sido freqüentemente aplicados por
muitos membros do STF a situações idênticas, reproduzidas em leis de outros
municípios, o que comprovaria, em termos práticos, a adoção dos fundamentos
determinantes de um dado leading-case a hipóteses a ele semelhantes.66
Outro ponto importante suscitado pelo Ministro Gilmar Mendes diz respeito
ao fato de que, nos autos do RE 190.728/SC,67 já assentara a Suprema Corte
que a existência de declaração de inconstitucionalidade de determinada lei ou
ato normativo pelo Plenário autoriza o órgão fracionário a se pronunciar sobre
a inconstitucionalidade do mesmo ato em outro feito, sem que isso afrontasse a
disposição contida no art. 97 da Constituição68 (inteligência, no caso, dos princípios
da segurança jurídica e da economia processual).
Essa interpretação – aduziu – está, atualmente, positivada no artigo 481 do
Código de Processo Civil, segundo o qual “os órgãos fracionários dos tribunais não
submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade,
quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal
Federal sobre a questão” (introduzida pela Lei 9.756/98).
Tais observações evidenciariam a evolução do sistema de controle de
constitucionalidade brasileiro, que passa, praticamente, a equiparar os efeitos
66
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68
A título de ilustração, o Ministro Gilmar Mendes faz remissão a precedentes da lavra dos Ministros
Maurício Corrêa, Nelson Jobim, Ellen Gracie, Carlos Velloso, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.
Julgado em 27/06/95, DJU de 30/05/97, relator para o acórdão o Ministro Ilmar Galvão.
CF, art. 97: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo
órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder
Público”.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
95
das decisões proferidas nos processos de controle abstrato e concreto. Em outras
palavras, a decisão do STF anteciparia o efeito vinculante de seus julgados em
matéria de controle de constitucionalidade incidental.
Além disso, constatou o Ministro que a própria adoção da técnica de
declaração de inconstitucionalidade com limitação de efeitos estaria a sinalizar a
desvinculação do Tribunal de qualquer ato do Senado Federal.
De qualquer sorte, concluiu o Ministro Gilmar Mendes – à vista da natureza
idêntica do controle de constitucionalidade quanto às suas finalidades e aos
procedimentos comuns, dominantes para os modelos difuso e concentrado – que não
mais se mostra legítima a distinção dos efeitos das decisões proferidas no controle
direto e no controle incidental. Nessas circunstâncias, defendeu a ocorrência de
autêntica mutação constitucional, em virtude da completa reformulação do sistema
jurídico, pelo que sustentou fosse conferida nova interpretação à regra do art. 52,
inc. X, da Constituição, que passaria a ter função meramente de publicidade.
Extraio do voto, no ponto, o seguinte trecho, verbis:
Assim, parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula
relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter
simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal
Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo
definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos
gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este
publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não
é (mais) a decisão do Senado Federal que confere eficácia geral ao
julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa
força normativa.
Na Sessão Plenária de 19/04/2007, dando continuidade ao julgamento, o
Ministro Eros Grau proferiu seu voto acompanhando o relator, Ministro Gilmar
Mendes. O Ministro Sepúlveda Pertence, por sua vez, antecipando o voto, abriu
divergência, por não concordar com o que chamou de “projeto de decreto de
mutação constitucional”.
Em seu voto, salientou o Ministro Sepúlveda Pertence, inicialmente, que,
no Brasil, desde a Constituição de 1934 – excepcionando-se apenas, quanto
a isso, a Carta do Estado Novo –, outorgou-se ao Senado a competência para
suspender a execução de qualquer lei, ato ou regulamento que haja sido declarado
inconstitucional por decisão do Poder Judiciário.69
69
96
CF/34, art. 91, inc. IV. A partir da CF/46, incumbiu-se o Senado de suspender a execução, no todo ou
em parte, de lei ou decreto declarados inconstitucionais “por decisão definitiva do Supremo Tribunal
Federal” (cf. art. 64).
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
A partir da EC 16/65, a eficácia erga omnes passou a ser efeito direto
e imediato da própria decisão na representação de inconstitucionalidade,
prescindindo, por isso, da ulterior deliberação do Senado. No entanto – enfatizou
–, a declaração incidente de inconstitucionalidade para resolver questão prejudicial
do caso concreto, malgrado emanada do próprio Supremo Tribunal, é de eficácia
relativa e, sendo restrita ao âmbito do processo em que tomada – e nos termos da
literalidade da Constituição70 –, exige a manifestação do Senado para lhe emprestar
alcance erga omnes.
Destacou o Ministro que, não obstante o entendimento consolidado na Corte
desde o julgamento do RE 190.728/SC – por meio do qual se dispensou a reserva
de plenário nos demais tribunais quando já houvesse decisão incidente do STF
declaratória da inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em causa71–, não
está o Supremo autorizado a reduzir o papel do Senado Federal ao de mero órgão
de publicidade das decisões da Corte.
Contudo, a par da manutenção por todas as Constituições, desde a de 1934,
(excepcionando-se, apenas, como já dito, a de 1937, do Estado Novo) do sistema
primitivo de entrega a um órgão do Poder Legislativo da decisão de dar ou não à
declaração de inconstitucionalidade os efeitos gerais – ainda que reconhecida a
obsolescência desse sistema – e da evidente prevalência do sistema de controle
concentrado, consignou o Ministro que, após a vigência da EC 45/2004, nem mesmo
seria necessária a redução do Senado à função subalterna de dar publicidade às
decisões do Tribunal nos processos subjetivos, em razão do poder conferido ao
STF pelo § 2º do art. 102 para vincular às suas decisões todos os demais órgãos
da Administração e do Poder Judiciário, exceto o próprio Supremo Tribunal.
Em conclusão, o Ministro Sepúlveda Pertence, negando a possibilidade de o
Senado Federal ser reduzido a mero órgão de publicidade das decisões do STF – e,
portanto, afastando a proposta de mutação constitucional –, julgou improcedente
a reclamação.
No entanto, concedeu habeas corpus, de ofício, para determinar que o Juízo
da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco examinasse os demais
pressupostos da progressão de regime postulada pelo reclamante.
Na mesma Sessão, o Ministro Joaquim Barbosa proferiu seu voto, tendo
acompanhado a divergência inaugurada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, embora
70
71
CF, art. 102, § 2º, na redação dada pela EC 45/2004: “As decisões definitivas de mérito, proferidas
pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias
de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais
órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
municipal”.
DJU de 30/05/1997.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
97
por outros fundamentos, quais sejam, de que a omissão, no caso, não derivaria do
Senado Federal, mas, sim, do próprio Poder Judiciário, por meio da recalcitrância
do Juízo reclamado, e de que a mutação constitucional proposta esbarraria no óbice
da literalidade da disposição contida no inciso X do art. 52.
Com efeito, ressaltou o Ministro que o Reclamante não suscitou atitude de
omissão alguma por parte do Senado Federal, enfatizando, ao final, que o acolhimento
da mutação proposta implicaria a simples mudança do sentido da norma, o que não
está elencado como modalidade idônea de mutação constitucional.
Com essa argumentação, decidiu o Ministro Joaquim Barbosa não conhecer
da reclamação, mas conceder igualmente habeas corpus para confirmar a liminar
deferida pelo Ministro Gilmar Mendes, relator.
A conclusão do julgamento da mencionada reclamação foi adiada em face do
pedido de vista formulado pelo Ministro Ricardo Lewandowski, e parece sinalizar,
na linha de outros precedentes suscitados no presente trabalho, a tendência de
evolução do instituto para o papel de instrumento voltado à proteção da ordem
constitucional.
4.6
PARÂMETRO DA DESOBEDIÊNCIA: DISPOSITIVO OU
FUNDAMENTOS DETERMINANTES DA DECISÃO?
Cândido Rangel Dinamarco,72 analisando o instituto da reclamação, ao que
parece, em sede de controle difuso de constitucionalidade, sustenta a ocorrência
do que denomina preclusão hierárquica, quando já houve pronunciamento superior
sobre determinado tema. Embora ressalve que não é dado impor ao juiz preclusões,
porque exerce ele poder estatal, salienta ser imperioso o entendimento de que as
decisões superiores constituem fator de impedimento a qualquer manifestação dos
órgãos inferiores sobre a matéria já decidida.
No entanto, avalia que essa preclusão não vincula o juiz a situações conexas
à que tiver sido objeto de decisão, nem aos fundamentos dos pronunciamentos
superiores. Isso significa, nas palavras dele, que devem ser aplicadas ao instituto
as disposições contidas nos §§ 1º a 3º do art. 301 do CPC e nos incisos do art.
469, ambos do Código de Processo Civil, segundo os quais a autoridade da coisa
julgada material é limitada ao dispositivo das sentenças, sem que se estendam aos
seus fundamentos.73
72
73
98
DINAMARCO, Cândido Rangel. A reclamação no processo civil brasileiro. Revista Forense, São
Paulo, 2003, v. 99, n. 366, p. 9-15.
CPC, “art. 301 (...) § 1o Verifica-se a litispendência ou a coisa julgada, quando se reproduz ação
anteriormente ajuizada. § 2o Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
Em seu entendimento, “a coisa julgada só impede novos julgamentos
quando estes tiverem por objeto o mesmo petitum e, além disso, a pretensão a
ser apreciada tiver o mesmo fundamento daquele já definitivamente julgado”. A
contrario sensu, se o fundamento for o mesmo daquele já definitivamente julgado,
o juiz estará vinculado ao que decidido, não lhe sendo dado manifestar-se em
sentido contrário.
Em sede de controle concentrado, o Supremo Tribunal, no julgamento da
questão de ordem na ADC 1/DF,74 consignou que o efeito vinculante da decisão
de mérito proferida na ação declaratória restringe-se ao seu dispositivo, não
abrangendo seus fundamentos determinantes.
Todavia, mais recentemente, no julgamento da Rcl 1.987/DF,75 o Plenário
da Suprema Corte, contra os votos dos Ministros Sepúlveda Pertence, Marco
Aurélio e Carlos Britto, reconheceu o caráter transcendente e vinculante dos
fundamentos determinantes da decisão de mérito proferida em sede de controle
normativo abstrato.
Tratava-se, na espécie, de reclamação ajuizada pelo Governador do Distrito
Federal contra ordem de seqüestro de verbas emanada de juíza do TRT da 10ª
Região, em alegada ofensa à orientação firmada pelo STF no julgamento da ADI
1.662/SP, proposta contra a Instrução Normativa 11/97 do TST, pela qual se
concluiu que a única hipótese de seqüestro admitida pela Constituição é a decorrente
da preterição do direito de precedência.
O acórdão ficou sintetizado na seguinte ementa:
(...) Ausente a existência de preterição, que autorize o seqüestro,
revela-se evidente a violação ao conteúdo essencial do acórdão
proferido na mencionada ação direta, que possui eficácia erga omnes
e efeito vinculante. A decisão do Tribunal, em substância, teve sua
autoridade desrespeitada de forma a legitimar o uso do instituto
da reclamação. Hipótese a justificar a transcendência sobre a parte
dispositiva dos motivos que embasaram a decisão e dos princípios
sobre ela consagrados, uma vez que os fundamentos resultantes da
interpretação da Constituição devem ser observados por todos os
74
75
de pedir e o mesmo pedido. § 3o Há litispendência, quando se repete ação que está em curso; há coisa
julgada, quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso”. “Art. 469.
Não fazem coisa julgada: I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte
dispositiva da sentença; II - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III - a
apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo”.
DJU de 16/06/1995.
DJU de 21/05/2004.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
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tribunais e autoridades, contexto que contribui para a preservação e
desenvolvimento da ordem constitucional. (Grifos nossos)
Reafirmando o efeito vinculante dos fundamentos determinantes de decisão
tomada em controle concentrado, o Plenário, no julgamento da Rcl 2.363/PA,76 de
relatoria do Ministro Gilmar Mendes, contra os votos dos Ministros Marco Aurélio
e Carlos Britto, admitiu o cabimento de outra reclamação, em que se alegava o
desrespeito à autoridade da decisão proferida nos autos da ADI 1.662/SP.
Entretanto, não se pode afirmar que tal orientação esteja pacificada.
Com efeito, a matéria está novamente em debate na Suprema Corte, no
julgamento da Reclamação 4.219/SP (noticiada nos Informativos 441 e 458), de
relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, dessa feita com três novos Ministros em
sua composição (Eros Grau, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia).
No caso concreto, o reclamante, tabelião de notas aposentado compulsoriamente
aos 70 anos, sustenta que a decisão judicial que declarou improcedente o pedido
de reversão de sua aposentadoria ofende a autoridade do acórdão proferido pelo
STF nos autos da ADI 2.602/MG, pela qual se entendeu que o art. 40, § 1º, inc.
II, da CF/88, na redação que lhe foi conferida pela EC 20/98,77 dirige-se apenas
aos cargos efetivos da União, dos estados, do DF e dos municípios, neles não se
incluindo, portanto, os serviços de registros públicos, cartorários e notariais, que
são exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público.78
Na Sessão Plenária de 21/09/2006, o Ministro Joaquim Barbosa, relator,
preliminarmente, suscitou duas questões de ordem. Na primeira, observou o Ministro
que, ainda que cassada a sentença que prejudicou o reclamante, remanesceria o
ato administrativo que culminou com sua aposentadoria – sobre o qual não houve
pronunciamento judicial –, em nada resultando, assim, o acolhimento do pedido,
do qual nenhum benefício adviria para o reclamante. Dessa forma, tendo como
defeituosa a indicação da autoridade reclamada, resolveu a primeira questão de
ordem no sentido do não-conhecimento da reclamação. Na segunda, o Ministro,
ressaltando a distinção entre o ato impugnado no acórdão-paradigma – Provimento
55/2001, da Corregedoria-Geral do Estado de Minas Gerais – e aquele atacado na
reclamação – emanado de autoridade judicial do Estado de São Paulo –, assinalou
76
77
78
DJU de 1º/04/2005.
“Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo,
observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo. § 1º - Os
servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados
os seus proventos a partir dos valores fixados na forma do § 3º: (...) II – compulsoriamente, aos setenta
anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição;”
DJU de 13/03/2006.
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Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
que os efeitos da declaração proferida em sede de ação direta não alcançam atos
provenientes de outros estados da Federação, pelo que, igualmente, concluiu no
sentido do não-conhecimento da reclamação.
Afastou o Ministro relator, pois, expressamente, a viabilidade da invocação
do fundamento determinante da ação direta tida por desrespeitada, qual seja, de que
não se aplica aos notários a aposentadoria compulsória prevista no inciso II do §
1º do art. 40 da Constituição, na redação que lhe foi conferida pela EC 20/98.
Na mesma assentada, o Ministro Ricardo Lewandowski votou acompanhando
o Ministro Joaquim Barbosa relativamente às duas questões de ordem propostas.
O Ministro Sepúlveda Pertence, por sua vez, antecipou seu voto, salientando,
inicialmente, que questão similar, concernente ao objeto material das decisões
vinculantes, já está sob apreciação da Corte nos autos da Rcl 2.643/PR, de sua
relatoria, atualmente suspensa em face do pedido de vista do Ministro Cezar
Peluso.79 Em seguida, na mesma linha da orientação adotada na mencionada
reclamação, embora divergindo do relator quanto à primeira questão de ordem,
defendeu que o que se faz vinculante nos termos do disposto no § 2º do art. 102 da
Constituição é a decisão do Supremo Tribunal sobre uma norma infraconstitucional
determinada, e não a interpretação da norma constitucional, não sendo possível,
por conseguinte, a utilização da via da reclamação para impugnar, sob a alegada
ofensa à autoridade de decisão da Corte, norma diversa, ainda que de conteúdo
idêntico, de outra unidade da Federação. Assim, o efeito vinculante apenas recairia
sobre a norma infraconstitucional específica já examinada pelo Tribunal, o que não
impediria, entretanto, a utilização daquele julgamento como relevante precedente
jurisprudencial para o exame de outros casos.
Ao proferir seu voto, o Ministro Sepúlveda Pertence enfatizou a circunstância
de que, em seus pronunciamentos no Senado Federal, à época da promulgação da
EC 45/2004, sustentara expressamente que o efeito vinculante somente serviria às
questões delimitadas sobre a validade e a interpretação de normas determinadas.
O Ministro também traçou um paralelo entre a sentença e a decisão proferida na
ação direta, para afirmar que, tendo o processo civil brasileiro, a partir do Código
79
No caso concreto, sustenta-se que o ato do Governador do Estado do Paraná que nomeou membro
ativo do Ministério Público, admitido após a vigência da Constituição, para o cargo de Secretário
de Estado de Segurança Pública ofenderia a autoridade das decisões do STF proferidas nas Ações
Diretas 2.084/SP e 2.534-MC/DF. O Ministro Sepúlveda Pertence, relator, não obstante reconhecer
a densa plausibilidade do questionamento quanto à validade do ato reclamado e à similaridade do
conteúdo normativo, julgou improcedente a reclamação, tendo presente o fato de que o ato reclamado
é distinto daqueles tratados nas ações diretas tidas por desrespeitadas, consistentes em leis diversas de
outras unidades da Federação, no que foi acompanhado pelos Ministros Eros Grau e Carlos Britto. O
julgamento foi suspenso em virtude do pedido de vista do Ministro Cezar Peluso, conforme noticiado
no Informativo STF 367.
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de 1973, estabelecido que os motivos determinantes não estão cobertos pela
coisa julgada, com muito mais razão se justificaria a aplicação da mesma regra ao
efeito erga omnes das ações diretas, devendo o alcance do dispositivo, portanto,
se restringir ao objeto da ação direta.
Ao final, em resumo, o Ministro Sepúlveda Pertence concluiu relativamente
à primeira questão de ordem, divergiu do relator por considerar que, caso aplicável
à espécie o efeito vinculante, seria possível ao Tribunal cassar a decisão impugnada
e determinar ao juiz que proferisse outra, respeitando a decisão prolatada na ação
direta tida por desobedecida, isto é, competiria ao juiz proferir nova sentença nos
termos da decisão vinculante. No entanto, porque, no seu entendimento, a segunda
questão de ordem pareceria prejudicial à primeira, acompanhou a conclusão do
Ministro relator não conhecendo da reclamação, ao argumento de que a decisão
tomada quanto ao ato normativo de Minas Gerais não vincula o juiz de São Paulo,
não sendo cabível, por isso, a propositura da reclamação.
Na Sessão Plenária de 7 de março de 2007, o Ministro Eros Grau proferiu
voto divergente e conheceu da reclamação, sob o fundamento, em síntese, quanto
à primeira questão de ordem, de que o ato reclamado ofende, sim, a autoridade da
decisão proferida pelo STF no julgamento da ADI 2.602/MG. Sustentou o Ministro,
de outra parte, que, da cassação do aludido ato, diversamente do que entendeu o
relator, adviria benefício ao Reclamante. No que respeita à segunda questão de
ordem suscitada, defendeu que a decisão de mérito referida pelo § 2º do art. 102
da Constituição não pode ser concebida como a singela indicação de que certo
texto normativo infraconstitucional é inconstitucional ou não, sendo muito mais
ampla, “porque envolve a interpretação da Constituição, toda ela, não de apenas
um texto normativo infraconstitucional isolado”.80
Com base nesse entendimento, o Ministro Eros Grau arrematou seu voto
sustentando que a interpretação da norma constitucional conferida pelo STF é
que se faz vinculante e produz eficácia contra todos. No caso concreto, portanto,
tendo o Tribunal assentado, no julgamento da ADI tida por desrespeitada, a
inaplicabilidade da aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade para
notários e registradores brasileiros, após o advento da EC 20/98, não poderia a
autoridade judicial reclamada, ainda que com base em norma de outro Estadomembro, contrariar os motivos determinantes da decisão da Corte, em razão da
sua eficácia erga omnes e do seu efeito vinculante.
Os Ministros Gilmar Mendes, Cezar Peluso e Celso de Mello, na mesma
Sessão, acompanharam a divergência inaugurada pelo Ministro Eros Grau e
conheceram da reclamação. Ao proferir seu voto, o Ministro Cezar Peluso destacou
80
Disponível em: <http://www.stf.gov.br/imprensa/PDF/rcl4219-QO.pdf> Acesso em:10/03/2007.
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a necessidade de o Tribunal privilegiar o conteúdo da norma, em detrimento
da forma, sob pena de colocar em risco a segurança jurídica e esvaziar o efeito
vinculante, o qual, ao seu juízo, foi concebido exatamente para evitar a propagação
de casos idênticos no âmbito da Corte. Os Ministros Gilmar Mendes e Celso de
Mello, de outra parte, destacaram, ainda, a necessidade de preservação da força
normativa da Constituição.
Os Ministros Carlos Britto e Cármen Lúcia, por sua vez, acompanharam
o Ministro Sepúlveda Pertence, tendo ressaltado a Ministra, em seu voto, que
o sistema brasileiro, diferentemente de outros sistemas, como o alemão, não
admite a vinculação do Poder Legislativo, fato que, segundo entende, impediria a
interpretação tal como proposta pelo Ministro Eros Grau.
O placar atual da votação, portanto, é de 5 votos no sentido do nãoconhecimento da reclamação, isto é, considerando que o que se faz vinculante,
a teor do disposto no § 2º do art. 102 da Constituição, é a decisão de mérito do
STF sobre a norma impugnada, e 4 votos reconhecendo, na prática,81 o efeito
vinculante dos fundamentos ou motivos determinantes de decisão proferida em
controle normativo abstrato.82
Apesar da eventual possibilidade de que se afaste a transcendência dos
fundamentos determinantes da decisão do STF proferida em ação direta, cumpre
ressaltar a existência de interessante decisão monocrática da lavra do Ministro
Gilmar Mendes.
Trata-se da decisão proferida nos autos da Rcl 4.987/PE,83 na qual sustenta
“a possibilidade de se analisar, em sede de reclamação, a constitucionalidade de
lei de teor idêntico ou semelhante à lei que já foi objeto da fiscalização abstrata
de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal”.
Na citada decisão, o Ministro Gilmar Mendes afasta a aplicação ao caso
da “transcendência dos motivos determinantes”, justificando sua conclusão no
sentido do conhecimento da reclamação, na possibilidade de ampliação do uso
desse importante e singular instrumento da jurisdição constitucional brasileira, a
81
82
83
Os Ministros Gilmar Mendes e Cezar Peluso não se pronunciaram expressamente sobre a aplicação, ou
não, ao caso da teoria da transcendência dos motivos determinantes, reservando-se para o enfrentamento
da questão em outra oportunidade.
Conforme noticiado nos Informativos 441 e 458. Votos favoráveis ao conhecimento da reclamação:
Ministros Eros Grau, Cezar Peluso, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Votos contrários: Ministros
Joaquim Barbosa, relator, Sepúlveda Pertence, Carlos Britto, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. O
julgamento foi adiado em face do pedido de vista da Ministra Ellen Gracie. Cabe anotar que a posição
sustentada pelo Ministro Marco Aurélio no julgamento da Rcl 1.987/DF (DJU de 21/05/2004), em
que se discutiu questão análoga, no sentido do não-cabimento da reclamação, o que pode indicar, caso
venha a ser colhido o seu voto, que o Tribunal mude sua orientação a respeito do tema.
DJU de 13/03/2007.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
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partir da declaração incidental da inconstitucionalidade de determinada norma,
em sede de reclamação.84
O caso concreto versa sobre reclamação ajuizada pelo Município de
Petrolina/PE contra decisão de juiz trabalhista que, deixando de aplicar a norma
municipal que estabeleceu em R$ 900,00 (novecentos reais) o referencial de
pequeno valor para fins de aplicação do art. 100, § 3º, da Constituição Federal –
Lei Municipal 1.899/2006 –, teria afrontado a autoridade da decisão da Corte nos
autos da ADI 2.868/PI, na qual se entendeu que o art. 87 do ADCT, na redação
dada pela EC 37/2002, tem caráter transitório e permite que as entidades de direito
público disponham livremente sobre a matéria, de acordo com sua capacidade
orçamentária.
O Ministro Gilmar Mendes, em sua decisão, ressaltando o fato de que
a compatibilidade ou não da referida Lei Municipal com o art. 87 do ADCT
consubstancia questão idêntica àquela objeto da ADI 2.868/PI – da qual o Tribunal
não se pode furtar à análise –, e tendo em conta, ainda, que o valor de R$ 900,00
(novecentos reais) fixado para o aludido ente federativo parece atender aos juízos
de razoabilidade e proporcionalidade, ainda que se comparado com os parâmetros
do citado art. 87, deferiu o pedido de medida liminar para suspender os efeitos da
decisão reclamada.
A decisão monocrática proferida na espécie, porém, não chegou a ser
submetida à apreciação do Plenário do STF, uma vez que a posterior revogação
do ato reclamado pelo Juízo Trabalhista levou ao prejuízo da reclamação.85
De toda forma, como já observado anteriormente, tal precedente corrobora a
tese de que há forte tendência de evolução da reclamação para ação constitucional
voltada à garantia da autoridade das decisões e da competência do Supremo
Tribunal.
84
85
Na prática, o resultado obtido parece ser precisamente o mesmo daquele encontrado com a aplicação da
teoria da transcendência dos efeitos determinantes, em que a Corte admitiu conferir o efeito vinculante
aos motivos determinantes da decisão proferida em sede de controle abstrato. Pela tese agora sustentada,
vislumbra-se a possibilidade de ser declarada incidentalmente a inconstitucionalidade de lei ainda não
examinada pelo Plenário do STF, desde que o teor do ato impugnado seja idêntico ou semelhante àquele
que já tenha sido objeto de fiscalização abstrata perante o Supremo Tribunal Federal. Aparentemente, a
declaração incidental de inconstitucionalidade na reclamação se fará com base no fundamento adotado
para o ato idêntico ou semelhante já examinado, o que sinalizaria a identidade prática entre as duas
teorias.
Conforme decisão publicada no DJU de 26/04/2007 e consulta ao sistema processual informatizado
do STF.
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Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
5
CABIMENTO NO ÂMBITO DO TRIBUNAL REGIONAL
FEDERAL
O reconhecimento da possibilidade de que outros tribunais que não o STF
e o STJ instituam a figura da reclamação em seus regimentos internos irá variar
conforme se assuma esta ou aquela posição no tocante à natureza jurídica do
instituto.
Alexandre Moreira Tavares dos Santos86 noticia que o STF, conquanto
admitisse para si a reclamação com base na teoria dos poderes implícitos, afastava
a mesma possibilidade no caso de outros tribunais, por entender que o legislador
estadual não poderia criar recursos novos, nem dilatar a área dos estabelecidos na
lei processual federal.87
Assumia-se, portanto, à época, a tese de que a reclamação teria a natureza
jurídica de recurso.
Essa orientação foi mantida no julgamento da Rp 1.092/DF,88 ocorrido sob
a vigência da Constituição de 1967 – a qual atribuía competência ao STF para
estabelecer, em seu Regimento Interno, o processo e o julgamento dos feitos
de sua competência originária ou recursal –, contra os votos dos Ministros
Aldir Passarinho, Néri da Silveira e Oscar Corrêa, na qual o Supremo Tribunal
declarou inconstitucional a criação pelo Tribunal Federal de Recursos do
instituto da reclamação para preservar sua competência ou garantir a autoridade
de suas decisões.
Considerou-se que o poder para instituir a reclamação, nos termos em que
previsto na Constituição, foi reservado exclusivamente à Suprema Corte.
Em artigo conjunto sobre o tema, Ada Pellegrini Grinover, Antonio
Magalhães Gomes Filho e Antônio Scarance Fernandes,89 à consideração de que a
reclamação possui natureza jurídica de petição, bem como de que o tratamento a ela
conferido pela atual Constituição é diverso daquele vigente à época do julgamento
da Rp 1.092/DF, afastaram o suposto óbice à usurpação da competência legislativa
da União, concluindo pela legitimidade da previsão da reclamação nos regimentos
86
87
88
89
SANTOS, Alexandre Moreira Tavares dos. Da Reclamação. Revista dos Tribunais, ano 92, v. 808, fev.
2003, p. 123-165.
Cf. julgamento do RE 11.543, de 07/12/1948, relator Ministro Laudo de Camargo, em que se declarou
a inconstitucionalidade do dispositivo da Lei de Organização Judiciária do Estado da Bahia, que havia
instituído a figura da reclamação. O mesmo entendimento foi adotado no julgamento da medida cautelar
na ADI 2.212/CE (DJU de 30/03/2001).
DJU de 19/12/1984.
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance.
Recursos no processo penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 424-431.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
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internos dos tribunais estaduais, sob o fundamento de que o artigo 125 da mesma
Carta permite que as constituições estaduais prevejam a reclamação entre os feitos
de competência dos tribunais, repetindo, no plano estadual, a garantia conferida
aos tribunais superiores.
Para os mencionados autores, com a promulgação da Constituição de 1988,
teriam ficado superadas todas as questões de constitucionalidade suscitadas nos
períodos precedentes à evolução do instituto com relação à sua antiga previsão
em regimentos outros que não os do STJ e STF.
Na linha desse mesmo entendimento, e já sob a vigência da Constituição de
1988, o STF teve a oportunidade de firmar a natureza jurídica da reclamação no
âmbito do direito constitucional de petição, afastando, portanto, o óbice relativo a
eventual usurpação da competência da União para legislar sobre direito processual
e, em conseqüência, admitir a legitimidade de sua adoção por tribunais de justiça
locais.90
O acórdão do julgado ficou sintetizado na seguinte ementa:
Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 108, inciso VII, alínea
I da Constituição do Estado do Ceará e art. 21, inciso VI, letra J
do Regimento do Tribunal de Justiça Local. Previsão, no âmbito
estadual, do instituto da reclamação. Instituto de natureza processual
constitucional, situado no âmbito do direito de petição previsto
no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea A da Constituição Federal.
Inexistência de ofensa ao art. 22, inciso I da Carta.
1. A natureza jurídica da reclamação não é a de um recurso, de uma
ação e nem de um incidente processual. Situa-se ela no âmbito do
direito constitucional de petição previsto no artigo 5º, inciso XXXIV
da Constituição Federal. Em conseqüência, a sua adoção pelo
Estado-membro, pela via legislativa local, não implica em invasão da
competência privativa da União para legislar sobre direito processual
(art. 22, I, da CF).
2. A reclamação constitui instrumento que, aplicado no âmbito dos
Estados-membros, tem como objetivo evitar, no caso de ofensa
90
ADI 2.212/CE, DJU de 14/11/2003. O mesmo entendimento foi adotado, mais recentemente, no
julgamento da ADI 2.480/PB, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence (julgada em 02/04/2007,
acórdão pendente de publicação). No caso concreto, não foi necessário o exame da constitucionalidade
da instituição da reclamação diretamente pelo regimento interno do tribunal de justiça local, uma
vez que, diversamente do que sustentava a petição inicial da ação direta, há, sim, previsão para tanto
na Constituição estadual, só que com nomenclatura diversa, qual seja, de representação ao invés de
reclamação. Por essa razão, apenas se aplicou a orientação tomada pelo Plenário no julgamento da
citada ADI 2.212/CE.
106
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à autoridade de um julgado, o caminho tortuoso e demorado
dos recursos previstos na legislação processual, inegavelmente
inconveniente quando já tem a parte uma decisão definitiva. Visa,
também, à preservação da competência dos Tribunais de Justiça
estaduais, diante de eventual usurpação por parte de Juízo ou outro
Tribunal local.
3. A adoção desse instrumento pelos Estados-membros, além de estar
em sintonia com o princípio da simetria, está em consonância com
o princípio da efetividade das decisões judiciais.
4. Ação direta de inconstitucionalidade improcedente.
Consideraram-se aplicáveis ao caso concreto os princípios da simetria e da
efetividade das decisões judiciais, diante da autorização concedida aos Estadosmembros pelo artigo 125 da Constituição para organizar sua justiça.
É interessante observar que, então na qualidade de Advogado-Geral da
União, o atual Ministro Gilmar Mendes apresentou parecer nos autos da aludida
ação direta, opinando pela admissibilidade do instituto da reclamação, no âmbito
dos Estados, somente para preservar a autoridade das decisões proferidas no
controle abstrato de normas perante as Cortes estaduais, isto é, das decisões tomadas
no exercício da função de guardiãs das Constituições locais, poder deferido pela
Constituição Federal aos tribunais de justiça, nos termos do disposto no § 2º do
art. 125.91 Sugeriu, assim, fosse atribuída interpretação conforme à Constituição
do Estado do Ceará, por meio de redução teleológica, “para o fim de admitir a
reclamação para preservar a autoridade das decisões proferidas no controle abstrato
de normas perante as Cortes Estaduais”.92
De outra parte, no mesmo julgamento, o Ministro Sepúlveda Pertence,
embora concordando com a conclusão do voto, sustentou a desnecessidade de
invocação do artigo 125 da Constituição na espécie, já que a adoção do instituto da
reclamação pode ser justificada no âmbito dos poderes implícitos que os tribunais
têm, necessários ao exercício de seus poderes explícitos.
Em sentido contrário, votaram os Ministros Moreira Alves, Sydney Sanches
e Maurício Corrêa, por vislumbrarem nítido conteúdo processual no instituto e,
em conseqüência, a violação à competência privativa da União para legislar sobre
direito processual.
91
92
“Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidde de leis ou atos normativos
estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para
agir a um único órgão”.
Conforme citação no voto da relatora, Ministra Ellen Gracie.
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É fato que a Constituição Federal foi omissa quanto à possibilidade de os
tribunais regionais federais e estaduais disciplinarem o instituto da reclamação. A
questão que se põe é se, após a orientação tomada pelo STF no julgamento da ADI
2.212/CE, podem eles dispor sobre o instituto por meio de seus regimentos internos,
ou se haverá a necessidade de previsão a respeito nas constituições estaduais.93
No caso concreto, é certo, havia previsão tanto na Constituição local quanto
no regimento interno, mas nos parece que, ainda que não exista tal previsão na
Constituição local, e desde que, obviamente, não haja impedimento, é possível
a regulamentação do instituto diretamente nos regimentos internos dos demais
tribunais, com fundamento na doutrina dos poderes implícitos, a qual, igualmente,
conforme já afirmado, permitiu a criação do instituto no âmbito do STF quando
nem sequer existia previsão constitucional a respeito.
Na mesma linha é o entendimento de Ada Pellegrini Grinover e Ernáni Fidelis
dos Santos, para quem, “constitucionalmente, a reclamação foi prevista apenas
para o STF (CF, art. 102, inc. I, alínea l) e para o STJ (CF, art. 105, inc. I, alínea
f), mas, pela previsão genérica da Lei 8.038/90 (art. 13) e por não haver proibição
constitucional, pode ser estendida a todos os outros tribunais”.94
Com efeito, no entender de Ada Pellegrini Grinover, “é preciso ressaltar que
a Constituição Federal de 1988, ao contrário dos textos constitucionais anteriores,
que eram omissos, reconheceu expressamente a legitimidade da reclamação,
incluindo-a entre os feitos de competência do STF e também do STJ”.
Talvez seja esse o fundamento utilizado pelo STM, TSE, TST e por
algumas outras cortes estaduais95 para a disciplina do instituto da reclamação
93
94
95
Júlio César Rossi, em artigo intitulado Aspectos Processuais da Reclamação Constitucional. Revista
Dialética de Direito Processual, São Paulo, 2004, n. 19, defende a tese de que, “ausente emenda
constitucional local, eventual lei ou Regimento Interno não possuirão o condão de validar o instituto
como meio hábil à preservação da competência jurisdicional e à garantia da autoridade das decisões
desses tribunais”. Cabe ressaltar, por oportuno, que a Lei Orgânica do DF não traz nenhuma previsão
sobre o instituto da reclamação.
SANTOS, Ernáni Fidelis dos. Manual de Direito Processual Civil. Vol. 1. 3. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 536.
Ney Moura Teles, em Admissibilidade da reclamação para garantir a autoridade de decisão de tribunal
regional federal. Consulex, Brasília, ano IX, n. 204, 2005, noticia que o TRF da 5ª Região e os Tribunais
de Justiça dos Estados do Ceará, São Paulo e Goiás previram, em seus regimentos, a reclamação
constitucional, com os mesmos fins previstos na Constituição Federal. O artigo 15, parágrafo único,
inc. V, do RITSE, na redação dada pela Resolução 19.305/95, dispõe que “a reclamação é cabível para
preservar a competência do Tribunal ou garantir a autoridade de suas decisões”; o artigo 105 do STM, por
sua vez, estabelece que “o Superior Tribunal Militar poderá admitir Reclamação do Ministério Público
Militar ou da Defesa, a fim de preservar a integridade de sua competência ou assegurar a autoridade
do seu julgado”. Por fim, o artigo 70, alínea d, do RITST, determina competir ao Tribunal Pleno
“processar e julgar as reclamações destinadas à preservação da competência dos órgãos do Tribunal,
assim considerados aqueles mencionados no artigo 61 deste Regimento, ou garantir a autoridade de
suas decisões”.
108
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
em seus respectivos regimentos internos, fato que jamais foi objeto do crivo de
constitucionalidade do STF.
Alexandre Moreira Tavares dos Santos96 defende a utilização do instituto por
parte das demais cortes superiores por aplicação de analogia e, conseqüentemente,
a constitucionalidade de tal previsão no âmbito do TST e do TSE, pois as duas
cortes têm caráter nacional e assumem papel essencial na manutenção do sistema
federativo. Nega, entretanto, a possibilidade de que tais tribunais disciplinem o
assunto por meio de seus regimentos internos, sob o argumento de que as Cortes
de segunda instância já possuem meios eficazes de fazer valer a competência e
a autoridade de suas decisões, os quais estão disciplinados no CPC, na CLT, no
Código Eleitoral e em legislação esparsa.
No julgamento do Agravo Regimental na Reclamação 2003.01.00.0094676, a Corte Especial do TRF da 1ª Região, embora tendo presente a decisão do STF
proferida nos autos da ADI 2.212/CE, afastou o cabimento da reclamação no âmbito
daquele Tribunal, sob o fundamento de que a exceção feita aos tribunais de justiça
dos Estados não seria aplicável aos tribunais regionais federais. Considerou-se,
ademais, o fato de que inexistiria previsão a respeito em seu regimento interno.
97
Entendemos, com o devido respeito, que o caso concreto, dada sua relevância
política, talvez não reflita o entendimento definitivo do TRF da 1ª Região acerca
da matéria, não devendo, por isso, ser considerado como paradigmático em relação
a futuros julgamentos sobre a mesma questão.
Em artigo doutrinário no qual analisa a mencionada decisão, Ney Moura
Teles, traçando paralelo com o que foi decidido pelo STF nos autos da Rcl
1.987/DF – na qual se admitiu o efeito vinculante dos fundamentos ou motivos
determinantes da decisão de mérito tomada em ação direta –, vai além para concluir
que o entendimento adotado pela Corte regional está em desarmonia com os motivos
determinantes do acórdão prolatado na citada ADI 2.212/CE.
98
Para o ilustre Professor, a reclamação não se insere na competência
constitucional legislativa da União, pelo que sua criação pode ser feita por lei,
inclusive estadual, regimentalmente, e até mesmo por construção jurisprudencial.
96
97
98
SANTOS, Alexandre Moreira Tavares dos. Da Reclamação. Revista dos Tribunais, ano 92, v. 808, fev.
2003, p. 123-165.
Interposto com o objetivo de assegurar a autoridade de decisão daquela Corte, alegadamente descumprida
por parte da União, por meio da qual se determinara a suspensão do cultivo da soja round up ready,
até a apuração de possíveis falhas no parecer favorável à comercialização de soja transgênica, emitido
pela CTNBio. O acórdão foi publicado no DJU de 05/10/2004, e os autos foram remetidos ao STF
para análise do RE interposto pela Associação Civil Greenpeace.
TELES, Ney Moura. Admissibilidade da reclamação para garantir a autoridade de decisão de tribunal
regional federal. Consulex, Brasília, ano IX, n. 204, 2005.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
109
Assim, na linha da decisão proferida pelo STF na já mencionada ADI
2.212/CE, a inclusão da reclamação como direito constitucional de petição e a
necessidade de respeito aos princípios da efetividade das decisões judiciais e dos
poderes implícitos dos tribunais obrigariam o conhecimento da reclamação por
todos os tribunais federais.
Outro argumento utilizado pelo jurista para justifi car o cabimento
da reclamação no âmbito dos tribunais regionais federais decorreria da
possibilidade da aplicação analógica dos artigos 13 a 18 da Lei 8.038/90 às
Cortes regionais, na linha da mesma solução utilizada pelo STJ nos precedentes
em que se permitiu, igualmente, a aplicação analógica do artigo 39 da mesma
Lei aos demais tribunais inferiores.99
Entendemos que a reclamação constitucional é de ser estendida às demais
Cortes como instrumento para a garantia da autoridade de suas decisões e
preservação de sua competência, seja porque amplia a forma de prestação da
tutela jurisdicional, seja porque evita que a afronta a julgados, que, às vezes,
podem requerer medidas de urgência – as quais podem ser prontamente atendidas
pela reclamação –, tenha que enfrentar a via crucis da tramitação dos recursos
eventualmente cabíveis.
Demais disso, cabe lembrar que o STF, quando nem sequer havia previsão
constitucional a respeito, admitiu a utilização da reclamação naquela Corte, tendo-a
como válida. Não parece razoável que a mesma solução, fundada inicialmente nos
poderes implícitos que os tribunais têm para tornar efetivos os poderes expressos,
não possa ser, da mesma forma, adotada pelos tribunais inferiores.
Por outro lado, esse entendimento nos parece mais consentâneo com a
evolução do sistema e a tendência de “desafogamento” das cortes superiores,
evidenciada, atualmente, pela instituição da súmula vinculante.
6
PROCEDIMENTO
O procedimento da reclamação é relativamente simples e deve ser buscado
na Lei 8.038/90 (artigos 13 a 18) e no Regimento Interno do Supremo Tribunal
Federal, já que nosso estudo é limitado à reclamação perante o STF.
99
Lei 8.038/90, art. 39: “Da decisão do Presidente do Tribunal, de Seção, de Turma ou de Relator que
causar gravame à parte, caberá agravo para o órgão especial, Seção ou Turma, conforme o caso, no
prazo de 5 (cinco) dias”. Ney Moura Teles noticia, entre outros, os seguintes precedentes no STJ:
AROMS 9395/BA (DJU de 14/12/1998), AI 556508/TO (DJU de 26/11/2004) e REsp 557938/SC
(DJU de 16/08/2004).
110
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
A reclamação deve ser dirigida ao Presidente do Tribunal, instruída com
prova documental e, sempre que possível, deverá ser distribuída ao relator da causa
principal, a quem caberá requisitar informações, no prazo de dez dias, à autoridade
a quem for imputada a prática do ato impugnado.
Nos termos do art. 16 da Lei 8.038/90, após o decurso do prazo para as
informações, será aberta vista ao Ministério Público quando a reclamação não
tenha sido formulada por ele.
O artigo 15 dispõe que “qualquer interessado poderá impugnar o pedido do
reclamante”, o que não implica a abertura do contraditório, uma vez que não ocorre
o prosseguimento da relação processual original, nem tem lugar a instauração de
nova relação jurídico-processual.
É que, embora seja possível a impugnação de qualquer outro interessado
ao pedido do reclamante, não se exige seu chamamento formal. Segundo Ada
Pellegrini Grinover, a intervenção deve ser espontânea e não há prazo para que
ocorra, passando o interessado a intervir no procedimento no estado em que se
encontrar.100
O STF, por meio da Emenda Regimental 13/2004, trouxe importante
alteração ao procedimento, ao estabelecer que “o relator poderá julgar a reclamação
quando a matéria for objeto de jurisprudência consolidada do tribunal”, passando
a admitir, pois, seu julgamento por meio de decisão monocrática.
É cabível, de igual forma, a concessão de medida liminar na reclamação,
para o fim de suspensão do ato impugnado ou do processo, quando necessária para
evitar dano irreparável.
Cabe ressaltar, ainda, o fato de que o ato reclamado deve ser posterior à
decisão da Corte cuja autoridade se diz afrontada.101
Por fim, merece destaque o fato de que há precedentes da Suprema Corte
admitindo o recebimento de pedidos de habeas corpus como reclamação quando
o impetrante se insurge contra o descumprimento de decisão por ela proferida
concessiva do writ constitucional (v.g., Rcl 430/PI, DJU de 20/08/93).
7
CONCLUSÃO
De todo o exposto, chegamos às seguintes conclusões.
100
101
GRINOVER, Ada Pellegrini. Da Reclamação. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo,
2002, ano 9, n. 38, p. 76.
Rcl 1.723 AgR-QO/CE (DJU de 08/04/2001).
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
111
A reclamação constitucional é um instrumento decorrente de longa
construção jurisprudencial, que, com a promulgação da Carta de 1988, assumiu
status de competência constitucional.
As controvérsias jurídicas relacionadas ao instituto são muitas. Não
há consenso, por exemplo, a respeito de qual seria a natureza jurídica da
reclamação.
É certo que, com o julgamento de mérito da Ação Direta 2.212/CE,102 de
relatoria da Ministra Ellen Gracie, o Supremo Tribunal Federal consignou que a
natureza jurídica da reclamação situa-se no âmbito do direito de petição previsto
no art. 5º, XXXIV, alínea a, da Constituição Federal. Apesar disso, a análise dos
votos tomados no aludido precedente demonstra que remanesce o dissenso entre
os Ministros no tocante à conclusão adotada.
Concordamos, entretanto, que a natureza jurídica da reclamação assentase, de fato, no âmbito do direito de petição, pois tal interpretação se mostra mais
consentânea com as finalidades jurídicas do instituto, sobretudo após a vigência
da Constituição Federal de 1988.
Na linha do Enunciado 734 da Súmula do STF, “não cabe reclamação quando
já houver transitado em julgado o ato judicial que se alega tenha desrespeitado
decisão do Supremo Tribunal Federal”. Isso ocorre, porque a reclamação não é
sucedâneo de recurso, de ação rescisória ou de revisão criminal.
A adoção de tal entendimento, embora conte com a discordância de parte
da doutrina, parece privilegiar o princípio da segurança jurídica, pois impede
que se exponha a coisa julgada a meio de ataque permanente e indefinidamente
utilizável.
É cabível a reclamação contra ato administrativo que desrespeite a autoridade
de decisão proferida pelo STF em sede de controle concentrado, porquanto tais
decisões se revestem de eficácia erga omnes e possuem efeito vinculante em
relação a todos os magistrados e à Administração Pública federal, estadual, distrital
e municipal.
A má interpretação de julgado do STF, segundo recente precedente
jurisprudencial do Plenário daquela Corte, 103 não enseja o cabimento da
reclamação.
Com a devida vênia da orientação adotada no aludido julgamento,
entendemos que a má interpretação é, sim, descumprimento frontal de decisão,
passível, pois, de ataque por meio da reclamação. Demais disso, parece-nos que a
102
103
DJU de 14/11/2003.
Rcl 657/SP (DJU de 03/12/2004).
112
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
utilização da reclamação pressupõe, tão-somente, a alegação de descumprimento
de julgado do STF, pois a existência ou não do eventual desacato diz respeito ao
próprio mérito.
É cabível a reclamação em sede de controle concentrado de normas. Admitese, igualmente, a reclamação para preservar a autoridade da decisão proferida em
medida cautelar em ação direta ou em ação declaratória.
A jurisprudência do STF a respeito tem evoluído gradativamente.
No julgamento da Questão de Ordem na Reclamação 1.880/SP104, o STF
passou a reconhecer a legitimidade ativa ad causam de todos que comprovem
prejuízo oriundo de decisões, de todos os níveis, contrárias a julgado do Tribunal.
Com isso, ampliou-se, sensivelmente, o conceito de parte interessada, previsto
nos artigos 13 da Lei 8.038/90 e 156 do Regimento Interno do STF, na hipótese
de reclamação fundada no desrespeito à autoridade de decisão de mérito proferida
em ação direta.
Além desse importante precedente, há outro sob a análise do Plenário do
STF, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, que merece atenção.
Trata-se da Reclamação 4.335/AC, atualmente com vista para o Ministro
Ricardo Lewandowski,105 na qual se defende a tese de que a declaração de
inconstitucionalidade proferida no controle incidental de normas também possui
eficácia erga omnes, independentemente da atuação do Senado Federal. Vale
ressaltar que, caso tal entendimento prevaleça, não será exagerado afirmar que
haverá verdadeira revolução no uso da reclamação e no papel assumido pelo
próprio STF na função de Corte Constitucional.
O parâmetro da desobediência, segundo precedente jurisprudencial firmado
no julgamento da Rcl 1.987/DF,106 abrange os fundamentos determinantes da
decisão de mérito proferida em sede de controle normativo abstrato. Em outras
palavras, reconheceu a Suprema Corte o caráter transcendente e vinculante dos
motivos determinantes.
Entretanto, a mesma questão está novamente sob debate, dessa feita com
três novos Ministros na composição do STF (Rcl 4.219/SP, de relatoria do Ministro
Joaquim Barbosa, noticiada nos Informativos STF 441 e 458).
O placar atual da votação é de cinco votos para o não-conhecimento, ou
seja, afastando a transcendência dos motivos determinantes, e quatro votos para
manutenção da orientação adotada no precedente firmado na Rcl 1.987/DF. O
julgamento foi adiado, em razão de pedido de vista da Ministra Ellen Gracie.
104
105
106
DJU de 19/03/2004.
Conforme noticiado no Informativo STF 463.
DJU de 21/05/2004.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
113
Apesar da eventual possibilidade de alteração da jurisprudência do STF a
respeito, cabe destacar a existência de outro julgado, da lavra do Ministro Gilmar
Mendes, objeto de decisão monocrática, no qual, embora afaste expressamente
a aplicação da transcendência dos motivos determinantes, admite a análise, em
sede de reclamação, da constitucionalidade de lei de teor idêntico ou semelhante
ao da lei que já foi objeto de fiscalização abstrata de constitucionalidade perante
o Supremo Tribunal Federal.
Aparentemente, a adoção de uma ou outra teoria leva, na prática, ao mesmo
resultado, pois, ainda que afastada, em tese, a aplicação da transcendência dos
motivos determinantes, outra não parece ser a justificativa para que se autorize o
tribunal a declarar, incidentalmente, na via da reclamação, a inconstitucionalidade
de lei ainda não examinada em sede de controle abstrato.
Isso não retira a importância de tal decisão, que, na linha das demais citadas
no presente trabalho, parece confirmar a forte tendência da Corte no reconhecimento
da reclamação como ação constitucional voltada à garantia da autoridade das
decisões e da competência do Supremo Tribunal Federal.
É correto afirmar inclusive que a intensa evolução jurisprudencial da
reclamação, sobretudo a partir da Constituição de 1988 e dos precedentes que a
ela se seguiram – entre outros, ADC 4/DF, Rcl 389/PR, Rcl 1.880/SP, Rcl 1.987/
DF, ADI 2.212/CE –, tem levado à expansão do instituto e, conseqüentemente, da
própria jurisdição do STF. Isso sem deixar de lado os recentes julgamentos iniciados
nas Reclamações 4.335/AC e 4.219/SP, nas quais se anuncia, de maneira decisiva,
a intenção de alguns membros da Corte de expandir ainda mais a utilização da
reclamação.
Apenas o STF e o STJ detêm competência constitucional expressa para
disciplinar a reclamação em seus regimentos internos. A jurisprudência da Suprema
Corte, entretanto, em duas oportunidades (ADI 2.212/CE e, mais recentemente,
ADI 2.480/PB), assentou a constitucionalidade de normas estaduais constantes
dos regimentos internos dos tribunais de justiça dos referidos Estados, que, com
fundamento em regra prevista na Constituição estadual, disciplinaram o uso da
reclamação no âmbito daquelas Cortes.
Não houve pronunciamento do STF, ainda, acerca da constitucionalidade
da instituição da reclamação em outros tribunais, por meio do regimento interno,
ou seja, sem que a autorização tenha sido conferida pela norma constitucional
equivalente, v.g., como ocorre no TST, TSE e TRF da 5ª Região.
Todavia, parece-nos que não é inconstitucional a disciplina de tal instrumento
no âmbito de outras Cortes, por meio dos respectivos regimentos internos, porque
a reclamação: a) amplia a forma de prestação da tutela jurisdicional; b) é um
114
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
instrumento célere e eficaz na preservação da autoridade de julgados, evitando que
as partes, na hipótese de seu desrespeito, tenham que enfrentar os inconvenientes
decorrentes da tramitação normal dos recursos eventualmente cabíveis e c)
foi instituída no âmbito da Suprema Corte quando nem sequer havia previsão
constitucional a respeito.
Destarte, não parece razoável que não se possa aplicar às demais Cortes a
mesma teoria utilizada pela Suprema Corte para instituir a reclamação, qual seja,
de que aos tribunais são outorgados poderes implícitos, necessários à efetivação
dos poderes expressamente conferidos.
Essa conclusão se mostra, em nosso entendimento, mais congruente com a
evolução do instituto da reclamação, que se vem revelando, gradativamente, como
importante meio de defesa da ordem constitucional como um todo.
8
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116
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 69-116, Dez. 2007.
A TUTELA PENAL DOS CYBERCRIMES E O PROJETO DE
LEI CONTRA OS CRIMES DE INFORMÁTICA*
José de Castro Meira Júnior
INTRODUÇÃO
Não há, nos dias atuais, quem imagine a vida sem o computador. Por mais
que se diga que, antes de sua invenção, a vida funcionava perfeitamente sem a
utilização do aparato, hoje, ninguém duvida que o computador é essencial para
todos. É empregado para as mais diversas tarefas: trabalho, estudo, bate-papo e
lazer.
Após a criação do computador, veio a Internet, a rede mundial de
computadores, que promoveu uma verdadeira revolução nos conceitos de
comunicação, educação, cultura e economia.
O baixo custo do acesso cobrado dos provedores ajuda na disseminação
de informações e trocas de experiências. Por meio de suas redes interconectadas,
podem-se fazer amigos, pesquisas escolares e profissionais – como jurisprudência,
por exemplo – e até compras nos sítios (chamados sites) especializados.
Para Alberto Zacharias Toron, a definição mais simples e compreensível de
Internet foi dada por Laquey Parker, para quem ela “é um amálgama de milhares
de redes de computadores que conectam entre si a milhões de pessoas”.1
A Rede Mundial surgiu da tecnologia militar dos Estados Unidos, na época
da Guerra Fria, com o intuito de se tornar uma rede de telecomunicações o menos
vulnerável possível a um ataque soviético.
Com a liberdade que dá aos usuários, juntamente com a permissão de tudo
realizar ao redor do mundo sem que sua identidade seja revelada, a rede trouxe
um tipo diferente de infrator. Vários tipos de delitos podem ser cometidos pelo
computador, quais sejam: fraude, pornografia infantil, lavagem de dinheiro,
sabotagem, vandalismo, entre outros tantos.
*
1
Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão do Curso de Pós-Graduação Ordem
Jurídica e Ministério Público da Fundação Escola Superior do Distrito Federal e Territórios. Orientador:
Prof. Francisco Leite.
TORON, Alberto Zacharias. Crimes na Internet. Repertório de Jurisprudência, nº 22, 3º Caderno. São
Paulo: IOB, 2000, p. 476.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
117
Ao Direito não é dado ficar silente às inovações das relações humanas. É
inegável a transformação gerada na coletividade pelo avanço tecnológico. Não se
pode olvidar da existência de uma verdadeira comunidade virtual e, portanto, fazse necessário estudo jurídico a fim de acompanhar as novas formas de conviver
em sociedade e adaptar-se a elas.
Túlio Vianna aponta semelhanças entre leis e programas de computador. Para
ele, “ambos são mecanismos de controle. As leis visam ao controle da sociedade
e os programas, ao controle das máquinas.”2 E, se o direito é o meio de controle
social por excelência e ubi societas ib jus, impõe-se uma resposta imediata a esse
fenômeno chamado informática.
A própria justiça rendeu-se aos amplos benefícios da rede de computadores,
tanto que o Presidente Luís Inácio Lula da Silva sancionou, há pouco tempo, a
Lei n. 11.419, de 19 de dezembro de 2006, que dispõe sobre a informatização do
processo judicial e, logo no seu artigo 1º, determina que “o uso de meio eletrônico
na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças
processuais será admitido nos termos desta Lei”, com aplicação indistinta aos
processos civis, penais e trabalhistas, além dos juizados especiais, em qualquer
grau de jurisdição.
A freqüência da criminalidade por computador e suas drásticas conseqüências
ensejaram, aliados à importância dos bens jurídicos em jogo, a iniciativa da escolha
da temática da presente monografia.
O presente trabalho tem como objetivo examinar o direito de forma
dogmático-normativa, por meio do estudo dos dispositivos já existentes acerca do
tema, além de dar enfoque ao Projeto de Lei n. 84/99, de relatoria originária do
Deputado Luiz Piauhylino, aprovado pela Câmara dos Deputados e atualmente em
tramitação no Senado Federal, onde recebeu nova numeração (PLC 89/2003).
O capítulo inicial procura situar o leitor no assunto a ser tratado com
mais vagar nos tópicos seguintes. Limita-se a apresentar um esboço histórico da
cibernética e também da Internet, tendo em vista que, entre as redes existentes,
ela é a preferida dos usuários e dos criminosos virtuais. Na seqüência,
enumeram-se diversos conceitos de informática e Internet pesquisados nos
mais diferentes autores.
O segundo capítulo tem o intuito de delimitar o tema comentado. Explica
o crime cibernético em seus pormenores, desde o próprio conceito de crime em
geral até o esgotamento do delito informático, analisando conceito, características,
classificações e sujeito ativo. Ao final, comenta-se a Convenção do Conselho da
2
VIANNA, Túlio. Fundamentos de Direito Penal Informático. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 11.
118
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
Europa sobre crimes cibernéticos, realizada em Budapeste, o que demonstra a
preocupação mundial com o tema.
O último capítulo analisa os aspectos legais para uma nova legislação sobre
cybercrimes, o princípio da reserva legal, basilar em Direito de repressão, e traz,
ainda, a atual discussão na doutrina relativamente à necessidade da elaboração
de um novo diploma legal, pois há quem defenda que o Código Penal de hoje é
suficiente em si mesmo. Empós, há comentário sobre as novidades trazidas pelo
Projeto de Lei n. 84/99, cuja aprovação pretende-se no Congresso Nacional.
Finalizadas as análises a respeito dos crimes cibernéticos, faz-se conclusão
de todo o exposto na presente monografia, na esperança da aprovação in totum do
projeto comentado ao longo do texto.
CAPÍTULO I - INFORMÁTICA E INTERNET
1
BREVE ESBOÇO HISTÓRICO
A comunicação é uma necessidade do ser humano desde os tempos primitivos.
Na Idade da Pedra, os homens procuravam-se fazer entender por meio de sons
guturais, desenhos rupestres, hieróglifos e sinais. Tais veículos de comunicação
podem ser catalogados como os primeiros passos da história da comunicação.
“Computar” é sinônimo de contar, calcular, orçar. A palavra foi-nos legada
do latim computare. Segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira, de Antônio
Geraldo da Cunha, a palavra “computação” vem sendo usada desde o século XVI,
enquanto “computador” é vocábulo que vem sendo usado desde 1813. Daí por
que a Enciclopédia Mirador Internacional assim conceitua: “Computadores são
máquinas capazes de realizar várias operações matemáticas em curto espaço de
tempo, de acordo com os programas previamente estabelecidos”.3
Os computadores como conhecemos tiveram origem no ábaco criado na
região hoje conhecida como China, por volta de 3.500 a.C. No Oriente Médio,
tábuas de argila foram encontradas por arqueólogos, as quais continham cálculos
matemáticos e tabuadas de multiplicação. Afirma-se que teriam sido criadas por
volta de 1.700 a.C.4
3
4
MEIRA, José de Castro. Crimes de Informática. Disponível em: <http://buscalegis.ccj.ufsc.br/arquivos/
crimes_informatica_meira.html>. Acesso em: 12. out. 2006.
ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica Editora,
2004, p. 23.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
119
Em 1617, John Naiper criou bastões que serviam para computação de dados
e eram conhecidos como “Bastões de Naiper”5 ou “Tábua de Naiper”.6 Em 1642,
Blaise Pascal criou a Máquina Aritmética, tal como a máquina calculadora por
nós conhecida hoje em dia. Já nos idos de 1822, Charles Babbage criou o projeto
da Máquina Analítica.7
Na seqüência, apareceu a máquina de tear comandada por cartões perfurados
construída pelo francês Jacquard, em 1801, que inspirou a máquina construída por
Herman Hollerit, preocupado com o trabalho que executava no Departamento de
Estatística dos Estados Unidos, na apuração do recenseamento.
Sua máquina permitiu reduzir a apuração do censo de 1890 para
apenas um ano, com apenas 43 funcionários, enquanto tarefa similar,
quanto ao censo de 1880, consumiu 7 anos, com 500 funcionários.
Hollerit é homenageado inconscientemente quando seu nome
é tomado de empréstimo para referir-se aos contracheques de
pagamento, sobretudo no âmbito das empresas.8
Rita de Cássia Lopes da Silva9 explica que a evolução do computador
teve de passar por cinco gerações para chegar ao que conhecemos hoje como PC
(personal computer).
O primeiro computador eletrônico de grande porte foi desenvolvido, entre
1934 e 1946, em laboratórios universitários, nos Estados Unidos, na Universidade
da Pensilvânia, para resolver problemas balísticos. Era chamado inicialmente de
Eniac – Electronic, Numeric, Integrator and Calculator.
Após o Eniac, surgiu o Edvac – Electronic Discrete Variable Automatic
Computer, modelo experimental, que armazenava o programa, de forma codificada,
na memória do computador. A primeira geração de computadores teve início no
início da década de 50, como Universal Automatic Computer I, que utilizava
válvulas eletrônicas em seu funcionamento.
5
6
7
8
9
ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica Editora,
2004, p. 23.
SILVA, Rita de Cássia Lopes da. Direito Penal e Sistema Informático. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, p. 16.
ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica Editora,
2004, p. 24. Para Silva, foi em 1835. In: SILVA, Rita de Cássia Lopes da. Direito Penal e Sistema
Informático. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 16.
MEIRA, José de Castro. Crimes de Informática. Disponível em: <http://buscalegis.ccj.ufsc.br/arquivos/
crimes_informatica_meira.html>. Acesso em: 12. out. 2006. p. 2.
SILVA, Rita de Cássia Lopes da. Direito Penal e Sistema Informático. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, p. 17-19.
120
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
No final da mesma década, surge a segunda geração, que apresenta
transistores em lugar das válvulas. Essa passagem foi bastante importante para a
popularização e o desenvolvimento da informática.
A terceira geração apareceu em meados dos anos 60 e passou a usar
circuitos integrados. A geração seguinte de computadores caracterizou-se pela
maior capacidade de armazenamento de informações, rapidez e precisão no
desenvolvimento do processamento de dados, chamados de microcomputadores
e mainframe (computadores de grande porte).
A quinta e atual geração de computadores caracteriza-se pela simplificação e
pela miniaturização do computador (a chegada dos chamados laptops ou noteboks),
além de ter capacidade de armazenamento gigantesca e facilidade em seu uso, tanto
que, hoje, crianças são capazes de manusear um computador sem a necessidade
da orientação de um adulto.
A Internet, como conhecemos hoje, surgiu do desenvolvimento contínuo
das redes de computadores.
Teve início na década de 60, nos Estados Unidos, com fins exclusivos
bélicos, na época da Guerra Fria, e consistia em “um sistema de comunicação de
computadores, visando a garantir, no caso de uma guerra nuclear, o mínimo de
controle sobre as instituições e garantir a possibilidade de coordenar um contraataque eficaz contra o inimigo de então, a União Soviética”.10
Essa rede resultou num sistema descentralizado de máquinas que permitia o
funcionamento das outras bases, caso uma delas fosse atacada. Havia, à época, apenas
quatro servidores, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, em Stanford, na
Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, e na Universidade de Utah.
O programa foi desenvolvido pela empresa Arpa (Advanced Research and
Projects Agency) e, em 1969, “tinha o objectivo de conectar as bases militares e
os departamentos de pesquisa do governo americano. Esta rede teve o seu berço
dentro do Pentágono e foi batizada com o nome de Arpanet”.11 Em 1971, a rede
abrangeu agências governamentais e militares, inclusive a Nasa. No ano seguinte,
lançou-se o primeiro programa de correio eletrônico (e-mail), e, em 1973, foram
estabelecidas as primeiras conexões internacionais, interligando Estados unidos,
Inglaterra e Noruega.12
10
11
12
RAHAL, Flávia; GARCIA, Roberto Soares. Crimes e Internet – Breves Notas aos Crimes Praticados por
Meio da Rede Mundial e Outras Considerações. Boletim IBCCrim, ano 9, n. 110, São Paulo: IBCCrim,
2002, p. 8.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/arpanet>.
ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica Editora,
2004, p. 27-28.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
121
Dez anos mais tarde, criou-se a Usenet (do inglês Unix User Network) que
se tratava de:
um meio de comunicação onde usuários postam mensagens de texto
(chamadas de “artigos”) em fóruns que são agrupados por assunto
(chamados de newsgroups). Ao contrário das mensagens de e-mail,
que são transmitidas quase que diretamente do remetente para o
destinatário, os artigos postados nos newsgroups são retransmitidos
através de uma extensa rede de servidores interligados.13
Em 1985, surgiram os primeiros domínios de rede: edu (vinculado à
educação), gov (relacionados a pessoas jurídicas de direito público) e org (ligado
às empresas e às organizações). A partir daí, a rede começou a ser chamada de
Internet, contendo várias conexões internacionais.
Em 1990, o Departamento de Defesa dos EUA desativou a empresa Arpanet
e a substituiu pela NSFNET. Nesse mesmo ano, o Brasil foi conectado à nova
empresa juntamente com Argentina, Chile, Índia, entre outros países.
Finalmente, em 1992, foi criada a World Wide Web (www) – ou “rede de
alcance mundial” na tradução literal – que consiste em:
uma rede de computadores na Internet que fornece informação em
forma de hipermídia, como vídeos, sons, hipertextos e figuras. Para
ver a informação, pode-se usar um software chamado navegador
(browser) para descarregar informações (chamadas “documentos”
ou “páginas”) de servidores de Internet (ou “sites”) e mostrá-los na
tela do usuário. O usuário pode então seguir os links na página para
outros documentos ou mesmo enviar informações de volta para o
servidor para interagir com ele. O ato de seguir links é comumente
chamado de “navegar” ou “surfar” na Web.14
Atualmente, existem aproximadamente 450.000.000 (quatrocentos e
cinqüenta milhões) de computadores conectados à rede mundial em caráter
permanente, segundo o sítio da Internet System Consortium,15e, por esse motivo,
merece atenção especial da comunidade jurídica.
13
14
15
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Usenet.>.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/World_Wide_Web.>.
Disponível em: <http://www.isc.org/index.pl?/ops/ds/.>.
122
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
2
CONCEITO DE INFORMÁTICA E INTERNET
Importante se faz definir os termos dos objetos do estudo que serão
detalhados mais adiante.
O Dicionário Houaiss define informática como o ramo do conhecimento
dedicado ao tratamento da informação mediante o uso de computadores e demais
dispositivos de processamento de dados. Significa dizer que informática é a
disciplina que faz o tratamento racional e sistemático da informação por meios
automáticos. A informática existe em função do computador, uma vez que o
manuseamento das informações é conseguido por meio dele.
Em termos técnicos, entende-se por informática o tratamento automático
da informação, empregando computadores eletrônicos e tendo como base a
informação resultante da evolução do conceito de documentação suportada pela
teoria da informação.16
Outra definição é dada por Rui Moreira, para quem é opinião mais ou menos
generalizada de que a informática é uma ciência cujo objeto de estudo relacionase com o tratamento lógico de conjuntos de dados, lançando mão de técnicas e
equipamentos que possibilitam o seu processamento de modo a obter informação
que depois poderá ser armazenada e/ou transmitida.17
A palavra “informática” foi um neologismo criado por Phillippe Dreyfus em
1962 e surgiu da contração das palavras “informação” e “automática” para designar
as disciplinas que versam o tratamento automático da informação.
Já o conceito de Internet nos é dado pelo Dicionário Eletrônico Houaiss
da Língua Portuguesa, como “rede de computadores dispersos por todo o planeta
que trocam dados e mensagens utilizando um protocolo comum, unindo usuários
particulares, entidades de pesquisa, órgãos culturais, institutos militares, bibliotecas
e empresas de toda envergadura”.
Para o Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, o
significado da palavra Internet é o seguinte: “Rede internacional de computadores
que, por meio de diferentes tecnologias de comunicação e informática, permite a
realização de atividades como correio eletrônico, grupos de discussão, computação
de longa distância, transferência de arquivos, lazer, compras, etc.”
16
17
FEDELI, Ricardo Daniel et alli. Introdução à Ciência da Computação. São Paulo: Thomson Pioneira,
2003, p. 55.
MOREIRA, Rui. Introdução à Informática. Disponível em:< http://www2.ufp.pt/~rmoreira/ MTC/
Aula3_II.pdf>. Acesso em 22 abr 2007.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
123
Segundo leciona Joshua Eddings, a Internet
é uma sociedade cooperativa que forma uma comunidade virtual,
estendendo-se de um extremo a outro do globo. Como tal, a Internet é
um portal para o espaço cibernético, que abrange um universo virtual
de idéias e informações em que nós entramos sempre que lemos um
livro ou usamos um computador, por exemplo.18
Fabrízio Rosa analisa o aspecto jurídico da Internet, entendendo como
“uma rede transnacional de computadores interligados, com a finalidade de trocar
informações diversas e na qual o usuário ingressa, por vários meios, mas sempre
acaba por realizar fato jurídico, gerando conseqüências inúmeras nas mais variadas
das localidades”.19 Portanto, as principais características da Internet relevantes para o
direito são a formação de uma rede transnacional de computadores e a multiplicidade
de objetivos visados: comercial, entretenimento e informação geral.
Relacionado à Internet, encontra-se o provedor de acesso que nada mais
é do que uma “empresa ou organização que tem instalada uma conexão de alta
capacidade com uma grande rede de computadores, e que põe à disposição de
outros usuários o acesso a esta rede, por meio de linhas telefônicas ou cabos,
cobrando ou não pelo serviço”, segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da
Língua Portuguesa.
O mestre pernambucano Pinto Ferreira apresenta, ainda, uma definição
legal de Internet insculpida na Portaria n. 148, editada pelo Ministério das
Telecomunicações em 31.5.1995, com a seguinte redação: “nome genérico que
designa o conjunto de redes, os meios de transmissão e comutação, roteadores,
equipamentos e protocolos necessários à comunicação entre computadores, bem
como o software e os dados contidos nestes computadores”. 20
A mesma Portaria, ainda segundo Ferreira, define provedor de serviço da
seguinte maneira: “Provedor de Serviço de Conexão à Internet (PSCI): entidade
que presta o serviço de conexão à Internet”.21
Diante dos conceitos acima, podemos concluir que Internet é o meio pelo
qual um conjunto de computadores é interligado em rede pelo mundo inteiro para
transmissão de dados por meio de um provedor de acesso qualquer que lhe permite
a disseminação e a distribuição de tais informações.
18
19
20
21
EDDINGS, Joshua. Apud: ROSA, Fabrízio. Crimes de Informática. 2 . ed. Campinas: Bookseller,
2005, p. 35.
ROSA, Fabrízio. Crimes de Informática. 2 . ed. Campinas: Bookseller, 2005, p. 36.
FERREIRA, Pinto. A Era da Informática e a Juscibernética. Revista da Academia Brasileira de Letras
Jurídicas, ano XIX, n. 22, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 143.
FERREIRA, Pinto. A Era da Informática e a Juscibernética. Revista da Academia Brasileira de Letras
Jurídicas, ano XIX, n. 22, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 143.
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Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
CAPÍTULO II - DOS CRIMES DE INFORMÁTICA
1
CONCEITO DE CRIME
O ser humano nasce cheio de necessidades, e, para satisfazê-las, são
imprescindíveis certas coisas, materiais ou não. Essas coisas são chamadas de bens.
Quando o homem começou a viver em sociedade, surgiu a obrigação de tutelar
ditos bens para que uns respeitassem mutuamente o direito dos outros. Daí, nasce
o conflito de interesse sobre o bem.
A tipificação do ilícito – conduta omissiva ou comissiva contrária ao direito,
à moral e aos bons costumes – teve início com a taxação necessária de condutas
que seriam danosas e prejudiciais ao próprio homem, que feria direito alheio e não
poderia ser admitida na coletividade, sob o risco de desorganizá-la.22
Segundo o Professor Luiz Flávio Gomes, o objeto da teoria do delito é:
o estudo (a exposição sistemática) dos requisitos necessários para a
configuração do crime. Esses requisitos constituem, ao mesmo tempo,
pressupostos para a aplicação de uma pena ou medida de segurança
a quem realizou um crime que, entendido como fato punível, nada
mais é que um fato contrário ao Direito (antijuridicidade), descrito
(previamente) numa lei penal (tipicidade) e ameaçado abstratamente
com pena (punibilidade abstrata). Em outras palavras: fato adequado a
uma lei penal (tipicidade material), ameaçado com pena (punibilidade
abstrata) e contrário ao Direito (antijuridicidade).23
Sob o ponto de vista legal, o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal
nos dá o conceito formal de crime da seguinte forma:
Art. 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena
de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou
cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração
penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou
de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.” (art. 1º da Lei
de Introdução ao Código Penal e da Lei das Contravenções Penais
– Decreto-Lei n. 3.914/41).
22
23
BRITO, Eduardo Valadares de. Crimes na Internet. Disponível em: <http://www.ibdi.org.br.> Acesso
em: 22 abr 2007.
GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal. Vol. 3. 2. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006, p.13.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
125
Assim, somente será considerado crime a conduta descrita em lei como
tal, sendo imprescindível a cominação de uma determinada pena para aquele
comportamento específico.
O conceito formal de crime está intimamente vinculado ao princípio
da legalidade, pois, no dizer de Luiz Flávio Gomes, “delito, do ponto de vista
puramente formal, é o que o Estado descreve numa lei como crime.”24
O mesmo autor, mais adiante, encontra também um conceito material para
crime. Para ele, seria “o fato humano lesivo ou perigoso (ofensivo) a um interesse
relevante para a convivência social”.25 Essa conduta deve também ofender o bem
jurídico protegido pelo sistema penal.
Em síntese, Luiz Flávio Gomes dá seu conceito de crime de maneira simples,
porém abrangente, da seguinte forma: “crime é a ofensa grave (lesão ou perigo
concreto de lesão intolerável) a um bem jurídico relevante (digno de proteção,
merecedor de proteção) protegido pela lei penal.”26
Por essa última parte da definição – “protegido pela lei penal” – é que se
discute acerca da necessidade de tipificação legal para determinado fato, já que,
sem lei, não há crime (princípio da reserva legal). Assim, os crimes virtuais seriam
considerados atípicos e não haveria punição com base na legislação atual, segundo
alguns autores. O tema será tratado com mais vagar mais adiante.
2
CONCEITO DE CRIME DE INFORMÁTICA
Faz-se imprescindível encontrar o conceito do objeto de estudo da presente
pesquisa, a fim de dar forma e sentido ao trabalho em apreço.
Apesar da afirmação de Roberto Chacon de Albuquerque de que “qualquer
tentativa de definir o termo ‘crime informático’, de conceituá-lo, apresenta
desvantagens”, porquanto, no pensamento do autor, dificilmente, pode-se elaborar
uma definição sucinta e precisa sem que se deixem dúvidas, quer com relação ao seu
objeto, quer com respeito à própria utilização da definição que lhe for conferida27,
24
25
26
27
GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal. Vol. 3. 2. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006, p. 15.
GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal. Vol. 3. 2. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006, p. 17.
GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal. Vol. 3. 2. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006, p. 17.
ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A Criminalidade Informática. São Paulo: Juarez de Oliveira,
2006, p. 40.
126
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
aqui é feito um apanhado de diversas definições de renomados autores na tentativa
de conceituar os delitos em análise.
Várias são as denominações encontradas nos mais diversos autores
pesquisados: “crime informático”, “crime por computador”, “crime de informática”,
“crime de computação”, “delito informático”, “delito virtual”, “computer crimes”,
“cybercrimes”, entre tantas outras nomenclaturas.
Para efeitos de estudo, prudente iniciar a conceituação de crime informáticos
pela definição mais ampla encontrada, que é dada pela OECD – Organização
para Cooperação Econômica e Desenvolvimento, para quem crime informático
ou computer crime é qualquer conduta ilegal, não ética, ou não autorizada, que
envolva processamento de dados e/ou a transmissão de dados.28
Para Sérgio Marcos Roque, crime de informática é: “a conduta definida em lei
como crime em que o computador tiver sido utilizado como instrumento para a sua
perpetração ou consistir em seu objeto material. Ao primeiro chamaremos de crime
de informática impróprio ou comum, ao segundo de próprio ou autêntico”.29
E continua afirmando que: “além de abrir ‘novos horizontes’ para o
delinqüente, potencializando crimes tradicionais, como os patrimoniais, racistas,
sexuais (pedofilia), contra a honra etc., dá ensejo aos delitos contra o computador
(hardware e software) ou mesmo contra a informação.”30
Já Fabrízio Rosa chama atenção para o fato de que nem toda conduta
praticada contra ou por meio de computador será um crime cibernético. Dá,
como exemplo, a cópia de programa de computador, cometendo pirataria de
software, que não vai além de um crime de direitos autorais, com previsão na Lei
n. 9.609/98.31 Sua definição de crime de informática é a seguinte: “conduta típica,
ilícita e culpável, praticada sempre com a utilização de dispositivos de sistemas
de processamento ou comunicação de dados, da qual poderá ou não suceder a
obtenção de uma vantagem indevida e ilícita.”32
Outra excelente definição de delito virtual é encontrada em Eduardo Valadares
de Brito, para quem “é o crime de rede, de computador, ou ainda de Internet. A
definição deste crime é a seguinte: ofensa na qual uma rede de computadores é
28
29
30
31
32
REIS, Maria Helena Junqueira. Computer Crimes. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 25.
ROQUE, Sérgio Marcos. Apud: TORON, Alberto Zacharias. Crimes na Internet. In: Repertório de
Jurisprudência, n. 22, 3º Caderno, São Paulo: IOB, 2000, p. 477.
ROQUE, Sérgio Marcos. Apud: TORON, Alberto Zacharias. Crimes na Internet. In: Repertório de
Jurisprudência, n. 22, 3º Caderno, São Paulo: IOB, 2000, p. 477.
ROSA, Fabrízio. Crimes de Informática. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2005, p. 57.
ROSA, Fabrízio. Crimes de Informática. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2005, p 58.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
127
instrumento direto e significativo no cometimento do crime. Interconectividade
de computadores é a característica essencial.”33
Maria de La Luz Lima assevera que:
em um sentido amplo é qualquer conduta criminógena ou criminal
que em sua realização faz uso da tecnologia eletrônica seja como
método, meio ou fim e que, em um sentido estrito, o delito informático
é qualquer ato ilícito penal em que os computadores, suas técnicas
e funções desempenham um papel, seja como método, meio ou
fim.34
Marco Aurélio Rodrigues da Costa, em festejada monografia apresentada
na PUC-RS, em 1995, conceitua o computer crime como:
todo aquele procedimento que atenta contra os dados, que o faz na
forma em que estejam armazenados, compilados, transmissíveis
ou em transmissão. Assim, o crime de informática pressupõe dois
elementos indissolúveis: contra os dados que estejam preparados
às operações do computador e, também, através do computador
utilizando-se software e hardware, para perpetrá-los.35
Por fim, cite-se o conceito dado pela Promotora de Justiça no Rio de Janeiro
Carla Rodrigues de Castro, para quem crime de computador é:
aquele praticado contra o sistema de informática ou através deste,
compreendendo os crimes praticados contra o computador e seus
acessórios e os perpetrados através do computador. Incluem-se, neste
conceito, os delitos praticados através da Internet, pois pressuposto
para acessar a rede é a utilização de um computador.36
Após as inúmeras definições acima elencadas, conclui-se que não basta
o simples uso da tecnologia do computador para a caracterização do crime de
informática. Para que este ocorra, faz-se imprescindível a presença da proteção
da inviolabilidade de dados, a informação automatizada, como bem jurídico a ser
protegido pelo direito.
33
34
35
36
BRITO, Eduardo Valadares de. Crimes na Internet. Disponível em: <http://www.ibdi.org.br.> Acesso
em: 22 abr 2007.
LIMA, Maria de La Luz.Apud: ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo:
Memória Jurídica Editora, 2004, p. 105.
COSTA, Marco Aurélio Rodrigues da. Crimes de Informática. Disponível em: <http://jus2.uol.com.
br/doutrina/texto.asp?id=1826>. Acesso em: 22 abr 2007.
CASTRO, Carla Rodrigues Araújo de. Crimes de Informática e seus Aspectos Processuais. 2. ed., rev.,
atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 9.
128
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
3
CARACTERÍSTICAS DO CRIME DE INFORMÁTICA
Segundo Luiz Flávio Gomes37 e Alberto Zacharias Toron,38 a criminalidade
no mundo informático tem as mesmas características da informatização global,
quais sejam:
transnacionalidade, uma vez que todos os países do mundo têm acesso
ilimitado ao conteúdo da rede, qualquer que seja seu grau de desenvolvimento
econômico, social ou cultural, logo a criminalidade correspondente está em todas
as partes e sob diferentes inserções culturais e jurídicas;
universalidade, como já foi dito, o uso da Internet é bastante difundido
nos vários níveis sociais e econômicos devido ao seu baixo custo e facilidade de
acesso; e
ubiqüidade, quer dizer, a web faz-se presente em todos os setores, seja
público ou privado, e em qualquer lugar.
A questão mais controvertida dá-se quanto ao caráter de transnacionalidade
que os crimes de computação apresentam, já que os sistemas informáticos não se
deixam limitar por fronteiras territoriais.
É certo que a criminalidade virtual não conhece fronteiras. Um crime
informático pode fragmentar-se: parte do iter criminis pode ser praticado em um
país e outra metade em outro ou outros países, dependendo da situação.
Assim, qual teoria seria a melhor opção nos casos de cometimento de delitos
informáticos para se determinar qual país teria a jurisdição para investigar, processar
e julgar tais infrações penais? Deve-se, para responder à questão, analisar a lei de
cada país, haja vista a jurisdição ser definida pelo direito interno e por tratados
internacionais.
No caso de disseminação de vírus em que o agente estava no Brasil no
momento do envio do e-mail ardiloso para uma pessoa na Argentina, mas que
danificou o computador do provedor de acesso que é dos Estados Unidos, que país
seria o mais indicado para o julgamento desse crime? Intenta-se, a seguir, dirimir
tais questionamentos.
Nosso Código Penal adotou o princípio da territorialidade temperada,
uma vez que determina a aplicação da lei brasileira aos crimes cometidos
37
38
GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal. Vol. 3. 2. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006, p. 6.
TORON, Alberto Zacharias. Crimes na Internet. In: Repertório de Jurisprudência, nº 22, 3º Caderno.
São Paulo: IOB, 2000, p. 477.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
129
no território nacional, porém permite, excepcionalmente, a aplicação da lei
estrangeira quando estabelecido em convenções, tratados ou regras de direito
internacional, senão vejamos:
Art. 5º Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados
e regras de direito internacional, ao crime cometido no território
nacional.
Quanto ao lugar do crime, o Código Penal brasileiro, em seu art. 6º, adotou
a teoria da ubiqüidade (também conhecida como mista ou da unidade), segundo
a qual o lugar do crime “é aquele em que se realizou qualquer dos momentos do
iter criminis, seja da prática dos atos executórios, seja da consumação”, conforme
ensinamentos de Jesus.39 Vejamos o que diz o mencionado dispositivo legal:
Art. 6º Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a
ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu
ou deveria produzir-se o resultado.
Significa dizer que, a partir do momento em que o crime “toca” o território
brasileiro, ainda que transitoriamente, a lei local deverá ser aplicada.
Para Carla Rodrigues Araújo de Castro,40 essa teoria deve ser aplicada
normalmente também para crimes de informática, quando a ação, parte dela ou
o resultado ocorrerem no território brasileiro. Lembra-se que é muito comum o
chamado crime à distância, aquele em que a conduta é praticada fora do país e o
resultado ocorre aqui, ou vice-versa.
Em contrapartida, Celso Valin41 chama a atenção para a segunda parte
do citado dispositivo (“bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o
resultado”). Lembra o autor que a invasão de um sistema para danificar determinado
servidor (ou provedor de acesso) surte resultados em qualquer parte do mundo,
inclusive no Brasil.
Reconhece que, segundo a legislação pátria, poderia haver processo no
Brasil, entretanto questiona se seria eficaz uma eventual lide em nosso país se o
autor do delito nem o servidor estavam fisicamente em território nacional. Assim,
para o mencionado autor, a teoria da ubiqüidade não resolveria o problema dos
delitos informáticos.
39
40
41
JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal Anotado. 11. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001,
p. 21.
CASTRO, Carla Rodrigues Araújo de. Crimes de Informática e seus Aspectos Processuais. 2. ed., rev.,
atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 14-15.
VALIN, Celso. A Questão da Jurisdição e da Territorialidade nos Crimes Praticados pela Internet. In:
ROVER, Aires José (org.) Direito, Sociedade e Informática: Limites e Perspectivas da Vida Digital,
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000, p. 116.
130
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
Tampouco a teoria do resultado (também denominada do efeito, do evento
ou locus delicti), que defende a tese do lugar do crime como o da produção de
seu resultado, seria eficaz, pois a escolha do lugar do crime tornar-se-ia aleatória.
Por exemplo, se um americano é esfaqueado no Brasil e falece em hospital na
Argentina, este último país seria o competente para julgar o processo.
A solução trazida por Celso Valin é a de se adotar a teoria da atividade para
os crimes virtuais, ou seja, o lugar do crime seria aquele em que o agente praticou
o delito, a atividade delituosa. Dessa maneira, seria atribuída competência ao
país com melhores condições de aplicar uma eventual pena, evitando-se, ainda, a
extradição do agente para o país em que fosse condenado.42
A Alemanha, assim como o Brasil, adota, via de regra, a teoria da ubiqüidade,
considerando lugar do crime o da prática do ato, onde ele se realizou ou teve seu
resultado, conforme o art. 9º, § 1º, do Código Penal alemão. Não foi introduzido,
nesse Código, dispositivo algum específico a fim de contemplar o lugar do delito
virtual.
Diante disso, Roberto Chacon de Albuquerque chegou à seguinte conclusão
quanto à responsabilidade dos provedores de acesso e de conteúdo na Internet:
Precisa-se, para determinar a responsabilidade dos provedores de
acesso à Internet, diferenciar entre provedores situados no território
alemão e provedores situados no exterior. Se eles funcionarem na
Alemanha, podem ser considerados responsáveis pelo conteúdo
ilícito ao qual dão acesso até mesmo no exterior. Se o conteúdo
estiver armazenado na Alemanha e for acessado a partir do exterior,
pode-se ser enquadrado na própria Alemanha (art. 3º e art. 9º, § 1º).
O provedor de conteúdo ilícito pode ser objeto de sanção penal a
título de participação, mesmo se o ato principal não for passível de
punição no exterior (art. 9º, § 2º). Se o provedor de acesso estiver
situado no exterior, o direito alemão só incide caso haja um valor
internacional (arts. 4º a 7º), ou se o lugar do resultado for o território
alemão (arts 3º e 9º).43
Na Holanda, como o Código Penal local não define com precisão o lugar
do crime, cabe à jurisprudência precisar onde o ilícito ocorreu. Já foi decidido que
o lugar do crime pode ser onde se praticou o ato quando, em 1899, cartas eram
42
43
VALIN, Celso. A Questão da Jurisdição e da Territorialidade nos Crimes Praticados pela Internet. In:
ROVER, Aires José (org.) Direito, Sociedade e Informática: Limites e Perspectivas da Vida Digital,
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000, p. 117.
ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A Criminalidade Informática. São Paulo: Juarez de Oliveira,
2006, p. 69-70.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
131
enviadas dos Países Baixos para a França, num esquema fraudulento, no caso, os
Países Baixos.
Decidiu também a Suprema Corte holandesa, em 1915, que se alguém pratica,
por meio de um instrumento, a partir do exterior, um crime com conseqüências
nos Países Baixos, a Justiça holandesa pode ser considerada competente para
julgá-lo.
Já em 1958, adotou-se uma terceira teoria segundo a qual o lugar do crime
ocorre onde este se consumou inteiramente, a partir de um caso em que uma carta
foi enviada para o Reino Unido e decidiu-se, à época, que o crime ocorrera no
local para onde a carta foi enviada.44
Na opinião de Roberto Chacon de Albuquerque, apesar de não ser a solução
mais prática, por haver a possibilidade de gerar uma série de conflitos de jurisdição
entre os diversos países que podem estar envolvidos em um crime informático
e também por deixar a questão em aberto, a melhor saída seria admitir vários
países competentes para julgar um crime informático em atenção ao princípio da
ubiqüidade.
A Convenção sobre a Criminalidade Cibernética do Conselho da Europa,
sobre a qual se comentará mais adiante, prevê, em seu art. 22, § 5º, que, “quando
mais de uma parte reivindicar jurisdição com relação a uma alegada infração
estabelecida de acordo com esta Convenção, as partes envolvidas deverão, quando
for apropriado, consultar-se a fim de determinar a jurisdição mais apropriada para
processar”.
Na nossa opinião, com escusas aos doutrinadores citados, a melhor solução
seria adotar a teoria da atividade nos crimes informáticos, apegando-nos ao
abalizado juízo de Celso Valin. Jurisdição significa não só processar e julgar,
mas também investigar. O país onde foi cometido o crime seria o mais indicado
para conceder, em sua plenitude, direito de defesa ao acusado, colher as provas
com maior segurança e, provavelmente, o que teria mais facilidade em capturar
o agente. Nada impediria, porém, que os demais países que sofreram, de alguma
forma, com o delito cooperassem na investigação do delito. Além do mais evitaria a
celeuma que haveria caso todos os países atingidos pelo delito fossem considerados
competentes, evitando-se, ainda, o bis in idem.
44
ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A Criminalidade Informática. São Paulo: Juarez de Oliveira,
2006, p. 70-72.
132
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
4
CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES DE INFORMÁTICA
Em brilhante exposição, Túlio Vianna distribui os crimes informáticos em
impróprios, próprios, mistos e mediatos (ou indiretos).
Os primeiros, os crimes informáticos impróprios, conforme o citado autor,
“são aqueles nos quais o computador é usado como instrumento para a execução
do crime, mas não há ofensa ao bem jurídico da inviolabilidade da informação
automatizada (dados)”.45 Significa que tais crimes poderiam ser praticados de
qualquer outra forma, porém, no caso, o agente escolhe o computador como meio,
mero instrumento para execução da infração penal.
Seriam considerados crimes informáticos impróprios, por exemplo, crimes
contra a honra, instigação ou induzimento ao suicídio, violação de segredo
profissional, apologia às drogas, entre outros delitos, quando cometidos por meio
de envio de mensagem por correio eletrônico (e-mail) ou em salas de bate-papo
virtual (chamados de chat) ou por meio de página da web.
Já os crimes informáticos próprios “são aqueles em que o bem jurídico
protegido pela norma penal é a inviolabilidade das informações automatizadas
(dados)”.46 É essa classe de delito que se encontra em crise no atual momento
legislativo brasileiro. São os novos tipos penais que surgiram com a evolução da
informática e que ainda não ingressaram no mundo jurídico brasileiro, uma vez
que até hoje não encontraram ressonância típica.
Entretanto, a Lei n. 9.983/2000 inseriu os arts. 313-A e 313-B no Código Penal
Brasileiro, prevendo novos tipos especiais, tendo como sujeito ativo o funcionário
público, os quais podem ser chamados de delitos informáticos próprios:
Art. 313-A. Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção
de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos
nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração
Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem
ou para causar dano: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos,
e multa.
Art. 313-B. Modificar ou alterar, o funcionário, sistema de informações
ou programa de informática sem autorização ou solicitação de
autoridade competente:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, e multa.
45
46
VIANNA, Túlio. Fundamentos de Direito Penal Informático. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 14.
VIANNA, Túlio. Fundamentos de Direito Penal Informático. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 16.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
133
Outro crime de informática próprio previsto em nosso ordenamento jurídico é
a interceptação ilegal, tipificado na Lei n. 9.296/1996, que dispõe em seu art. 10º:
Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações
telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da
Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados
em lei.
Os delitos informáticos mistos são crimes complexos, ou seja, a norma penal
tutela dois ou mais bens jurídicos, há fusão de dois ou mais tipos penais. No caso
em comento, além de proteger a inviolabilidade dos dados, a norma visa a tutelar
bem jurídico de natureza diversa.47 Mais ainda, “são delitos derivados do acesso
não autorizado a sistemas computacionais que ganharam status de delitos sui
generis dada à importância do bem jurídico protegido diverso da inviolabilidade
dos dados informáticos”.48
Há um exemplo de delito informático misto no ordenamento brasileiro.
Trata-se do inciso I do art. 72 do Código Eleitoral (Lei n. 9.504/1997), que assim
dispõe:
Art. 72. Constituem crimes, puníveis com reclusão, de cinco a dez
anos:
I – obter acesso a sistema de tratamento automático de dados usado
pelo serviço eleitoral, a fim de alterar a apuração ou a contagem de
votos; (…)
Vale lembrar que, ao contrário do que muitos pensam, o sistema eleitoral
brasileiro é completamente vulnerável, por isso faz-se necessário tipificar
a conduta de eventual criminoso que quebre, ou tente quebrar, o sigilo das
fontes do TSE.
Por fim, apresenta-se o delito informático mediato ou indireto, que consiste
em um “delito-fim não informático que herdou esta característica do delito-meio
informático realizado para possibilitar a sua consumação”.49
Explique-se. O que acontece no caso é o fenômeno da consunção, isto é, um
fato definido em lei como crime atua como mera fase de preparação, execução ou
exaurimento do crime mais grave, o crime-fim. Aquele fica absorvido por este.
Dá-se como exemplo a invasão de banco de dados de um banco e a posterior
transferência de numerário de uma conta para outra. Há, in casu, dois delitos
distintos: a invasão do sistema do banco pelo hacker – crime de informática
47
48
49
VIANNA, Túlio. Fundamentos de Direito Penal Informático. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 23.
VIANNA, Túlio. Fundamentos de Direito Penal Informático. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 23.
VIANNA, Túlio. Fundamentos de Direito Penal Informático. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 25.
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Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
(delito-meio) – e a subtração de coisa alheia móvel, furto – crime patrimonial
(delito-fim). Apesar de o agente só ser punido pelo crime-fim, este será classificado
de delito informático mediato ou indireto em razão da aplicação do princípio da
consunção.
Marco Aurélio Rodrigues da Costa, em monografia já citada, classifica
os delitos informáticos quanto ao seu objetivo material em puros, mistos
e comuns. 50
Os delitos informáticos puros visam exclusivamente a violar o sistema
de informática da vítima. Note-se que o animus do sujeito ativo é específico: o
sistema de informação presente no computador do sujeito passivo, em todas as
suas formas.
Apesar de bastante empregada, a classificação ora apresentada merece uma
pequena crítica. Quando cita o autor que “o sujeito ativo visa especificamente ao
sistema de informática, em todas as suas formas”, inclui os meios de armazenamento
externo, tais como fitas e disquetes.
Ora, não se pode conceber que a subtração de um disquete venha a ser
considerado crime de computação. Para ser classificado como tal, há de estar
presente o manejo de dispositivos de sistemas de processamento ou comunicação,
conforme ensina Fabrízio Rosa, em trabalho já citado.
Os delitos informáticos mistos, segundo Marco Aurélio Rodrigues da
Costa, dão-se quando o agente visa a um bem juridicamente protegido diverso
da informática, porém, sem a utilização do sistema de informática, o crime não
se pode consumar. Para exemplificar, serve-se do clássico caso da transferência
ilícita de valores, em que o uso do sistema de informática da instituição financeira
é imprescindível para alcançar o resultado pretendido.
Marco Aurélio Rodrigues da Costa conceitua os delitos informáticos comuns
da seguinte maneira:
São todas aquelas condutas em que o agente se utiliza do sistema de
informática como mera ferramenta à perpetração de crime comum,
tipificável na lei penal, ou seja, a via eleita do sistema de informática
não é essencial à consumação do delito, que poderia ser praticado
por meio de outra ferramenta.51
50
51
COSTA, Marco Aurélio Rodrigues da. Crimes de Informática. Disponível em: <http://jus2.uol.com.
br/doutrina/texto.asp?id=1826>. Acesso em: 22 abr 2007.
COSTA, Marco Aurélio Rodrigues da. Crimes de Informática. Disponível em: <http://jus2.uol.com.
br/doutrina/texto.asp?id=1826>. Acesso em: 22 abr 2007.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
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Nesses casos, o computador é mero meio de execução, mas o autor do delito
poderia ter escolhido outro para perpetrar a conduta criminosa desejada, não se
tornando imprescindível o uso da máquina.
Estes são equivalentes aos crimes informáticos impróprios acima
mencionados na classificação de Túlio Vianna.
Marco Aurélio Rodrigues da Costa reconhece a aplicabilidade das normas
penais nos casos em apreço, porém sugere a aplicação de uma agravante pelo
uso de sistema de informática, uma “vez que é meio que necessita de capacitação
profissional e a ação delituosa por esta via reduz a capacidade da vítima em evitar
o delito.”52
Outra classificação interessante é apresentada por Sérgio Marques Roque
em que aduz duas categorias de cybercrimes:
Aqueles praticados através do uso do computador e os perpetrados
contra os dados ou sistemas informáticos. Nos primeiros, o
computador será o instrumento, no segundo, o objeto material. Assim,
quando o computador for utilizado apenas como instrumento de
escolha pelo agente ativo para a consecução do crime, este será crime
de informática comum, mas, quando a ação do criminoso se dirigir
contra os dados contidos no sistema, será definido como crime de
informática autêntico, porque nesse último o computador é essencial
para a existência do delito”.53
Maria de La Luz Lima classifica os delitos eletrônicos em três categorias:
(a) os que utilizam a tecnologia eletrônica como método, ou seja,
condutas criminais nas quais os indivíduos utilizam métodos
eletrônicos para obter um resultado ilícito;
(b) os que utilizam a tecnologia eletrônica como meio, ou seja,
condutas criminais nas quais, para a realização de um delito, utilizase o computador como meio; e
(c) os que utilizam a tecnologia eletrônica como fim, ou seja, condutas
dirigidas contra a entidade física do objeto ou máquina eletrônica ou
seu material com o objetivo de danificá-la.
52
53
COSTA, Marco Aurélio Rodrigues da. Crimes de Informática. Disponível em: <http://jus2.uol.com.
br/doutrina/texto.asp?id=1826>. Acesso em: 22 abr 2007.
ROQUE, Sérgio Marques. Apud: ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São
Paulo: Memória Jurídica Editora, 2004, p. 120.
136
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
Existem outras classificações que seguem critérios diferenciados. Por
exemplo, o Prof. Ulrich Sieber,54 da Universidade de Würzburg, na Alemanha,
classifica os crimes objeto de nosso estudo pelo critério da atuação do autor.
Assim há:
(a) fraude por manipulação de um computador contra um sistema de
processamento de dados, que consiste na introdução de dados falsos,
na modificação dos resultados de um programa, sempre com o intuito
de obtenção de benefícios econômicos;
(b) espionagem informática e furto de software, que podem ser
cometidos por meio de programas copiadores ou por meio de furto
de periféricos (disquetes, CD-ROM, etc.);
(c) sabotagem informática, efetuada por meio de um tipo de “bomba”
que destrói o programa, distorcendo seu funcionamento;
(d) furto de tempo ou de serviço é caracterizado quando empregados
utilizam sem autorização horas do computador do empregador para
realizar trabalhos particulares. Está incluso nesta classificação porque
o Estado da Virgínia nos Estados Unidos considera propriedade o
tempo de computador ou de serviços de processamento de dados e
incrimina seu uso não autorizado;
(e) acesso não autorizado a sistemas de processamento de dados, que
consiste na atividade de hackers e será exposto com mais vagar no
tópico seguinte; e, finalmente,
(f) ofensas tradicionais, que se referem ao uso de computadores para
mascarar ações puníveis, por exemplo, a supressão de dados contábeis
e alteração em folhas de pagamento.
Há, ainda, a classificação de C. M. Romero Casabona,55 professor
catedrático da Universidade de La Laguna, na Espanha, que diferencia
os “cdleitos” informáticos da seguinte maneira:
(a) manipulação de entrada de dados (input): consiste na introdução
de dados falsos no computador alheio, abarcando também a omissão
do registro de dados;56
54
55
56
SIEBER, Ulrich. Apud: REIS, Maria Helena Junqueira. Computer Crimes. Belo Horizonte: Del Rey,
1997, p. 29-31.
CASABONA, C. M. Romero. Apud: REIS, Maria Helena Junqueira. Computer Crimes. Belo Horizonte:
Del Rey, 1997, p. 31-32.
Esse tipo de sabotagem é chamada de “Cavalo de Tróia” por Sznick. SZNICK, Valdir. O Delito e o
Computador. Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, ano 8, vol. 26, São Paulo: Vellenich,
1984, p. 68.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
137
(b) manipulações no programa: inicialmente, parte de uma entrada de
dados correta, porém, no processamento, conduz a resultados falsos
por interferências no programa;
(c) manipulações na saída de dados (output): acontece quando os
dados introduzidos no programa são verdadeiros, sem alteração
alguma, mas, no momento da impressão ou da transmissão dos dados
para outro computador, há manipulação;
(d) manipulação à distância: acontece quando o computador encontrase conectado com outros terminais ou computadores por linha
telefônica, satélite ou algo que o valha, mediante um modem, que
codifica e decodifica as informações.
Como se pode ver, tamanha preocupação em classificar os delitos
informáticos salienta a importância que deve ser dada ao tema em razão do caráter
de novidade na esfera jurídica mundial.
5
DO SUJEITO ATIVO DO CRIME DE INFORMÁTICA
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo de crime por computador em sentido
amplo. Entretanto, para a prática dos crimes informáticos próprios, segundo
classificação acima explanada, faz-se necessário conhecimento pormenorizado
do computador e suas nuances acessíveis apenas a um pequeno grupo de pessoas
chamadas usualmente de hackers.
Segundo Rita de Cássia da Silva,57 a palavra hacker surgiu no início dos
anos 80, no Massachusetts Institute of Technology, para designar estudantes de
computação que passavam as madrugadas pesquisando dentro do laboratório. O
termo era usado como sinônimo de especialista em computador. A melhor tradução
para o termo seria “fuçador”, ou seja, aquele que tem o costume de bisbilhotar,
vasculhar a tecnologia, os sistemas disponíveis.
Hoje em dia, o termo é usado pejorativamente para referir-se aos
invasores ilegais de sistemas de computador, aqueles que se aproveitam de seus
conhecimentos de informática para conseguir alguma vantagem ilícita ou, até
mesmo, os que, pelo simples desejo de aventura, despistam esquemas de segurança
e invadem computadores alheios, principalmente de grandes empresas ou agências
governamentais.
57
SILVA, Rita de Cássia Lopes da. Direito Penal e Sistema Informático. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, p. 77.
138
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
Há quem indique, porém, diferença entre conceito de hacker e cracker.58 O
primeiro seria o especialista em computação que usa seus vastos conhecimentos
eticamente, enquanto o segundo seria uma versão criminosa do primeiro. Seriam
exatamente opostos.
O hacker trabalharia para solucionar os problemas trazidos para um
determinado sistema de informática pelo cracker. Esse seria o sujeito ativo nos
crimes cibernéticos próprios, aquele que invade sem autorização os servidores de
Internet e tenta destruir programas, alterá-los ou copiá-los. Tem conhecimento
vasto, tanto quanto o hacker, porém o utilizaria para a prática de delitos. A mesma
diferenciação entre hacker e cracker é feita por Luiz Flávio Gomes, citado por
Vicente Lentini Plantullo.59
Os crackers mais evoluídos, ou seja, aqueles com mais experiência e
conhecimento, são conhecidos como wizards, que em inglês significa mestre,
mago ou guru. São criminosos idolatrados em seu meio e, pela sua capacidade de
domínio incalculável da tecnologia, são mais perigosos e de difícil captura pelas
autoridades.
Entretanto, Alberto Zacharias Toron, além de apresentar características
distintas das acima colacionadas, traz novos sujeitos ativos. Para ele, cracker “é um
autodidata da informática que, sem ter os conhecimentos do hacker, tenta imitá-lo,
mas sem grandes vôos. Fica no nível da realização de cópias-piratas de programas
de informática”, enquanto que hackers seriam “usuários da Rede que ardilosamente,
sem autorização, invadem computadores ou sistemas, seja para acessar dados, seja
para destruí-los ou até mesmo para obter vantagens ilícitas.”60
O mesmo autor traz, ainda, outros dois conceitos de delinqüentes cibernéticos
tais como cyberpunk, que são os vândalos da cibernética que agem com o intuito
de destruir programas, dados ou suportes informáticos – afirma que seria como
um cracker, porém com o intuito de penetrar de forma não autorizada em sistemas
de informática mediando a corrupção de uma senha para destruir dados ou inserir
no sistema um vírus que o destrua – e sniffers, que atuam na tentativa de entrar no
disco rígido dos computadores conectados à grande Rede com o intuito de obter
certo tipo de informação.
Vicente Lentini Plantullo, citando Luiz Flávio Gomes, brinda-nos com
mais três conceitos de criminosos virtuais o phreaker, o anarchist e o warez.
58
59
60
SILVA, Rita de Cássia Lopes da. Direito Penal e Sistema Informático. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, p. 78.
PLANTULLO, Vicente Lentini. Estelionato Eletrônico. Curitiba: Juruá, 2005, p. 80.
TORON, Alberto Zacharias. Crimes na Internet. Repertório de Jurisprudência, nº 22, 3º Caderno. São
Paulo: IOB, 2000, p. 477.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
139
O primeiro é aquele que “possui talento para manipular a tecnologia de linhas
telefônicas e celulares. Geralmente, associam tal talento ao computador para
promover seus ataques com objetivo de não serem identificados”.61 São eles que
“clonam” celulares, interceptam e rastreiam ligações e fazem uso de provedores
sem pagar impulso.
Já o anarquista utiliza o computador com o mero intuito de prejudicar. Seu
objetivo é danificar computadores, disseminar vírus, divulgar idéias contrárias à
moral e aos bons costumes por meio de manuais de tortura ou instruções de como
fazer o gás do riso, entre outras maneiras.
O warez é aquele pirata de software que lança mão de seus conhecimentos
adquiridos em telemática com puro objetivo de lucro. Ele vende programas piratas,
desbloqueia códigos que evitam a pirataria, etc.62
Além dos sujeitos já denominados, Augusto Rossini63 traz vários exemplos
de sujeitos ativos de crime informático. Entretanto, no presente trabalho, serão
tratados apenas aqueles que se mostram mais importantes.
Os carders são aqueles agentes especializados em adquirir números e senhas
de cartões de crédito, telefônico ou magnéticos para utilização fraudulenta perante
as empresas que atuam no ambiente de rede. Diferenciam-se dos estelionatários
comuns porque atuam com exclusividade no Ciberespaço.
Os sneakers (que em inglês significa “gatunos”) são espécie de crackers,
que quebram proteção de sistemas de empresas para obter informações sigilosas
(pirataria empresarial) com a particularidade de fazê-lo mediante paga ou
qualquer outra vantagem. Quem oferecer mais benefícios poderá contar com seus
serviços.
Outro perigoso agente do mundo virtual é o virii que tem como principal
atividade a criação e a disseminação de vírus de computador. Foram eles que
criaram os vermes eletrônicos (conhecidos como worms), que causam grande
prejuízo à Rede e são combatidos diariamente pelos usuários.
Augusto Rossini64 fez um excelente estudo acerca da mente criminosa dos
sujeitos ativos dos delitos informáticos, revelando aspectos de sua origem social,
61
62
63
64
GOMES, Luiz Flávio. Apud: PLANTULLO, Vicente Lentini. Estelionato Eletrônico. Curitiba: Juruá,
2005, p. 80.
COHEN. Apud: PLANTULLO, Vicente Lentini. Estelionato Eletrônico. Curitiba: Juruá, 2005, p.
81.
ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica Editora,
2004, p. 147-155.
ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica Editora,
2004, p. 134-142.
140
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
do acesso ao conhecimento criminoso, da idade, do grau de culpabilidade e outras
facetas que serão comentadas adiante.
Conforme o citado autor, os agentes de infrações penais são, geralmente,
provenientes das classes média e alta da sociedade, com boa bagagem cultural.
Por isso, mostram-se como criminosos diferenciados, não tendo os requisitos do
criminoso-padrão. Este, muitas vezes, não tem escolhas senão adentrar-se no crime,
enquanto o criminoso informático age por opção, tornando-se até mais perigoso
que o delinqüente comum.
Acrescente-se que o acesso à Internet e às informações no âmbito da
informática é ilimitado e qualquer pessoa, independentemente da idade, pode ter
a curiosidade de vasculhar, sem autorização, o computador alheio. O livre acesso,
aliado à velocidade com que chegam as informações aos usuários – em tempo
real –, contribui para que adolescentes tenham mais intimidade com a máquina.
Augusto Rossini nos traz um impressionante dado: segundo especialistas a idade
média dos crackers está entre 18 e 19 anos e o time dos que estão entre 14 e 15
é bastante grande.
Segundo Marcelo Antonio Sampaio Lemos Costa,65 o Brasil foi citado em
um relatório britânico como o país que abriga os dez grupos de hackers mais ativos
do mundo, o que nos dá um indicativo do potencial de nossos cybercriminosos.
Diante disso, conclui-se que o sujeito ativo da infração penal telemática
é bastante diferenciado do que se costuma tratar. É também o mais difícil de se
identificar devido à facilidade em manter o anonimato, pois, ainda que se possa
identificar o computador empregado para a prática delituosa através do número
IP da máquina, não se indica, necessariamente, quem efetivamente fez uso do
aparelho.
Daí a necessidade de se tratarem com mais cautela os crimes cometidos por
meio dos sistemas de computadores e contra eles.
6
DA CONVENÇÃO SOBRE CRIMES CIBERNÉTICOS
Diante da nova forma de criminalidade e após os ataques de 11 de Setembro,
constantes invasões de hackers a computadores de grandes empresas e sistemas
governamentais e disseminação da pedofilia e transferência ilegal de valores de
contas bancárias, chegou-se à conclusão de que a ultima ratio do Direito fosse
65
COSTA, Marcelo Antonio Sampaio Lemos. Computação Forense. 2. ed. Campinas: Millennium, 2003.
p. 6.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
141
convocado a agir com urgência para garantir a proteção a bens jurídicos preciosos
da sociedade.
Essa preocupação deu origem à Convenção sobre Cybercrime, ocorrida em
Budapeste em 23 de novembro de 2001, e lança paradigmas para o estudo sobre
delitos informáticos. Tal encontro foi realizado entre os Estados-membros do
Conselho da Europa e demais signatários deste.
No presente trabalho, utilizam-se tradução e comentários de Augusto
Rossini,66 uma vez que não há textos oficiais em nosso vernáculo. Limita-se,
outrossim, à parte substantiva da Convenção, por não serem objeto da monografia
os aspectos processuais da legislação sugeridos em Budapeste.
Já no preâmbulo, denotam-se o interesse e a preocupação com o tema
“como matéria prioritária, uma política criminal comum direcionada à proteção
da sociedade contra o cybercrime, inter alia por meio da adoção de legislação
apropriada e promoção do crescimento da cooperação internacional”.
Mais adiante, a Convenção reconhece a necessidade de cooperação entre
os Estados e a iniciativa privada no combate ao cybercrime, por ser interesse de
toda a coletividade. Entende que a cooperação dará mais efetividade ao combate
perpetrado.
A Convenção lança, outrossim, definições que devem ser seguidas acerca
de certos termos técnicos no ramo da informática. Eis alguns:
Sistema de computador significa qualquer equipamento ou um grupo de
equipamentos conectados ou relacionados, um ou mais, os quais, viabilizados por
um programa, realizam processamento automático de dados;
Dado de computador significa qualquer representação de fatos, informações
ou conceitos em uma forma adequada para o processamento em um sistema de
computador, incluindo um programa apropriado que possibilite ao sistema de
computador realizar a função;
Provedor de serviços significa i) qualquer entidade pública ou privada que
proporciona para os usuários de seus serviços a possibilidade de se comunicarem
por meio de um sistema de computador, e ii) qualquer outra entidade que processa
ou armazena dados de computador em benefício de tal serviço de comunicação
ou usuários desse serviço;
Tráfego de dados significa qualquer dado de computador relacionado a uma
comunicação por meio de um sistema de computador, gerado por um sistema de
66
ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica Editora,
2004, p. 33-101.
142
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
computador, que forma uma parte de uma cadeia de comunicação, indicando a
origem da comunicação, o destino, a rota, o tempo, a data, o tamanho, a duração
ou o tipo de base desse serviço.
Num terceiro ponto, a Convenção sobre Crimes Cibernéticos sugere a criação
do tipo penal incriminador, sem impor uma redação específica a fim de respeitar as
características de cada localidade. Nessa parte, é recomendada a adoção de medidas
efetivas quando o crime for praticado de forma dolosa, não havendo referência a
negligência, imprudência ou imperícia.
Os arts. 2º a 6º (Título I, Capítulo II) visam a proteger o computador como
alvo do delito: acesso ilegal (acesso desautorizado no sistema de computador
alheio), interceptação ilegal (interceptação desautorizada de transmissão privada
de dados), interferência de dados (sem a interação com o sistema), interferência
de sistema (com o interface com o sistema) e mau uso de equipamentos (sugere a
responsabilização dos atos preparatórios).
O Título II visa a proteger “Danos relacionados a computador”, ou seja,
pretende a criminalização das condutas que tenham por objetivo a alteração de
dados verdadeiros. Aqui, o computador não é mais visto como alvo – tal qual o
título anterior –, mas como instrumento. O art. 7º trata da falsificação relacionada
a computador, e o 8º da fraude relacionada a computador.
O título seguinte é composto tão-somente por um dispositivo (art. 9º) com
a finalidade de proteger crianças e adolescentes de abusadores sexuais. Esse
único artigo, porém, abarca diversas condutas, tais como produzir, oferecer ou
disponibilizar, distribuir ou transmitir, comprar e possuir pornografia infantil em
um sistema de computador ou armazenamento de dados, entre outros.
No Brasil, a Lei n. 10.764/2003, inspirada na Convenção de Budapeste,
alterou o art. 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90),
para incluir mais condutas às que já existiam e acrescentou a possibilidade de
propagação da pornografia infantil por meio da grande rede, conforme se colhe
do mencionado dispositivo legal:
Art. 241. Apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar,
por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de
computadores ou Internet, fotografias ou imagens com pornografia ou
cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente: (Redação
da Lei n. 10.764/12.11.2003) (original sem grifos)
Danos relacionados à transgressão de direitos autorais e direitos correlatos
é o tema do Título IV da Convenção em estudo. A reprodução não autorizada
de documentos ou programas, de fato, merece total proteção devido à extrema
facilidade de se copiarem tais bens jurídicos no âmbito da Internet.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
143
A “pirataria” – como é chamada a transgressão de propriedade imaterial
– vem crescendo absurdamente nos últimos anos, mormente após o advento da
Rede Mundial de Computadores. Num primeiro momento, imaginou-se que não
seria necessária a intervenção do Direito Penal – tido como ultima ratio – para
solucionar conflitos envolvendo prejuízos causados com a prática dos delitos da
espécie, tendo em vista que os demais ramos do direito seriam aptos a enfrentar
tais problemas. Entretanto, fácil perceber que é um problema que atinge não só o
proprietário, mas toda a coletividade de um Estado, haja vista a pirataria afetar o
recolhimento de tributos e a criação de postos de trabalho.67
Os demais Títulos da Convenção tratam de questões secundárias, porém
bastante importantes para a proteção dos bens jurídicos atingidos pela informática.
Cuida de tentativa e concurso (chamados de ajuda ou encorajamento) no art.
11. Já o art. 12 preocupa-se com a responsabilidade das empresas (chamada de
responsabilidade corporativa), atribuindo às pessoas jurídicas a capacidade de
delinqüir.
O art. 13 trata das disposições finais e recomenda que, em qualquer caso,
as ofensas criminais previstas na Convenção sejam puníveis por sanções efetivas,
proporcionais e dissuasivas, que incluam privação de liberdade. Por efetividade,
entenda-se que a resposta do Direito Penal deve ser eficaz e certa, sob pena de ser
desmoralizado. Proporcionalidade preocupa-se com a exata medida da sanção penal,
ou seja, a pena deve ser, antes de tudo, justa. Já dissuasividade está intimamente
ligada ao caráter preventivo do Direito Penal, que assegura os direitos individuais
do cidadão e previne que novas condutas sejam praticadas.68
Merece críticas o art. 21 da Convenção, uma vez que recomenda aos Estadosmembros a adotar medidas a fim de cooperar e assistir as autoridades competentes
na coleta ou na gravação de conteúdo de dados, em tempo real, de comunicações
especificadas em seu território por meio de um sistema de computador.
A censura feita por José de Castro Meira é da seguinte ordem:
Como se vê, a Convenção autoriza os serviços policiais a acessar
dados, inclusive em tempo real, impossibilitando qualquer providência
pelos usuários da rede, que ficam obrigados a guardar sigilo sobre as
medidas, ainda que as considere absurdas e fora de propósito. Afinal,
o critério quanto à “razoabilidade” das providências poderá ficar à
mercê do entendimento dos serviços de segurança. As comunicações
67
68
ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica Editora,
2004, p. 70-71.
ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica Editora,
2004, p. 100.
144
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
na Internet perderão a confiabilidade, quanto ao resguardo do sigilo,
tendo em vista que o acesso pode ocorrer inclusive em tempo real,
sem que fique sinal da interferência, com o propósito de realizar o
objetivo buscado pelas autoridades policiais.69
Consoante se pode perceber, a atenção dirigida aos novos paradigmas
trazidos pela informática é difundida em todo o mundo. A tendência mundial é
contemplar os delitos informáticos com novas legislações, já que se trata de uma
realidade de nosso cotidiano.
CAPÍTULO III - DO PROJETO DE LEI Nº 84/99
Finalmente, após as explanações acerca do conceito, das características e
das diversas formas de classificar os crimes informáticos, chega-se ao ponto de
se comentar o Projeto de Lei n. 84/99, de autoria do Deputado Luiz Piauhylino,
na forma do substitutivo apresentado pelo relator Deputado Léo Alcântara, na
Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, em 2002. A matéria tramita
em regime de urgência, e, a qualquer momento, podemos ser contemplados com
mais uma norma penal.
Diante de tantos projetos de lei sobre o tema, o PL 84/99 (atual PLC 89/03)
foi escolhido para comentários no presente trabalho por se tratar do mais amplo
e abrangente deles e, também, por estar num estágio mais avançado no processo
legislativo. Essa opinião se coaduna com a do Comitê de Direito e Tecnologia da
Câmara Americana de Comércio de São Paulo (AmCham/SP).
Será discutido, neste tópico, se há, realmente, a necessidade de se criarem
novos tipos penais para os delitos contra sistemas de informação contidos em
computadores – tendo em vista que alguns defendem a atipicidade dos crimes
virtuais, e, conseqüentemente, não podem esses crimes ser punidos com base
na legislação penal vigente – ou se os crimes praticados pela via virtual já estão
devidamente tipificados e apenados no Código Penal vigente, com uma simples
modificação no modus operandi, significando que não há por que modificar a
legislação atual.
Em todo o mundo, leis específicas para o combate e a punição dos tipos
de delito em estudo já estão sendo promulgadas e aplicadas, como é o caso da
Alemanha – que, em 1986, promulgou lei contra a criminalidade econômica,
a qual contempla os delitos de espionagem e falsificação de dados e fraude
69
MEIRA, José de Castro. Crimes de Informática. Disponível em: <http://buscalegis.ccj.ufsc.br/arquivos/
crimes_informatica_meira.html>. Acesso em: 12. out. 2006.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
145
eletrônica –, da Áustria – que reformou seu Código Penal para incluir os delitos
de destruição de dados e fraude eletrônica –, da França – que criou lei, em 1988,
que dispõe sobre acesso fraudulento a sistema de elaboração de dados, sabotagem,
destruição de dados, falsificação de documentos eletrônicos e uso de documentos
informatizados falsos – e dos Estados Unidos – que adotaram a Ata Federal de
Abuso Computacional, direcionada a atos de transmissão de vírus.70
Carla Rodrigues Araújo de Castro71 dá conta também de que há lei em
Portugal, desde 1991, dispondo sobre a criminalidade informática, e, na Itália,
houve alteração do Código Penal, acrescentando quinze preceitos sobre o tema.
Mário Furlaneto Neto e Guimarães72 acrescentam que houve recente atualização
do Código Penal da Espanha para contemplar, como crimes, a pornografia infantil
praticada via Internet e a posse de material pornográfico relacionado à pornografia
infantil.
No Brasil, a matéria ainda se encontra em plena discussão, apesar de a
tendência ser pela tipificação em lei especial dos crimes de informática, conforme
se vê do adiantado estágio do Projeto de Lei n. 84/99 e da opinião dos principais
doutrinadores especializados na matéria.
1
PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL
Nullo crimem nulla poena sine praevia lege, ou seja, não há crime sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Com esse brocardo,
a Carta Magna de 1988 postula o Princípio da Reserva Legal no inciso XXXIX
de seu art. 5º.
Dito preceito tem origem na Carta Inglesa de 1215, assinada pelo Rei João
Sem Terra, após ceder às pressões dos barões feudais, e dispunha que:
nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado de
seus bens ou colocados fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo
molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder
contra ele se não mediante um julgamento regular sobre seus pares
ou de harmonia com a lei do País” (Nullus líber homo expiatur vel
70
71
72
PAIVA, Mário Antônio Lobato de. Delitos Virtuais. Revista Jurídica Consulex, Ano VI, n. 138. Brasília:
Consulex, 2002, p. 61.
CASTRO, Carla Rodrigues Araújo de. Crimes de Informática e seus Aspectos Processuais. 2. ed., rev.,
atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 156-158.
FURLANETO NETO, Mário et alii. Crimes na Internet: elementos para uma reflexão sobre a ética
informacional. Revista CEJ, ano VII, n. 20, Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2003, p. 71.
146
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
imprisoned, nisi per legale judicium purium suorim vel per legem
terrae).73
Conforme ensinamento de José Afonso da Silva, o princípio da reserva legal
distingue-se do da legalidade porque aquele consiste em estatuir que a regulamentação
de determinadas matérias há de fazer-se necessariamente por lei formal. Outra
diferença é que o princípio da legalidade (genérica) envolve primariamente uma
situação de hierarquia das fontes normativas, enquanto o princípio da reserva de
lei (legalidade específica) envolve questão de competência.
Rita de Cássia Lopes da Silva cita Crisafulli, segundo o qual, “tem-se,
pois, reserva de lei quando uma norma constitucional atribui determinada
matéria exclusivamente à lei formal (ou a atos equiparados, na interpretação
firmada na praxe), subtraindo-a, com isso, à disciplina de outras fontes, àquela
subordinada”.74
Há, ainda, divisão do princípio da reserva legal em absoluta e relativa.
Trata-se de reserva absoluta quando a matéria é reservada pela Constituição como
exclusiva de lei, não se considerando a hipótese de haver qualquer outra fonte
infralegal. A reserva relativa se dá quando se admite que parte da matéria seja
buscada em outras fontes que não a lei.
Assim, pode-se dizer que a reserva legal absoluta proíbe o preenchimento
de lacunas em normas penais por meio da analogia e dos costumes como fontes
do Direito Penal. Logicamente que a proibição se dá apenas na aplicação para
piorar a situação do acusado, podendo ser aplicado in bonam parte, ou seja, para
beneficiar o réu.
O princípio em comento está historicamente presente nas nossas
Constituições, inclusive na nossa primeira Constituição de 1824 e, sucessivamente,
nas de 1891, 1934, 1946, 1967 e na Emenda Constitucional de nº 1 de 1969.75
Luiz Luisi lembra que a Declaração Universal dos Direitos do Homem,
aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas de 1948, dispõe em seu artigo
II, 2:
Ninguém será condenado por atos ou omissões que no momento em
que se cometerem não forem crimes segundo o direito nacional ou
internacional. Tão pouco se imporá pena mais grave que a aplicável
no momento da comissão do delito.
73
74
75
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2003, p. 119
SILVA, Rita de Cássia Lopes da. Direito Penal e Sistema Informático. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, p. 368.
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2003, p. 18.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
147
Especialistas discutem se a incriminação do agente de delitos informáticos
estaria ferindo o princípio constitucional da reserva legal ou se o enquadramento
do autor do crime deve ser feito nos modelos já existentes de crime. É o que será
ventilado no próximo tópico.
2
DA DISCUSSÃO ACERCA DA NECESSIDADE DE NOVO DIPLOMA
LEGAL
A discussão acerca da exigência de lei específica para penalizar os sujeitos
ativos dos chamados crimes virtuais tem dividido a doutrina.
Vicente Greco Filho, motivado por um episódio em que jovens gaúchos
obtiveram senhas de usuários de Internet, passando a utilizá-las em proveito próprio
em prejuízo dos donos das contas bancárias em 2000, escreveu sobre o tema.
Em tom de desabafo, o citado professor entende que, no caso dos garotos do
Rio Grande do Sul, foi praticado o conhecido crime de estelionato, tipificado no art.
171 do nosso Código Penal. Explica que houve vantagem ilícita (consistente em se
beneficiar do usufruto do provedor, em prejuízo do titular da conta), mediante meio
fraudulento (uso indevido de senha), induzindo e mantendo o provedor em erro.
Após afirmar que seria erro grave e perigoso de política penal querer definir
crimes específicos, conclui que
nada existe de especial na possível proteção aos bancos de dados
informatizados. Isso porque, ou pertencem eles à esfera da intimidade,
ou à esfera da prática comercial ou industrial e, nesses campos, sua
proteção penal deve ser tratada, independentemente de a violação
ocorrer por meio da informática.76
Finaliza com a afirmação de que o Direito Penal está perfeitamente apto
a atender à proteção dos direitos básicos das pessoas e, caso haja modificação,
esta deve ser feita dentro de uma perspectiva de proteção genérica de um bem
jurídico.
Em artigo produzido em 1984 e publicado em diversas revistas jurídicas,
Valdir Sznick, após elencar as principais técnicas de uso não autorizado do
computador, tais como “lata de lixo” e “cavalo de Tróia”, afirma que ditas
condutas estão abrangidas pelo Código Penal atual e, por conseguinte, podem ser
consideradas como crime.
76
GRECO FILHO, Vicente. Algumas Observações sobre o Direito Penal e a Internet. Revista Direito
Mackenzie. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2000, p. 35.
148
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
Enumera uma série de modalidades criminosas que podem ser cometidas por
meio do computador, quais sejam: estelionato, falsificação de documento público
e particular, crimes contra a inviolabilidade de correspondência, expedição de
duplicata simulada, crimes contra o privilégio de invenção, divulgação de segredo
ou violação de segredo profissional, além dos crimes contra a honra.
Apesar de entender, tal como Vicente Greco Filho, que o Direito Penal
se faz suficiente para proteger os bens jurídicos colocados em discussão, não
descarta a possibilidade de criação de um novo tipo penal a fim de englobar mais
especificamente essas condutas:
Embora entendamos que o direito penal atual pelos tipo supra
apontados já oferece proteção aos crimes cometidos por meio do
computador – e de toda a parafernália da informática – somos de
opinião que a ereção de um delito novo englobaria melhor todas
as modalidades dessas condutas delitivas, obviando dificuldades
oriundas da apuração do meio empregado e da fraude ocorrida. Assim
sob a epígrafe do ‘Uso indevido da computação’, abranger-se-iam
todas as condutas oriundas do ‘uso indevido de computador’ e o ‘uso
de computador por pessoa não autorizada.77
A maioria dos doutrinadores pesquisados é da opinião de que os crimes
informáticos merecem uma tipificação específica, sob pena de serem os magistrados
obrigados a absolver os acusados pela falta de lei em nosso ordenamento jurídico.
Mário Antônio Lobato de Paiva cita sentença proferida na Argentina em
que o Juiz Federal foi obrigado a absolver os réus, acusados de violar o sistema
da página web da Suprema Corte de Justiça da Nação, substituindo-a por outra,
alusiva ao aniversário de falecimento do jornalista José Luis Cabazes.
Entendeu o juiz que os artigos referem-se especificamente a ataques
à materialidade, utilidade ou disponibilidade de coisas, encontrando,
com isso, obstáculo no enquadramento de conduta em epígrafe como
crime, o que culmina na atipicidade do feito sob julgamento. Para ele
(o juiz), não é possível considerar página web de Corte Suprema de
Justiça da Nação como uma coisa, nos termos em que esta deve ser
entendida. “Coisa”, definida no art. 2.311 do Código Civil da Nação,
é objeto material suscetível de ter um valor.78
77
78
SZNICK, Valdir. O Delito e o Computador. Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, ano 8,
vol. 26, São Paulo: Vellenich, 1984, p. 70.
PAIVA, Mário Antônio Lobato de. A Atipicidade dos Delitos Cometidos na Internet. Revista Síntese
de Direito Penal e Processual Penal, ano V, n. 26. Belo Horizonte: Síntese, 2004, p. 155-156.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
149
Ademais, o juiz destaca que uma interpretação extensiva implicaria claro
menoscabo ao princípio da legalidade, uma vez que tais delitos não possuem
enquadramento legal no Código Penal da Nação.
O autor concorda com o juiz argentino e defende a criação de leis específicas
para tipificar essas condutas perpetradas pelo uso das novas tecnologias,
acompanhadas de sanções penais específicas que coíbam a prática dos delitos
virtuais que podem causar graves danos à comunidade.
Na mesma linha de pensamento, Maria Helena Junqueira Reis propõe
a criação de uma lei específica sobre computer crimes – desde que não seja
casuística devido à velocidade do avanço da tecnologia –, a ampliação do conceito
de “coisa”, “fraude” e “documento” para abarcar o mundo virtual e criminalizar
o “acesso não autorizado a certos bancos de dados”, como o das autarquias e do
Poder Judiciário.79
Túlio Vianna também segue a tese de que se faz necessária a criação de
dispositivos capazes de dar tipicidade aos delitos em comento, mas, diferentemente
de Mário Antônio Lobato de Paiva, não acredita que a solução esteja na criação
de novas leis específicas. Para Túlio Vianna, bastaria o acréscimo de um artigo
ao Código Penal brasileiro e traz uma sugestão em sua obra. Trata-se da inserção
do artigo 154-A na Parte Especial, Título I, Capítulo VI, da seguinte Seção V,
por ele criada:
Seção V – Dos Crimes contra a inviolabilidade de dados
informáticos
Art. 154-A. Acessar, sem autorização, dados ou programas em sistema
computacional.
Pena – prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas,
de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa.
§ 1º A pena será reduzida de um a dois terços ou o juiz aplicará
somente a pena de multa se o agente não tinha intenção de lucro ou
de obter vantagem de qualquer espécie para si ou para outrem e foi
pequeno o prejuízo para a vítima.
§ 2º Aumenta-se a pena de um terço até metade:
I – se o crime é cometido contra sistema computacional da
União, Estado, Distrito Federal, Município, órgão ou entidade da
administração direta ou indireta ou de empresa concessionária de
serviços públicos;
II – se o crime é cometido por funcionário público ou por quem exerça
a função de administrador de sistemas ou assemelhada, com abuso
de poder ou com violação de dever inerente a função;
79
REIS, Maria Helena Junqueira. Computer Crimes. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 55.
150
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
III – se o agente destrói ou danifica o sistema computacional ou dados
nele armazenados;
IV – se o agente divulga a terceiros as informações obtidas, causando
dano material ou moral à vítima.
§ 3º A pena prevista neste artigo será cumprida preferencialmente
por meio de tarefas que aproveitem as aptidões do condenado,
especialmente no desenvolvimento de softwares com código
aberto para entidades públicas e no treinamento em informática de
funcionários públicos e da comunidade em geral.
§ 4º Somente se procede mediante representação, salvo na hipótese
do § 2º, II, em que a ação é pública incondicionada.80
Na mesma esteira de pensamento encontra-se Augusto Rossini,81 que sugere
a modificação no campo penal, porém defende que não há necessidade de se criar
uma nova estrutura. Augusto Rossini é pela adaptação dos delitos telemáticos à
realidade brasileira, fazendo inserir novos tipos ao Código Penal existente. Inicia
com a criação dos arts. 163-A e 163-B, cuja ação penal somente se procederia
mediante queixa:
Dano a dado, programa de computador, banco de dados ou
mecanismos de acesso.
Art. 163-A. Apagar, destruir, modificar ou de qualquer forma inutilizar,
total ou parcialmente, dado, programa de computador, banco de dados
ou mecanismos de acesso, armazenados em meios eletrônicos, com a
utilização de meio fraudulento ou de forma não autorizada.
Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa.
Parágrafo único: Se o crime é cometido:
I – contra o interesse da União, Estado, Distrito Federal, Município ou
órgão ou entidade da administração direta ou indireta, ou de empresa
concessionária de serviços públicos;
II – com intuito de lucro ou vantagem de qualquer espécie, própria
ou de terceiro; ou
III – com o uso indevido de senha ou processo de identificação de
terceiro.
Pena: detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e multa.
80
81
VIANNA, Túlio Lima. Fundamentos de Direito Penal Informático. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.
91-92.
ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica Editora,
2004, p. 236-244.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
151
Art. 163-B. Disponibilizar ou utilizar dado ou programa de
computador em meios eletrônicos com a finalidade de apagar,
destruir, inutilizar ou modificar dado, programa de computador,
banco de dados ou mecanismos de acesso, ou se de qualquer forma
dificultar ou impossibilitar total ou parcialmente a utilização de
meios eletrônicos.
Pena: detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos e multa (...)”
Acrescenta, ainda, o mesmo autor um inciso no § 4º do art. 150 do CP,
que trata dos crimes contra a inviolabilidade do domicílio para compreender, na
expressão “casa”, o “sistema informático ou telemático com acesso indevido ou
não autorizado”.
Cria, também, o art. 150-A para tipificar o acesso não autorizado ou
fraudulento, com as mesmas qualificadoras sugeridas para o art. 163-A:
Art. 150-A. Obter acesso não autorizado, ou com utilização de
meio fraudulento, de dados, programas de computador, banco
de dados ou mecanismos de acesso armazenados em meios
eletrônicos, com a utilização de meio fraudulento ou de forma
não autorizada.
Augusto Rossini vê necessidade de adicionar um parágrafo ao art. 150 do
atual Código Penal que trata da violação de correspondência a fim de equiparar a
figura do correio eletrônico (e-mail) à correspondência fechada.
E, por fim, indica mais uma possível inovação com a criação do seguinte
art. 297-A no rol de crimes de falsidade documental:
Art. 297-A. Considera-se documento a declaração escrita, de autoria
identificável, idônea, a provar fato juridicamente relevante.
Documento por equiparação
§ 1º Equipara-se a documento o impresso, a cópia ou a reprodução
de documento, devidamente autenticados por pessoa ou processo
mecânico legalmente autorizados, bem como todo o dado, instrução
ou programa de computador constantes de processamento ou
comunicação de dados ou de qualquer suporte físico.
§ 2º Equipara-se a documento público o emanado de entidade
autárquica ou de fundação instituída pelo poder público.
Como se vê, salvo raras exceções, os especialistas em matéria de direito
de informática são favoráveis a uma nova tipificação para alcançar os delitos
praticados contra os sistemas de tecnologia de informatização. Essa tendência pode
152
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
ser sentida não somente no Brasil, mas também em vários outros países conforme
já foi explanado supra.
3
DE LEGE FERENDA
A nova lei a ser promulgada vem com a força do aval concedido pela maioria
da doutrina especializada na matéria de direito de informática.
Como já foi dito anteriormente, o Projeto de Lei n. 84/99 (PLC 89/03) foi
eleito para servir de base para o debate, por ser o mais completo entre aqueles que
tramitam no Congresso Nacional.
O projeto em comento foi elaborado por uma comissão sob a coordenação
do professor José Henrique Barbosa Moreira Lima Neto, atendendo a pedido
do citado parlamentar, e composta por juristas de alto escalão como o Professor
Damásio Evangelista de Jesus e o Dr. Carlos Alberto Etcheverry.82
O primeiro capítulo do Projeto de Lei – que regula o uso de bancos de
dados, a prestação de serviços por redes de computadores e dispõe sobre os
crimes cometidos na área de informática – estabelece os princípios reguladores
da prestação de serviços por redes de computadores.
Dispõe o art. 2º do projeto que “o acesso, o processamento e a disseminação
de informações através das redes de computadores devem estar a serviço do
cidadão e da sociedade, respeitados os critérios de garantia dos direitos individuais
e coletivos e de privacidade e segurança de pessoas físicas e jurídicas e da garantia
de acesso às informações disseminadas pelos serviços da rede”.
No capítulo seguinte, regula o uso de informações disponíveis em
computadores ou redes de computadores.
Para merecer proteção do uso do sistema de informática, o projeto indica
que necessário faz-se a pessoa, física ou jurídica, ser identificada ou identificável.
Prevê o PL 84/99 um cadastramento por meio do qual será dado conhecimento das
informações privadas armazenadas a ela referentes, ou seja, as informações privadas
somente serão divulgadas na rede sob a aquiescência da pessoa a que se referem.
Obrigará, ainda, caso aprovado, que aqueles que se servem de informações privadas
dos usuários da Internet expliquem os fins para que se destinam as informações.
Adotou, assim, o projeto de lei, mecanismo de controle sobre a coleta, o
armazenamento, o processamento e a transmissão de dados.
82
BRITO, Eduardo Valadares de. Crimes na Internet. Disponível em: <http://www.ibdi.org.br.> Acesso
em: 22 abr 2007.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
153
O terceiro capítulo prevê os computer crimes propriamente ditos com suas
conseqüentes penas, criando seis novos tipos penais, em seis seções diversas,
quais sejam:
Dos crimes de informática
Seção I - Acesso indevido ou não autorizado
Art. 9º Acesso, indevido ou não autorizado, a dados ou informações
armazenadas no computador ou em rede de computadores.
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem, sem autorização ou
indevidamente, obtém, mantém ou fornece a terceiro meio de acesso
a computador ou rede de computadores.
Seção II - Alteração de senha ou meio de acesso a programa de
computador ou dados
Art. 10. Apagar, destruir, alterar, ou de qualquer forma inutilizar
senha ou qualquer outro meio de acesso a computador, programa de
computador ou de dados, de forma indevida ou não autorizada.
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
Seção III - Obtenção, manutenção ou fornecimento indevido, ou não
autorizado, de dado ou instrução de computador
Art. 11. Obter, manter ou fornecer, de forma indevida ou não
autorizada, dado ou instrução de computador.
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.
Seção IV - Dano a dado ou programa de computador
Art. 12. Apagar, destruir, modificar ou de qualquer forma inutilizar,
total ou parcialmente, dado ou programa de computador, de forma
indevida ou não autorizada.
Pena - detenção, de um a seis meses, e multa.
Seção V - Criação, desenvolvimento ou inserção em computador de
dados ou programa de computador com fins nocivos
Art. 13. Criar, desenvolver, inserir ou fazer inserir, dado ou programa
de computador, em computador ou rede de computadores, de forma
indevida ou não autorizada, com a finalidade de apagar, destruir,
inutilizar ou modificar dado ou programa de computador, ou de qualquer
forma dificultar ou impossibilitar, total ou parcialmente, a utilização de
computador ou rede de computadores, ou o acesso a estes.
154
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
Pena - detenção, de um ano a dois anos, e multa.
Seção VI - Violação de segredo armazenado em computador, meio
magnético, de natureza magnética, óptica ou similar
Art. 14. Obter ou fornecer segredos, de indústria ou comércio,
ou informações pessoais armazenadas em computador, rede de
computadores, meio eletrônico de natureza magnética, óptica ou
similar, de forma indevida ou não autorizada.
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.”
Diante dos dispositivos acima, pode-se dizer que os reclames da doutrina
foram atendidos. Contempla o projeto o acesso a sistemas computacionais sem
autorização, apenando também o dano causado aos softwares de computadores.
Para Roberto Chacon de Albuquerque, não é o acesso aos dados ou às
informações armazenadas que deve ser objeto de sanção penal, mas “a tomada
de conhecimento de dados armazenados, processados ou transmitidos por
sistemas informáticos, desde que se infrinja alguma medida de segurança para
sua proteção”.83
O mesmo autor critica o art. 13 do PL 84/99, pois, para ele, não se deve
penalizar aquele que cria dado ou programa de computador, em computador ou
rede de computadores de forma indevida ou não autorizada, uma vez que a criação
pode ocorrer com fins educativos.
O derradeiro capítulo é o das disposições finais que regulam os requisitos
formais e instrumentais da lei para a coação legal dos crimes.
É previsto aumento da pena de um sexto até metade caso qualquer dos crimes
elencados seja praticado no exercício de atividade profissional ou funcional. Há,
outrossim, qualificadoras no caso de o crime ser cometido contra a administração
direta ou indireta, com considerável prejuízo para a vítima, com intuito de lucro
ou vantagem de qualquer espécie, própria ou de terceiro, com abuso de confiança,
por motivo fútil, com o uso indevido de senha ou processo de identificação de
terceiro ou com a utilização de qualquer outro meio fraudulento, a pena sobe para
reclusão de dois a seis anos e multa.
A pena pode ser considerada severa, tendo em vista que o crime de
estelionato (art. 171 do CP) é apenado com reclusão de um a cinco anos e multa
e, na modalidade mais grave, aumenta-se a pena em um terço.
83
ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A Criminalidade Informática. São Paulo: Juarez de Oliveira,
2006, p. 148.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
155
Finaliza declarando que os crimes somente se procedem mediante queixa
ou representação do ofendido, salvo exceções, casos em que será de ação penal
pública incondicionada, por exemplo, quando cometidos contra interesse da União,
de Estado, do Distrito Federal ou de Município.
Após os breves comentários a respeito da nova lei sobre crimes informáticos,
pode-se perceber que o diploma legal responde aos anseios da sociedade, porque
confere segurança à população e retira a sensação de impunidade, além de atender
às normas de técnica legislativa e aos reclames do mundo jurídico, de magistrados
e de doutrinadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do presente trabalho monográfico, tentou-se explicar a
informática e a Internet por meio de seus contextos históricos e definições a
fim de demonstrar a importância do tema, tendo em vista a verdadeira invasão
tecnológica a que presenciamos.
E, diante da constante mutação da sociedade, pois é dinâmica, o jurista
deve estar preparado para enfrentar esses novos desafios que se apresentam. Por
isso, a informática merece estudo aprofundado e a preocupação dos operadores
do direito.
A despeito das opiniões em contrário, mormente a do célebre Professor
Vicente Greco Filho, no nosso sentir, faz-se necessária, sim, a elaboração de um
novo diploma legal para abarcar delitos virtuais e desfazer esse vácuo legislativo
que testemunhamos nos dias atuais. Não fosse assim, em certos casos, seríamos
obrigados a aplicar a analogia e os costumes para enquadrar criminosos, o que,
conforme já foi dito, não traduz melhor técnica de política criminal, tendo em vista
que o uso dessas fontes em prejuízo do acusado é proibido.
A existência do princípio da reserva legal implica segurança jurídica. No
Direito Penal, como ultima ratio, é subsidiário de todos os outros ramos do direito;
o princípio da reserva legal deve ser absoluto, somente podendo privar alguém de
sua liberdade mediante lei prévia, certa e determinada.
Repise-se que precisamos de novas tipificações de crimes informáticos,
entretanto somente os classificados como próprios ou puros supra, entendendo-se
como aqueles praticados contra o sistema de computadores em si mesmos. Os
chamados impróprios (ou impuros), mistos e comuns já se encontram devidamente
tipificados no ordenamento jurídico pátrio, uma vez que o manuseio do computador
156
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
e da Internet é mero meio, simples modificação no modus operandi do delito, não
implicando novo delito.
Quanto à discussão acerca da maneira como deve ser modificada a legislação
– se se deve atualizar o Código Penal ou criar novo diploma legal –, somos pela
segunda corrente. Isso porque permitiria aos magistrados a aplicação de uma
norma certa, mais específica do que a mera introdução de artigos, parágrafos e
incisos no Código atual.
A futura lei penal geral sobre delitos informáticos trará, em seu bojo,
princípios específicos relacionados ao tema, permitindo uma penalização própria
aos delitos ali preconizados, e, mais importante, admitirá uma análise pormenorizada
dos crimes informáticos. Além do mais, a elaboração de uma lei específica sobre
os crimes cometidos na área de informática facilitará a interpretação de forma
sistemática, segundo a qual uma lei não existe isoladamente, mas em conjunto
com outras pertencentes à sua mesma classe.
Merece elogios o Projeto de Lei n. 84/99 quanto à sua forma. Trata-se de lei
específica sobre crimes informáticos, mas não é fechada o bastante para impedir
que novos delitos sejam enquadrados. Considerando a constante evolução do
mundo virtual, devemos estar preparados para a possibilidade de surgimento de
novos tipos penais.
Assim, entendemos que há urgência na aprovação do Projeto de Lei ora
comentado. Não é concebível deixar de se condenarem verdadeiros criminosos
virtuais por falta de legislação. O projeto foi proposto há sete anos e daquela época
aos dias atuais inúmeros malfeitores informáticos deixaram de ser condenados
porque a justiça esbarrou na burocracia a que somos dependentes no nosso país.
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Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 117-159, Dez. 2007.
159
ERRO MÉDICO: ASPECTOS CRIMINAIS*
Luciane Bastos Lage Vieira
INTRODUÇÃO
Este é um estudo monográfico que pretende debater a história e a
caracterização criminal dos atos médicos. Visa conceituar e diferenciar o crime
médico específico do erro médico, inclusive com a delimitação das esferas dolosa
e culposa, entre outros aspectos.
No período da Antigüidade à Idade Média, eram aplicadas penas severas
a médicos considerados culpados por erros cometidos no exercício da profissão.
Com o passar dos séculos, os médicos foram adquirindo liberdade de ação, e
surgiram fontes doutrinárias que defendiam a ampla tolerância para com os erros
médicos. A questão passou a ser novamente avaliada no início do século passado,
e os médicos voltaram ser responsabilizados por seus atos, desde que tivessem
atuado com culpa.
Sobre a mudança dos tempos e a situação do médico neste novo contexto
social, vale ressaltar a posição de Miguel Kfouri Neto, que afirma:
Verifica-se uma “medicalização” da vida – desde a ingestão de
vitaminas, que se populariza, à cirurgia plástica estética, controles
dietéticos – ao passo que o homem se torna mais reivindicativo,
cônscio de seus direitos, e o relacionamento com os médicos se torna
mais e mais despido de conotação pessoal.
Neste contexto, como destaca Clotet, assume desusada importância
o diálogo interdisciplinar, envolvendo, como protagonistas, médicos,
especialistas em Ética e Bioética, advogados, promotores de Justiça,
magistrados, políticos, sociólogos e religiosos.
Aos operadores jurídicos incumbe participar da evolução científica,
prevenindo futuros embates e lesões a direitos.1
*
1
Monografia apresentada como requisito para a conclusão do curso de Pós-Graduação Ordem Jurídica e
Ministério Público da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
- FESMPDFT. Orientador: Professor Diaulas Costa Ribeiro.
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001, p. 30/31.
160
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Com a evolução dos tempos, a deterioração da relação entre o profissional de
saúde e o paciente, a dessacralização da sociedade, entre outros aspectos, a morte
assistida por profissionais de saúde ou agravos à saúde não têm sido sempre tratados
como uma conseqüência natural de um estado de saúde debilitado, mas, algumas
vezes, como o resultado de um possível erro médico. Isso mostra a importância
de uma análise imparcial e cuidadosa de cada caso, visto que o inconformismo de
alguns pacientes pode levar ao questionamento dos procedimentos médicos sem
que se considerem as limitações da medicina em frente dos embates do homem
pela busca da eternidade.
O direito à integridade corporal, à saúde e à vida, mais valioso bem jurídico
da pessoa humana tutelado pelo Estado, coloca o médico em situação de evidência.
A sociedade tem admitido, cada vez menos, a ocorrência de erros médicos, fatos
antes pouco suscitados e indagados com freqüência na atualidade.
A idéia de reparação por danos físicos e morais está-se disseminando, e a
atual responsabilização criminal do profissional de saúde destaca a necessidade
de se aprofundarem estudos num tema ainda bastante polêmico, principalmente
quanto aos pressupostos a se considerar para classificar um erro médico e tipificar
crimes em decorrência de atos dos profissionais de saúde.
Inquestionável é a preocupação que tem surgido por parte de entidades
médicas, conselhos de classe e hospitais com a questão, principalmente com o
advento da responsabilização civil. Nos Estados Unidos, a maioria dos profissionais
de saúde, para atuar no mercado, realiza seguros privados com o objetivo de ter
garantia no caso de ser processada por algum mau procedimento e ser condenada
a pagar indenizações vultosas, como tem ocorrido com freqüência.
A mídia, de forma geral, bem como a sociedade têm participado de discussões
acerca do assunto, e a necessidade de fiscalização efetiva das atividades médicas tem
sido enfatizada, principalmente em face do corporativismo de que são acusados os
Conselhos de Medicina, os quais, mesmo que atuassem com maior rigor e rapidez,
cuidam apenas de aspectos éticos e não estão habilitados à análise de imputações
criminais contra os médicos.
A doutrina pesquisada dá sinais de não se ter ainda uniformizado, havendo
conceitos e análises em sentidos diversos, e a jurisprudência, da mesma forma,
ainda está em formação.
Um aspecto que influenciou decisivamente a escolha deste tema foi a
existência da Pró-Vida - Promotoria Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços
de Saúde, primeira promotoria especializada no Brasil para tratar de erros médicos
sob o enfoque criminal.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
161
O objetivo geral deste estudo bibliográfico é compilar criticamente
teorias, pressupostos e princípios gerais de Direito Penal que possam ilustrar
as particularidades do crime médico doloso e culposo, identificando quando se
configura a culpa dos profissionais de saúde e sob quais fundamentos jurídicos se
imputa a eles a prática de crimes.
Especificamente, visa esta monografia desenvolver o tema proposto
ressaltando aspectos de ordem legal, doutrinária e jurisprudencial, de forma
a possibilitar a prévia compreensão da tipificação criminal de condutas dos
profissionais de saúde, identificando em que medida há responsabilidade no
exercício de suas funções e propondo uma breve reflexão com fundamento
nos pressupostos considerados, para contribuir para melhor compreensão do
assunto.
1
RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE
Sobre a relação médico-paciente, cabe inicialmente citar a afirmação feita
por Delton Croce e Delton Croce Júnior:
Longínquo é o tempo em que as pessoas acreditavam existir entre
o paciente e o médico uma brumosa zona de transição entre a luz
e a sombra como que a impedir àqueles uma melhor compreensão
da gênese, do tratamento e da cura das doenças. Hoje, ou mais
precisamente, graças à jurisprudência francesa imposta pelo famoso
julgado de 20 de maio de 1836 da Câmara Civil da Corte de
Cassação, já não pairam dúvidas a respeito da natureza contratual da
responsabilidade médica; os pacientes, cônscios das situações que
lhes aproveitam e sentindo que do erro médico advindo de culpa
resultou danos físicos e/ou morais, passaram a contestar, através de
ações penais ou de pesadas ações cíveis, os seus direitos.2
Apesar de ser possível a responsabilidade médica decorrente de
responsabilidade extracontratual, Wanderby Panasco afirma que “as relações mais
comuns entre médico e paciente são de natureza contratual, e, portanto, adquirem
vínculos obrigacionais”.3
2
3
CROCE, Delton; CROCE JÚNIOR, Delton. Erro Médico e o Direito. São Paulo: Oliveira Mendes,
1997, p.25.
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, pág. X.
162
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Cabe ressaltar que essa divisão da responsabilidade em contratual e
extracontratual tem sofrido críticas. Partindo-se do princípio de que a culpa, tanto
no caso de dever legal quanto contratual, leva-nos à idéia de responsabilidade, não
haveria distinção significativa.
Quanto à natureza da responsabilidade médica, Miguel Kfouri Neto
ressalta
que o fato de ser considerada como contratual não tem, ao contrário
do que poderia parecer, o resultado de presumir a culpa. Para que se
configure a responsabilidade, é necessária a prova da culpa do agente,
cujo ônus incumbe à vítima. A reparação do dano será proporcional
ao resultado, mas somente na justa medida de sua provocação por
ato culposo do agente. O médico não se compromete a curar, mas a
proceder de acordo com as regras e os métodos da profissão.4
Irany Novah Moraes faz uma consideração de grande relevância acerca da
avaliação da ocorrência do erro médico, afirmando que
como o erro só pode ser estimado pelo resultado, o médico só deve
responder pelo que depende exclusivamente dele e não da resposta
do organismo do paciente e que neste ponto há uma sabedoria da
nossa Justiça, que estabelece o contrato entre médico e paciente
como de meio e não de fim. Dessa maneira, salvaguarda o médico
de responsabilidade pelo que não deu certo por causa do paciente,
seja pelo que ele não fez como lhe foi prescrito, seja pelo fato de o
seu organismo não ter reagido como se poderia esperar.5
A única hipótese em que a responsabilidade do médico tem sido classificada
como de resultado é no caso de cirurgias estéticas eletivas, havendo, mesmo nesses
casos, certas divergências, com parte da doutrina defendendo que essa obrigação
seria, na verdade, de informar ao paciente quanto aos riscos e às perspectivas de
resultado.
A classificação da obrigação médica como de meio ou de resultado e a
natureza da responsabilidade, que pode ser contratual ou extracontratual, são
relevantes para o entendimento da responsabilidade médica, mas, especialmente,
para a responsabilidade civil. Neste trabalho a avaliação da responsabilidade
médica tem o enfoque criminal. O que tem relevância é o ato médico abusivo, ou
seja, aquele que foge aos seus fins originais.
4
5
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001, p. 58.
MORAES, Ivany Novah. Erro Médico e a Lei. 4. ed. ver. ampl. São Paulo: Lejus, 1998, p.323.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
163
A relação entre médicos e pacientes tem sido, a cada dia, mais impessoal e
tem-se transformado em um contrato entre empresas e consumidores, uma vez que
planos de saúde e hospitais têm intermediado esse relacionamento. Essa relação,
pela sua própria natureza, já demonstra a possibilidade da ocorrência de conflitos,
e as normas legais prevêem que o resultado desse contrato pode ser problemático,
como nos casos em que o ato médico causa danos, o que gera a tipificação da
ocorrência de lesões corporais ou homicídio.
As lesões corporais podem ser de natureza leve, grave ou gravíssima, essa
última quando importar incapacidade permanente para o trabalho, enfermidade
incurável, perda ou inutilização de membro, sentido ou função ou deformidade
permanente. Estarão incursos no artigo 129 do Código Penal aqueles que
produzirem tais resultados dolosa ou culposamente. A responsabilidade médica
também ocorre no caso de morte do paciente, incidindo neste caso o artigo 121
do Código Penal.
2
RESPONSABILIDADE MÉDICA: HISTÓRIA E ORIGENS
DOUTRINÁRIAS
2.1
HISTÓRICO DA RESPONSABILIDADE MÉDICA
Fazendo uma resenha histórica sobre a responsabilidade médica, Delton Croce
avalia que, nos primórdios da humanidade, não se cogitava de responsabilidade ou
de direitos, já que a provocação de um dano propiciava imediata e pronta reação
vingativa, guiada pela brutalidade do instinto, sem qualquer preocupação com
a busca por regras adequadas ou limitações. O objetivo era reparar o mal pelo
mal.6
Dada a importância da Medicina no conjunto das atividades sociais, foram
elaboradas, nas legislações dos povos antigos, normas que referendavam questões
ligadas ao comportamento profissional dos médicos. A existência de sanções
inscritas nos livros sagrados ou nas constituições primitivas denota a atenção
dispensada ao erro médico desde os primórdios da Medicina.
O primeiro documento histórico que trata do problema do erro médico é o
Código de Hamurabi (2.394 a.C.). O Código estabelecia:
O médico que mata alguém livre terá suas mãos cortadas; se morre o
escravo paga seu preço, se ficar cego a metade do preço.
6
CROCE, Delton; CROCE JÚNIOR, Delton. Erro Médico e o Direito. São Paulo: Oliveira Mendes,
1997, p.3/4.
164
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Entre os povos antigos há notícias de que os Visigodos e os Ostrogodos
entregavam o médico à família do doente por suposta imperícia para
que o justiçassem como bem entendessem. Outros códigos antigos,
como os livros dos Vedas e o Levítico, já estabeleciam penas para
os médicos que não aplicassem com rigor a medicina da época. E,
assim, poderiam eles ter as mãos decepadas ou perder a própria vida
se ficasse cego ou morresse o cliente.7
No Egito, os médicos ostentavam elevada posição social e se confundiam
com os sacerdotes. De acordo com alguns autores, existia um livro com regras do
exercício da ciência médica, as quais os médicos deveriam respeitar. Respeitadas
as regras, mesmo que o paciente viesse a morrer, não eram punidos. Quando se
afastava do cumprimento das normas e, ainda que o paciente se salvasse, o médico
estava sujeito a várias penas, inclusive a morte.
Entre os gregos também havia um tratamento rigoroso do suposto erro
médico. Na Grécia antiga, segundo Plutarco, Alexandre mandou crucificar Glaucus,
médico em Ephestion, porque foi ao teatro, abandonando seu paciente, que, por
um desvio de regime, veio a falecer. Entendeu-se, à época, que estaria configurada
uma negligência médica.
Em Roma, à época do império, em função da Lex Aquilia, os médicos
pagavam indenização pela morte de um escravo e, àqueles considerados culpados
por falta profissional, eram imputadas as penas de deportação e de morte. Wanderby
Panasco afirma que, apesar dessas previsões, há “admoestações, principalmente
de Plínio, que nas suas obras reclama das impunidades médicas tendo em vista
dificuldades, já naquela época, das tipificações penais”.8
Tratando da história do erro médico, Júlio Cesar Meirelles Gomes registra
que, na Idade Média, a rainha Astrogilda exigiu do rei, seu marido, que fossem
com ela enterrados os dois médicos que a trataram, aos quais atribuía o insucesso
no tratamento.9
7
8
9
GOMES, Júlio Cézar Meirelles; DRUMOND, José Geraldo de Freitas; FRANÇA, Genival Veloso de.
Erro Médico. 2. ed. Montes Claros: Unimontes, 2000, p. 27.
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 37.
GOMES, Júlio Cézar Meirelles; DRUMOND, José Geraldo de Freitas; FRANÇA, Genival Veloso de.
Erro Médico. 2. ed. Montes Claros: Unimontes, 2000, p. 27.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
165
2.2
ORIGEM DOUTRINÁRIA DA RESPONSABILIDADE MÉDICA
Apesar de ter havido em 1596 e 1768 pronunciamentos do Parlamento
de Bordeaux e de Paris pela interdição do exercício da profissão a médicos
incriminados por faltas no exercício de suas funções, em 1602 o Parlamento de
Paris prolatou o princípio de irresponsabilidade médica no que concerne a acidentes
sobrevindos ao longo dos tratamentos.10
Wanderby Panasco afirma que o Código Civil francês de 1804 e as leis
posteriores não são explícitas, mas que a responsabilidade médica, como de todos
os demais cidadãos, poderia ser deduzida dos arts. 1.382 e 1.383, que estabeleciam
o princípio de que qualquer ato humano prejudicial a outrem obrigava o autor do
dano a repará-lo. Entretanto, surgiram diversas controvérsias em relação a essa
responsabilização.
Da análise dos posicionamentos adotados acima, fica clara a necessidade
de exposição das diferentes doutrinas adotadas para avaliação da responsabilidade
médica. Wanderby Panasco considera a existência de três doutrinas: a doutrina da
irresponsabilidade, a doutrina do dolo ou da má-fé, e a doutrina da responsabilidade
médica.11 A seguir, serão abordadas as particularidades de cada uma segundo o
ponto de vista do autor.
2.2.1 DOUTRINA DA IRRESPONSABILIDADE
Essa doutrina é a que se encontra mais sujeita a críticas. A idéia surgiu
na época em que o direito começou a delinear normas para a responsabilidade
médica.
Wanderby Panasco ressalta que os que não aceitavam a responsabilidade
médica argumentavam que o diploma médico era prova de idoneidade, que o
processo científico ficaria ameaçado se os médicos percebessem a possibilidade de
um processo a cada procedimento terapêutico arriscado, que as faltas técnicas do
médico não poderiam ser julgadas por um tribunal de magistrados advogados e que
a Medicina não era uma ciência matemática capaz de se submeter a normas.12
10
11
12
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 37.
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 29.
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 32.
166
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Trébuchet foi o grande propugnador dessa teoria e não obteve o apoio devido
da classe. Mesmo assim, conseguiu levar avante sua idéia, influenciando a própria
Academia de Medicina “ante o famoso julgamento, que o médico não deveria ser
incriminado senão quando fosse produtor do dano, intencionalmente”.13
2.2.2 DOUTRINA DO DOLO OU DA MÁ-FÉ
Os partidários dessa doutrina eram aqueles que admitiam a irresponsabilidade.
Aceitavam limitadamente a responsabilidade, quando se tratasse de dolo ou má-fé,
e, portanto, dentro de um critério de intencionalidade.
Em relação a essa doutrina, Souza Lima afirma que a expressão mais
completa desses protestos encontra-se em relatório apresentado e lido perante
a Academia de Medicina de Paris, em 1829, pelo Dr. Double, que continha os
seguintes termos: “Os médicos nunca deveriam ser punidos pelos erros que
cometessem de boa-fé no exercício de suas funções; sua responsabilidade é toda
moral, toda de consciência. Nenhuma ação lhes pode ser intentada senão em caso
de captação, de dolo, de fraude, e de prevaricação”.14
Em 1834 a Academia foi convidada a discutir projeto de lei sobre o exercício
da Medicina e propôs a inserção de um artigo que previa a não-responsabilização
dos médicos por erros cometidos de boa-fé. O dispositivo legal não foi acolhido e
reconheceu-se que seriam imputados aos médicos a negligência, a inadvertência, o
erro material e grosseiro que não pudessem ser atribuídos às incertezas da ciência
e às dificuldades da arte.
2.2.3 DOUTRINA DA RESPONSABILIDADE MÉDICA
A jurisprudência francesa foi a pioneira das concepções sobre a
responsabilidade médica como é examinada atualmente. Dois casos reais tiveram
grande importância para o desenvolvimento dessa doutrina.
O primeiro caso ocorreu em 1825, em Domfront. O Dr. Hélie foi chamado
às seis horas da manhã, para realizar o parto da Sra. Foucault, só se apresentando
na residência às nove horas.
13
14
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 32.
Apud PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de
Janeiro: Forense, 1979, p. 33/34.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
167
Ao exame da gestante, verificou que o feto se achava em apresentação
de membro, com a mão direita no trajeto vaginal. Como encontrou
dificuldade de manobra na versão, resolveu amputar o membro
em apresentação, para facilitar o trabalho de parto. Logo a seguir,
notou que o membro esquerdo também se antecipava em análoga
circunstância e, com o mesmo objetivo inicial de facilitar a expulsão,
amputou o outro membro. A criança veio a nascer e a sobreviver ao
tocotraumatismo.15
Diante da deformidade do filho, os pais processaram o médico, tendo o
Tribunal solicitado, no transcorrer da lide, parecer à Academia de Medicina de
Paris. Nomeados obstetras para examinar o caso, um primeiro relatório considerou
a operação realizada pelo médico como falta grave contra as regras da arte.
Não obstante a imparcialidade, a precisão técnica do relatório e a autoridade
dos médicos que o subscreveram, a Academia decidiu por sua impugnação e, ainda,
arbitrariamente, designar outra comissão para rever o processo. A conclusão do
segundo laudo extrajudicial foi pela não-responsabilidade do Dr. Hélie.
O Tribunal de Domfront, analisando os dois pareceres divergentes, após
exaustivas considerações, condenou o médico a pagar à família Foucault a
importância vitalícia anual de 200 francos.
O segundo caso ocorreu em outubro de 1832. O Dr. Thouret-Noroy, de
Evreux, ao praticar uma sangria na veia de um paciente, situada na prega do
cotovelo, seccionou a artéria radial, do que resultou uma hemorragia, que foi
coibida pela aplicação de bandagens compressivas. O paciente apresentou dores,
impotência funcional e tumefação e, embora o médico tivesse sido chamado por
muitas vezes para o novo exame, não se impressionou com a ocorrência, negandose, inclusive, a voltar ao domicílio do paciente, que piorou ainda mais. Quando outro
médico foi chamado, os sintomas de gangrena já se haviam instalado, exigindo
amputação do membro.
O médico que praticou a sangria foi condenado pelo Tribunal Civil de Evreux
a pagar uma indenização “por imperícia, negligência grave e falta grosseira”. A
Academia de Medicina contratou o advogado Cremieux para a defesa do médico
na apelação. A pena foi confirmada, mesmo após diversos recursos.
O Procurador-Geral da Câmara Civil da Corte de Cassação de Paris, André
Marie Jean-Jacques Dupin rechaçou todos os argumentos de Cremieux, analisando
a parcialidade profissional da Academia, definindo, sem interveniência nas questões
15
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 38/39.
168
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
técnicas, as normas obrigacionais, a responsabilidade do médico perante o paciente
e o dever da justiça na fiscalização dos erros profissionais.16
“Foi então, a partir de 20 de maio de 1836, que a jurisprudência sobre
responsabilidade médica firmou-se solidamente nos meios forenses, no elastério
do tempo, graças à notável cultura advocatícia e legislativa de Dupin”.17 Nessa
época, começaram a ser embasadas todas as concepções que circunscreveriam, daí
em diante, os elementos jurisprudenciais necessários às demais legislações para
avaliação dessa responsabilidade.
Com muita propriedade, Dupin afirma, em seu posicionamento, que o
médico e o cirurgião não são indefinidamente responsáveis, porém o são às vezes;
não o são sempre, mas não se pode dizer que não o sejam jamais. Fica a cargo do
juiz determinar cada caso, sem afastar-se dessa noção fundamental: para que um
homem seja considerado responsável por um ato cometido no exercício profissional,
é necessário que haja cometido uma falta nesse ato; tenha sido possível agir com
mais vigilância sobre si mesmo ou sobre seus atos e que a ignorância sobre esse
ponto não seja admissível em sua profissão.
Dupin conclui dizendo:
que os médicos podem se sentir confortados, pois o exercício da sua
arte não está a perigo, a glória e a reputação de quem a exerce com
tantas vantagens para a humanidade não serão comprometidas pela
falta de um homem que tenha desprestigiado o título de doutor. Não
se colhem conclusões ou dificilmente se conclui partindo do particular
para o geral e de um caso isolado a casos que não oferecem nada de
semelhante. Cada profissão encerra em seu seio, homens dos quais
ela se orgulha e outros que ela renega.18
Júlio César Meirelles Gomes afirma que, “somente em 1966, durante
o II Congresso de Moral Médica em Versalhes, a Academia de
Medicina de Paris reconheceu que a responsabilidade médica, longe
de se diluir ou atenuar, faz-se hoje mais presente que nunca no curso
da história”.19
16
17
18
19
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 41.
CROCE, Delton; CROCE JÚNIOR, Delton. Erro Médico e o Direito. São Paulo: Oliveira Mendes,
1997, p.7.
Apud PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de
Janeiro: Forense, 1979, p. 44.
GOMES, Júlio Cézar Meirelles; DRUMOND, José Geraldo de Freitas; FRANÇA, Genival Veloso de.
Erro Médico. 2. ed., Montes Claros: Unimontes, 2000, p. 27.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
169
Wanderby Panasco avalia (com a ressalva de que esta obra foi escrita
em 1979), que, “mesmo passados tantos anos após o famoso aresto
de 1825, pelo menos entre nós, a responsabilidade médica ainda se
encontra, embora todos os dispositivos legais estejam ao alcance
dos juristas, diante de uma forma prestigiada do exame das suas
questões”. Ressalta que “os tribunais, como os de outrora, se acercam
dos problemas médicos com cautela, prudência, só incriminando
na realidade o erro grosseiro, aberrante ou a falta inescusável, de
maneira absoluta”.20
A responsabilização do profissional de saúde por erros em suas
atribuições é bastante difícil, especialmente devido à complexidade
da matéria e às suas peculiaridades. No entanto, tem havido
evolução nos últimos anos com a conscientização do Ministério
Público sobre a necessidade de preparação e estruturação para
avaliação desses casos.
3
RESPONSABILIDADE CIVIL X RESPONSABILIDADE PENAL
A palavra responsabilidade origina-se do latim re-spondere, que traz a idéia
de segurança ou garantia da restituição ou da compensação do bem sacrificado,
tendo, dessa forma, o significado de recomposição, de obrigação de restituir ou
ressarcir.21
Entre os romanos, não havia distinção entre responsabilidade civil
e responsabilidade penal. Tudo, inclusive a compensação pecuniária, não
passava de uma pena imposta ao causador do dano. A Lex Aquilia começou a
fazer uma leve distinção: embora a responsabilidade continuasse sendo penal,
a indenização pecuniária passou a ser a única forma de sanção nos casos de
atos lesivos não criminosos.
O fundamento da responsabilidade civil e da penal é quase o mesmo. As
condições em que surgem é que são diferentes, porque uma é mais exigente
do que a outra quanto ao aperfeiçoamento dos requisitos que devem coincidir
para se efetivar.
Doutrinariamente, percebe-se que, no caso da responsabilidade penal, o
agente infringe uma norma de direito público. O interesse lesado é o da sociedade.
20
21
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense,1979, p. 32.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 15.
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Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Na responsabilidade civil, o interesse diretamente lesado é o privado. O prejudicado
poderá pleitear ou não a reparação.
Entretanto, cabe ressaltar a posição de Aguiar Dias, que afirma que o prejuízo
imposto ao particular afeta o equilíbrio social e que, somente para efeito de punição
e reparação, é que se distinguem as responsabilidades civil e penal.22
A sociedade toma à sua conta aquilo que a atinge diretamente, ou seja, a
persecução penal, quando presentes os elementos caracterizadores de um crime,
e, no caso de responsabilidade civil, cabe ao particular propor a ação cabível para
restabelecer-se, à custa do ofensor, a situação anterior à ofensa. Restabelecida a
vítima à situação anterior, está desfeito o desequilíbrio. Tal posicionamento decorre
do regime político, que justifica a não-intervenção estatal nesses casos.
Afirma, ainda, Aguiar Dias que, quando coincidem, a responsabilidade penal
e a responsabilidade civil proporcionam as respectivas ações, isto é, as formas de se
fazerem efetivas: uma pela sociedade; outra, pela vítima; uma tendente à punição,
a outra, à reparação – a ação civil aí sofre, em larga proporção, a influência da
ação penal.
As responsabilidades civil e penal distinguem-se ainda sob vários aspectos,
quais sejam:
Na esfera criminal, o réu responde com a privação de sua liberdade, razão
pela qual deve estar cercado de todas as garantias contra o Estado, a quem incumbe
reprimir o crime e arcar sempre com o ônus da prova. Já na esfera civil, a regra
geral actio incumbit probatio, segundo a qual ao autor incumbe o ônus da prova,
vem sofrendo muitas exceções, não sendo tão rigorosa como no Direito Penal.
Na responsabilidade civil não é o réu, mas a vítima que,
em muitos casos, tem que enfrentar entidades poderosas,
como as empresas multinacionais e o próprio Estado. Por
isso, mecanismos de ordem legal e jurisprudencial têm sido
desenvolvidos para cercá-la de todas as garantias e possibilitarlhe a obtenção do ressarcimento do dano.23
A tipicidade é um dos requisitos genéricos do crime. Tratando-se de pena,
atende-se ao princípio nulla poena sine lege, ou seja, só há responsabilidade
penal havendo violação de norma prevista em lei. É necessário que haja perfeita
adequação do fato concreto ao tipo penal. Na esfera cível, no entanto, qualquer
ação ou omissão pode gerar a responsabilidade civil, desde que viole direito ou
cause prejuízo a outrem (art. 159 do Código Civil).
22
23
DIAS, Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 7-8.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 6. ed., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 17.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
171
A reparação civil reintegra o prejudicado na situação patrimonial anterior,
e a sanção penal tem a finalidade de restituir a ordem social a estado anterior à
turbação do direito, não havendo qualquer benefício específico para a vítima.
A culpabilidade é outro aspecto que deve ser considerado. Na esfera penal,
nem toda culpa acarreta a condenação do réu, pois se exige que tenha um certo
grau ou intensidade. Na área cível, a culpabilidade também é bem mais ampla, uma
vez que a culpa na esfera cível, ainda que levíssima, obriga a indenizar (Regra: In
lege Aquilia levissima culpa venit).
4
CONCEITO DE CRIME
É bastante complexa a discussão sobre o que seja crime no Direito Penal.
Afirma Rogério Greco que “o nosso Código Penal não nos fornece um conceito
de crime, somente dizendo, em sua Lei de Introdução, que ao crime é reservada
uma pena de reclusão ou de detenção, quer alternativa ou cumulativamente com
a pena de multa”.24
O conceito atribuído a crime é eminentemente jurídico. Embora não haja
definição legal do que seja crime, devem ser considerados os conceitos material
e formal.
Segundo o conceito material, crime é a violação de um bem jurídico
protegido penalmente. Sob o aspecto formal, a doutrina, segundo Damásio de
Jesus, Júlio Fabrinni Mirabete e Celso Delmanto, define o crime como sendo o
fato típico e antijurídico.
O fato típico é composto pela conduta, resultado, relação de causalidade e
tipicidade. A antijuridicidade exige que o fato, para ser considerado como crime,
além de ser típico, deve ser contrário ao Direito, deve ser ilícito. Em regra, o ato
típico é antijurídico, entretanto, há casos – legítima defesa, estado de necessidade,
exercício regular de um direito e estrito cumprimento do dever legal – em que, apesar
de ser considerado típico, o fato deixa de ser crime por não ser antijurídico.
Segundo Celso Delmanto,
Será fato típico quando a conduta estiver definida por lei como
crime, segundo o princípio da reserva legal (Código Penal, art. 1º),
constitucionalmente garantido (CF/88, art. 5º, XXXIX). E antijurídico
quando o comportamento for contrário à ordem jurídica como um
todo, pois, além das causas de exclusão expressas no Código Penal
24
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 145.
172
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
(art. 23), há outras implícitas (chamadas supralegais, que excluem a
antijuridicidade ou ilicitude).25
Para que exista crime, basta que a conduta seja típica e antijurídica.
Entretanto, para que haja aplicação de pena, é necessário que se considere o fato
como culpável, ou seja, que tenha caráter de reprovabilidade. Além disso, o autor
do fato deve ter capacidade de cognição e voluntariedade, o que significa dizer
que deve ser imputável, porque, caso contrário, somente será cabível a aplicação
de medidas de segurança.
Segundo Aníbal Bruno, enquanto a imputabilidade cria no agente a
capacidade necessária para sofrer a imputação de um fato punível, o elemento
psicológico-normativo da culpabilidade serve de fundamento à imputação efetiva
no caso concreto, estabelecendo o nexo psíquico entre o fato e o agente.26
O elemento psicológico-normativo da culpabilidade compõe-se de
consciência e vontade ativas, que se processem e se dirijam a um fim, e ocorre em
dois momentos: o momento intelectual, que se constitui na representação do fato,
e o volitivo, em que a vontade se dirige no sentido de realizá-lo.
Para que se estabeleça uma relação psicológico-normativa entre o agente e o
resultado antijurídico, na representação intelectual, deve haver consciência do fato e
da sua ilicitude, e a vontade deve-se manifestar como um querer contrário ao dever.
O elemento subjetivo da culpabilidade, que encerra a vontade ilícita, pode-se
apresentar sob as formas do dolo e da culpa, institutos que serão analisados a seguir.
5
CARACTERIZAÇÃO DE DOLO E CULPA
O Código Penal, em seu art. 18, dispõe que:
Diz-se o crime:
I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco
de produzi-lo.
II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência,
negligência ou imperícia.
Parágrafo único. Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode
ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica
dolosamente.
25
26
DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto. Código Penal
Comentado. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 18.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral. Tomo 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 57.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
173
5.1
DOLO
O dolo consiste no propósito, na intenção de praticar um ato descrito na lei
penal. Para a doutrina causal, o dolo exige a consciência de ilicitude do fato: age
dolosamente quem quer o resultado ou assume o risco de produzi-lo, sabendo-o
ilícito, enquanto, para a doutrina finalista, o dolo não requer o conhecimento, pelo
agente, da ilicitude do fato. A doutrina causal apresenta o dolo como espécie ou
elemento da culpabilidade, e a doutrina finalista da ação considera que o dolo é
elemento subjetivo do tipo.
Cabe ressaltar que o entendimento majoritário é o de que a doutrina adotada
pelo Código Penal é a finalista da ação.
Há três teorias sobre o dolo: a teoria da vontade, a da representação e a do
assentimento. A teoria da vontade determina que o dolo consiste na vontade e na
consciência de praticar o fato típico. Pela teoria da representação, a essência do
dolo estaria não tanto na vontade, mas, principalmente, na consciência, ou seja,
na previsão do resultado. Segundo a teoria do assentimento, o dolo consistiria na
aceitação do resultado, embora não visando a fim específico.
Considerando a redação do inciso I do art. 18, percebe-se que o Código Penal
adotou as teorias da vontade e do assentimento, ou seja, determinou que o agente
pratica o crime doloso quando quer o resultado ou assume o risco de produzir um
fato contrário à lei.
A partir da análise do art. 18 do Código Penal, parecem estar excluídos do
seu âmbito os crimes de ação, já que, na definição, aludiu-se exclusivamente aos
crimes de ação e resultado. Giuseppe Bettiol afirma que “isto deriva do fato de que
os compiladores do Código seguiram em matéria de evento, a concepção jurídica,
pela qual o evento que em nenhum crime pode faltar seria constituído pela lesão de
um interesse protegido”.27 Entretanto, existem crimes que são, em geral, dolosos,
cujo fato é constituído por um simples comportamento.
Bettiol define dolo como a consciência (previsão) e a voluntariedade do
fato lesivo. Avaliando os requisitos para configuração do dolo, afirma serem
necessárias a voluntariedade da ação, a previsibilidade do evento dela resultante
e a intencionalidade.
Não se pode confundir intenção com os motivos que possam ter impelido
o agente a atuar. Não interessa o escopo que o agente pretende perseguir
com a realização do evento lesivo. A intenção de que fala o Código Penal é
27
BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, v. 2, p. 97.
174
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
a vontade, enquanto polarizada para o evento lesivo, independentemente do
objetivo do agente.
Aníbal Bruno classifica como elementos do dolo “a consciência do ato e
do resultado; consciência da relação causal entre ambos, isto é, da relação que
prende o resultado como efeito ao ato como a sua causa; consciência da ilicitude
do comportamento do agente; e finalmente, vontade de praticar o ato e alcançar
o resultado”.28
Dessa forma, é possível concluir que, nos crimes materiais e formais, é
necessário que o agente tenha consciência do comportamento positivo ou negativo
que está realizando e do resultado típico; que sua mente perceba que da conduta
pode derivar o resultado; que haja ligação de causa e efeito entre eles; e que
exista vontade de concretizar o comportamento e causar o resultado. Nos crimes
de mera conduta, é suficiente que o sujeito tenha a representação e a vontade de
realizá-la.
Magalhães Noronha entende que o “dolo é vontade e representação do
resultado, mas igualmente, é ciência de oposição a dever ético-jurídico; é ação no
sentido do ilícito”.29 Dessa forma, age dolosamente quem atua com conhecimento
da antijuridicidade do fato.
Conhecimento da antijuridicidade do fato não é conhecimento da lei. É
ciência de se opor à ordem jurídica, convicção de incorrer no juízo de reprovação
social. O crime, antes de se achar definido em lei, já é, para nós, ato nocivo e
contrário aos interesses individual e coletivo.
No entender de Damásio de Jesus “o dolo deve abranger os elementos da
figura típica. Assim, para que se possa dizer que o sujeito agiu dolosamente, é
necessário que seu elemento subjetivo tenha se estendido às elementares e às
circunstâncias do delito.”30 As condutas típicas contêm elementos que, relacionados
à conduta culpável do agente, ensejam a aplicação da pena. Para que o médico
cometa o crime de omissão de notificação de doença, por exemplo, é necessário
que tenha identificado a ocorrência da doença. Se não conhece a qualidade da coisa
ou tem uma falsa apreciação sobre ela, fica afastado o dolo e, por conseqüência,
o próprio fato típico.
Em nosso Código Penal, o dolo não é apenas representação, vontade e
consciência da ilicitude do resultado. Aníbal Bruno afirma que também é válida
para integrar o dolo a vontade que se manifesta apenas como anuência ao resultado
28
29
30
BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral. Tomo 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 64.
NORONHA, Magalhães. Direito Penal, introdução e parte geral. Vol. 1. 31. ed. São Paulo: Saraiva,
1995, p.133-134.
JESUS, Damásio de. Direito Penal. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 247.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
175
previsto como provável. “Daí serem estas as linhas limitativas do dolo: a vontade
direta e precisa em relação ao resultado, como extremo mais grave, e a anuência ao
resultado previsto como possível ou provável, como limite mínimo”.31 Na primeira
hipótese, diz-se que o dolo é direto e, na segunda, eventual. O Código equiparou
essas duas situações. Posteriormente será feita uma análise mais detalhada do dolo
em contraposição com a culpa.
5.2
CULPA
Entende Miguel Kfouri Neto que, “para caracterização da culpa, não se torna
necessária a intenção, basta a simples voluntariedade da conduta, que deverá ser
contrastante com as normas impostas pela prudência ou perícia comuns”.32
A culpa consiste na prática não intencional do delito, faltando o agente com
o dever de cuidado. Segundo Aníbal Bruno, “é a forma mais atenuada do elemento
psicológico-normativo da culpabilidade”.33 Não há previsão e vontade em todo o
processo delituoso, e o resultado de dano ou de perigo não é querido nem previsto,
ou, se previsto, não há anuência do agente para que ele ocorra.
O grau atenuado do momento psíquico nos fatos culposos faz com que sua
culpabilidade seja admitida por exceção. Em relação a esses crimes, a punibilidade
só ocorre quando expressamente prevista na lei. É sempre elementar do tipo em
cada crime culposo, ou seja, se a lei não define um fato como crime culposo, é
sinal que a forma culposa é atípica. Quando não houver essa previsão, não haverá
crime, embora possa haver ato ilícito civil ou administrativo.
Ao analisar o fundamento da culpa, Aníbal Bruno afirma que a culpa é
um instituto posterior ao dolo, que sua doutrina está em formação e que é muito
discutível sua posição dentro do esquema da culpabilidade, tendo em vista a
exigência da consciência e da vontade do agente em relação ao resultado, que são
fundamentais na conceituação do fato culpável.34
É unânime a posição de que, no crime culposo, há sempre um ato inicial
contrário ao dever, uma ação ou uma omissão praticada pelo agente sem atenção ou
cuidado, que, nas circunstâncias, as normas sociais impunham e que, se tivessem
sido observadas, teriam impedido a ocorrência do resultado.
31
32
33
34
BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral. Tomo 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 70.
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001, p. 67.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral. Tomo 2. 4. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1967, p. 79.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral. Tomo 2. 4. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1967, p. 80.
176
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Entretanto, isso não basta para estabelecer uma relação eficaz entre o agente
e o resultado punível, ou seja, esse ato inicial contrário ao dever não fundamenta a
inclusão desse resultado na responsabilidade do agente e não demonstra o vínculo
psíquico existente entre este e aquele.
A teoria mais considerada fundamenta a culpa na previsibilidade. A
previsibilidade do evento danoso é um dos principais requisitos da culpa. Não havendo
previsibilidade, qualquer fato com aparência delituosa situar-se-á no campo do fortuito,
ou seja, o resultado é conseqüência extraordinária ou excepcional da ação.
Reforçando esse entendimento, cabe citar julgado do Tribunal de Alçada
Criminal do Estado de São Paulo, em que se apreciou a hipótese de delito culposo.
No caso em tela, foi consignado que,
para a imputabilidade de crime culposo, não bastam a ação, o
resultado e o nexo causal material. Conquanto muitos neguem a
existência de nexo psicológico, a verdade é que ele existe e se torna
necessário, sob pena de haver lugar à responsabilidade objetiva. Esse
nexo é representado pela previsibilidade, que existe mesmo quando
se podia prever e não se previu, quando se devia ter e não se teve
previsão. (RT, 396:293, 574:359)
Magalhães Noronha, ao analisar o requisito da previsibilidade, informa que
há dois critérios para aferi-la: um objetivo, que tem em vista o homem médio, e
outro subjetivo, que rejeita o paradigma do homem médio, que é uma abstração,
para recomendar que se deve ter em vista a personalidade do indivíduo em tela,
isto é, suas condições personalíssimas.35
Afirma ainda Magalhães Noronha que, posteriormente, surgiu um terceiro
critério procurando conciliar os anteriores, que determina que a imprevidência
é culpável quando o autor do ato não usou das precauções exigidas pelas
circunstâncias e por sua situação pessoal.
Para haver imprevidência culpável, objetivamente, é necessário que
o autor não tenha usado das precauções/diligências que eram exigidas pelos
acontecimentos, que, em função das circunstâncias, serão maiores ou menores, e,
subjetivamente, quando o autor omitir-se de tomar precauções exigidas por sua
situação pessoal.
Dessa forma, na determinação da culpa, o dever de cuidado e a atenção
devem ser julgados segundo esse critério, ou seja, de acordo com as circunstâncias
do caso concreto e as condições individuais do agente.
35
NORONHA, Magalhães. Direito Penal, introdução e parte geral. Vol. 1. 31. ed. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 138.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
177
A conduta culposa pressupõe um ato consciente, voluntário e contrário ao
dever de atenção ou cuidado imposto pela norma e um resultado involuntário,
previsto em lei como culpável, que não foi previsto, mas que poderia e deveria
sê-lo. O que é essencial na culpa é o momento consciente inicial, é a posição
contrária ao dever assumida pelo agente.
Damásio de Jesus considera como elementos do fato típico culposo: a) ação
ou omissão voluntária; b) inobservância do cuidado objetivo; c) previsibilidade
objetiva; d) ausência de previsão; e) resultado de dano ou de perigo involuntário;
f) nexo de causalidade e g) tipicidade.36
A culpa não foi definida por lei. A falta ao dever de diligência, de que provém
o resultado punível no fato culposo, é expressa no Código Penal nas modalidades
da imprudência, da negligência e da imperícia.
Geralmente, os atos delitivos cometidos pelo profissional médico, em
especial os erros médicos, objeto central deste estudo, são de natureza culposa,
razão pela qual é de extrema importância a completa caracterização dos elementos
configurativos dessa forma de culpabilidade.
5.2.1
ESPÉCIES DE CULPA
5.2.1.1
NEGLIGÊNCIA
Segundo Magalhães Noronha, a negligência, “na doutrina e nas leis,
freqüentemente é usada como equivalente à culpa em sentido estrito, dando-lhe,
então, todo o substrato e abrangendo, pois, a imprudência e imperícia.”37
Há, entretanto, consenso no sentido de que a negligência seja a falta de
observância dos deveres exigidos pelas circunstâncias. No Código Penal, ela é
caracterizada por inação, inércia e passividade do agente. “Decorre de inatividade
material (corpórea) ou subjetiva (psíquica), e reduz-se a um comportamento
negativo. Negligente é quem, podendo e devendo agir de determinado modo, por
indolência ou preguiça mental, não age ou se comporta de modo diverso.”38
É forma de culpa in omittendo, ou seja, resultante de ato omissivo. No
entendimento de Wanderby Panasco, desencadeia-se tanto na culpa sem previsão
36
37
38
JESUS, Damásio de. Direito Penal. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 256.
NORONHA, Magalhães. Direito Penal, introdução e parte geral. Vol. 1. 31. ed. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 141.
NORONHA, Magalhães. Direito Penal, introdução e parte geral. Vol. 1. 31. ed. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 141.
178
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
quanto na culpa consciente, ou seja, ocorre tanto quando o agente, por inação,
deixa de tomar providência necessária, quanto quando prevê a conseqüência e,
mesmo assim, não toma a providência devida.39
Configura-se a negligência, v.g., com o abandono ao doente, descuido
em transfusão sangüínea, esquecimento de corpo estranho em cirurgia, retardo
em intervenção cirúrgica no momento oportuno, com conseqüências graves,
procrastinação de tratamento, omissão de instruções necessárias, entre outros.
5.2.1.2
IMPRUDÊNCIA
A imprudência consiste na prática de um ato perigoso, sem os cuidados que
o caso requer.
Enquanto na negligência admite-se uma forma negativa ou passiva
de atendimento, na imprudência vamos encontrar uma forma ativa –
culpa in committendo. O profissional, nesta circunstância, tem plena
condição técnica da especialidade, mas agindo através de uma conduta
abusiva vai preencher as características de uma falta.40
A modalidade culposa da imprudência ocorre quando o médico age
sem a cautela necessária. A conduta imprudente exige sempre a presença da
intempestividade, da precipitação, da insensatez ou da inconsideração do agente.
Imprudente seria quem, sendo cirurgião, em cirurgia simples, procurasse se
utilizar de técnicas complicadas, resultando na morte do paciente; quem realiza
ato cirúrgico sem examinar o paciente em pré-operatório.
5.2.1.3
IMPERÍCIA
A imperícia é o resultado da falta de observação das normas, por despreparo
prático ou por insuficiência de conhecimentos técnicos do agente. É a falta de
adestramento psicomotor, ou seja, a carência de aptidão, prática ou teórica, para o
desempenho de uma tarefa técnica da profissão. Pode ser decorrente de inabilidade,
desconhecimento ou desatualização. Existe o entendimento de que ao médico
habilitado é impossível a imputação de alguma conduta imperita no exercício
39
40
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 62.
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 65.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
179
da profissão. Entretanto, este não é o meu entendimento. Acredito que mesmo o
profissional habilitado pode ser imperito, por exemplo, em decorrência de não se
ter atualizado na área.
Um outro aspecto a ser ressaltado quando se avalia a pertinência de
imputação de conduta imperita a um médico é a especialização. O direito brasileiro
reconhece apenas uma habilitação geral de médico, decorrente de um curso de 6
(seis) anos de duração, como vem sendo realizado desde a fundação da 1ª Escola
de Medicina no Brasil, por Dom João VI, em Salvador.
Nas últimas décadas, o conhecimento médico, tanto em propedêutica
quanto em terapêutica, tem aumentado de forma exponencial, sendo praticamente
impossível um determinado médico ser proficiente em todas as áreas de abrangência
da medicina. Seria, portanto, leviandade considerar um psiquiatra perito para
realizar uma apendicectomia.
Seguindo esse entendimento, são exemplos de imperícia o médico que opera
o paciente sem ter os necessários conhecimentos especializados de técnica cirúrgica
e anatomia, aquele que decide por determinada intervenção sem conhecer a fundo
os riscos envolvidos, entre outros. Como exemplo de lesões causadas por imperícia,
é possível citar a formação de fístulas vesicovaginais decorrentes de trabalho de
parto mal conduzido; necessidade de amputação de perna em decorrência de secção
da artéria femural em operação de varizes.
Aníbal Bruno observa que, tanto na negligência quanto na imprudência,
existe sempre, em algum momento do processo inicial de culpa, uma omissão
de diligência necessária para evitar o resultado típico. Na imperícia, também
haveria falta de diligência que impediu o agente de adquirir a aptidão necessária
ao exercício de sua atividade. 41
Reportando-se a Manzini, Wanderby Panasco afirma que,
Pode-se dizer que a negligência se refere a omissões voluntárias. A
imprudência implica, as mais das vezes, uma atitude positiva. Por
imprudência (aresto de 26 de outubro de 1921) deve-se entender a
omissão de cautela que a experiência comum da vida ensina a tomar no
cumprimento de alguns atos e no uso de certas coisas; por negligência,
a inobservância de deveres. A imperícia consiste no exercício de uma
atividade relativa a uma profissão ou a uma arte desconhecida pelo
agente, isto é, uma inaptidão ou insuficiência profissional, genérica ou
específica, conhecida do agente e que não leva em consideração.42
41
42
BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral. Tomo 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 80.
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 67.
180
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Segundo Edmundo Oliveira, em termos médicos, “imperito é o ignorante
daquilo que um médico comum deveria saber; negligente é o que despreza as
normas técnicas que o comum dos médicos observa e imprudente é o que usa
métodos terapêuticos perigosos sem absoluta necessidade de fazê-lo”.43
5.3
DISTINÇÃO ENTRE DOLO E CULPA
No crime doloso, o agente quer o comportamento e o resultado; no culposo,
o comportamento é voluntário, mas o agente não quer o resultado nem assume o
risco de produzi-lo.
Analisando o crime culposo em contraposição com o crime doloso, Edmundo
Oliveira afirma que:
Diversamente do que acontece com o crime doloso, que é descrito
em lei (tipo fechado), o culposo não se volta para a particularidade
de definição (tipo aberto). Assim, para exemplificar, o Código Penal
define o homicídio como sendo o ato de “matar alguém” (art. 121);
mas não define o homicídio culposo; diz apenas: “se o homicídio é
culposo” (art. 121, § 3º).
O grande problema do crime culposo é o de saber qual seria a
diligência (contrário, por exemplo, da negligência) exigível do agente.
Para isso deve ser levada em conta a situação pessoal do agente no
caso concreto. Note-se o seguinte: para dizer da ilicitude do fato em
tese, o legislador toma em consideração a diligência do homem médio;
mas, para aferir a culpa (strictu sensu) do agente em cada hipótese, o
juiz pondera a situação pessoal e contingencial do autor do crime nas
circunstâncias em que agiu. O fato que é reprovável em relação a um
agente pode não sê-lo em atenção a outro. (Grifos no original)44
Avaliando a ação culposa e a dolosa do médico, Ivany Novah Moraes
afirma que, em todas as vezes que o médico foi condenado, tanto pelos Conselhos
de Medicina quanto pela Justiça, houve enquadramento no tipo culposo, uma
vez que esses julgados referem-se a casos em que o médico, no exercício da
profissão, prejudicou o seu paciente, mas sem querer especificamente esse
resultado, seja porque não fez o que devia (negligência), seja porque fez o que
43
44
OLIVEIRA, Edmundo. Deontologia, Erro Médico e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.
67.
OLIVEIRA, Edmundo. Deontologia, Erro Médico e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.
58.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
181
não devia (imprudência), seja porque fez errada e equivocadamente o que devia
fazer (imperícia).45
Aparentemente, o posicionamento acima exclui a possibilidade de ocorrência
do dolo, por considerar apenas o dolo direto. Entretanto, o Promotor de Justiça
Diaulas Costa Ribeiro, Coordenador da Pró-Vida, já constatou a ocorrência do dolo
eventual na avaliação da conduta médica. As particularidades dessa imputação
serão avaliadas oportunamente.
Há tipos penais próprios dos profissionais de saúde que só existem na
modalidade dolosa, como a violação de segredo profissional. Quando se avaliam
erros médicos, no entanto, a discussão quanto ao dolo e à culpa torna-se mais
relevante.
O dolo direto, como elemento da culpabilidade, não será considerado na
avaliação de um risco profissional, pois fere o comportamento médico e, por si
só, retira do profissional a idéia de responsabilidade médica, criando um exercício
ilegal da medicina, como dispõe a parte final do artigo 282 do Código Penal. O
dolo profissional é incriminante, agravante e, raramente, detectado. Entretanto,
torna-se necessária análise das características do dolo eventual.
5.4
DOLO EVENTUAL X CULPA CONSCIENTE
Inicialmente cabe ressaltar que essa avaliação é bastante complexa e que as
conceituações não são unânimes.
A culpa decorre de um resultado previsível, mas pode-se dar de duas formas:
sem a efetiva previsão, que se denomina culpa inconsciente, ou com previsão,
quando se denomina culpa consciente. Na culpa inconsciente, que é a forma típica
da culpa, o agente não prevê um resultado que podia e devia prever, e, na culpa
consciente, o agente prevê o resultado e age confiante em que ele não sobrevirá.
A culpa consciente não representa, em princípio, uma categoria mais grave de
culpa do que a inconsciente. Edmundo Oliveira afirma que, “com relação à prática
de crime culposo, alguns professores de Direito Penal entendem que a culpa não
admite graduação. Outros sustentam que a culpa com previsão é mais grave que a
culpa sem previsão”. Afirma, ainda, que o “Código Penal italiano, no seu art. 61,
§ 3º, considera circunstância agravante, nos delitos culposos, o fato de o autor do
crime ter agido apesar de ter previsto o resultado.”46
45
46
MORAES, Ivany Novah. Erro Médico e a Lei. 4. ed. ver. ampl. São Paulo: Lejus, 1998, p.320-321.
OLIVEIRA, Edmundo. Deontologia, Erro Médico e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.
93.
182
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Entretanto, o nosso Código não distingue as duas variedades de culpa. Aníbal
Bruno ensina que assim determina a Exposição de Motivos nº 13: “Demonstrado
que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo, o que resta
a apurar é se este era previsível ao agente. Pouco importa que tenha sido ou não
realmente previsto, se se conserva dentro dos limites da culpa”.47
Como não está prevista na legislação penal brasileira, a constatação da culpa
consciente apenas permite que se classifique o crime como sendo culposo, cuja
pena é mais leve que a do crime doloso, que incidiria caso ficasse configurado o
dolo eventual.
A distinção da culpa em grave, leve e levíssima, que vem do direito romano
privado e corresponde a graus de culpa, não foi adotada pela legislação pátria. Não
há graus preestabelecidos de culpa no Direito Penal, restando ao Juiz a função de
graduá-la para a medida da pena em cada caso concreto.
Heleno Cláudio Fragoso entende que a previsibilidade que se cogita para
determinação da culpa strictu sensu será sempre a previsibilidade pessoal,
que considera as possibilidades concretas do agente, nas circunstâncias em
que atuou.48
Em relação ao dolo, conforme avaliado anteriormente, uma distinção
relevante é entre o dolo direto e indireto. Dolo direito é aquele em que o agente
quer o resultado. O dolo indireto ocorre quando a vontade do agente não está
exatamente definida pois, apesar de o agente querer o resultado, a vontade não se
manifesta de modo único e seguro em direção a ele. Comporta duas formas: dolo
alternativo e dolo eventual.
Ocorre o dolo alternativo quando o agente quer um dos eventos que sua
ação pode causar, por exemplo: atira para matar ou ferir. Configura-se o dolo
eventual, quando o sujeito prevê o resultado e, embora não seja este a razão de
sua conduta, aceita-o.
Conforme analisado anteriormente, no dolo eventual, o agente prevê o
resultado de sua conduta. Apesar de não desejar diretamente o resultado, a hipótese
é para ele indiferente. Configura-se o dolo eventual quando o agente não deseja o
resultado, mas assume o risco de produzi-lo, em conformidade com o disposto na
segunda parte do art. 18 do Código Penal.
47
48
BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral. Tomo 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 93.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, Parte Geral. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2003.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
183
Cezar Roberto Bitencourt afirma que “haverá dolo eventual quando o agente
não quiser diretamente a realização do tipo, mas a aceitar como possível ou até
provável, assumindo o risco de produção do resultado” 49
Levantando outro aspecto na análise do dolo eventual, Celso Delmanto,
Roberto Delmanto e Roberto Delmanto Júnior, em seu Código Penal Comentado,
afirmam que, “no dolo eventual, não é suficiente que o agente se tenha conduzido
de maneira a assumir o risco de produzir o resultado; exige-se mais, que ele haja
consentido no resultado.”50
Em sentido contrário, Diaulas Costa Ribeiro afirma que
tornou-se pacífico que, para o dolo eventual, mormente ex vi art. 18,
inciso I do Código Penal, não é necessário consentimento explícito
e nem consciência reflexiva em relação às circunstâncias, tudo isto,
próprio do dolo direto. O dolo eventual não é, na verdade, extraído
da mente do autor, mas sim das circunstâncias.51
Damásio de Jesus leciona que
ocorre o dolo eventual quando o sujeito assume o risco de produzir o
resultado, isto é, admite e aceita o risco de produzi-lo. Ele não quer
o resultado, pois, se assim fosse, haveria dolo direto. Ele antevê o
resultado e age. A vontade não se dirige ao resultado (o agente não
quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que este possa produzir
aquele. Percebe que é possível causar o resultado, e não obstante,
realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o
resultado, prefere que este se produza.52
Ocorre o dolo direto quando determinado evento é previsto como
conseqüência de um ato. Se, apesar dessa previsão, a pessoa age, o evento deve
ser considerado intencional. A situação muda, e surge o dolo eventual, quando
o evento não é mais previsto como conseqüência certa do ato, mas como um
resultado possível.
Distinguindo o dolo direto do eventual, Diaulas Costa Ribeiro aborda os
seguintes aspectos:
49
50
51
52
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal, Parte Geral. 4. ed. rev. ampl. atual. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 237.
DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR, Roberto. Código Penal
Comentado. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 31.
RIBEIRO, Diaulas Costa. Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Promotoria de Justiça
Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde, Alegações Finais, autos nº 7303-9/98, p.
6/7.
JESUS, Damásio de. Direito Penal. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 248.
184
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
o dolo direto é dolo real, surgindo antes da conduta, enquanto
o dolo eventual é conceitual, é normativo, não existindo senão
contemporaneamente à conduta, por uma classificação do legislador.
O dolo direto tem uma linha direta que liga o elemento volitivo
ao resultado, justificando a sua classificação como direto. O
dolo eventual, ao contrário, não está ligado à vontade do agente,
mas à cognição, ao conhecimento de um possível resultado
(a previsibilidade prevista) e a indiferença, na conduta, a esse
resultado, o que predispõe a uma relação de eventualidade.53
Magalhães Noronha, entre outros autores, considera que, “sinteticamente,
costuma estremar-se o dolo direto do eventual, dizendo-se que o primeiro é vontade
por causa do resultado; o outro é a vontade apesar do resultado.”54
Essa distinção, entretanto, não tem relevância prática. Conforme afirma
Cezar Roberto Bitencourt, o nosso Código equiparou os dois institutos.
Nos termos da Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, da
lavra do Ministro Francisco Campos, in verbis: ‘O dolo eventual
é, assim, plenamente equiparado ao dolo direto. É inegável que
arriscar-se conscientemente a produzir um evento vale tanto quanto
querê-lo: ainda que sem interesse nele, o agente o ratifica ex ante,
presta anuência ao seu advento.55
A diferenciação entre o dolo eventual e a culpa consciente, em contraposição,
tem fundamental importância. Se reconhecido o dolo, a competência para apreciação
do caso é do Tribunal do Júri, e a pena prevista para o crime é maior.
Passando à avaliação conceitual do dolo eventual e da culpa consciente,
Damásio de Jesus afirma que, no dolo eventual,
o agente tolera a produção do resultado, o evento lhe é indiferente,
tanto faz que ocorra ou não. Ele assume o risco de produzi-lo. Na culpa
consciente, ao contrário, o agente não quer o resultado, não assume
o risco nem lhe é tolerável ou indiferente. O evento é representado,
mas confia em sua não produção.56
José Frederico Marques, citando Nelson Hungria, afirma que, no dolo
eventual, “o agente presta anuência ao advento desse resultado, preferindo arriscar53
54
55
56
RIBEIRO, Diaulas Costa. Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Promotoria de Justiça
Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde, Alegações Finais, autos nº 7303-9/98, p. 6.
NORONHA, Magalhães. Direito Penal, introdução e parte geral. Vol. 1. 31. ed. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 136.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal, Parte Geral. 4. ed. rev. ampl. atual. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 237/238.
JESUS, Damásio de. Direito Penal. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 259.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
185
se a produzi-lo, ao invés de renunciar à ação”, já na culpa consciente, “o agente
repele, embora inconsideradamente, a hipótese de superveniência do resultado, e
empreende ação na esperança ou persuasão de que este não ocorrerá”.57
Obviamente, a identificação da condição de consciência do autor do fato
punível torna-se o aspecto mais difícil na análise do caso concreto.
Diaulas Costa Ribeiro, em recurso impetrado perante o Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e dos Territórios, afirma que,
na parte pertinente à distinção dolo eventual/culpa consciente, sabese, é comum o uso da teoria positiva do consentimento de Frank, pela
qual há dolo eventual quando o agente, revelando indiferença quanto
ao resultado, diz para si mesmo «seja assim ou de outra maneira,
suceda isto ou aquilo, em qualquer caso, agirei». Citando Eugenio
Raúl Zaffaroni, afirma ainda que o que é mais importante é que “o
resultado, no dolo eventual, não é aceito como tal mas, isto sim, a
sua aceitação é como possível, provável. Caso contrário, haveria,
aí, dolo direto. 58
Voltando à contraposição entre a culpa consciente e o dolo eventual, cabe
ressaltar que Aníbal Bruno especifica que “a culpa com previsão representa um
passo a mais da culpa simples para o dolo. É uma linha quase imponderável que
a delimita do dolo eventual”.59 Neste, o agente não quer o resultado, mas aceita o
risco de produzi-lo. Na culpa com previsão, existe essa aceitação do risco, mas o
agente não quer o resultado e espera insensatamente que não ocorra.
Para Bettiol, na distinção entre culpa consciente e dolo eventual, “a prova
indubitavelmente não é fácil: o que interessa é que ela não deve ser exclusivamente
dessumida do caráter do réu, mas de todo o complexo de circunstâncias que
determinam a capacidade de delinqüir do réu.60
Buscando ilustrar a ocorrência de dolo eventual envolvendo profissionais
de saúde, pode ser imaginado o caso de médico que, por interesse financeiro,
induz o paciente à realização de uma cirurgia não indicada para o seu caso, não se
importando com possível resultado adverso. Caso dessa cirurgia decorra algum
dano ao paciente e desde que tenham ficado provadas sua não-indicação e a intenção
do médico, ele pode responder por dolo eventual, por ter ficado indiferente à
ocorrência do resultado.
57
58
59
60
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. 4. 1. ed. atual. Campinas: Bookseller, 1997,
p. 276.
RIBEIRO, Diaulas Costa. Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Promotoria de Defesa
dos Usuários dos Serviços de Saúde, Recurso de Apelação, autos nº 21.685/95, p. 7.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral. Tomo 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 92.
BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Vol. 2. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 111.
186
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Tendo em vista a complexidade e as especificidades do dolo, que além
das classificações realizadas pode ser de dano, de perigo, genérico, específico,
normativo ou natural, de ímpeto ou com premeditação e geral, da culpa, que também
pode ser própria ou imprópria, mediata ou indireta, cabe ressaltar que o objetivo
dessa exposição foi trazer esclarecimentos iniciais e uma prévia diferenciação entre
os institutos. Para uma completa elucidação do tema, se é que isso é possível, seria
necessária a análise detalhada de vários aspectos que não foram abordados, o que
comprometeria o objetivo geral deste estudo.
5.5
IMPLICAÇÕES DO DOLO E DA CULPA EM RELAÇÃO À
RESPONSABILIDADE MÉDICA
Wanderby Panasco Lacerda, ao analisar a responsabilidade dos médicos,
afirma que o profissional que age, por exemplo, na prática ilícita do aborto,
que se omite, de qualquer forma ineficaz, no tratamento de um doente, realiza
ações dolosas.61 Nesses casos, estrutura-se, na forma da ilicitude, uma ação ou
uma omissão. Entretanto, sendo o fato culposo, deverá ser avaliado até onde,
pericialmente, sua conduta incidiu numa imprudência, numa negligência ou
numa imperícia, diferenciando-se do erro médico escusável ou das condições que
interferem na falibilidade humana.
Essas sanções jurídicas, embora rotuladas no âmbito da responsabilidade
médica, não permitem ao médico privilégio ou prerrogativa. Segundo Wanderby
Panasco,
a prática dolosa do médico, tendo em vista as peculiaridades técnicas,
pelo contrário, acresce em agravante pelo fato de realizá-la no gozo de
uma atividade monopolista. Neste caso, por exemplo, o consentimento
da gestante que deseja abortar não tem validade jurídica, senão
implica em crime de matéria de Direito Público.62
Quanto à avaliação da culpabilidade do comportamento médico em
decorrência do comportamento culposo, os limites da culpa profissional estão na
ação ou na omissão incompatíveis com o nível de conhecimento e circunspecção
que se deve exigir do médico. Avaliando a dificuldade de se detectar a ocorrência
efetiva do erro médico, diferenciando-o dos demais atos médicos, Edmundo
Oliveira ressalta que,
61
62
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 101.
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 102.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
187
para estabelecer os limites entre o erro profissional não punível e
a culpa médica, é necessário verificar se o diagnóstico e a terapia
adotados pelo médico foram tais que determinassem necessariamente
o resultado danoso e se isso é confirmado pela ciência médica, tendo
em conta que nessa não há métodos obrigatórios.63
Para identificar a culpa do médico, é necessário também que se tenha em
conta as circunstâncias em que o profissional atuou, sendo essencial a análise
detalhada de todos os aspectos relevantes em cada caso concreto. Condição que
influencia a atuação do médico é, por exemplo, a ocorrência de casos de urgência,
a falta de infra-estrutura do hospital, incluindo tanto os aspectos materiais quanto
de pessoal, entre outras.
Apesar de ser reconhecida como legítima a liberdade do médico em assuntos
de diagnóstico e terapêutica, há certos princípios fundamentais de conduta que não
podem ser desprezados por esses profissionais. O médico deve agir segundo as
regras de experiência, aceitas como idôneas para alcance do resultado esperado.
5.6
CASO CONCRETO QUE IMPLICA AVALIAÇÃO DE DOLO
EVENTUAL
Em casos concretos da Pró-Vida, em especial naqueles em que se configurou
o dolo eventual, o Promotor Diaulas Costa Ribeiro pondera em seus pareceres
aspectos que cumprem ser ressaltados.
Retomando a fundamentação de que o dolo eventual não constitui produto
da mente do autor, mas das circunstâncias em que os fatos ocorreram, o Promotor
afirma que as tentativas de demonstrar o bom caráter do acusado e suas condições
pessoais favoráveis, como têm ocorrido com freqüência, não podem interferir na
decisão condenatória.
Fazendo uma avaliação histórica da dimensão atual do processo penal para
justificar o posicionamento expresso no parágrafo anterior, Diaulas Costa Ribeiro
estima que, na época em que surgiram as testemunhas de caráter, originalmente
chamadas compurgadores, as qualidades do acusado superavam os fatos que lhes
eram imputados. Não havia Ministério Público, e cada homem livre podia acusar
outro de fatos criminosos. Os crimes eram julgados por Tribunal com jurisdição
sobre ambos, com base no depoimento das partes, com o juramento de estarem de
posse da verdade. Entretanto, às vezes,
63
OLIVEIRA, Edmundo. Deontologia, Erro Médico e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.
66.
188
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
o tribunal entendia que só o juramento do acusado não era suficiente
para se tomar a decisão e requeria a presença de compurgadores
para corroborarem o que fora declarado no interrogatório. Os
compurgadores não eram testemunhas do fato; apenas apoiavam,
de livre e espontânea vontade, o que fora jurado pelo acusado. Se o
número de compurgadores era suficiente, o caso era encerrado e a
acusação formal recusada.64
Dessa forma, claro está que o juramento era a prova mais forte de que a
parte acusada podia fazer uso. Considerando a tentativa de desconfiguração da
tipificação do erro médico como crime doloso com base em depoimentos sobre a
conduta do acusado, Diaulas Costa Ribeiro ressalta que o processo penal atualmente
tem outra dimensão. O Estado Democrático de Direito substituiu o direito penal
do autor pelo direito penal da culpa. A responsabilidade de cada pessoa decorre
do que fez ou deixou de fazer e não mais do que é ou foi.
De forma específica, é possível citar um caso da Pró-Vida em que um médico
anestesista, assistindo uma paciente de alto risco, abandona-a por tempo superior
a cinco minutos, e, denunciado por ter criado o risco do resultado, (art. 13, § 2º,
do Código Penal), alega arrependimento eficaz por ter tomado todas as medidas
cabíveis após tomar conhecimento de seu estado.
Diaulas Ribeiro, referindo-se a esse caso, afirma que “o médico, ao ser
chamado para ministrar medicamento na paciente, oportunidade em que tomou
ciência do quadro em que ela se encontrava, fez-lhe reanimação medicamentosa
e massagem cardíaca”. Com tal procedimento, o médico teria evitado o resultado
e não o assumido.65
Tendo em vista a complexidade do tema e a exatidão com que foi feita a
diferenciação entre arrependimento eficaz de dolo eventual pelo Promotor, entendo
ser de grande relevância a citação de parte de sua manifestação, que se segue:
No arrependimento eficaz, cabível apenas nos crimes materiais, em
que a consumação ocorre com o resultado, o agente desassume o
risco do resultado após preencher todos os elementos da ação típica.
Sua intervenção, que demonstra ter desassumido o risco do resultado,
ocorre na faixa que separa a ação típica do resultado causal típico.
Numa expressão pleonástica e óbvia, mas didática, o arrependimento
ocorre depois da ação realizada.
64
65
RIBEIRO, Diaulas Costa. Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Promotoria de Justiça
Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde. Alegações Finais, autos nº 7303-9/98, p. 7.
RIBEIRO, Diaulas Costa. Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Promotoria de Justiça
Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde, Alegações Finais, autos nº 7303-9/98, p. 8.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
189
Mas desassumir o risco do resultado não é sinônimo de não assumir
esse mesmo risco. Não assumir o risco de produzir o resultado é
elemento subjetivo para a ação típica, concomitante a ela, situado
na fase cognitiva (apenas a previsibilidade do resultado) e na fase da
realização da conduta (O dolo eventual não é, na verdade, extraído
da mente do autor, mas sim das circunstâncias). Desassumir o risco
de produzir o resultado é uma nova ação, alheia ao tipo originário,
mas que irá interferir incidentalmente na cadeia causal. Não assumir
o risco – na fase cognitiva ou na fase da realização da conduta –
afasta o conceito de dolo eventual da ação típica, remanescendo,
se houver previsão, a tipicidade culposa. Desassumir o risco do
resultado exige, contudo, para que essa nova ação típica tenha
conseqüências jurídicas, a eficácia.
Assim, o elemento subjetivo será classificado como dolo eventual
se a assunção do risco de produzir o resultado anteceder à ação
típica ou nela se estabelecer. Não havendo a assunção, surge a
culpa consciente. Por outro lado, haverá arrependimento se a
conduta em questão for posterior à ação típica originária. Se o
arrependimento for eficaz, afastando o resultado que decorreria
daquela ação originária, responderá o agente pelos atos anteriores.
Se ineficaz, não terá conseqüências jurídicas para a tipicidade
originária porque se trata de uma ação incidental a esse mesmo
tipo. O agente responderá pelo resultado produzido com vontade
(dolo direto) ou indiferença a ele (dolo eventual), com as mesmas
conseqüências jurídicas, salvo quando a lei distingui-las conforme
o tipo de dolo, o que não ocorre no sistema penal brasileiro, que
os equiparou. (Grifos no original)66
6
CRIMES MÉDICOS – TIPOS PENAIS
6.1
CRIMES DOLOSOS
Arinda Fernandes67 conceitua crime médico, sob o aspecto formal, como
sendo “toda conduta médica proibida por lei, sob ameaça de uma sanção”. Afirma,
66
67
RIBEIRO, Diaulas Costa. Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Promotoria de Justiça
Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde, Alegações Finais, autos nº 7303-9/98, p. 8.
FERNANDES, Arinda. Crimes Médicos. (Tese de Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro: 1982, p. 36.
190
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
ainda, que, substancialmente, considera-se crime médico “toda ação praticada por
médico, no exercício de sua atividade profissional que lesa ou coloca em perigo
determinado bem-interesse, capaz de repercutir nas condições de conservação da
sociedade, a que deva atribuir, conseqüentemente, uma sanção penal”.
A conduta delitiva direciona-se para duas formas distintas e radicais.
Conforme afirmado anteriormente, um crime pode ser praticado na modalidade
dolosa ou culposa.
Com fundamento no princípio da reserva legal, a primeira garantia da pessoa
humana nos Estados Democráticos de Direito é a subsunção à norma prevista
no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, de que não há crime sem lei
anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal.
Dessa forma, só existe crime quando há o tipo, ou seja, quando a conduta
delitiva pressupõe uma descrição legal anterior ao ato criminoso cometido. O
preceito deve ser acompanhado pela sanção para que possibilite o cumprimento
da atividade de proteção exercida pelo Estado.
A especificidade do crime médico mostra que se trata de uma infração
singularizada como crime próprio ou especial, pois só pode ser praticado por certa
e determinada pessoa. Dessa forma, no crime médico, o sujeito ativo, o agente,
deve ser médico, ou seja, ter aptidão para o exercício da medicina.
No exame da responsabilidade penal dos médicos, especialmente por crimes
dolosos, cabe citar alguns tipos penais.
6.1.1 EUTANÁSIA
Art. 121. Matar alguém:
Pena – reclusão, de seis a vinte anos.
§ 1º. Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante
valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em
seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena
de um sexto a um terço.
Wanderby Panasco Lacerda afirma que “o vocábulo eutanásia foi apresentado
por Francis Bacon, em 1623, no seu livro Historia Vitae et Mortis, para designar “boa
morte” e que existe na forma ativa e passiva”. Afirma, ainda, que “a forma passiva
refere-se àquela em que o médico, aceitando a solicitação dos responsáveis ou do
próprio doente, desliga os aparelhos e suspende as medicações. Na forma ativa, o
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
191
profissional utiliza-se de recursos farmacológicos para a prática da eutanásia”.68Apesar
da motivação humanitária, a punição prevista é de seis a vinte anos.
Sobre o tema, Diaulas Costa Ribeiro afirma que, “modernamente, eutanásia
é a morte de uma pessoa (que se encontra em grande sofrimento decorrente de
doença, sem perspectiva de melhora) produzida por médico, com o consentimento
dela”. 69 Ressalta que a falta de autorização legal para a eutanásia não tem lógica
jurídica e está sustentada pela conveniência da política criminal, influenciada pelo
Código Canônico.70
Cita, ainda, o Promotor de Justiça esforços legislativos que vêm tratando
de maior autonomia nesse sentido, como o art. 17 do Estatuto do Idoso, a Lei
10.241/98, de São Paulo, e a Portaria do Ministério da Saúde n. 675/GM, de 30 de
março de 2006, que asseguram aos usuários da saúde decisão acerca de tratamentos
dolorosos ou extraordinários para prolongar a vida sem chance de cura, afastando
do médico a decisão.
6.1.2 VIOLAÇÃO DE SEGREDO PROFISSIONAL
Art. 154. Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência
em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação
possa produzir dano a outrem.
Pena - detenção de 03 meses a 01 ano, ou multa.
O dispositivo tutela a liberdade individual de manter segredos, cuja
divulgação pode produzir dano a outrem. Segundo Mirabete, “trata-se, no caso,
de crime próprio, figurando como sujeito ativo aquele que revela segredo de que
teve conhecimento em virtude de função, ministério, ofício ou profissão”. 71
Somente se pode falar de violação do segredo profissional, como crime
próprio do médico, quando o profissional, sem justa causa, revelar um segredo de
que teve ciência em razão de sua atividade: o exercício da função deve ser a causa,
não uma simples ocasião do conhecimento do segredo.
Mesmo quando chamado a juízo para depor como testemunha, não estaria o
médico autorizado a revelar segredo que lhe foi confiado em razão de sua atividade
68
69
70
71
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 102.
RIBEIRO, Diaulas Costa. Eutanásia. Revista Consulex, Brasília, 31 mai. 99, p.18.
RIBEIRO, Diaulas Costa. A eterna busca da imortalidade humana: a terminalidade da vida e a autonomia.
Revista Bioética, Conselho Federal de Medicina, vol. 13, n. 2, 2005.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 196.
192
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
profissional. O Código de Processo Penal, em seu artigo 207, determina que “estão
proibidos de depor as pessoas que, em razão de seu ministério, função, ofício ou
profissão devam guardar segredo, salvo se desobrigadas pela parte interessada,
quiserem dar o seu testemunho”.
Sobre o tema, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu que o médico
não é obrigado a guardar segredo se a sua própria cliente abriu mão do sigilo.
A conduta típica é revelar segredo. O crime é doloso e configura-se quando o
médico, exercitando a sua vontade livre e consciente, revela o segredo de que tem
o conhecimento. Além disso, a lei exige que tal conduta “possa produzir dano a
outrem”, geralmente ao próprio paciente. A lei não exige a presença do dano efetivo,
mas simples possibilidade de a vítima vir a sofrer um dano material ou moral.
A proteção ao sigilo profissional dada pela lei é relativa, e não haverá conduta
delitiva se houver justa causa para revelar o segredo.
6.1.3 OMISSÃO DE NOTIFICAÇÃO DE DOENÇA
Art. 269. Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença
cuja notificação é compulsória.
Pena: detenção de 06 meses a 02 anos, multa.
O momento de consumação do crime ocorre quando vencido o prazo previsto
para comunicação. Na ausência deste, consuma-se o delito quando constatado, pela
conduta do médico, que este não quis ou negligenciou o seu dever de notificar.
6.1.4 EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA
Art. 282. Exercer, ainda, que a título gratuito, profissão de médico,
dentista, ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe
os limites:
Pena - detenção de 06 meses a 02 anos.
Parágrafo único - Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplicase também multa.
Como estamos tratando de crimes próprios de médicos, o interesse nesse
artigo restringe-se à análise da segunda figura típica, ou seja, a que pune a conduta
do médico que se excede nos limites de sua própria atividade. Nesse caso, percebese a complexidade da análise da atividade médica, que exige dos operadores do
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
193
direito, em especial do juiz, atenção para com as técnicas terapêuticas usuais, bem
como para a possibilidade de detecção de extrapolações dos atos médicos. Nesse
aspecto, vale a ação fiscalizadora dos órgãos da classe médica, do Ministério
Público e da sociedade como um todo.
São casos em que o médico, em perfeita condição documental, pratica atos
vinculados à antijuridicidade profissional, de natureza eminentemente dolosa.
6.1.5 FALSIDADE DE ATESTADO MÉDICO
Art. 302. Dar o médico, no exercício da sua profissão atestado falso.
Pena - detenção de um mês a um ano.
Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se
também multa.
O crime é inerente ao médico. O atestado é a afirmação competente da
dignidade profissional. Trata-se de um dever social, particular ou público. Wanderby
Panasco entende que “ratificar, através da própria assinatura, condições falsas, seja
a título gratuito ou oneroso, é ir contra os pilares dos estatutos legais e transgredir
a liberdade profissional.” 72
Há divergência doutrinária se a caracterização do crime deve-se restringir
apenas à falsidade de uma doença, ou se também pode ocorrer em relação a um
entendimento ou opinião equivocada. Este é um crime essencialmente doloso,
estando, portanto, excluídos os casos de erros.
6.1.6 CHARLATANISMO
Art. 283. Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível.
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
O médico, por intermédio de falsos conceitos técnicos ou processos não
científicos, proclama estar apto a sanar qualquer malefício orgânico ou curar
qualquer doença.
Segundo Wanderby Panasco, “a postura artificiosa encobre os desígnios
e, diante das elucubrações do charlatão, o ingênuo se curva e se alimenta das
vãs esperanças de se ver livre de um mal indesejado”. Avaliando a gravidade da
72
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 184.
194
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
infração, afirma: “É a mais nefanda figura de toda a antijuridicidade médica,
que, culminando por uma afirmação altamente dolosa, se escuda no seu diploma
e na regulamentação oficial, para procurar, impunemente, usufruir benefícios
vantajosos”.73
Além dos tipos penais explicitados, os médicos podem ser responsabilizados
pela prática, no exercício de sua profissão, dos crimes de aborto, periclitação da vida
ou saúde, tratamento arbitrário, facilitação à toxicofilia, entre outros. A omissão
de socorro será tratada posteriormente, em paralelo com os crimes comissivos
por omissão.
Os crimes abordados neste capítulo envolvem o dolo direto do profissional
de saúde. No caso de o ato médico provocar danos em decorrência de erro ou dolo
eventual, como ocorre nos casos de lesões corporais ou homicídio, deve haver uma
prévia análise dos pressupostos envolvidos, que são bem mais complexos.
6.2 CRIMES CULPOSOS
O art. 5º, caput, da Constituição Federal dispõe que fica assegurada “aos
brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida”. O
respeito à vida humana é imperativo de ordem constitucional e, para ser assegurado,
recebe a tutela da lei penal. Direito à vida significa, além de direito sobre a vida,
também o direito à abstenção de ação lesiva por parte das outras pessoas.
Por atingir o bem fundamental do homem, que é a vida, o homicídio é o crime
mais grave contra a pessoa humana. José Frederico Marques observa que homicídio
é a eliminação da vida de uma pessoa praticada por outra. Em conformidade com
o Código Penal, o autor classifica o crime de homicídio, segundo o nexo subjetivo
que integra a culpabilidade, em culposo ou doloso.74
Considerando o tipo, a classificação é feita em simples, privilegiado e
qualificado, em razão de haver ou não circunstância que se acrescente, com o
caráter de elementar, para agravar ou minorar a sanção penal.
O homicídio culposo, tal como regulamenta nossa legislação penal, não
apresenta figuras típicas privilegiadas. Há, no entanto, tipos qualificados, como o
previsto no art. 121, § 4º, do Código Penal. Júlio Fabbrini Mirabete sublinha como
73
74
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979. p. 183.
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. 4. 1. ed. atual. Campinas: Millennium,
1999, p. 94/95.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
195
exemplo de homicídio culposo qualificado o médico não esterilizar os instrumentos
que vai utilizar na cirurgia ou empregar técnica não usual na execução desta.75
Após a introdução de aspectos relativos ao homicídio, que é um crime contra
a vida, passo à apresentação do crime de lesão corporal, que atinge a integridade
física ou psíquica do ser humano.
Trata-se de um crime de forma livre, cujo núcleo do tipo é ofender a
integridade corporal ou saúde de outrem. Seguem-se ao caput figuras típicas
qualificadas e privilegiadas, de forma análoga ao crime de homicídio e, da mesma
forma que no homicídio culposo, as lesões corporais culposas podem ser simples
(art. 129, § 6º, Código Penal) ou qualificadas (art. 129, § 7º, Código Penal).
Avaliando a qualificadora relativa à inobservância de regra técnica de
profissão, arte ou ofício, incidente tanto no caso do homicídio quanto da lesão
corporal, cabe ressaltar a posição de José Frederico Marques, que afirma que, “se
a regra técnica foi inobservada, cabe aumento de pena, desde que exista relação
de causa e efeito entre o descumprimento da norma técnica, ou regulamentar, e
o evento lesivo”.76 Como o texto não fala em regra regulamentar, e sim técnica,
o autor ressalta que não importa que a norma inobservada não conste em
regulamento, bastando que se prove a exigibilidade técnica de cumprimento da
regra desobedecida para que se opere a qualificadora.
José Frederico Marques ressalta, ainda, que, para haver a agravante, o
agente deve conhecer a regra técnica que não observou, pois, caso o profissional
a desconheça, incorre em imperícia, que pressupõe inabilidade ou insuficiência
profissional.
Obviamente, o profissional especializado está mais preparado para a
realização do procedimento, e sua culpa em decorrência de imprudência ou
negligência denota maior descaso que o erro médico decorrente de desconhecimento
sobre a forma adequada de realização dos procedimentos. O maior erro, nesse
aspecto, não é do médico, mas do sistema, que permite o exercício de qualquer
atividade médica, a despeito da realização da especialização. A imperícia poderia
ser evitada com uma séria ênfase na exigência de especialização e atualização para
o exercício da medicina.
Na Pró-Vida, a tipificação criminal de atos médicos arbitrários ocorre, na
maioria das vezes, na forma culposa, razão pela qual essas formas criminais serão
especificadas a seguir.
75
76
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Vol. 2. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 47.
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. 4. 1. ed. atual. Campinas: Bookseller, 1997,
p. 251.
196
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
6.2.1 HOMICÍDIO
Art. 121. Matar alguém:
Pena – reclusão, de seis a vinte anos.
(...)
§ 3º - Se o homicídio é culposo:
Pena – detenção de um a três anos.
§ 4º - No homicídio culposo, a pena é aumentada de um terço, se o
crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou
ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não
procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar
prisão em flagrante.
Quando age com imprudência, negligência ou imperícia e, desde que haja
todos os pressupostos necessários para a responsabilização criminal, o médico
pode ser responsabilizado por homicídio culposo.
É possível citar como exemplos de homicídios culposos atos médicos que
causem a morte em decorrência de erro em anestesia, troca de medicação, abandono
de corpo estranho no corpo do paciente, omissão de tratamento, abandono do
paciente, entre outros.
6.2.2 LESÃO CORPORAL
Art. 129: Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena: detenção de três meses a um ano.
(...)
§ 6º - Se a lesão é culposa:
Pena: detenção, de dois meses a um ano.
§ 7º - Aumenta-se a pena de um terço, se ocorrer qualquer das
hipóteses do art. 121 § 4º.
A lesão corporal é constituída a partir de uma situação jurídica definida,
na qual se avalia a ocorrência de culpa nos atos do profissional. Entre as lesões
apresentadas, é possível destacar a debilidade, a perda ou a inutilização de membro,
sentido ou função, deformidade permanente, entre tantas outras.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
197
Conforme afirmado previamente, não será realizada a análise dos homicídios
e lesões corporais ocorridos em condições dolosas diretas, tendo em vista que se
trata de exercício ilegal da medicina. O profissional, nesses casos, excede os limites
da arte médica, v.g., em casos de cirurgias plásticas deformadoras da identidade
física ou retirada de impressões digitais.
7
ERRO MÉDICO: PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE
Erro é um ato não intencional, em que não se alcança o resultado desejado
porque não se procedeu de modo adequado ou se usou uma técnica não adequada
à prática daquele ato.
Considerando o aspecto legal, José Geraldo de Freitas Drumond afirmou que
“Erro médico é todo desvio da conduta profissional que determina dano ou agravo
à saúde do paciente, caracterizado por negligência, imperícia ou imprudência”.77
Como outras atividades desenvolvidas socialmente, o exercício da
medicina está sujeito a normas emanadas pelo Estado, com o objetivo de regular
a conduta profissional dos médicos, obrigando-os a certos deveres, sob pena de
responsabilização. O médico pode ser responsabilizado por seus erros em quatro
esferas, que são: a) administrativa, perante órgãos estatais e paraestatais, no caso
de funcionários públicos; b) ética, perante os conselhos reguladores da atividade; c)
cível, por intermédio de ações reparatórias de danos; e d) criminal, em decorrência
da tipificação de crimes previstos na legislação.
Administrativamente, o médico, se for funcionário público, pode responder a
sindicâncias e processos administrativos. Respeitados os institutos do contraditório
e da legítima defesa, se comprovada a infração a dever funcional, podem ser
aplicadas penalidades de advertência, suspensão ou demissão, dependendo da
gravidade do ato praticado.
Do ponto de vista ético, não se exige a ocorrência de um dano para que haja
responsabilização, sendo esta uma das diferenças entre o julgamento dos conselhos
de medicina e o do Judiciário.
No conselho de medicina, avalia-se se o profissional agiu segundo os
princípios que norteiam o exercício da profissão, se agiu de acordo com as normas
da arte médica, se não faltou com os deveres de diligência, de atualização, de
abstenção de abuso, se seguiu as condutas conhecidas e adequadas para a execução
do ato, podendo ser caracterizado o erro mesmo que não tenha produzido dano.
77
DRUMOND, José Geraldo de Freitas. Erro Médico. Conferência realizada em 28/06/2000, na abertura
do II Fórum Jurídico Nacional sobre Erro Médico, Responsabilidade Civil, Criminal e Bioética.
198
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
As penalidades aplicáveis são de advertência confidencial, censura
confidencial, censura pública, suspensão por 30 (trinta) dias ou cassação.
Judicialmente, o erro médico é caracterizado, em tese, pela presença de
quatro requisitos: a ação do médico, o dano ao doente, o nexo de causalidade entre o
procedimento médico e o dano causado e que o médico tenha agido com culpa.
Segundo Delton Croce, para caracterização da responsabilidade médica,
tanto civil quanto penal, são necessários:
a)
O agente, que teria de ser o médico responsável, em posse
de suas faculdades mentais, visto que, se o dano for produzido por
pessoa sem habilitação técnica ou legal, além da responsabilidade
civil, deverá responder criminalmente por curandeirismo ou exercício
ilegal da medicina e, se doente mental, a pessoa está sujeita apenas
a medidas de segurança;
b) O ato. O dano deverá ser conseqüente a um ato médico lícito
e voluntário. Caso o médico utilize a sua profissão para praticar
um ato ilícito (aborto criminoso, charlatanismo etc.), “responderá
independentemente de sua profissão, como qualquer cidadão, seja
qual for a natureza do mister”.78
c)
A culpa, ou inobservância do cuidado devido, manifestada pela
negligência, imprudência ou imperícia, que são fundamentos jurídicos
da responsabilidade médica.
d) O dano. Para haver tipicidade do crime culposo, deve haver
o resultado lesivo, ou seja, dano real, como a lesão corporal, a
debilidade funcional, a deformidade permanente ou a morte, aliado
à violação de um dever de cuidado e à previsibilidade objetiva, que
consiste na antevisão do que possa normalmente ocorrer e condiciona
a ilicitude da ação culposa.
e)
O nexo de causalidade. “É a relação de causa e efeito entre a
ação ou a omissão do agente e o damnum verificado”. Dessa forma,
se houver o dano, mas sua causa não for resultado do comportamento
do agente, ou se não ficar demonstrada a relação de causalidade, falta
um dos requisitos para a responsabilização do médico.79
78
79
CROCE, Delton; CROCE JÚNIOR, Delton. Erro Médico e o Direito. São Paulo: Oliveira Mendes,
1997, p. 9/17.
CROCE, Delton; CROCE JÚNIOR, Delton. Erro Médico e o Direito. São Paulo: Oliveira Mendes,
1997, p. 9/17.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
199
De passagem, convém observar que o consentimento do paciente ou, na
impossibilidade, de seu representante legal tem grande relevância na discussão do
tema. Entende-se que o médico, em determinadas circunstâncias, pode prescindir
da anuência do paciente, como no caso de iminente perigo de morte, uma vez
que o profissional pode ser responsabilizado – sua não-atuação pode constituir
omissão delituosa.
8
TIPOS DE ERROS MÉDICOS
Segundo Edmundo Oliveira, a prestação de serviço médico ao paciente
passa por três fases: a formulação do diagnóstico; a escolha da terapêutica e a
execução do tratamento. O autor afirma que um procedimento culposo pode existir:
a) na formulação do diagnóstico, por imperícia ou negligência; b) na escolha da
terapêutica, por imperícia ou imprudência; ou c) na execução do tratamento, por
imperícia, negligência ou imprudência. Faz a seguinte observação:
Nas hipóteses a e b, pode surgir apenas um perigo para a saúde ou à
integridade física ou mental do paciente.
Já na hipótese c, pode advir um dano para a sua sanidade ou até para
a sua vida.
Para a configuração de um crime doloso, pode haver a necessidade
de um resultado danoso (crimes de dano) ou pode bastar a existência
do perigo de dano (crimes de perigo). Mas, para a concretização de
um crime culposo, é sempre necessário um resultado danoso. Daí se
conclui que não pode haver crime culposo do médico, no exercício
de sua profissão, a não ser na fase do tratamento, o que confirma o
que foi dito acima. 80
Considerando a necessidade de ocorrência do dano real e efetivo no caso
de crimes culposos, percebe-se a aparente dificuldade de ocorrência do dano na
fase de formulação do diagnóstico. Entretanto, é possível a responsabilização do
médico mesmo que sua atuação tenha-se dado apenas no diagnóstico.
A maioria dos erros médicos ocorre em razão de atos comissivos por omissão,
que serão analisados em detalhes posteriormente. Ao médico é imputada a ocorrência
de uma lesão em virtude de sua abstenção, quando era esperado que agisse.
Não se exige dos médicos a perfeição em sua conduta. Não se pode esperar
que acerte sempre um diagnóstico e que o tratamento proposto seja sempre o mais
80
OLIVEIRA, Edmundo. Deontologia, Erro Médico e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.
64.
200
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
conveniente, tendo em vista as variáveis envolvidas nessa avaliação. Entretanto,
há casos em que sintomatologias claras tornam possível a qualquer profissional
habilitado a detecção da patologia a ser tratada, e esse diagnóstico não é feito.
Casos como o de um paciente que procura um pronto-socorro após uma queda,
com traumatismo crânio-encefálico não diagnosticado, e que, após atendimento,
realização de diagnóstico e escolha de terapêutica morre em casa podem gerar a
responsabilização do médico por não ter evitado a ocorrência do resultado.
A observação de Edmundo Oliveira de que a ocorrência de lesões se
daria apenas no nível do tratamento é uma tentativa de orientação para a análise
desses casos. Entretanto, essa classificação é muito simplista. Tentar enquadrar a
ocorrência dos erros médicos em um padrão pré-definido seria limitar a análise.
A avaliação tem que ser feita caso a caso, visto que as especificidades
inerentes a cada circunstância podem alterar completamente a identificação do ato
médico arbitrário. A classificação quanto aos tipos de erros deve servir não para
propor fórmulas de avaliação, mas para possibilitar uma melhor compreensão das
particularidades do ato médico.
8.1
ERRO DE DIAGNÓSTICO E DE TRATAMENTO
Do ponto de vista técnico, o diagnóstico consiste em identificar e determinar
a moléstia que acomete o paciente, e desse diagnóstico depende a escolha do
tratamento adequado.
Entende Edmundo Oliveira que o erro de diagnóstico ocorre em duas
hipóteses: 1ª) quando o médico não consegue enquadrar os sintomas que se lhe
apresentam numa moldura das doenças conhecidas pela ciência médica; 2ª) quando
ele os encaixa num esquema falso.81
O supracitado autor afirmou, ainda, quanto à forma de elaboração de
diagnósticos, que, até o início do nosso século, os médicos se guiavam mais pela
intuição e que, com o progresso das ciências, o tom conjectural foi substituído pela
técnica. Criticou, entretanto, essa posição e afirmou que a diagnose não se pode
basear apenas em resultados de exames, que são, na maioria das vezes, dados a
serem interpretados pelo médico. Não restam dúvidas de que, aliados aos resultados
dos exames técnicos, o conhecimento e a experiência do médico devem sempre
influenciar na identificação de problemas em função dos sintomas apresentados.
Cabe ressaltar, nesse ponto, a importância de uma anamnese bem feita,
visto que são determinantes as informações pedidas pelo médico ao paciente na
81
OLIVEIRA, Edmundo. Deontologia, Erro Médico e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 93.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
201
avaliação do caso e no diagnóstico. Sem se utilizar de termos muito técnicos que
impossibilitem a compreensão do paciente, o médico deve ser preciso e analítico
em suas perguntas e deve avaliar sintomas, antecedentes, entre outros aspectos
relevantes, de forma minuciosa.
Do médico, exige-se capacidade científica e técnica, atualização, saúde física
e psíquica, atenção e memória. Dessa forma, fica explícita a fragilidade da segurança
dos diagnósticos. Inany Novah Moares afirma que “o diagnóstico deve ser genérico,
pois, até hoje são desconhecidas as causas de, pelo menos, um terço das doenças
catalogadas, ressaltando que o médico não pode errar a conduta, embora dispondo
de diagnósticos genéricos e de probabilidade”. Afirma, ainda, que,
De fato, distingue-se no decurso de toda a evolução da doença a
importância da conduta a cada momento, devendo ela depender das
respostas a cada procedimento. O diagnóstico não só pode como deve
ser corrigido a cada passo, sempre que possível em tempo real, para
que o desvio da rota seja menor, possibilitando retorno ao caminho
certo mais facilmente e com menores seqüelas.82
Garante Miguel Kfouri Neto que, por adentrar em um campo muito técnico,
é difícil a responsabilização do médico por erro de diagnóstico. Obviamente, a
infalibilidade médica não pode ser admitida em termos absolutos, e determinadas
condições pessoais do paciente podem determinar tais erros. O erro de diagnóstico
caracteriza-se pela eleição do tratamento inadequado à patologia instalada no
paciente, com resultado danoso.83
Da mesma forma que foi afirmado no início do capítulo precedente, percebese, na doutrina, com exceção de Kfouri Neto, que fez algumas ressalvas, uma certa
tendência em não imputar ao profissional de saúde a responsabilidade pelo erro
no diagnóstico.
Realmente a responsabilização, nesses casos, só é possível em situações
que não gerariam dúvidas à grande maioria dos profissionais. Nos casos em
que o diagnóstico não se mostra de forma evidente, obviamente não se pode
responsabilizar o médico.
No entanto, se, nas circunstâncias em que se encontrava o profissional, com
os meios de que dispunha, não se desviou drasticamente da conduta prevista para
aquele caso, inexistirá culpa, mas, se o médico não utilizou todos os recursos à sua
disposição para elevar o grau de certeza diagnóstica, é possível a responsabilização.
Ressalte-se que não é propriamente o erro de diagnóstico que incumbe ao Juiz
82
83
MORAES, Ivany Novah. Erro Médico e a Lei. 4. ed. ver. ampl. São Paulo: Lejus, 1998. p. 321.
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001. p. 81.
202
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
analisar, mas se o médico incorreu em culpa quando fez o diagnóstico, se recorreu
aos meios ao seu alcance para investigar o mal.
Reforçando esse entendimento, é relevante indicar julgados que dispõem
no sentido de que o erro de diagnóstico e terapia, provocado pela omissão de
procedimentos recomendados ante os sintomas exibidos pelo paciente, acarreta
responsabilidade médica, nos termos do art. 13, § 2º, alínea b, do Código Penal.
O profissional só pode ser excluído de responsabilidade se houver prova plena
de que não comprometeu as chances de vida e integridade da vítima (JTAERGS
87/143, RT 710/334). De outro lado, como já afirmado, se a moléstia é de difícil
diagnóstico, por ausência de sintomas específicos, não pode ser responsabilizado
quem atuou de forma a socorrer devidamente a vítima (RT 709/307).
8.2
ERRO ESCUSÁVEL OU ERRO PROFISSIONAL E ERRO
GROTESCO
O erro grosseiro é a conduta profissional que fere o entendimento do
profissional comum. É a forma inadvertida, imprecisa e incapacitante de quem,
por falta de mínimas condições profissionais, se permite o erro, como quando o
anestesista causa a morte de paciente por superdosagem, o ginecologista contamina
a paciente por falta de assepsia do instrumental utilizado, entre outros.
Ao contrário do erro grosseiro, que é evidente, o erro profissional não ocorre
em razão da falta de observação das regras e dos princípios que a ciência sugere e,
sim, em razão da imperfeição da medicina e da precariedade dos conhecimentos
humanos. Há erro escusável, e não imperícia, sempre que o profissional, empregando
correta e oportunamente os conhecimentos e as regras de sua ciência, chega a uma
conclusão falsa, mesmo que possa daí advir um resultado de dano ou de perigo.
A distinção do erro como erro médico ou erro profissional, segundo Delton
Croce, tem sido feita essencialmente pelos juízes, que costumam caracterizar o
erro profissional como sendo aquele que decorre de falha não imputável ao médico,
seja por limitações da medicina, seja por ter havido omissão ou sonegação de
informações por parte do paciente ou por falta de colaboração com o tratamento.
O autor especifica ainda que, “diante de tais situações relacionadas, o erro existe,
é intrínseco às deficiências da profissão e da natureza humana do paciente e ocorre
no exercício da profissão, mas a culpa não pode ser atribuída ao médico. Tais erros
são também chamados escusáveis”.84
84
CROCE, Delton; CROCE JÚNIOR, Delton. Erro Médico e o Direito. São Paulo: Oliveira Mendes,
1997. p. 25.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
203
Para que o erro médico seja considerado escusável, no entender de Delton
Croce, exigem-se os seguintes elementos:
que o médico assistente não se tenha havido com culpa em qualquer
modalidade: negligência, imprudência, imperícia;
que a má resultância seja conseqüente a um erro de diagnóstico
possível do ponto de vista estatístico;
que, no estabelecimento desse diagnóstico, tenham oportunamente
sido utilizados meios e métodos amiudadamente empregados;
que a terapia clínica e/ou cirúrgica seja a habitualmente utilizada para
o diagnóstico formulado;
que o evoluir do caso tenha-se processado dentro das expectativas.85
9
ASPECTOS RELEVANTES NA AVALIAÇÃO DE ATOS MÉDICOS
ARBITRÁRIOS
9.1
AÇÃO E OMISSÃO
Ação é o comportamento humano voluntário e consciente avaliado pelo
Direito. No Direito Penal, a palavra ação é empregada no sentido amplo, abrangendo
tanto ação propriamente dita quanto omissão.
Os crimes praticados por intermédio de uma ação positiva, de um fazer, são
denominado comissivos. Os crimes omissivos caracterizam-se por uma abstenção e
dividem-se em omissivos próprios (ou omissivos puros) e comissivos por omissão
(omissivos impróprios).
Damásio de Jesus afirma que:
A ação é a que se manifesta por intermédio de um movimento
corpóreo tendente a uma finalidade.
A maioria dos núcleos dos tipos se consubstancia em modos positivos
de agir, como matar, apropriar-se, destruir, danificar, etc. Quando
o crime é praticado por essa forma positiva de agir diz-se que foi
praticado mediante comissão. Quando, não obstante o verbo indicar
um modo positivo, o crime pode ser praticado mediante omissão,
85
CROCE, Delton; CROCE JÚNIOR, Delton. Erro Médico e o Direito. São Paulo: Oliveira Mendes,
1997. p. 25.
204
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
fala-se em crime comissivo por omissão. Ex: a mãe mata o filho
mediante privação de alimentos.86
Os crimes omissivos próprios ou omissivos puros são crimes de
mera conduta, ou de simples atividade, e a lei pune a própria omissão
independentemente de qualquer resultado, como no caso da omissão de socorro
(art. 135 do Código Penal) ou na omissão de notificação de doença (art. 269
do Código Penal). Os dispositivos do Código Penal são genéricos. São crimes
imputados a qualquer pessoa.
Os crimes comissivos por omissão ou omissivos impróprios são crimes
de resultado e só podem ser praticados por pessoas determinadas que, por lei,
têm o dever de impedir o resultado e a obrigação de proteção e vigilância em
relação a alguém.
Segundo Damásio de Jesus,
chamam-se omissivos impróprios porque não se confundem com os
omissivos puros. Nestes últimos, a conduta negativa é descrita em
lei. Nos omissivos espúrios, ao contrário, a figura típica não define a
omissão. O tipo não descreve condutas proibidas, deixando ao exegeta
a tarefa de indicar se, em face do ordenamento jurídico, o omitente
pode ser equiparado ao agente e, em conseqüência, sofrer a imposição
de sanção contida no preceito secundário da lei incriminadora.87
A responsabilidade nos crimes comissivos por omissão pode ser atribuída
a título de dolo ou culpa, e a característica principal desse tipo de crime é ter a
descrição, ou o tipo, de crimes de ação, sendo praticado, entretanto, por meio de
uma omissão.
A relevância da omissão, que representa os crimes comissivos por omissão,
está disposta no art. 13, § 2º, do Código Penal, verbis:
A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia
agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigiância; de outra
forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; com seu
comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
Edmundo Oliveira exemplifica as três situações acima dispostas da seguinte
forma:
primeira situação (art. 13, § 2º, alínea a): a mãe deixa de alimentar
o filho menor que vem a falecer de inanição (obrigação determinada
86
87
JESUS, Damásio de. Direito Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 207.
JESUS, Damásio de. Direito Penal. 24. ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 207.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
205
pelo art. 385 do Código Civil). A obrigação de cuidado, proteção ou
vigilância advém das vinculações de pátrio poder, casamento, família,
tutela, curatela, adoção e outras admitidas pela lei civil;
segunda situação (art. 13, § 2º, alínea b): não há exigência de um
dever estabelecido em lei, mas o agente, em geral através de contrato
profissional, assume encargos. Exemplos: médico em relação ao
paciente, enfermeiro em relação ao doente. Colocando-se o sujeito
na posição de garantir a não-ocorrência do resultado lesivo, se o
mesmo vier a ocorrer, o agente será responsabilizado pela falta do
dever de agir. Exemplo: o cirurgião não retira a pinça que, ao fazer
uma laparatomia, esqueceu no abdômen do paciente, vindo este, em
conseqüência, a morrer;
terceira situação (art. 13, § 2º, alínea c): o agente assume o
compromisso de impedir o resultado danoso oriundo de uma situação
de perigo que ele gerou para a vítima. Dois exemplos: 1) um ótimo
nadador convida alguém para nadar e, em determinado instante, vendo
que o principiante está perdendo as forças, não o acode, deixando-o
morrer; 2) o agente, tendo retido uma pessoa em cárcere privado,
deixa-a morrer por falta de alimento.88
Considerando-se os exemplos citados acima, é possível concluir que, quando
o médico se omite de alguma forma e provoca a morte de um paciente, estando
presentes todos os requisitos necessários para a responsabilização, é geralmente
enquadrado no art. 13, § 2º, alínea b, do Código Penal. Entretanto, antes de
concluirmos dessa forma, faz-se necessária a análise comparativa da estrutura do
crime comissivo por omissão e do crime de omissão de socorro.
Nos casos em que o médico deixa de atuar quando lhe era exigível fazêlo, há divergências quanto à capitulação da infração criminal cometida. Uma
corrente entende que o médico pratica omissão de socorro e outra, considerando
sua posição de garantidor, afirma que o médico comete um crime comissivo por
omissão, respondendo pelo resultado lesivo a título de culpa, conforme é possível
se depreender da análise de ementas de acórdãos proferidos pelo Tribunal de Alçada
de Minas Gerais, verbis:
Comete crime de omissão de socorro o médico que, em condições de
prestar auxílio, se nega a atender de imediato paciente enfermo, sob a
alegação de não se trata de risco de vida iminente, uma vez que, para
a configuração do delito, não exige a lei penal a gravidade da lesão.
88
OLIVEIRA, Edmundo. Deontologia, Erro Médico e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p.
79-80.
206
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Inexistindo prova segura do nexo de causalidade entre a omissão de
socorro e a morte da vítima, não é de se aplicar a agravante prevista
no parágrafo único, do art. 135, do Código Penal. (Ap. Crim. n.
106.779-6, Rel, Juiz Campos de Oliveira, 1ª Cam. Crim.).
O médico que se omite, recusando-se a atender paciente enfermo, que
vem a falecer, responde por homicídio culposo, porquanto impõe-se
àquele o dever jurídico de impedir a superveniência do resultado,
não havendo que se falar em nexo de causalidade, inexistente nos
crimes omissivos. (Ap. Crim. n. 107.239-1, Rel. Juiz Francisco Brito,
2ª Câm. Crim.).
O Código de Ética Médica, em seu art. 58, como vedação ao médico
impõe: “Deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais
em caso de urgência, quando não haja outro médico ou serviço médico em
condições de fazê-lo”.
Avaliando o sentido penal e ético da omissão, Edmundo Oliveira afirma
que, “perante o Código de Ética (art. 58), não comete falta o médico que vê o
paciente na rua, necessitando de assistência, e não o socorre por não ter sido
procurado por ele. Ao contrário disso, pratica falta de ética o médico que não
acode ao paciente, quando é procurado ou chamado para atender nos casos
caracterizados como de emergência”.89
Quanto ao crime de omissão de socorro do Código Penal, o autor afirma
que qualquer pessoa tem obrigação de socorrer um necessitado, em situação de
perigo, desde que não haja risco pessoal, e o que caracteriza o crime é a indiferença,
o egoísmo, o sadismo ou a simples pressa de não ter tempo a perder. O núcleo
do tipo é não fazer. O médico pode deixar de prestar socorro, mas este não é um
crime próprio do médico.
Vale ressaltar a posição de Wanderby Panasco, que entende que, no caso de
omissão de socorro, o médico tem agravada sua ilicitude e que, embora não haja
uma reserva legal impondo o atendimento a todos os casos, há casos em que sua
recusa se traduz em omissão de socorro, tendo em vista os recursos da região ou
a distância até outro profissional.90
Wanderby Panasco exemplifica como omissão de socorro a situação em que
o médico abandona o paciente após o início do tratamento, de forma arbitrária e
sem justa causa. Outra situação analisada é a do médico em trabalho hospitalar.
89
90
OLIVEIRA, Edmundo. Deontologia, Erro Médico e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.
36.
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 174/176.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
207
Estando ele atendendo a determinados casos clínicos, caso se omita do atendimento
por fatores ligados ao próprio trabalho, a responsabilidade não é do médico, mas
do hospital, que não mobilizou sua equipe dentro de observação de necessidades.
Entretanto, se o médico estiver disponível no hospital, não havendo especialista,
é obrigado a prestar o atendimento inicial, mesmo que atue em área diversa.
Avaliando as especificidades da omissão de socorro no Código Penal,
Edmundo Oliveira avalia ainda:
Como se trata de crime de pura omissão, não cabe tentativa, ou seja,
não se tem como identificar um começo de execução parcial, pois o
simples fato de o agente se abster já consuma o crime.
O crime de omissão de socorro só é punível pela forma de dolo,
não podendo ser imputado a título de culpa. Acrescente-se que o
erro exclui a configuração do dolo. Por conseguinte, não se pode de
modo algum responsabilizar um médico que passa sem acudir uma
pessoa, achando que ela está apenas repousando, quando, na verdade,
a pessoa havia tentado o suicídio. Nessa hipótese, o médico atuou
com erro sobre a ilicitude do fato, ou seja, com erro de proibição.
Agora, na hipótese de o médico presenciar o paciente dar cabo da
própria vida (...) pode haver omissão de socorro do médico, se ficar
caracterizado o dolo.91
A omissão de socorro que abrange médicos, quase sempre, confunde-se com
a negligência, mas, na omissão, o crime é doloso e, na negligência, culposo.
Em que pese à controvérsia existente, é possível considerar que o médico
possui, em decorrência de seu status de garantidor, um dever específico de proteção,
característico dos crimes comissivos por omissão, e não um dever genérico de
proteção, como no caso do delito de omissão de socorro, que é atribuível a todos
que vivem em sociedade. Entretanto, havendo a omissão de socorro por parte
de um médico, especialmente se decorrer da não-existência de contraprestação
pecuniária, o fato agrava-se.
Outro aspecto a ser analisado é a existência, ou não, de causalidade na
omissão. Nos termos da lei (art. 13 do Código Penal), existe causalidade na
omissão, pois considera-se causa a ação ou a omissão sem a qual o resultado não
teria ocorrido. Grande parte da doutrina entende que não há nexo causal entre a
omissão e o resultado, e, sim, uma avaliação normativa. O agente responderia
pelo resultado não porque o causou com a omissão, mas porque não o impediu
mediante a realização da conduta a que estava obrigado.
91
OLIVEIRA, Edmundo. Deontologia, Erro Médico e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.
37.
208
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Os doutrinadores indagam se o não impedir o resultado equivale a
causá-lo e afirmam que o resultado não se produz pela omissão, mas por forças
naturais que operam paralelamente, razão pela qual seria incorreto falar em
causalidade omissiva.
Magalhães Noronha afirma que a omissão é tão real quanto a ação, pois é
expressão de vontade do omitente.92 Tendo conteúdo real, não é um nada, como
afirmam alguns autores, mas algo suscetível à determinação e à percepção. Como
tal pode dar lugar a um processo causal.
Álvaro Mayrink da Costa, de modo contrário, afirma que “a doutrina se
pacifica ao assumir que entre a omissão e o resultado típico inexiste um nexo de
causalidade” e que não há que se admitir o desencadeamento de um processo causal
real. Acrescenta, contudo, que, “a despeito da evolução doutrinária, não se pode
prescindir dos processos causais hipotéticos com o objetivo de avaliar se o autor
típico teria ou não podido evitar a produção do resultado com o seu atuar” e que
“a posição de garante, como questão situada no tipo dos injustos de comissão por
omissão, torna-se válvula de escape para sua punição”.93
Dessa forma, o que ficou claro é que, mesmo que se considere a causalidade
omissiva somente pelo ângulo normativo, haverá responsabilização do agente que
se tenha omitido apesar do dever de agir, e a discussão doutrinária quanto à natureza
dessa relação de causalidade não tem resultados práticos significativos.
A lei considera que o não-fazer tem o mesmo valor do fazer. Entretanto, não
ocorrerá a responsabilização do agente nos casos em que o resultado aconteceria
mesmo que ele tivesse agido.
Cabe ressaltar que, quando é feita referência a erro médico, pretende-se
abranger não só a conduta culposa positiva do profissional da área médica que
venha a causar danos aos seus pacientes, mas também a negação da prestação de
seus serviços, quando lhe era exigível atuar.
9.2 O NEXO DE CAUSALIDADE
Art. 13 – Relação de causalidade
O resultado, de que depende a existência do crime, somente é
imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou
omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
92
93
NORONHA, Magalhães. Direito Penal: introdução e parte geral. Vol. 1. 31. ed. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 114.
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito Penal: parte geral. Tomo 2. 6. ed. atual.e ampl., Rio de Janeiro:
Forense, 1998, p. 1198.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
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§ 1º A superveniência de causa relativamente independente exclui a
imputação, quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores,
entretanto, imputam-se a quem os praticou.
§ 2º A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia
agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o
resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do
resultado.
O art. 13 do Código Penal só alude aos crimes em que haja resultado, ou
seja, aos crimes materiais. Nos crimes materiais, é necessário um liame entre a
ação e o resultado para que a infração seja configurada. Os crimes formais, em
contrapartida, consumam-se com a ação. Dessa forma, nesses crimes, que se
classificam em crimes de mera conduta ou de conduta específica, a causalidade
está afastada.
Magalhães Noronha afirma que a ação e a omissão causais devem estar
acompanhadas do contingente subjetivo, ou seja, deve estar presente a vontade.
Nos casos de inconsciência ou coação, por exemplo, não há que se falar em ação.
Afirma, ainda, que a ação é causa quando sem ela o resultado não teria ocorrido,
ou seja, quando entre ela e o resultado houver uma relação de causa e efeito.94
No que se refere à causalidade na omissão, conforme afirmado no capítulo
anterior, não há pacificação na doutrina quanto à existência de nexo causal, mas a
omissão deve ser considerada como causa somente quando o agente tiver o dever
de agir, ou seja, quando tiver o dever de impedir o resultado, em conformidade
com o § 2º do art. 13 do Código Penal.
O resultado, segundo Magalhães Noronha, “sob o ponto de vista naturalista
ou material, é a modificação que se opera no mundo exterior em conseqüência da
ação. Sob o aspecto jurídico ou formal é quando ele é considerado pela lei, fazendo
parte integrante do tipo”.95 (Grifos no original).
Após as considerações realizadas acerca da ação em sentido amplo
(compreendendo a omissão) e o resultado, é necessário analisar quando a ação é
elevada à categoria de causa. Giuseppe Bettiol conceitua causa como sendo “o
94
95
NORONHA, Magalhães. Direito Penal: introdução e parte geral. Vol. 1. 31. ed. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 114.
NORONHA, Magalhães. Direito Penal: introdução e parte geral. Vol. 1. 31. ed. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 115.
210
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
conjunto de todas as condições necessárias e suficientes para a produção de um
evento”.96 (Grifos no original).
A teoria adotada pelo Código Penal, que tem suas raízes filosóficas em
ensinamentos de Stuart Mill, é a da equivalência dos antecedentes causais. Também
conhecida como teoria da conditio sine qua non, caracteriza-se por não distinguir
condição e causa. Tudo o que contribui para o resultado é causa, ou seja, todos os
antecedentes do resultado, qualquer ação ou omissão, têm relevância causal, desde
que imprescindíveis ao aparecimento do resultado.
Para saber se um componente da ação é causa do resultado, devemos utilizar
o “procedimento hipotético de eliminação”, que é um raciocínio segundo o qual
excluímos mentalmente a ação da série de elementos que compõem a causa. Se,
com a exclusão, o resultado teria deixado de acontecer, esse componente é causa;
caso contrário, não é causa.
A grande extensão do conceito de causa, que apresenta um critério lógico
bastante vasto, tem sido a principal crítica endereçada à teoria da conditio sine
qua non, porque a ampla investigação das causas levaria à responsabilização de
todos os agentes que tiveram qualquer relação com o crime.
Para evitar o que se denomina regressus ad infinitum, que faria com que
fossem punidos todos quantos houvessem física ou materialmente concorrido para
o evento, deve ser considerada a causalidade subjetiva, ou seja, a presença de culpa
(em sentido amplo). Ninguém é punido porque teve algum tipo de ligação com o
fato, mas, sim, porque direcionou a conduta para a ocorrência do crime.
Dessa forma, ao incluir elementos de fato no conceito de evento, o jurista
deve ter uma visão normativa e deve evitar a “exasperação” da causalidade,
característica que a teoria da equivalência traz em si.
Além da conduta do agente, devem ser consideradas as causas e as concausas
preexistentes, concomitantes e supervenientes, que podem apresentar-se como
absoluta ou relativamente independentes da conduta inicialmente avaliada e que
podem romper ou não o nexo de causalidade. Na relação de causalidade iniciada
pelo comportamento do agente, pode-se interferir outra condição, que se sobrepõe
à primeira, conduzindo os fatos para outro resultado e iniciando nova cadeia causal
ou desviando o curso causal inicial.
O que interessa é saber se o acontecimento se explica completamente pela
análise da última ocorrência. Se a nova condição basta, sem recorrer à condição
anterior para explicar o resultado, ou seja, se a causa superveniente encontra-se
inteiramente fora da corrente causal, se é absolutamente independente da ação do
96
BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Vol. 2. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 295.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
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agente, em conformidade com o caput do art. 13 do Código Penal, não se considera
a condição inicial, e o ciclo causal se fecha entre a nova condição e o resultado
ocorrido. A responsabilidade pelo evento mais danoso só pode ser excluída quando
ela advém de uma causa absolutamente independente, que não tenha ligação com
o ato praticado.
Entretanto, surgem dificuldades quando a causa superveniente é relativamente
independente, ou seja, quando se insere na linha de causalidade provocada pela ação
ou omissão do sujeito, dando nova direção ao curso dos acontecimentos e atuando
como se iniciasse uma outra corrente causal. Nesse caso, deve-se considerar o
parágrafo único do art. 13 do Código Penal, que determina uma limitação à teoria
da equivalência das condições e dispõe que a superveniência de causa relativamente
independente relativiza a imputação, desde que, por si só, produza o resultado. O
agente causador do primeiro fato responde apenas pelos fatos anteriores, se estes
estiverem definidos na lei como crimes.
Poderia ser citado para ilustrar essa situação o exemplo clássico de homicídio
tentado, em que a morte da vítima ferida se dá em decorrência de incêndio ou
desabamento no hospital. Obviamente, o ferimento é causa, visto que, sem ele, a
vítima não teria sido internada no hospital, mas o incêndio foi causa independente,
que inaugurou outro curso causal. Houve rompimento do nexo causal com a
ocorrência de uma concausa relativamente independente, não podendo o resultado
ser imputado ao agente, que responderá pelos fatos anteriores. Entretanto, se o
ferido morre em decorrência de terremoto que atingiu parte da cidade, não subsiste
nenhum nexo de causalidade entre a ação precedente e a morte.
Dessa forma, percebe-se que a ação humana, sob o perfil jurídico, desfruta
de importância causal enquanto determinar normalmente o evento. Se o evento
for uma concausa por um coeficiente causal que o agente não podia calcular, ou
seja, um acontecimento excepcional, ainda que a ação humana, sob um aspecto
lógico-naturalístico deva ser entendida como causa do evento, não poderá ser
considerada como tal sob o aspecto jurídico.
Em termos médicos, Edmundo Oliveira exemplifica a superveniência de
causa relativamente independente com a seguinte hipótese:
um médico dá uma injeção no doente sem esterilizar a seringa, embora
isso fosse possível (se não fosse, dada a urgência de evitar a morte,
caracterizar-se-ia o estado de necessidade e a ação do médico seria
lícita (Código Penal, art. 24)). Em conseqüência, surge um abcesso.
Chamado o cirurgião para o talho, esse corta um nervo, daí resultando
graves distúrbios sensitivos e motores. Nesse caso, a culpa do primeiro
médico é limitada à produção da infecção localizada que, por si só, não
212
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
levaria à rescisão de um nervo. O primeiro médico responde somente
pela infecção. A ação errada do segundo médico inseriu uma nova
causa lesiva, que, por si só, era suficiente para levar à morte.97
Percebe-se o rompimento do nexo de causalidade inicial, visto que o
tratamento do segundo médico não se encontra na linha de desdobramento físico
do primeiro.
Podem ocorrer situações em que não há rompimento do nexo causal mesmo
com o surgimento de causa superveniente. É o que se observa, v.g., quando o agente,
pretendendo matar um inimigo, provoca-lhe lesão e, em tratamento médico, a vítima
adquire uma infecção grave e morre. A morte ocorre em decorrência da infecção,
mas esta se situa na linha de desdobramento do perigo causado pela lesão. Nesse
caso, o agente responderia por homicídio consumado.
O estado patológico da vítima, que conjuntamente com o agente contribuiu
para o evento lesivo, não exclui a relação de causalidade entre a ação ou a omissão
e o evento. Dessa forma, se uma anomalia orgânica do sujeito torna mortal uma
simples ferida, a responsabilidade é do agente.
Da avaliação dos casos acima, percebe-se que determinar como os
eventos ocorreram é matéria de fato, e não de direito, e tudo depende das provas
apresentadas.
Magalhães Noronha afirma que a teoria da equivalência dos antecedentes
se situa exclusivamente no terreno do elemento físico ou material do delito e, por
isso, não pode, por si só, satisfazer à punibilidade.98
No mesmo sentido, Aníbal Bruno defende que nem todo nexo causal é
relevante para o direito. Somente interessa aquele em que a ação praticada pelo
sujeito se reveste de características do fato punível. A imputação do fato não inclui
o agente na categoria de autor, acarretando o ônus da responsabilidade penal.
É necessário que sejam considerados os outros aspectos do fato punível, como
a tipicidade, a antijuridicidade, e, especificamente em relação ao agente, a sua
imputabilidade e a sua culpabilidade.99
Giuseppe Bettiol considera que o erro fundamental da teoria da conditio
sine qua non consiste no nivelamento das condições. Afirma que “equiparar a
ação humana a um fator meramente mecânico é desnaturar a ação naquilo que ela
tem de peculiar: a possibilidade de erigir-se sobre todos os demais fatores e de
97
98
99
OLIVEIRA, Edmundo. Deontologia, Erro Médico e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.
70.
NORONHA, Magalhães. Direito Penal: introdução e parte geral. Vol. 1. 31. ed. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 118.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte Geral. Tomo 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 331.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
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coordená-los para um determinado fim”. Conclui seu pensamento afirmando que,
apesar de a relação causal não significar afirmação de responsabilidade, tendo em
vista a exigência de outros requisitos, a ação humana estaria sempre violentada
em sua natureza, esquematizada no seu coeficiente físico, apesar de ter um caráter
valorativo-finalístico.100
Não obstante a crítica apresentada, Bettiol entende que a teoria da
equivalência das condições pode-nos oferecer algum critério na determinação de
existência do nexo de causalidade e é a única que pode emprestar fundamento ao
problema causal. Ela não serve quando se quer caracterizar como causa uma ação
humana, mas tem, sobretudo,
função de limite, visto que fora do âmbito de validade da conditio sine
qua non, é inútil indagar se uma ação humana pode ser considerada
causa de um evento lesivo. Isso significa que a ação humana deve
ser conditio sine qua non do evento, mas deve apresentar alguma
característica ulterior para que possa assumir a qualificação de
causa.101
Avaliando a causalidade na conduta médica culposa, Arinda Fernandes
afirma que,
para que uma conduta, originada por uma das modalidades da culpa,
possa ser erigida à categoria de causa relativamente a certo resultado,
torna-se necessário que a falta de diligência e as circunstâncias
concretas revelem que o fato não teria ocorrido se o agente se
comportasse com a devida atenção.
E conclui afirmando que “tudo gira em torno daquilo que o agente poderia
evitar ou realizar para impedir uma lesão ao bem juridicamente tutelado”. 102
São excludentes da responsabilidade médica a conduta culposa da vítima
(paciente inadimplente), o fato de terceiros (ação dolosa ou culposa de outrem que
não o médico), o caso fortuito e a força maior (anomalias), que alteram a relação
de causalidade.
100
101
102
BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Vol. 2. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 297.
BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Vol. 2. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 298.
FERNANDES, Arinda. Crimes Médicos. (Tese de doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: 1982, p. 54.
214
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
9.3 CONCURSO DE PESSOAS
A realização de um tipo penal pode ser produto da ação de um ou vários
indivíduos. A medicina a cada dia é mais complexa e exigente de especialização,
razão pela qual vem obrigando o comprometimento de vários profissionais de
saúde na realização dos procedimentos médicos.
Na avaliação das condutas de cada profissional na realização conjunta de
um ato médico, vários conceitos doutrinários devem ser considerados.
Segundo José Frederico Marques, para que haja concurso de agentes,
exigem-se os seguintes requisitos: pluralidade de suas condutas, relevância causal
de cada conduta, vínculo subjetivo ligando cada sujeito às diversas condutas e
identidade de infração para todos os agentes.103
Obviamente, concorrendo mais de uma pessoa para a prática de um delito,
cada uma terá uma conduta específica. Embora todos os agentes queiram contribuir
com sua conduta para a realização do fato criminoso, não o fazem da mesma
forma nem em igualdade de condições. A contribuição pessoal pode ser prestada
de maneira física ou moral, comissiva ou omissiva, direta ou indireta, antes ou
durante a execução. A participação após a execução, para caracterizar concurso
de pessoas, só será possível caso haja ajuste prévio.
O princípio da causalidade, conforme avalia José Frederico Marques, é a
base da construção dogmática da co-delinqüência, uma vez que a causalidade é
o vínculo que estreita todas as condutas e as engloba na estruturação do delito
único. É necessário que a conduta tenha sido eficaz para provocar ou facilitar o
surgimento de outra e que cada uma das condutas individuais se insira na corrente
causal, influindo sobre o resultado.104
Outro requisito é que haja cooperação voluntária e consciente e um nexo
psicológico com a ação típica do delinqüente principal. Para se caracterizar o
concurso de pessoas, todos os agentes devem agir com culpa ou com dolo. Havendo
heterogeneidade do elemento subjetivo, no tocante a cada um dos co-delinqüentes,
não se considera a ocorrência de concurso de pessoas. Cada um dos sujeitos
responde pelo delito a título de dolo ou culpa, independentemente de consideração
sobre o outro concorrente.105
103
104
105
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. 2. 1. ed. atual. Campinas: Bookseller, 1997,
p. 405.
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. 2. 1. ed. atual. Campinas: Bookseller, 1997,
p. 407.
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. 2. 1. ed. atual. Campinas: Bookseller, 1997,
p. 422.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
215
Cabe ressaltar que cada um dos agentes responde pelo mesmo crime – tentado
ou consumado –, e as circunstâncias pessoais, quando elementares do crime, se
comunicam.
Três teorias avaliam a natureza jurídica do concurso de agentes para
determinar se, dada a colaboração diversa dos agentes, há um ou mais delitos: as
teorias monista, pluralista e dualística. A teoria monista considera que, no concurso
de pessoas, há um só crime; a pluralista, que há vários crimes, e a dualística, que
há um crime em relação aos autores e outro em relação aos partícipes.
Em conformidade com o artigo 29 do Código Penal, no Brasil, foi adotada
a teoria monista, equiparando autores e partícipes. O fundamento dessa teoria é a
unidade do crime. O crime é considerado único e igual relativamente a todos os
que dele participem. Apesar da multiplicidade de agentes e da diversidade de suas
condutas, cada conduta é considerada como parte integrante de um todo.
O concurso de pessoas pode-se dar na forma da autoria, da co-autoria e da
participação. Há várias teorias sobre co-autores e partícipes, e a diferenciação entre
elas ocorre em função de considerar, ou não, a acessoriedade da participação. A
teoria adotada pelo Código Penal é a teoria causal, que traz à categoria de autores
todos os que tenham concorrido para a prática do delito.
A pena é graduada na medida da culpabilidade de cada agente, e o Código
Penal deu tratamento especial à participação de menor importância, reduzindo a
pena de um sexto a um terço.
É absoluta a concordância doutrinária no sentido de que autor é quem
realiza a conduta típica. Entretanto, quanto à co-autoria e à participação, há vários
posicionamentos divergentes. Uma corrente doutrinária entende que, para haver
a co-autoria, deve haver cooperação consciente recíproca e que, na participação,
a cooperação pode ser unilateral, desde que haja vontade livre e consciente de
colaborar na ação delituosa de outrem. O entendimento diverso é no sentido de
que, tanto na participação quanto na co-autoria, não há necessidade de acordo,
bastando a consciência unilateral do co-autor ou do partícipe de contribuir para
o fato de outrem.
Magalhães Noronha parece pertencer à primeira corrente, visto que entende
que tem-se a co-autoria quando a execução é praticada por duas ou mais pessoas
conscientemente e em cooperação. Noronha conceitua o partícipe como sendo
quem adere ao crime, praticando atos diversos dele.106
106
NORONHA, Magalhães. Direito Penal: introdução e parte geral. Vol. 1. 31. ed. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 208.
216
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
O partícipe comete uma ação que, analisada isoladamente, não constitui
elemento do tipo delituoso. Entretanto sua conduta, ainda que não típica, incide
nas penas cominadas ao crime por ser acessória ou subordinada à considerada no
tipo, em conformidade com o art. 29 do Código Penal. O alargamento do âmbito
da norma incriminadora é justificado pelo fato de que, “na defesa dos interesses
sociais, a lei amplia o âmbito do delito para compreender não só a ação que integra
a figura delitiva como também outras que a ela se agregam e são necessárias para
sua efetivação”.107
Ultrapassados os conceitos fundamentais, aspectos relevantes no caso do
crime médico, considerando o concurso de pessoas, é a avaliação da participação
nos crimes culposos, nos crimes omissivos e a participação por omissão.
Há grande divergência doutrinária quanto à possibilidade de ocorrência
de concurso de pessoas nos crimes culposos. Entende-se que a vontade de uma
pessoa pode-se conjugar à do autor principal também no crime culposo. Mesmo
que ambos não queiram nem prevejam o resultado, desejam a ação de que decorreu
o evento. Dessa forma, configura-se o concurso de pessoas no crime culposo, se
o resultado, embora previsível, não é previsto ou, se previsto, não é evitado. A
vontade comum se dirige à conduta imprudente.
Considera-se incontestável a hipótese de concurso de pessoas no crime
culposo na forma da co-autoria, como no caso da realização de uma cirurgia por
médicos imperitos. A participação parece, em tese, descabida no crime culposo, uma
vez que a colaboração consciente para o resultado só existe no crime doloso.
José Frederico Marques ressalta que, antes de 1984, o concurso de pessoas
era tratado como co-autoria e que se dizia, antes da reforma, que cabia co-autoria
em crime culposo. Entretanto, atualmente, com a diferenciação feita pelo código
entre co-autor e partícipe, afirma que o correto é sustentar que cabe co-autoria no
crime culposo, mas não cabe participação, pois a este ficou reservada a conduta
acessória. No entender do autor, na culpa, quando alguém presta auxílio ou instiga
outrem a descumprir o dever de cuidado objetivo, está igualmente infringindo o
mesmo dever e agindo de forma imprudente, negligente e/ou imperita, de modo
que é co-autor, e não mero partícipe.108
Ampliando o entendimento quanto à possibilidade de ocorrência do concurso
no crime culposo, Magalhães Noronha afirma que nada impede sua caracterização
desde que haja vontade na ação e na previsibilidade do evento. O autor exemplifica
107
108
NORONHA, Magalhães. Direito Penal, introdução e parte geral. Vol. 1. 31. ed. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 208.
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. 2. 1. ed. atual. Campinas: Bookseller, 1997,
p. 409.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
217
que, “se, v.g., uma pessoa instiga o condutor de um automóvel a dirigi-lo a toda
velocidade, disso resultando o atropelamento de um pedestre, ambos foram causa
culposa do resultado: um instigando, outro executando materialmente o crime”, e
cita a cooperação na própria ação como, v.g., se dois operários atiram uma trave
na calçada atingindo um transeunte. De toda forma, esses casos são de difícil
comprovação.109
No caso de ações culposas sucessivas ou simultâneas, mas independentes,
torna-se ainda mais difícil a configuração do concurso de pessoas.
Avaliando o crime omissivo próprio, considerando que a co-autoria é a
divisão de tarefas para a obtenção de um resultado comum e que cada omissão
seria completa e autônoma em si, não se detectou a possibilidade de caracterização
da co-autoria.
Entretanto, há entendimentos em sentido contrário. Cezar Roberto Bitencourt
entende como perfeitamente possível a co-autoria em crime omissivo próprio,
exemplificando que,
se duas pessoas deixarem de prestar socorro a uma pessoa gravemente
ferida, podendo fazê-lo sem risco pessoal, praticarão, individualmente,
o crime autônomo de omissão de socorro. Agora, se essas duas
pessoas, de comum acordo, deixarem de prestar socorro, nas mesmas
circunstâncias, serão co-autoras do crime de omissão de socorro. O
princípio é o mesmo dos crimes comissivos: houve consciência e
vontade de realizar um empreendimento comum, ou melhor, no caso,
de não realizá-lo conjuntamente.110 (Grifos no original)
A participação no crime omissivo próprio parece possível, especialmente
na forma da instigação. No entender de Cezar Roberto Bitencourt,
assim como o crime comissivo admite a participação através de
omissão, o crime omissivo também admite a participação através
de comissão. O que ocorre – segundo Bustos Ramirez – é a
impossibilidade de participação omissiva em crime omissivo, sob a
modalidade de instigação. Não se pode instigar através de omissão,
pela absoluta falta de eficácia causal dessa inatividade.111 (Grifos no
original)
109
110
111
NORONHA, Magalhães. Direito Penal: introdução e parte geral. Vol. 1 31. ed. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 221.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 4. ed. rev. ampl. atual. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 422.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 4. ed. rev. ampl. atual. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 421.
218
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Nos crimes propriamente omissivos, como o crime de omissão de notificação
de doença (art. 269 do Código Penal), é fácil a compreensão de que uma pessoa
possa induzir outra a manter uma conduta criminosa. Nesse caso, a contribuição
causal se realizaria por meio de comissão por parte de quem instiga o autor da
omissão. Mais complicada é a participação nos crimes omissivos impróprios.
Cezar Roberto Bitencourt avalia, ainda, que a “participação também pode
ocorrer nos chamados “crimes omissivos impróprios” (comissivos por omissão),
“mesmo que o partícipe não tenha o dever jurídico de não se omitir”. Se tivesse
tal dever, seria igualmente autor ou co-autor, se houvesse a resolução conjunta de
se omitir.”112(Grifos no original).
José Frederico Marques afirma que “a participação pode ocorrer tanto nos
delitos omissivos como nos comissivos”, esclarecendo que “o indivíduo que deixa
de fazer quod debeatur, por instigação de terceiro, comete um crime omissivo com
a participação deste”. Afirma, ainda, que alguém pode cooperar no crime por meio
de comportamento omissivo, desde que a omissão seja conditio sine qua non do
fato típico. “Na participação mediante omissão basta, do ponto de vista causal, que
se não tenha impedido o crime deixando de praticar a conduta devida”. Entretanto,
é necessário que haja dever de praticar o ato.113
Dessa forma, percebe-se que só existe participação em delito omissivo
impróprio quando o omitente tem o dever de impedir o cometimento do crime,
em conformidade com o art. 13, § 2º, do Código Penal. O dever jurídico de evitar
o evento torna causal a conduta omissiva. Edmundo Oliveira exemplifica tal
possibilidade com situação em que o médico assiste inerte à omissão da mãe que
resolve matar o filho por inanição. Afirma que, “se ficar demonstrado que o médico
violou a sua obrigação, aderindo ao comportamento negativo da mãe, autora do
crime, esse médico será também punido por homicídio culposo”.114
Entretanto, o elemento subjetivo da participação deve ser investigado no
próprio campo da tipicidade, visto que o nexo psicológico, que liga o participante
ao crime, além dos demais requisitos, é elemento imprescindível para que ação
acessória se transforme em fato típico.
Arinda Fernandes cita como exemplo de omissão imprópria uma situação
em que um médico é chamado por uma paciente para assistir a uma cirurgia, que,
sem a sua presença, não seria realizada, tendo em vista a confiança depositada
112
113
114
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 4. ed. rev. ampl. atual. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 422.
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. 2. 1. ed. atual. Campinas: Bookseller, 1997,
p. 419.
OLIVEIRA, Edmundo. Deontologia, Erro Médico e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.
129.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
219
naquele médico. Sendo bastante experiente e tendo detectado incorreções nas
constatações feitas pelo médico que estava realizando a cirurgia, mesmo após ter
sido questionado por ele, o médico que acompanhava o procedimento se absteve
de dar qualquer opinião.115
Do ato médico resultou lesão de natureza grave. A supracitada autora,
analisando o evento, afirma que se esperava do médico que assistiu a cirurgia
uma ação, tendo em vista dever jurídico que se lhe impunha. “Calando-se, omitiuse. Sem a omissão, o resultado não teria ocorrido. Assim, contribuiu, de forma
omissiva, para o evento. Foi cúmplice de seu colega”.116
Conforme exposto anteriormente, para a constatação do concurso de pessoas
na execução de um tipo penal determinado, faz-se necessária a análise criteriosa
das circunstâncias e a constatação de todos os requisitos necessários.
Retomando um desses requisitos, que é a necessidade de vínculo subjetivo
ligando cada sujeito às diversas condutas, no caso dos atos de profissionais de
saúde, cabe citar exemplificação feita por Giuseppe Bettiol,117 que relata hipótese
em que o médico deixa, imprudentemente, de guardar veneno muito perigoso, do
qual se sirva a enfermeira, conscientemente, para provocar a morte de paciente
internado no hospital. Nesse caso, o médico responderá por homicídio culposo, e
a enfermeira por homicídio doloso. Não se pode falar em concurso de pessoas.
A maioria dos problemas relativos ao concurso de pessoas em relação a
erros médicos é a identificação da autoria de lesões causadas em decorrência de
atos cirúrgicos.
Segundo alguns autores, no juízo cível, surgiria a responsabilidade do chefe
da equipe médica, a qual absorveria a dos demais partícipes pela culpa in eligendo,
uma vez que os auxiliares normalmente são escolhidos pelo médico-chefe. Já no
juízo criminal, tem prevalecido o entendimento de que cada membro da equipe
responde por seus atos.
Wanderby Panasco ressalta que
houve época, e, principalmente, entre os tribunais franceses, em que
toda a responsabilidade do ato cirúrgico cabia ao cirurgião, incluindo,
até mesmo, o ato anestésico e a enfermagem, evidenciando a coautoria para os demais auxiliares, em virtude da dimensão da sua
representação hierárquica.
115
116
117
FERNANDES, Arinda. Crimes Médicos. (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro:
Rio de Janeiro: 1982, p. 111.
FERNANDES, Arinda. Crimes Médicos. (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro:
Rio de Janeiro: 1982, p. 113.
BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Vol. 2. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p.
274/275.
220
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Afirma, ainda, que a idéia não cabe mais aos princípios atuais de especialidade,
uma vez que, numa equipe, todos trabalham integrados. A ocorrência, portanto,
responsabilizaria o agente ou o causador direto do dano, muito embora, por vezes,
a equipe cirúrgica leve o nome do cirurgião.118
Segundo o Dr. Aush Morad Amar, a regra acima é válida para os médicos que
têm sob seu nome e responsabilidade profissional equipes bem estruturadas, com
uma divisão de funções e obrigações de acordo com a especialidade de cada um.
No entanto, há equipes que atuam sem esse gabarito. Nesse caso,
ocorrendo acidentes, o responsável é o cirurgião-chefe, tendo como
co-responsável o operador. A regra não exime a responsabilidade do
médico por acidentes provocados por auxiliares paramédicos. Há
sempre um médico responsável, sejam quais forem as circunstâncias
do evento danoso.119
10
AVALIAÇÃO JUDICIAL DOS ERROS MÉDICOS
Inicialmente, cabe ressaltar que, sendo a maioria dos casos de erros
médicos decorrentes de culpa – em especial lesão corporal culposa –, vem sendo
adotada providência que torna desnecessária a avaliação judicial das reclamações
apresentadas. A Pró-Vida, desde março de 2001, vem adotando a composição civil
dos conflitos antes da oferta da denúncia. Tal procedimento é feito por intermédio
da Câmara Técnica de Mediação e Conciliação Prévias em audiência específica. A
transação realizada, além de trazer responsabilização financeira aos profissionais
de saúde, propicia resultados práticos para as vítimas.
Superada tal providência sem resultados, não sendo caso de transação,
suspensão condicional do processo ou tratando-se de crime mais grave, é ofertada
a denúncia. Espera-se do julgador a reconstrução dos fatos com os elementos de
que dispõe. O primeiro requisito que se apresenta quando se discute a avaliação
judicial do erro médico é a exigência de perícia especializada, que é essencial
para a compreensão dos fatos sub judice na maioria das vezes, tendo em vista as
particularidades dos atos médicos.
Na avaliação do erro médico, de forma geral, são indispensáveis o fato de
a intervenção médica ter-se realizado, a existência do dano – lesão ou morte –, a
118
119
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 114.
Apud PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de
Janeiro: Forense, 1979, p. 115.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
221
existência de culpa do profissional de saúde e o nexo de causalidade. Para identificar
a existência dos dois últimos requisitos, o julgador é fortemente desafiado, uma
vez que deve considerar as informações trazidas pelas partes aos autos e aquelas
que o juízo determinou que fossem produzidas.
Tulio Enrique Espinosa Rodriguez avalia que
incumbirá ao juiz avaliar a perícia, sopesar as explicações e
conclusões dos peritos, examinar-lhes a fundamentação (..) e decidir
se deve acatar o laudo, não somente porque este provém de técnicos,
mas sobretudo pela força persuasiva das razões submetidas ao crivo
analítico, autônomo e soberano do julgador.120
Miguel Kfouri Neto considera que, mesmo que revestida de caráter técnico e
científico, a prova pericial pode apresentar defeitos ou inexatidões como qualquer
outro meio de prova, e, de acordo com o princípio da livre convicção, o Juiz, por
ser o peritus peritorum, pode desprezar suas conclusões. Os laudos deveriam,
segundo seu ponto de vista, ser acatados não somente porque provém de técnicos,
mas, sobretudo, pela força persuasiva das razões submetidas à avaliação do
julgador.121
Quanto a objeções surgidas no sentido de que tal atitude revelaria desprezo
pelo técnico em matérias nas quais seu parecer é indispensável, reforçando sua
posição, o autor remete a Frederico Marques, que responde que, se o magistrado
tivesse de ficar preso às conclusões do laudo pericial, o perito acabaria transformado
em juiz da causa.
Superada a necessidade de ser respeitado o princípio da livre convicção
do Juiz, deve ser ressaltado que, especialmente em caso de decisões contrárias
a conclusões técnicas, deve haver maior fundamentação dos motivos do
posicionamento adotado. O parecer pericial não pode ser absoluto, mas, na maioria
das vezes, é relevante.
Questionamentos existem quanto à posição de peritos, tendo em vista o
corporativismo do qual são acusados os médicos. Existe certo descrédito quanto
à correção das informações prestadas por peritos, estando bastante evidente,
inclusive, a dificuldade de obtenção de pareceres que atestem a ocorrência de um
procedimento médico incorreto.
Wanderby Panasco considera que o pesquisador deve analisar e avaliar,
nas diversas legislações, um posicionamento jurisprudencial que se encontre
120
121
Apud KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001, p. 80.
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001, p.80.
222
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
entre o protecionismo à profissão médica e as doutrinas americanas da res ipsa
loquitor.122
Dispõe a doutrina da res ipsa loquitor ou a do “conhecimento comum”,
common knowledge, que a prova da negligência profissional pode ser baseada na
evidência circunstancial de certas espécies de maus resultados, sem a interveniência
de peritos das partes na avaliação processual.
A adoção dessa doutrina é perigosa na medida em que atos que parecem
ser obviamente incorretos para a população leiga podem ter peculiaridades que
precisam ser consideradas.
Assim, claro está que não se coloca em dúvida a capacidade do juiz de direito
para julgar crimes médicos, devendo apenas ser feita a ressalva de que a decisão
acerca de crime que envolva um profissional de saúde, sem avaliação pericial, pode
promover a injustiça e o afastamento da busca da verdade real.
Havendo divergências, deve-se ouvir mais de uma opinião, uma vez que,
mesmo que o laudo não represente a resolução do caso, é uma prova cuja relevância
é incontestável.
Tendo em vista a dificuldade de obtenção de laudos para avaliação das
reclamações formuladas contra os profissionais de saúde, é importante que haja
peritos disponíveis para o apoio ao Ministério Público e ao Judiciário.
Com a avaliação de procedimentos investigativos da ocorrência de erros
médicos, é claramente perceptível a complexidade existente na apuração dos fatos,
na formulação das denúncias e, obviamente, na avaliação judicial dos casos. Cada
caso de culpa médica é singular.
Delton Croce, analisando a avaliação judicial dos erros médicos, afirma:
As denúncias criminais de médicos por imprudência, imperícia e
negligência, mor das vezes, terminam em decisões absolutórias, dada
a circunstância de não ser a Medicina uma ciência exata, pelo que
nem sempre se pode imputar um tratamento médico desfavorável
ao profissional que a exerce (...) além do que, com raras exceções,
a convicção do honesto julgador só não decai para o non liquet,
pespegando o consagrado princípio jurídico do “paralelismo” na
aplicação da lei in dubiis benignus interpretandum pro reo, em face da
absoluta certeza da existência de grosseiras ações de marcada imperícia,
imprudência ou negligência ensejadoras de responsabilidade criminal.
Pois, máxime no processo criminal, a condenação exige a concientia
122
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 2/3.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
223
subitandi secura, fundada em dados objetivos indiscutíveis, de caráter
geral, quer de crime, quer de autoria.123
Em termos criminais, a nossa jurisprudência, até hoje, de forma muito
tranqüila, só tem interferido em atos médicos quando o erro é de fato notório,
aberrante, ferindo a acuidade até do homem comum.
É incontestável a complexidade da avaliação no caso de erros médicos, e não
se pretende a apresentação de fórmulas que simplifiquem essa avaliação. Entretanto,
é necessário que o assunto seja mais estudado e que suas particularidades sejam
compreendidas pelos operadores do direito, de forma a possibilitar uma justa
avaliação desses casos, o que vem gradativamente acontecendo.
A partir do momento em que o ato médico passou a ser levado com maior
seriedade à avaliação judicial, têm-se detectado argumentações no sentido de que o
progresso da medicina estaria sendo barrado pelo temor de responsabilização criminal
de médicos, que perderiam até mesmo o estímulo para exercer sua profissão.
Cabe ressaltar interessante citação feita por Gualter Luiz, que afirma:
Erram aqueles que pretendem que os profissionais se deixariam
acovardar pela possibilidade de um processo. O médico que
primeiramente ousou praticar a ablação dos ovários foi um clínico
de roça dos EEUU. Enquanto o abnegado médico executava a
operação, aglomerava-se diante de sua porta uma multidão ignara, na
mais ameaçadora das atitudes. O temor do linchamento não deteve
o cirurgião americano; não será o temor da eventualidade apenas
conjectural de um processo jurídico que deterá os inovadores da
arte de criar. 124
É possível garantir julgamentos justos sem desvalorizar a classe médica,
cuja relevância social é incontestável e também disponibilizar uma resposta do
Ministério Público e da Justiça ao cidadão que se sinta lesado.
CONCLUSÃO
Durante a realização deste trabalho, pretendeu-se a delimitação do
crime médico específico e a conceituação de institutos necessários à análise e à
compreensão do erro médico.
123
124
CROCE, Delton; CROCE JÚNIOR, Delton. Erro Médico e o Direito. São Paulo: Oliveira Mendes,
1997, p. 10.
Apud PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de
Janeiro: Forense, 1979, p. 4.
224
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Considerando o volume de procedimentos existentes na Pró-Vida e a
identificação preponderante de reclamações da prática de crimes culposos, a
realização de transação em audiência de transação civil pela Câmara Técnica
de Mediação e Conciliação Prévias permite que os acordos realizados garantam
efetividade de compensação às vítimas, punição razoável à classe médica e forma
de estabilização social, além de impedir a denúncia e a avaliação criminal, que é
complexa e longa.
Ultrapassadas as observações iniciais, é relevante uma avaliação global do
julgamento do erro médico.
O posicionamento contrário à maior parte da doutrina pesquisada que
vale ser ressaltado diz respeito ao entendimento de que o erro médico pode ser
detectado tanto no tratamento, quanto na formulação do diagnóstico, quanto na
escolha da terapêutica.
Outro aspecto relevante é que alguns especialistas da área médica defendem
que os crimes que envolvem profissionais de saúde só teriam um tratamento
eficaz, caso houvesse um Tribunal Médico para julgá-los, em decorrência de suas
peculiaridades. Defendem que, fora os casos de erro grosseiro, que ferem a acuidade
técnica dos médicos, as avaliações judiciais tornam-se temerosas.
Não se questiona que seja muito difícil julgar erros médicos. É complexa
a avaliação de decisões tomadas, por exemplo, durante um ato cirúrgico, que
podem ter sido necessárias em decorrência das condições orgânicas do paciente.
Entretanto, é possível e necessário que o Ministério Público busque, com isenção
e estruturação adequadas, identificar os procedimentos médicos adotados e se
posicionar acerca da ocorrência de irregularidades.
Pela grande importância social que exerce, a medicina não pode, como se
pretendeu em épocas passadas, atribuir a todos os atos médicos a impunibilidade,
ou, melhor dizendo, a irresponsabilidade.
O direito não interfere no campo técnico, nem busca negativar os
progressos da medicina por meio de sua ação fiscalizadora. Sua atuação é reflexo
do desenvolvimento de todos os ramos profissionais, que têm que se moldar à
doutrina que rege os direitos e deveres da vida social, de forma a buscar a isonomia.
Cuidando do maior bem jurídico do homem, que é a vida, não seria compreensível
a omissão fiscalizadora.
Por outro lado, percebe-se claramente a preocupação e o cuidado dos
Tribunais na realização dos julgamentos de responsabilidade médica, tendo em
vista suas especificidades. Além disso, como a ciência é conjectural e está em
permanente renovação, há consciência de que o erro do presente pode ser a verdade
do futuro, e vice-versa.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
225
Na avaliação judicial, devem ser consideradas as condições de atendimento
de que o médico dispunha, as precariedades de nosso sistema de saúde, as diferentes
respostas orgânicas possíveis aos tratamentos ministrados, entre outros aspectos. Os
casos denunciados devem apresentar provas e indícios relevantes para questionar
o ato médico.
Observadas as cautelas necessárias, a justiça não pode fechar os olhos para os
atos médicos que denotem claramente a culpa em seu proceder. Não se pode ignorar
a ocorrência dessas falhas e agir como se toda conseqüência danosa decorrente de
atos médicos devesse ser considerada como uma fatalidade.
Na responsabilização judicial do erro médico, tem-se mostrado essencial a
disponibilidade de profissionais da área médica para fornecer esclarecimentos e
suporte para a elaboração da denúncia pelo Promotor, como também para auxiliar
o Juiz em suas decisões. Espera-se que tais profissionais, prescindindo do espírito
de corpo, ajam buscando evitar, com o máximo de empenho, a complacência ou a
impunidade. Isso para evitar, inclusive, a exclusão da perícia médica dos processos,
como tem sido possível nos Estados Unidos, por intermédio da doutrina da res
ipsa loquitor. A sociedade, buscando a justiça e pressupondo o corporativismo da
classe médica, pode causar injustiças.
Em busca da dignidade e da honorabilidade da profissão de médicos, os erros
devem ser identificados, visando à justa responsabilização de seus agentes. Não
se pretende que um médico competente e dedicado perca toda sua credibilidade,
constituída ao longo de anos, em decorrência de algum ato negligente, imprudente
ou imperito. Uma condenação não deve representar o fim da carreira de um médico,
mas os erros devem ser considerados como forma de alerta e devem servir para
fundamentar processos preventivos de sua ocorrência.
Institutos como a transação civil, a suspensão processual e a transação
penal permitem que o processo criminal não prossiga. As penas, quando ocorrem,
conforme explicitado anteriormente, são indenizatórias ou restritivas de direitos,
e, de certa forma, é possível considerá-las adequadas, tendo em vista a prevalência
quase absoluta de casos em que o erro decorre de culpa.
Em termos de serviço público ou conveniado, surgem problemas estruturais,
dos quais os médicos, em geral, são, muitas vezes, vítimas. Nos hospitais públicos,
a falta de infra-estrutura e de pessoal parece ser a maior causa da negligência aos
doentes. Os convênios de saúde, que são os únicos que lucram efetivamente com
esse sistema criado, com o baixo repasse do valor das consultas, têm forçado a
classe médica a realizar muitos atendimentos por dia, e a limitação no pedido de
exames tem causado até mesmo a morte de pacientes.
226
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
Na esfera privada, o processo de sofisticação do atendimento causa impactos,
surpreende e deslumbra o paciente, mas a posição distante do médico elimina um
aspecto essencial para a cura, presente nos antigos médicos de família, que é a
concentração de todas as suas atenções no doente, a transmissão de confiança. Até
para a eficácia dos tratamentos médicos, é essencial que a relação seja mais amistosa.
Ninguém contesta a interligação dos fenômenos psíquicos na esfera somática.
Ideal seria que o relacionamento entre médicos e pacientes fosse mais
humanizado, que predominasse mais a confiança. Wanderby Panasco avalia
que “os sons altissonantes das conceituações dos primeiros acórdãos sobre a
responsabilidade médica, dentro da jurisprudência de todas as legislações, dizem
respeito muito menos à Medicina do que à precariedade dos relacionamentos
sociais”. Citando Vargas Vila, garante: “Todos os cumes já estão desonrados. Só
a solidão é pura.” 125
Antigamente, o médico tinha segurança para omitir do doente a gravidade
de sua situação, buscando evitar que se potencializasse seu sofrimento. Hoje em
dia, em face de institutos como o Código de Defesa do Consumidor, o direito à
informação tem sido muito enfatizado. Aspectos como total informação quanto à
situação do paciente, autorização do paciente ou da família para a realização dos
procedimentos, anotação em prontuário dos sintomas detectados e da terapêutica
adotadas tornam-se essenciais ao exercício da medicina.
No Brasil, ainda não se criou a habitualidade do acordo contratual por
escrito entre o médico e o paciente, no qual se poderia especificar até que ponto a
possibilidade de êxito é real, bem como as eventuais conseqüências pós-operatórias,
as debilidades ou as incapacidades resultantes. Falta essa conscientização dentro do
programa cirúrgico, como ocorre em outros países. Ainda que menos humanizada,
essa rotinização delimita as responsabilidades e reduz os riscos de demandas.
Apesar de a grande maioria dos médicos demonstrar sua relevância para a
sociedade, há situações em que o médico, visando à obtenção de maior lucro, induz
o paciente a se submeter a determinados procedimentos clínicos e cirúrgicos ou
permite que o paciente busque tais tratamentos sem que tenha plena consciência
de todos os riscos envolvidos. A vida humana não pode ser avaliada em termos
propriamente comerciais.
Por outro lado, há pacientes, e são muitos, que, buscando a justificação
da ocorrência de fatalidades ou visando à obtenção de lucro por intermédio da
indenização, imputam, de forma dolosa, a prática de atos culposos ao profissional
de saúde.
125
PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 17.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230, Dez. 2007.
227
Dessa forma, percebe-se a complexidade da avaliação judicial do ato
médico. Entretanto, apesar de a arte médica ter tido, no passado, uma aura de
mistério e atualmente continuar com grande prestígio social, como lhe é devido,
e de apresentar muitas especificidades que tornam difícil o conhecimento de suas
circunstâncias, é definitiva a participação do direito em sua avaliação.
É incontestável a importância dos médicos na sociedade. Em um país como
o Brasil, onde a política de saúde pública é precária, considerando a quantidade de
intervenções médicas realizadas, é razoável concluir que os médicos erram pouco.
Entretanto, podem errar menos. O objetivo com a defesa de responsabilização dos
profissionais de saúde é prevenir a ocorrência futura de erros em casos pontuais e,
principalmente, possibilitar à sociedade e aos próprios médicos que identifiquem
profissionais que não ajam com a dignidade e a honradez que a profissão exige,
em benefício da classe e da sociedade.
É possível reduzir a ocorrência de erros médicos com as seguintes medidas:
a) melhor infra-estrutura dos hospitais públicos; b) diminuição da mercantilização
da medicina nos hospitais privados; c) regulamentação dos planos de saúde, de
forma que sejam evitados abusos em suas regras e restrições de utilização; d)
capacitação do médico, com forte estímulo – e até mesmo imposição legal –
da especialização e atualização profissional; e e) responsabilização no caso de
ocorrência do erro médico.
Acredita-se que o mal-estar inicial causado aos médicos pela atuação de uma
promotoria especializada, conforme foi possível perceber pelas manifestações de
seus órgãos de classe na mídia, tende a diminuir, em face da coerência detectada
na avaliação do ato médico, com grande fundamentação das imputações criminais
realizadas e com o arquivamento de muitos casos. Sem um critério elaborado
de análise, muitas denúncias, tecnicamente infundadas, gerariam transtornos
desnecessários a médicos, que, então, teriam suas condutas questionadas, apesar da
evidência técnica de inocorrência do erro, que, aos olhos dos leigos, parece crime.
Dessa forma, como proposto pela hipótese inicial, a existência da Promotoria,
com a necessária concorrência de um corpo de peritos, coloca-se como uma
proposta bastante efetiva e necessária para a avaliação de atos médicos arbitrários,
levando o Direito a melhor servir aos interesses do indivíduo e aos valores da
sociedade.
228
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 160-230 Dez. 2007.
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DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
INVERSA?*
Thiago Bueno de Oliveira
INTRODUÇÃO
Quando uma pessoa jurídica nasce, forma-se, de imediato, sua autonomia em
relação aos sujeitos que a criaram, passando a ser um centro autônomo de imputação
de direitos e obrigações. Desse fenômeno, erigem inúmeros efeitos como o nome
próprio, domicílio próprio, nacionalidade própria e, é claro, responsabilidade
patrimonial própria. Por certo que, em razão disso, os sócios vêem-se acobertados
pelo escudo da pessoa jurídica, o que, muita das vezes, acaba incentivando a prática
de abusos por parte deles.
Em resposta a tais exageros, o ordenamento jurídico desenvolveu o
instrumento da desconsideração da personalidade jurídica, justamente para se
retirar, excepcionalmente, referida proteção e atingir, de forma momentânea, a
responsabilidade patrimonial dos sócios, eliminando a eficácia do ato abusivo
constituído.
Como se vê, percebe-se que esse mecanismo opera-se perfeitamente quando
se trata de credores da pessoa jurídica que não conseguem receber seus créditos
em virtude da inexistência ou da insuficiência do patrimônio da sociedade, uma
vez que a função social foi desvirtuada. E quando se trata de credor da pessoa
natural que integra uma pessoa jurídica? O que se poderá fazer para recuperar o
crédito quando o patrimônio particular do devedor for inexistente ou insuficiente
para solver a dívida?
Por um bom tempo, ficou-se pensando na melhor resposta. A partir do
século XX, passou-se a discutir a respeito da possível penhora de quotas da pessoa
natural que integra uma pessoa jurídica de responsabilidade limitada, como meio
de se poder levantar determinada quantia em dinheiro a fim de solver a dívida do
particular.
E é a partir desse ponto de discussão que se desenvolverá toda a monografia,
até se chegar ao seguinte questionamento: haveria necessidade de se desconsiderar a
*
Monografia apresentada como requisito para conclusão do curso de Pós-Graduação Ordem Jurídica e
Ministério Público da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
- FESMPDFT. Orientador: Prof. Edílson Enedino das Chagas.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
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personalidade jurídica da sociedade para se liquidar a quota social de sócio-devedor
a fim de apurar seus haveres? Seria o caso de se rotular como uma desconsideração
da personalidade jurídica inversa?
Como no início de qualquer pesquisa ou elaboração científica é necessário
estabelecer a delimitação do objeto da investigação, delinear o alcance do conteúdo,
definir parâmetros à indagação a ser desenvolvida e, ainda, quanto ao porquê da
escolha do tema, cabe tecer algumas ponderações.
O presente projeto de monografia visa viabilizar uma leitura sistematizada
da personalidade jurídica, dos institutos da desconsideração da personalidade
jurídica e da penhorabilidade de quotas, especialmente à luz do Código Civil. Para
tanto, é dividido em quatro capítulos. O primeiro tem como objetivo primordial
a compreensão da raiz temática de todo o trabalho, uma vez que não há o que se
desconsiderar se não existe a personalidade jurídica. Dessa forma, são apresentados
os elementos necessários para a constituição da pessoa jurídica, bem como
definido o seu conceito e, em especial, traçados os principais efeitos oriundos da
personificação da pessoa jurídica.
Em seguida, versa-se sobre o instrumento da desconsideração da
personalidade jurídica, instituto criado como resposta dada pelo ordenamento
jurídico ao mau uso da pessoa jurídica, em razão dos abusos praticados por seus
sócios, devido à autonomia conferida a partir da personalização (personificação)
da pessoa jurídica (sujeito de direito personalizado e independente).
Concluída essa etapa, parte-se para o vetor do trabalho, na medida em que
ventila a respeito da penhorabilidade de quotas sociais, que, a propósito, constitui
uma das alternativas válidas na busca da satisfação da dívida do sócio-devedor
pelo seu credor particular.
O quarto e último capítulo cuida da penhorabilidade de quotas dentro
da perspectiva do Código Civil de 2002, alcançando-se o vértice deste projeto
de monografia, quando se passa à reflexão da possibilidade de se rotular, como
desconsideração da personalidade jurídica inversa, o fato de se penhorar a quota
social de um sócio-devedor, por dívida particular sua, haja vista que deverá
responder com todos os seus bens presentes e futuros, penetrando-se, assim,
igualmente na pessoa jurídica, uma vez que a quota social é parte representativa
do capital social.
Por fim, justifica-se a escolha do tema pela importância do fenômeno
jurídico (penhora de quotas) na busca incansável da prestação jurisdicional social
e politicamente justa na fase executiva do processo, aderindo-se, assim, à tônica
das diretrizes metodológicas do processo civil moderno, ou seja, a efetividade
do processo.
232
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CAPÍTULO 1
1
PERSONALIDADE JURÍDICA
A idéia principal que vem à mente, ao menos em um primeiro momento,
quando estamos a tratar da personalidade jurídica da sociedade empresária é que a
pessoa jurídica não se confunde com as pessoas que a compõem. Essa autonomia
em relação à personalidade de seus sócios é um dos efeitos mais marcantes e que
exterioriza uma conquista societária adquirida ao longo do tempo.
Por isso, cabe ao intérprete do direito debater a real necessidade de se
constituir uma pessoa jurídica e, conseqüentemente, de conferir a ela toda aptidão
para adquirir direitos e obrigações.
1.1
FUNÇÃO E CONCEITO
Antes de adentrarmos diretamente no tema, façamos uma rápida digressão
nos aspectos históricos do direito comercial, visto que, a partir dele, identificarse-á, de maneira mais nítida, a matriz de formação da pessoa jurídica.
Todo comércio anterior aos séculos VI e VII a.C. reduzia-se a simples troca.
Nada se vendia a crédito e tampouco era conhecida a moeda. Entretanto, a falta de
equivalência entre os produtos trocados ensejou o surgimento de uma mercadoria
que fosse admitida como medida comum de valor, a saber: a moeda.1
A partir de então, a relação de troca deu lugar à compra e venda, iniciandose o que mais tarde seria conhecido como economia de mercado.2 Dentro de uma
ordem cronológica, a história reconhece os Fenícios como a primeira civilização
a praticar amplamente o comércio, mormente o comércio marítimo. Além dos
Fenícios, praticavam o comércio os Assírios e também os Gregos.
Já nessas priscas eras era possível identificar a existência de tipos
embrionários de sociedades.3 O propalado Código de Hammurabi trazia, em seu art.
1
2
3
MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades limitadas no Brasil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006,
p. 5.
Conforme a melhor doutrina econômica, a economia de mercado pode ser considerada como sendo:
“uma economia que aloca recursos através das decisões descentralizadas de muitas empresas e famílias
quando estas interagem em um mercado de bens e serviços”. MANKIW, N. Gregory. Introdução à
Economia: princípios de micro e macroeconomia. Tradução de Maria José Cyhlar Monteiro. Rio de
Janeiro: Campus, 1999, p. 9.
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 2.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
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99, a regra de que: “se um homem deu a (outro) homem dinheiro em sociedade, o
lucro e a perda que existem, eles partilharão diante de Deus, em partes iguais”.4
No Império Romano, notam-se vestígios do contrato de sociedade na
indivisão, entre os herdeiros, do patrimônio constitutivo da herança, para o efeito de
uma administração comum – sociedade familiar.5 Como é sabido, nessa organização
familiar primitiva, a índole fortemente subjetivista produziu importantíssimos
efeitos, que, ainda hoje, podem ser notados, a despeito da evolução operada
no decorrer dos séculos. A resistência à penetração de elementos estranhos e o
condicionalismo do liame social às vicissitudes sobrevindas aos sócios davam a
essas formas societárias um cunho fechado, assim à semelhança de verdadeiras
confrarias.6
Apesar de haver divergência doutrinária quanto à contribuição romana
ao direito comercial, não há como negar a indubitável influência que teve o
direito romano no apoio à elaboração de regras comerciais relativas à matéria
societária.7
Devido à sua imensa população, Roma acabou por tornar-se um forte e
importante centro bancário e comercial, o que levou à elaboração de importantes
institutos comerciais, como o cessio bonorum,8 contratos e obrigações cíveis, que
serviram de base para os contratos comerciais desenvolvidos na Idade Média.
É ainda nesse primeiro período9 que surge a figura do comerciante,10 tão
importante na evolução do direito comercial e que, com o enfraquecimento moral
4
5
6
7
8
9
10
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 2.
BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 1 e 2.
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 11.
MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades limitadas no Brasil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006,
p. 8.
Procedimento pelo qual um devedor insolvente era desapossado de todos os seus bens pelo Estado,
que os vendia em hasta pública.
O ilustre professor Fábio Ulhoa Coelho, baseando-se no comercialista italiano Tulio Ascarelli, não
considera essa fase primitiva como sendo a primeira do direito comercial, apesar de não negar uma
existência, ainda que embrionária do direito comercial nesta época. Atribui como marco inicial do direito
comercial a formação das corporações de ofício entre a segunda metade do século XII e a segunda do
XVI. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.
13.
Comerciante é nome que se dá ao praticante do comércio. Na atividade de compra e venda, atua como
intermediador, sempre buscando auferir lucro, que serve como garantia ao risco de comprar determinado
produto e não conseguir revendê-lo de imediato. Em virtude dessa prática especulativa, era malvisto
tanto pelo Império Romano quanto pela Igreja. Para o Imperador Cícero, ele praticava um “enganamento”, comprando produtos e revendendo-os a preços mais elevados. Para a Igreja, a atividade era
classificada como usura. MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades limitadas no Brasil. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2006, p. 6/9.
234
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
e material do direito romano, teve que liderar os movimentos que desencadearam
várias adaptações comerciais, voltando a se firmar somente na Idade Média,
já durante a fase das corporações de ofício,11 período chamado pela doutrina
comercialista de corporativista ou subjetivista.
Sentindo-se desprotegidos pelo vácuo de poder deixado pela ausência
centralizadora do império romano, os comerciantes, baseando-se nos usos e
costumes locais, começam a editar suas próprias regras comerciais, unindo-se
em grupos específicos de trabalho (feiras e mercados), que mais tarde seriam
denominados corporações de ofício.12 13
É nessa fase, com o comerciante medievo, que se deu início ao
desenvolvimento das sociedades comerciais, tais como hoje as conhecemos.14 Isso
porque, até o advento desse separador de águas, tudo girava em torno da figura do
comerciante, ou melhor, da pessoa física do comerciante individual, uma vez que
as próprias sociedades comerciais não passavam, via de regra, de agrupamentos
de comerciantes individuais, sendo, em outras palavras, comerciantes individuais
que exerciam o comércio agrupados.15
A sociedade, até então, não tinha condições de apresentar-se e agir como
pessoa independente da pessoa física de seus sócios. Só conseguia fazê-lo vinculada
ao nome de um ou mais sócios, ou de todos eles.16 17
11
12
13
14
15
16
17
MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades limitadas no Brasil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006,
p. 7.
MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades limitadas no Brasil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006,
p. 8.
Unidos em suas corporações e orbitando sobre suas próprias regras, esses comerciantes passam a eleger
seus próprios magistrados, denominados cônsules mercatorum, que, investidos de jurisdição especial
e baseando-se nos usos e costumes, dirimiam conflitos de interesse comercial e legislavam sobre ele,
fazendo valer a ordem local aos que freqüentavam as feiras. MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades
limitadas no Brasil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006, p. 8.
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 2.
CRISTIANO, Romano. Personificação da empresa. São Paulo: RT, 1982, p 77.
CRISTIANO, Romano. Personificação da empresa. São Paulo: RT, 1982, p. 77.
Inclusive, em certos países, não se reconhece até hoje a personalidade própria de determinadas sociedades. O saudoso Sylvio Marcondes Machado relata que a personalidade jurídica das sociedades
não é assunto pacífico nas legislações. Na França, onde o Código Civil silenciou a respeito, a teoria
da personalidade jurídica é obra da doutrina e da jurisprudência, tendo sido objeto de leis especiais a
capacidade civil de algumas corporações. Na Itália, é largo o debate doutrinário sobre a matéria, tendo
o Projeto de reforma do Código Comercial concedido personalidade jurídica às sociedades comerciais
regularmente constituídas. Na Alemanha, as sociedades de direito civil (de pessoas) não gozam de
personalidade jurídica, a qual, porém, é concedida pelo direito comercial a algumas espécies como a
sociedade anônima, de responsabilidade limitada e outras. MACHADO, Sylvio Marcondes. Limitação
da responsabilidade de comerciante individual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1956, p. 70/72.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
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Diante desse contexto, o comerciante individual, que trabalhava sozinho,
empenhava todo o seu patrimônio naquela atividade e que comprometia
ilimitadamente todo o seu patrimônio, veio a descobrir que, caso se associasse
a outro comerciante, a junção de capital e esforços tornaria o negócio mais
interessante e lucrativo.18
Assim, o homem percebeu que nem sempre conseguia atingir seus objetivos
(especialmente os econômicos), sendo necessário que ele se unisse a outros
homens para atingir tais metas, e, por ser o fim compartilhado por todos, preferiase constituir um organismo capaz de alcançar o fim almejado. Foi assim que,
para os fins econômicos, foi criada a sociedade, sem a qual o capitalismo não se
desenvolveria.19
Como bem destaca o professor Hernani Estrella, essa integração é natural e
ocorreu devido ao princípio da sociabilidade, que, segundo esse autor:
É inerente aos seres humanos. Deriva da necessidade de completarem
as próprias forças, conjugando-as, para vencerem as resistências
formidáveis que lhes opõe o meio físico, que os circunda e envolve,
a superarem obstáculos que lhes dificultam a obtenção dos fins os
mais modestos e a satisfação das necessidades as mais elementares.
Em todos os campos da atividade humana, com maior ou menor
intensidade, em tempos e épocas diversas, sempre se manifestou
o espírito associativo, para a realização de fins religiosos, morais,
artísticos, ou designadamente, para facilitar a obtenção de resultados
materiais.20
Assevera quanto ao tema, com grande domínio do saber jurídico comercial,
Alfredo de Assis Gonçalves Neto,
Seguindo o pensamento de Noberto Bobbio (Teoria do Ordenamento
Jurídico, trad. Maria Celeste Cordeiro dos Santos. 10. ed., Brasília:
UnB, 1997), o direito, no seu papel de regular o comportamento do
ser humano nas suas relações com seus pares e com a coletividade,
provoca o surgimento de um ordenamento jurídico integrado por
normas com sanções positivas e negativas. As sanções positivas
estimulam comportamentos (condutas) no sentido da adoção de
técnicas facilitadoras do modo de convivência social. Dentre as
normas com sanções positivas estão as que regulam a personalidade
18
19
20
NERILO, Lucíola Fabrete Lopes. Manual da sociedade limitada no novo Código Civil. Curitiba: Juruá,
2004, p. 31.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 46.
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 10.
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jurídica. O ordenamento cria um mecanismo que permite formar um
ente (legal) para figurar nas relações jurídicas em substituição das
pessoas que nela deveriam estar, visando simplificar o relacionamento
de suas vidas em sociedade. Assim, optando-se pela constituição
de uma pessoa jurídica, obtém-se um modo mais adequado ou
simplificado de participação das pessoas naturais nas relações
jurídicas que, por meio dela, elas passam a poder realizar. O direito
incentiva a adoção de tais técnicas por meio dessas chamadas sanções
positivas, resultando, daí, seu cunho promocional. A sociedade, na
concepção clássica, seria uma técnica de simplificar as relações
jurídicas do conjunto de sócios: ao invés de várias pessoas agirem
simultaneamente na prática dos atos que ajustaram realizar em
comum, elas o fazem por meio da sociedade. A sociedade interpõe-se
entre elas e aqueles com os quais elas contratam em bloco.21
Concluiu-se, portanto, que a pessoa jurídica existe justamente para satisfazer
interesses humanos, seja para alcançar objetivos que não se alcançariam sozinho,
seja para desenvolver uma atividade por período superior ao da existência
humana.22
Com o passar do tempo, o comércio aperfeiçoa-se, sendo exercido também
por comerciantes não pertencentes às corporações23 e enseja uma vultosa expansão
do comércio marítimo com a descoberta da rota para a Índia e o descobrimento
do continente americano.24 25
Nesse momento, tornou-se necessária uma rápida regulamentação do
comércio marítimo para que se evitassem os abusos comerciais e a evasão de
divisas. Inicia-se aí o período das codificações, destacando-se, entres outras,
o consulato del mare, de confecção espanhola, o jus hanseaticum maritimum,
destaque do século XVII nos países nórdicos ao norte da Europa e, é claro, as
21
22
23
24
25
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 20.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 46.
Apesar de, para serem classificados como comerciantes, não ser mais imprescindível a matrícula em
uma corporação de ofício, esses comerciantes não pertencentes às corporações estavam submetidos às
mesmas regras das corporações.
MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades limitadas no Brasil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006,
p. 9.
No início do século XVII, surgiriam as companhias de comércio, destinadas à exploração colonial, com
características semelhantes às das sociedades por ações. A companhia Holandesa das Índias Orientais
teria sido a primeira entre estas. BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 8. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 2.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
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ordenanças do Rei Luís XIV, também do século XIV,26 que serviram de base
para a elaboração do Código Comercial Napoleônico, promulgado por Napoleão
Bonaparte em 15 de setembro de 1807, passando a vigorar em 1º de janeiro de
1808, dando-se início à terceira fase evolutiva do direito comercial.
Sobreleva notar que, com tal avanço, o comércio medievo viu nascer os tipos
de sociedade, que, nos séculos seguintes, aperfeiçoar-se-iam, a saber: a sociedade
em nome coletivo, a sociedade em comandita simples, a sociedade em conta de
participação e a sociedade anônima.27 28
Conforme o mestre José Waldecy Lucena,
O que se pretende é salientar que, ao fim da Idade Média, com exceção
da sociedade de responsabilidade limitada, já existiam as atuais
sociedades, algumas ainda em germe, outras mais aperfeiçoadas,
tendo inclusive surgido, embora sem o rigor doutrinário hodierno,
a distinção entre sociedades de pessoas e sociedades de capitais,
porquanto já se permitia a cessibilidade do direito de sócio e ensaiavase a limitação da responsabilidade social.29
Com o eclodir do Código Napoleônico, criava-se uma nova teoria, de caráter
objetivista, atenta aos atos praticados pelo comerciante (por isso o nome teoria dos
atos do comércio) e não aos critérios subjetivos das corporações de ofício.30
O Código Comercial Francês foi o modelo seguido por vários outros países,
não somente europeus, que além de adotarem a codificação para o seu ordenamento
26
27
28
29
30
As ordenanças foram as mais importantes compilações da época. A primeira, de 1673, com 122 artigos,
regulamentava as atividades terrestres, como a jurisdição comercial, as sociedades, falências e etc;
ficou conhecido como Código Savary. A segunda foi publicada em 1681 e regulamentava o comércio
marítimo. MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades limitadas no Brasil. São Paulo: Juarez de Oliveira,
2006, p. 9.
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 4.
Os primeiros tipos societários que começaram a introduzir certa responsabilidade limitada foram a
sociedade em comandita simples e a sociedade em conta de participação. Esses dois tipos de sociedade distinguiam duas categorias de sócios: aquela cujo sócio tem responsabilidade irrestrita e a que
tem a limitação da sua responsabilidade. Ficava claro que o sócio capitalista empregava dinheiro e
tinha responsabilidade limitada, mas não podia exercer a administração. O poder de gerir, nesses tipos
societários, implicava responsabilidade ilimitada. Aquele que administrava respondia com todo o seu
patrimônio para com os credores societários. É como se houvesse uma compensação: aquele que podia
decidir e mandar tinha responsabilidade agravada (ilimitada); já o que não dirigia tinha a certeza de que
não perderia nada além daquilo que investiu na sociedade. NERILO, Lucíola Fabrete Lopes. Manual
da sociedade limitada no novo Código Civil. Curitiba: Juruá, 2004, p. 32 e 33.
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 3.
MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades limitadas no Brasil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006,
p. 13.
238
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
jurídico, perfilhavam também a teoria dos atos do comércio. Entre os inúmeros
países, podemos citar Bélgica (1807), Espanha (1822), Portugal (1833), São
Domingos (1850); Brasil (1850) e México (1854).31
Por definir comerciante como aquele que exerce atos de comércio e deles
fazem profissão habitual,32 o legislador francês teve obrigação de estabelecer tais
atos (fixou-os nos arts. 632 e 633). Entretanto, por ser o comércio um fenômeno
jurídico dinâmico, o surgimento de novas práticas comerciais defasou essa teoria
por não abranger todas.33
Como o ordenamento jurídico comercial pátrio adotou a supracitada teoria
durante extensos 152 anos (do Código Comercial de 1850 ao novo Código Civil
de 2002), coube à doutrina e à jurisprudência realizar pugilato intelectual para
suplantar as vicissitudes da codificação, entre elas, a definição de sociedade
comercial e a autonomia patrimonial resultante de sua personificação.
Entre nós, com a promulgação do Código Comercial de 1850, não ficou
bem clara a outorga da personalidade jurídica às sociedades, apesar da existência
do art. 350 do Código Comercial Brasileiro34 estabelecendo a subsidiariedade da
responsabilidade patrimonial dos sócios em relação ao patrimônio da sociedade,
sendo, por isso, admitida por uns e negada por outros.35 36
31
32
33
34
35
36
MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades limitadas no Brasil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006,
p. 12.
Assim rezava o art. 1º do Código Comercial Francês: “Sont commerçants ceux qui exercent dês actes
qualifiés commerciaux par la loi et qui en font leur profession habituelle, soit à titre principal, soit
à titre d’appoint”. BUYLE, Jean-Pierre. Code de commerce et lois particulières. 2. ed. Bruxelles:
Bruylant, 1998, p. 9.
MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades limitadas no Brasil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006,
p. 13.
Art. 350. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão
depois de executados todos os bens sociais. Lei n. 556, 25 de junho de 1850. Institui o Código Comercial.
BULGARELLI, Waldirio. Sociedades comerciais. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 28.
Demonstrando a corrente dos que reconheciam a personalidade jurídica, José Xavier Carvalho de
Mendonça traz interessante anotação, informando que a personalidade jurídica das sociedades comerciais estava consagrada, obter dictum, em inúmeros julgados, exemplificando entre eles: Tribunal da
Relação da Corte, acórdãos de 1º de agosto de 1884 e de 20 de abril de 1886; Tribunal de Justiça de São
Paulo, acórdãos de 22 de janeiro de 1895 e de 24 de maio de 1895. Na mesma obra, o referido autor
revela algum dos argumentos alegados pela corrente que negava personalidade jurídica às sociedades.
Ilustrativamente: 1) A relação íntima entre a coletividade e as pessoas que a compõem. Diz-se que
a unidade, existente nas sociedades comerciais, é simplesmente formal. Os verdadeiros sujeitos das
relações jurídicas são os sócios; 2) Quem entra em negócios com sociedade tem em vista a pessoa dos
sócios, o seu crédito, a resistência do seu patrimônio particular, sendo a sociedade coisa secundária;
3) As sociedades comerciais, tendo por escopo o interesse privado dos sócios e não o bem geral, não
podem, por isso, ser consideradas pessoas jurídicas. MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de Direito
Comercial Brasileiro. Atualizado por Ruymar de Lima Nucci. V. II,Tomo II, Campinas: Bookseller,
2001, p. 96, 108 e 112.
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239
Apenas com a promulgação do Código Civil de 1916 é que cessou a
controvérsia.37 38 Esse cenário é bem narrado por Marcelo Bertoldi:
Assunto bastante tormentoso na doutrina, antes da edição do nosso
Código Civil de 1916, era a discussão a respeito da possibilidade de
se dotar de personalidade jurídica a sociedade entre comerciantes,
pois a idéia que se tinha de sociedade não passava de reunião de várias
pessoas (pessoas físicas) em parceria para a exploração da atividade
mercantil, sem que com isto surgisse uma nova pessoa (pessoa
jurídica). Isto se dava especialmente pelo fato de nosso Código
Comercial em nenhum de seus artigos ter afirmado a personalidade
jurídica das sociedades comerciais.
Diante disso, o art. 16, II, do CC de 1916, pondo fim às discussões
em nosso Direito pátrio, estabelecia que as sociedades mercantis
são pessoas jurídicas de direito privado, regendo-se pelo estatuído
nas leis comerciais e tendo existência distinta da dos seus membros,
consideradas, por decorrência, sujeitos capazes de direitos e
obrigações.39
Suprido o fato do reconhecimento legal da personalidade jurídica às
sociedades, passou a doutrina a buscar a melhor definição desse fenômeno jurídico.
Entre os vários conceitos formulados, vejamos os que se sobressaem.
O eminente jurista Rubens Requião considera que
A sociedade transforma-se em novo ser, estranho à individualidade
das pessoas que participam de sua constituição, denominado um
patrimônio próprio, possuidor de órgão de deliberação e execução
que ditam e fazem cumprir a sua vontade.40
Para Ricardo Negrão,
A personalidade jurídica é uma ficção jurídica, cuja existência
decorre da lei. É evidente que às pessoas jurídicas falta existência
37
38
39
40
Onde, porém, pela primeira vez, encontramos a expressão personalidade jurídica, é no Decreto n. 119-A,
de 7 de janeiro de 1890, do Governo Provisório da República, que, consagrando a plena liberdade
dos cultos, dispôs no art. 5º: “A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade
jurídica”. MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Atualizado por
Ruymar de Lima Nucci. V. II,Tomo II, Campinas: Bookseller, 2001, p. 93.
O reconhecimento expresso da personalidade jurídica foi mantido pelo Código Civil de 2002, em seu
art. 44. Vejamos: Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: I - as associações; II - as sociedades;
III - as fundações. IV - as organizações religiosas; V - os partidos políticos. BRASIL. LEI N° 10.406/02,
de 10.01.02. Institui o Código Civil. D.O.U. de 11.01.02.
BERTOLDI, Marcelo M. Curso avançado de Direito Comercial. Vol. 1. 2. ed. São Paulo: RT, 2003,
p. 164.
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 385.
240
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biológica, característica própria das pessoas naturais. Entretanto,
para efeitos jurídicos, e, leia-se, para facilitar a vida em sociedade,
concede-se a capacidade para uma entidade puramente legal subsistir
e desenvolver-se no mundo jurídico. Sua realidade, dessa forma, é
social, concedendo-lhe direitos e obrigações.41
Já nas palavras de Fábio Ulhoa,
Pessoa Jurídica é um expediente do direito destinado a simplificar a
disciplina de determinadas relações entre os homens em sociedade.
Ela não tem existência fora do direito, ou seja, fora dos conceitos
tecnológicos partilhados pelos integrantes da comunidade jurídica. Tal
expediente tem o sentido, bastante preciso, de autorizar determinados
sujeitos de direito à prática de atos jurídicos em geral.
De qualquer forma, a sociedade empresária, como uma pessoa
jurídica, é sujeito de direito personalizado, e poderá, por isso, praticar
todo e qualquer ato ou negócio jurídico em relação ao qual inexista
proibição expressa.42 43
Segundo o mestre italiano Francesco Ferrara, “A personalidade não é
outra coisa senão uma armadura jurídica para realizar de modo mais adequado os
interesses dos homens.”44
Por fim, J. X. Carvalho de Mendonça, com inequívoca propriedade,
assim conceituava: “Personalidade jurídica traduz-se em capacidade e direitos
patrimoniais”.45
Como se vê, o que as supramencionadas definições trazem em comum, em
função da consideração da personalidade jurídica, é, em outras palavras, a criação
de um centro de imputação de direitos e obrigações, como bem colaciona o ilustre
professor Marlon Tomazette. Senão vejamos:
41
42
43
44
45
NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa. 4. edição, São Paulo: Saraiva, 2005,
p. 230.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 17. edição. São Paulo: Saraiva, 2006, p.
112/113.
O próprio professor Fábio Ulhoa faz a distinção entre sujeitos de direito e pessoas, sendo aquele gênero,
do qual estas são espécies. Explica que há o sujeito de direito despersonalizado (massa falida, condomínio horizontal, nascituro e espólio), que só pode praticar um ato se houver permissão explícita. De
outra forma, existe o sujeito de direito personalizado (pessoa, tanto física quanto jurídica), que pode
realizar qualquer ato, desde que não exista proibição.
FERRARA, Francesco. Trattato di Diritto Civile Italiano. Roma: Athenaeum, 1921, p. 598. Tradução
livre de: La personalità non è che un’armatura giuridica per realizzare in modo più adeguato interessi
di uomini.
MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Atualizado por Ruymar
de Lima Nucci. V. II, Tomo II, Campinas: Bookseller, 2001, p. 93.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
241
Ao exercer a atividade empresarial por meio de uma pessoa jurídica,
cria-se um centro autônomo de interesses em relação às pessoas que
lhe deram origem, de modo que a estas não são imputadas as condutas,
os direitos e os deveres da pessoa jurídica.46
É essa existência distinta que torna viável falar na duração de uma sociedade
além da vida dos sócios, fazendo com que a sociedade exerça uma função social47
no intuito de preservar a unidade econômica formada.
Quanto ao tema, Carla C. Marchal adverte que se deve conservar o ente
econômico que, de algum modo, colabora na estabilidade e na manutenção da ordem
social. Para a referida autora, um dos caminhos que podem conduzir à satisfação
desse objetivo é fornecer instrumentos legais.48
Nesse sentido, não há dúvida de que a personalidade jurídica é o instrumento
legal atribuído pelo Estado à sociedade a fim de que esta atue como pessoa jurídica
(centro autônomo de direitos e obrigações) e, assim, concretize os fins econômicos
almejados. É justamente o que ensina Alfredo de Assis Gonçalves Neto, verbis:
Esse ente tem por função facilitar a prática de atos ou negócios
jurídicos voltados à realização de certos fins econômicos por elas
pretendidos. Para preencher tal função, o ordenamento jurídico pode
atribuir-lhe, ou não, personalidade jurídica.49
Dessa forma, demonstrada a evolução do tratamento jurídico dado à
personalidade jurídica e fixados sua função e conceito, resta estabelecer o momento
e os elementos para que a personalidade jurídica seja adquirida.
46
47
48
49
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 47.
Aprofundando o estudo do assunto, Carla C. Marshall assevera que o tema da função social possui
duas conotações que merecem destaque, quais sejam: aspectos internos e aspectos externos. Os fatores
denominados endógenos partem de uma perspectiva de apreciação de dentro para fora, ou seja, o que a
atividade econômica representa para os empresários sócios-quotistas, enquanto os exógenos partem de
uma perspectiva de apreciação no sentido inverso, o que vale dizer, visão geral representativa do papel
daquela sociedade comercial dentro da estrutura da sociedade civil e do Estado nos quais a atividade
econômica é desenvolvida. MARSHALL, Carla C. A sociedade por quotas e a unipessoalidade. Rio
de Janeiro: Forense, 2002, p. 129.
MARSHALL, Carla C. A sociedade por quotas e a unipessoalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002,
p. 131.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 17.
242
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
1.2
INÍCIO DA PERSONALIDADE
O que se contém de maior relevo na idéia de sociedade é, como dito
anteriormente, a criação de uma entidade. Assim, a sociedade regularmente
constituída destaca-se da figura dos sócios para ter, perante o direito, uma vida
distinta da deles, com nome e patrimônio próprios,50 capaz de exercer direitos e
assumir obrigações como sujeito de direito nas relações jurídicas das quais vier a
participar, seja com seus sócios, seja com terceiros.51
Portanto, preliminarmente, o que deve conter a sociedade para constituir
uma pessoa jurídica? Apesar de a doutrina não ser unânime ao indicar os elementos
necessários, Marlon Tomazette, com grande domínio jurídico comercial, após unir
as idéias de vários autores,52 chega aos seguintes elementos: a) vontade humana
criadora; b) finalidade específica; c) conjunto de pessoas; d) presença do estatuto;
e) respectivo registro.53
Com efeito, poderíamos afirmar que é preciso existir um substrato social,54
reduzido a termo em um ato constitutivo e submetido a registro. Em outras palavras,
é o que preceitua o art. 985 do Código Civil, in textu:
Art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição,
no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts.
45 e 1.150).55 56
O registro é o ato público responsável por atribuir personalidade jurídica
à sociedade e outorgar, definitivamente, sua existência como pessoa jurídica.
Sérgio Campinho destaca que: “Começa, a partir do registro, a existência legal da
sociedade, como pessoa jurídica de direito privado que é”.57
50
51
52
53
54
55
56
57
Elementos que serão estudados no próximo item deste capítulo.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 17.
Os autores são Caio Mário da Silva, J. M. Leoni Lopes de Oliveira e Francisco Amaral.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 48.
Marlon Tomazette ressalta que, na formulação de qualquer conceito de sociedade, podemos inferir: a)
a existência de duas ou mais pessoas; b) reunião de capital e trabalho (fatores de produção); c)atividade econômica (em oposição a atividades de mero gozo, ou filantrópicas); d) fins comuns (inerentes
ao exercício da atividade por várias pessoas em conjunto); e) partilha dos resultados (decorrência do
exercício em comum). TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003,
p. 20.
BRASIL. LEI N° 10.406/02, de 10.01.02. Institui o Código Civil. D.O.U. de 11.01.02.
O art. 1.150 apenas determina à qual tipo de registro os diversos sujeitos do direito comercial (empresário individual, sociedade empresária e sociedade simples) estão vinculados.
CAMPINHO, Sérgio. O Direito de Empresa à luz do novo Código Civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2005, p. 63.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
243
É também o que estabelece o art. 45 do Código Civil, ipsis litteris:
Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito
privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro,
precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder
Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar
o ato constitutivo58 (grifo nosso).
É daí que, se a sociedade não se aperfeiçoa segundo as regras que lhe são
aplicáveis para sua regular constituição, ficando ela a meio caminho do fim visado
(sem registro, por exemplo), não nasce a pessoa jurídica.59 60
Impende destacar que o reconhecimento da ampla personalidade às
sociedades, sejam simples ou empresariais, possui chancela internacional fixada na
Convenção Interamericana sobre Personalidade e Capacidade das Pessoas Jurídicas
no Direito Internacional Privado. De acordo com a mencionada convenção,61 pessoa
jurídica seria toda entidade que tenha existência e responsabilidades próprias,
distinta da de seus membros, e que seja qualificada como pessoa jurídica segunda
a lei do lugar de sua constituição.
Indubitavelmente, é claro que surgiu, em sentido diametralmente oposto,
corrente defendendo que o início da personalização da sociedade começa no
momento em que os sócios passam a atuar em conjunto, na exploração da atividade
econômica, isto é, desde o contrato, ainda que verbal. Portanto, para estes,62 o
encontro de vontades dos sócios já seria suficiente para dar origem a uma nova
pessoa, no sentido técnico de sujeito de direito personalizado.
Entre outros autores nacionais que sustentam a aquisição da personalidade
jurídica como mero efeito do contrato de sociedade está Waldirio Bulgarelli. Para
ele, o contrato gera, como regra, além da sociedade, também a pessoa jurídica,
58
59
60
61
62
BRASIL. LEI N° 10.406/02, de 10.01.02. Institui o Código Civil. D.O.U. de 11.01.02.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 19.
É claro que, nessas hipóteses, é preciso reconhecer que algo acabou sendo produzido, porém sem
a estrutura e a autonomia de uma pessoa jurídica. Por essas razões é que não consideramos como
substrato social a personalidade jurídica, haja vista o próprio Código Civil reconhecer sociedades não
personificadas (sociedades em comum e em conta de participação) e atribuir a estas existência pontual
visando resolver situações peculiares.
A referida convenção foi positivada no ordenamento pátrio por meio do Decreto 2.427/97.
Fábio Ulhoa, apesar de reconhecer a adequação da sistemática legal em adotar o início da personalização
no momento do registro, uma vez que é o ato pelo qual se torna pública a formação do novo sujeito
de direito, assevera que há uma certa impropriedade conceitual e lógica nessa sistemática. COELHO,
Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 2. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 16/18.
244
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
passando-se a entender a personalidade jurídica como elemento específico do
contrato societário.63
Data venia dos supracitados argumentos, salvo melhor juízo, a concepção
mais acertada é a visão extremamente positivista de Francesco Ferrara, no sentido
de que não basta a existência de um conjunto de pessoas, da realidade subjacente, é
necessário o reconhecimento pelo ordenamento jurídico, que é o fator constitutivo
da pessoa jurídica.64
Prova disso é que uma sociedade com todos os elementos65 não é considerada
pessoa jurídica se não arquivar seus atos constitutivos no órgão competente,66 ou
seja, se lhe faltar o reconhecimento estatal.67
Portanto, uma vez registrada e regularmente constituída, adquire a sociedade
personalidade jurídica e, com isso, passa a ser uma pessoa jurídica (centro autônomo
de direitos e obrigações), com a possibilidade de agir com toda desenvoltura,
já que passa a ter uma estrutura singular com nome, patrimônio, domicílio e
nacionalidade próprios.68
63
64
65
66
67
68
BULGARELLI, Waldirio. Sociedades comerciais. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 28.
FERRARA, Francesco. Le persone giuridiche. 2. ed. Torino: UTET, 1956, p. 39.
Anteriormente já citados.
Em relação às sociedades empresárias, o órgão competente é o Registro Público de Empresas
Mercantis, com exercido em todo o território nacional, de forma sistêmica, por órgãos federais e
estaduais, com a finalidade de: dar garantia, publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos
jurídicos das empresas mercantis, submetidos a registro; cadastrar as empresas nacionais e estrangeiras
em funcionamento no País e manter atualizadas as informações pertinentes; proceder às matrículas
dos agentes auxiliares do comércio, bem como ao seu cancelamento. No âmbito federal, o órgão
mencionado é o Departamento Nacional de Registro de Comércio (DNRC), órgão do Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, com funções supervisora, orientadora e normativa,
no plano técnico, e supletiva, no plano administrativo; No âmbito estadual, estão as Juntas Comerciais,
com funções executora e administradora dos serviços de registro. Como exceção à regra estadual, está
a Junta Comercial do Distrito Federal que é considerada órgão federal. REQUIÃO, Rubens: Curso de
Direito Comercial. 1º Volume. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 111.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 54.
Eliminando-se as teorias que negavam a existência da pessoa jurídica ou a consideravam ficção e
aproveitando-se o desenvolvimento substancial no tratamento da pessoa jurídica dado com a teoria da
realidade orgânica (ou objetiva), juntamente com a precisão da teoria da realidade técnica, chegamos
ao resultado de que a pessoa jurídica é uma realidade, mas não do mundo sensível (onde se vê e se
toca), mas, sim, do mundo jurídico (técnico, abstrato e ideal). Sobre as diversas teorias que procuram
determinar a natureza da pessoa jurídica (individualista, ficção, da instituição, da realidade objetiva,
da realidade técnica, etc), consultar, por todos, entre os autores nacionais, TOMAZETTE, Marlon.
Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 48/54; COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de
Direito Comercial. Vol. 2. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p.7/11 e; GOMES, Orlando. Instituições
de Direito Civil. Vol. 1. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 301/310.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
245
1.3
EFEITOS
Diante do caráter instrumental dado à personalidade jurídica, é de bom
alvitre estudarmos os efeitos que são gerados a partir de sua outorga pelo Estado
à sociedade, a fim de que esta concretize os fins econômicos almejados. Como
bem ressalta o saudoso Rubens Requião, a conseqüência mais importante é o
desabrochar da personalidade jurídica.69
Por não ser o rol dos atributos uniforme na doutrina, sem, contudo, existirem
distinções substanciais, destacamos, entre os efeitos da personificação, a relação
posta neste trabalho, ou seja, nome, patrimônio, domicílio e nacionalidade próprios.
Assim sendo, façamos uma análise individual de cada um dos supra efeitos.
1.3.1 NOME PRÓPRIO (TITULARIDADE NEGOCIAL E PROCESSUAL)
Tendo a pessoa jurídica existência distinta da de seus membros, passa a ter um
nome próprio, com o qual se irá vincular no universo jurídico,70 utilizando-o para
figurar como sujeito de direito nas relações jurídicas das quais vier a participar.71
Dessa forma, com o nome próprio, passa ela (pessoa jurídica) a realizar negócios
jurídicos e a ser legitimada para atuar processualmente.72 73
Ao tratar das conseqüências da personalização, o professor Fábio Ulhoa
ensina que a pessoa jurídica passa a ter titularidade negocial e processual, definindoas como sendo:
a)
Titularidade negocial – quando a sociedade empresarial realiza
negócios jurídicos (compra matéria-prima, celebra contrato de
69
70
71
72
73
REQUIÃO, Rubens: Curso de Direito Comercial. Vol. 1. 26. edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p.
384/385.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 57.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 17.
Deve-se advertir que o nome próprio decorrente da personalização faz referência ao que a doutrina
chama de nome comercial, ou seja, aquele que identifica o sujeito que exerce a atividade empresarial
(seja empresário individual ou sociedade empresária). Portanto, nada tem haver com figuras parecidas
como o nome fantasia (que identifica o estabelecimento comercial) e marca (que identifica produtos
ou serviços).
Ademais, devemos ressaltar que, como corolário dessas titularidades, insurge o subefeito da atuação
da pessoa jurídica, ou seja, como os atos e as manifestações seriam eventualmente exteriorizados. Daí
que oriunda a teoria organicista, que procura explicar a pessoa jurídica como um ente com estrutura
semelhante à da pessoa natural. Assim, à semelhança do ser humano, ela teria diversos órgãos compondo
sua estrutura, entre eles, os necessários à manifestação de sua vontade. Portanto, por não ter existência
246
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
trabalho, aceita uma duplicata etc.), embora ela faça necessariamente
pelas mãos de seu representante legal (Pontes de Miranda diria
“presentante legal”, por não ser a sociedade incapaz), é ela, pessoa
jurídica, como sujeito de direito autônomo, personalizado, que assume
um dos pólos da relação negocial. O eventual sócio que a representou
não é parte do negócio jurídico, mas sim a sociedade;
b) Titularidade processual – a pessoa jurídica pode demandar e
ser demandada em juízo; tem capacidade para ser parte processual.
A ação referente a negócio da sociedade deve ser endereçada contra
a pessoa jurídica e não os seus sócios ou seu representante legal.
Quem outorga mandato judicial, recebe citação, recorre, é ela como
sujeito de direito autônomo.74 75
Na lição de Amador Paes de Almeida: “Ao projetar-se no mundo dos
negócios, para destacar-se dos demais, num nítido processo de individuação, a
sociedade empresária tem necessidade de um nome, tal como, aliás, ocorre com
os indivíduos na vida civil”.76
Essa projeção de sua identificação dá-se ora por meio de firma ou razão
social, ora pela denominação. A firma ou razão social é caracterizada pela utilização
do nome de pessoas físicas na sua composição, sendo que, na sociedade empresária,
a indicação do nome completo do sócio ou a indicação de todos os sócios é
74
75
76
física que lhe permita agir no mundo exterior, é preciso que se sirva de pessoas naturais para produzir a
exteriorização de seus atos e manifestações. GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito
Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 27. Em percuciente análise quanto à referida
teoria, J. X. Carvalho de Mendonça já advertia, com bons fundamentos, que aos administradores ou
gerentes, que servem de órgãos da sociedade, não cabe, em rigor, o nome, ordinariamente atribuído,
de representantes. A representação supõe duas pessoas: o representante e o representado. O órgão, ao
contrário, identifica-se com a pessoa jurídica, cuja vontade exprime e realiza. Relata, ainda o referido
autor que, na Câmara belga, por ocasião da elaboração da lei de 1873 sobre sociedade, Pirmez disse:
“quando os administradores intervêm, não são terceiros que intervêm pela sociedade, é a própria
sociedade que age pelos seus órgãos legais, pelo único meio de ação direta que possui”. MENDONÇA,
J. X. Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Atualizado por Ruymar de Lima Nucci.
V. II, Tomo II, Campinas: Bookseller, 2001, p. 103.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 113/114.
Esse último consectário do nome próprio (titularidade processual) não é inerente exclusivamente aos
entes personalizados (v.g. pessoa jurídica), já que o art. 12 do Código de Processo Civil reconhece
tal capacidade para alguns entes desprovidos de personalidade jurídica, como a massa falida e o
espólio.
ALMEIDA, Amador Paes de. Manual das sociedades comerciais (Direito de Empresa). 14. ed. São
Paulo: Saraiva, 2004, p. 9.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
247
despicienda.77 78 No que toca à denominação, esta se caracteriza pela não-utilização
do nome civil de seus membros, podendo indicar ou não a sua atividade.79
No intuito de conferir maior consistência ao nome próprio escolhido, o
ordenamento jurídico dá a ele proteção em âmbito estadual.80 Isto é, dentro daquela
unidade federativa onde foi registrado não pode existir, ao menos no mesmo ramo,
nome algum igual ao indicado ou que venha com este causar confusão.
Isso porque todo nome empresarial deve respeito aos princípios da novidade
e da veracidade, que, conforme a melhor doutrina,81 podem ser entendidos,
respectivamente, em apertada síntese, como vedação ao registro de nome já
existente no mesmo ramo de atuação e proibição de traduzir idéia falsa em relação
ao objeto social.82
1.3.2 RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL PRÓPRIA
A conseqüência mais importante da personalização da sociedade é, sem
dúvida, a autonomia patrimonial alcançada, representando a pessoa jurídica
instrumento de destaque patrimonial, no qual o patrimônio titulado responde pelas
obrigações da pessoa jurídica, só se chamando os sócios à responsabilidade em
hipóteses restritas.83
77
78
79
80
81
82
83
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 57.
O empresário individual usará necessariamente firma, informando, inclusive, seu nome completo ou
suas iniciais.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 58.
Em relação à extensão da proteção do nome comercial, é clássico o relato da incongruência gerada
pela assinatura da Convenção de Paris pelo Brasil e incorporada no ordenamento jurídico pátrio pelo
Decreto n. 75.572/75, com força de lei ordinária, a qual conferia proteção internacional ao nome
comercial registrado em qualquer dos países signatários da convenção; e o Decreto n. 1.800/96, que
previa proteção apenas na unidade da federação onde foi registrado. Nesse sentido, a saída foi dada
pelo Superior Tribunal de Justiça, que, verificando a hierarquia normativa, afirmou que a Convenção de
Paris, por ter força de lei, prevalecia em relação à proteção meramente local estabelecida pelo Decreto
n. 1.800/96. Portanto, a proteção ocorreria no âmbito de todo o território nacional, bem como nos
outros países. SILVA, Bruno Mattos e. Curso elementar de Direito Comercial: Parte Geral e contratos
mercantis. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p. 39/40. Entretanto, com o advento do Código Civil
de 2002 (art. 1.166), passou-se a ter uma proteção restrita do nome comercial, haja vista ter mantido
a idéia de proteção apenas no campo estadual. Assim sendo, nesse particular, em função da hierarquia
normativa, o Código Civil de 2002 implica derrogação da Convenção de Paris, passando a prevalecer
novamente o caráter restritivo de proteção.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 58.
Em outras palavras, não pode o objeto social prever como atividade principal a comercialização de
roupas e na denominação fazer constar: ABC Gráfica e Editora.
AMARO, Luciano. Desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 5, jan./mar. 93, p. 169.
248
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
Conforme o escólio de Fábio Ulhoa,
Em conseqüência, ainda, de sua personalização, a sociedade terá
patrimônio próprio, seu, inconfundível e incomunicável com o
patrimônio individual de cada um de seus sócios. Sujeito de direito
personalizado autônomo, a pessoa jurídica responderá com o seu
patrimônio pelas obrigações que assumir. Os sócios, em regra, não
responderão pelas obrigações da sociedade. Somente em hipóteses
excepcionais, que serão examinadas a seu tempo, poderá ser
responsabilizado o sócio pelas obrigações da sociedade.84
Percebe-se que é o patrimônio da sociedade, seja qual for o tipo por ela
adotado, que irá responder pelas suas obrigações. Portanto, a responsabilidade da
pessoa jurídica é sempre ilimitada, uma vez que irá responder pelo seu passivo
com todas as forças do seu ativo.85
No que tange à responsabilidade dos sócios, esta irá variar dependendo do tipo
societário, podendo vir a responder de forma subsidiária e ilimitada ou subsidiária
e limitadamente pelas dívidas sociais.86 87 Contudo, relembra Sérgio Campinho,88
sempre haverá o benefício de ordem em favor do sócio, pois que primeiro devem
84
85
86
87
88
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 17. edição. São Paulo: Saraiva, 2006, p.
113/114.
CAMPINHO, Sérgio. O Direito de Empresa à luz do novo Código Civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2005, p. 64.
É claro que, depois do advento da sociedade de responsabilidade limitada, oriundo da prática inglesa
(private partnership) e do trabalho legislativo alemão, que, amplamente discutido, foi, finalmente,
transformado em lei, promulgada em 20 de abril de 1892, instituindo a famosa Gesellschaft mit
beschränkter Haftung, ou abreviadamente “GmbH”, tornou-se ela a opção mais vantajosa aos menores
empreendedores, uma vez que criou uma categoria única de sócios com responsabilidade limitada,
possibilitando a limitação do risco de seu investimento empresarial ao montante empregado na formação
do capital social. Sobre o contexto histórico das sociedades de responsabilidade limitada, consultar, por
todos, entre os nacionais, MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades limitadas no Brasil. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2006; LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade
limitada. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
Em função do eventual reflexo na responsabilidade dos sócios, atualmente, a personificação da sociedade
passou a ser quase sinônimo de limitação de responsabilidade dos sócios, na medida em que as pessoas,
ao constituírem uma sociedade, praticamente a definem como anônima ou de responsabilidade limitada,
conforme dados obtidos no DNRC. A título de exemplo, no ano de 2005, de um total de 248.935
sociedades empresárias constituídas, 99.11% (246.722) delas eram Ltda.; 0,72% (1.800) eram S/A; e
0,17% (413) eram outros tipos societários. Disponível em: <http://www.dnrc.gov.br/>. Acesso em: 30
de abril de 2007.
CAMPINHO, Sérgio. O Direito de Empresa à luz do novo Código Civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2005, p. 64.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
249
ser excutidos os bens da pessoa jurídica, ficando os bens particulares condicionados
à exaustão do patrimônio social.89
Assim sendo, a personalidade jurídica é um atributo de viabilização
econômica, na medida em que gera uma autonomia patrimonial à pessoa jurídica,
fazendo com que a moderna economia de mercado se desenvolva, pois permite a
redução dos riscos no exercício da atividade empresarial, assegurando o destaque
de determinada parcela patrimonial para o exercício da atividade.90
Em virtude do exposto, podemos inferir que a segurança na atividade
empresarial está em conferir aos sócios uma distinção entre seu patrimônio pessoal
e o patrimonial empregado para o exercício da atividade econômica.
1.3.3 DOMICÍLIO PRÓPRIO
A sociedade personificada, como pessoa jurídica que é, tem domicílio
próprio, distinto de seus sócios, sendo determinado ou pelo lugar do funcionamento
da administração ou onde o ato constitutivo definir. É a dicção do art. 75, inciso
IV, do Código Civil. Vejamos:
Art. 75 – Quanto às pessoas jurídicas, o domicílio é:
(...)
IV – das demais pessoas jurídicas, o lugar onde funcionarem as
respectivas diretorias e administrações, ou onde elegerem domicílio
especial no seu estatuto ou aos constitutivos.91
Por adotar o Código Civil a pluralidade de domicílio, para a pessoa jurídica
que tem diversos estabelecimentos, cada um será considerado domicílio para os
atos nele praticados (art. 75, § 1º, do Código Civil). Caso a administração ou a
diretoria tenha sede no estrangeiro, considerar-se-á domicílio da pessoa jurídica o
local de cada estabelecimento situado no Brasil em relação às obrigações por ele
contraídas (art. 75, § 2º, do Código Civil).
89
90
91
Essa responsabilidade subsidiária está prevista no ordenamento desde o Código Comercial Brasileiro
de 1850, que, no seu art. 350, previa: “Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por
dívidas da sociedade, senão depois de executados todos os bens sociais”. BRASIL. LEI N. 556, de 25
de junho de 1850. Institui o Código Comercial.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 63.
BRASIL. LEI N. 10.406/02, de 10.01.02. Institui o Código Civil. D.O.U. de 11.01.02.
250
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
Assevera-se, por oportuno, que o domicílio possui vital importância na seara
tributária92 e, mormente, na processual, uma vez que é fundamental para definição
do foro competente para ações contra a sociedade.
1.3.4 NACIONALIDADE PRÓPRIA
A despeito de haver dissidência na doutrina quanto à possibilidade de deter
a pessoa jurídica nacionalidade ou não, em virtude de a Constituição Federal nada
dispor a respeito da nacionalidade em relação às pessoas jurídicas, vinculando-a
exclusivamente às pessoas naturais (art. 12), temos que admitir que o Código
Civil, ao incorporar a matéria que era tratada singularmente pelo Decreto-Lei n.
2.627/40 (antiga Lei das Sociedades Anônimas), foi incisivo ao abraçar a tese da
nacionalidade das sociedades.93
Diante de tal disciplina, brasileira é a sociedade organizada conforme as
leis brasileiras e que mantém a sede de sua administração no país (art. 1.126).
De outra forma, será denominada a sociedade como estrangeira e, consoante o
mesmo diploma legal, poderá funcionar no país desde que detenha autorização
governamental.94
Assim, verifica-se que, para configurar uma sociedade como nacional ou
estrangeira, nomenclatura que irá influenciar o regime jurídico aplicável, de nada
vale a qualificação de seus membros.95
92
93
94
95
Devemos advertir que a autoridade administrativa pode recusar, de forma fundamentada, o domicílio
tributário se constatar que a sua escolha impossibilita ou dificulta a atividade de arrecadação ou
fiscalização do tributo. Nesses casos, considerar-se-á o domicílio fiscal o lugar onde estejam situados
os bens ou onde tenham ocorrido os atos ou os fatos que deram origem à obrigação tributária. É o que
prevêem os §§ 1º e 2º do art. 127 do Código Tributário Nacional. É regra usual para evitar falcatruas
fiscais.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 29.
Hoje, devido à facilidade em constituir uma sociedade limitada, muita sociedade estrangeira tem
preferido criar subsidiárias em território nacional, ou seja, pessoas jurídicas nacionais, a depender de
autorização para o seu funcionamento.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 61.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
251
CAPÍTULO 2
2
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Esse capítulo se reservará a abordar, de forma sucinta, o instituto que foi
criado como resposta dada pelo ordenamento jurídico ao mau uso da pessoa
jurídica, em razão dos abusos praticados por seus sócios, devido à autonomia
conferida à pessoa jurídica (sujeito de direito personalizado autônomo), a partir
da personificação da sociedade.
2.1
EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Como toda análise institucional, regressa-se à origem do instituto (fato
precursor), a fim de obter o seu real significado. Conforme relatado na doutrina,96
o fenômeno da personificação e de seus efeitos levou a uma supervalorização
da autonomia patrimonial, erigida quase como um dogma, e de superação
inimaginável.
Sendo assim, a partir do século XIX, passou-se a se preocupar com a
utilização da pessoa jurídica para fins diversos daqueles considerados pelo
ordenamento jurídico, motivo pelo qual se passou a buscar meios idôneos para
reprimi-la.97
Entre esses meios, relata Verrucoli98 a existência da chamada teoria da
soberania,99 elaborada pelo alemão Haussmann e desenvolvida na Itália por
Mossa, que, em apertada síntese, imputava responsabilidade ao controlador de uma
sociedade de capitais pelas obrigações assumidas pela sociedade controlada e por
ela não satisfeitas. Apesar dos avanços encontrados, não se alcançou repercussão
no plano prático.
96
97
98
99
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 70.
KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine)
e os grupos de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 63.
VERRUCOLI, Piero. Il superamento della personalità giuridica delle societá di capitali nella Common
Law e nella Civil Law. Milano: Giuffrè, 1964, p. 2.
Segundo o referido autor, essa teoria constitui um precedente da Disregard Doctrine. Partilha da
mesma idéia o ilustre professor Alexandre Couto Silva, em sua obra Aplicação da desconsideração
da personalidade jurídica no Direito Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999.
252
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
2.1.1 “DISREGARD DOCTRINE OF THE LEGAL ENTITY” E O EPISÓDIO
“SALOMON VS. SALOMON CO.”
A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica desenvolveu-se e
foi amplamente difundida na common law, principalmente a norte-americana, uma
vez que, no direito continental, os fatos não têm força de gerar novos princípios
em detrimento da legislação.100
De acordo com as narrativas dos fatos existentes em várias obras que tratam
do assunto,101 atribui-se ao episódio Salomon vs. Salomon Co., a ocorrência do
primeiro caso de aplicação da supramencionada teoria.
Esse leading case nos remonta à Inglaterra do final do século XIX (mais
precisamente, 1897). Trata-se do caso de um próspero comerciante individual na
área de couros e calçados, Aaron Salomon, que, em 1892, decidiu fundar a Salomon
& Co. Ltd.,102 tendo como sócios fundadores ele mesmo, sua mulher, sua filha e
seus quatro filhos.103
A sociedade foi constituída com 20.007 ações, sendo que a mulher e os
cinco filhos tornaram-se proprietários de uma ação cada um, e as restantes 20.001
foram atribuídas a Aaron Salomon, das quais 20.000 foram integralizadas com a
transferência, para a sociedade, do fundo de comércio que Aaron já possuía.104
Por ser o preço de transferência desse fundo superior ao valor das ações
subscritas, pela diferença, Aaron Salomon recebeu várias garantias reais em seu
favor constituídas, assumindo a condição de credor privilegiado da companhia,105
no intuito de limitar a sua responsabilidade perante os credores quirografários, já
100
101
102
103
104
105
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito
Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 30; TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2003, p. 70.
ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de bens dos sócios: obrigações mercantis, tributárias e
trabalhistas: desconsideração da personalidade jurídica. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003; FRANCO, Vera
Helena de Mello. Manual de Direito Comercial. Vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001; SILVA,
Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito Brasileiro. São
Paulo: LTr, 1999; TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003;
VERRUCOLI, Piero. Il superamento della personalità giuridica delle societá di capitali nella Common
Law e nella Civil Law. Milano: Giuffrè, 1964.
Até então comerciante em nome individual, Salomon transformou seu negócio numa Limited Company
(Ltd.), correspondente à nossa sociedade anônima fechada.
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito
Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 30.
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito
Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 30.
SILVA, Alexandre Couto Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito Brasileiro.
São Paulo: LTr, 1999, p. 31.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
253
que a Salomon & Co., revestida de personalidade jurídica, em caso de insolvência,
responderia unicamente com o seu patrimônio.
Sendo assim, não demorou muito para a Salomon & Co. ter seu ativo
insuficiente para satisfazer as obrigações garantidas, não sobrando nada para
os quirografários. Estabelecido o litígio judicial, o liquidante, no interesse dos
credores quirografários, sustentou a tese que iria mudar a responsabilidade do
sócio de responsabilidade limitada. Afirmou ele que a atividade da company era
atividade de Aaron Salomon, devendo ser ele condenado ao pagamento dos débitos
da company, bem como a soma investida na liquidação de seu crédito privilegiado
deveria ser destinada à satisfação dos credores da sociedade.106
Tanto a High Court (1ª instância) quanto, em grau de recurso, a Court of
Appeal (2ª instância) acolheram, apesar de fundamentos distintos,107 a pretensão
de que o “escudo” da pessoa jurídica não pode proteger quem a cria ou a utiliza
com intuito de fraude, devendo-se responsabilizar pessoalmente o sócio atingindo
o seu patrimônio.
Contudo, a House of Lords, reformando as decisões, censurou aquilo que
considerou incoerência das decisões recorridas, em virtude da adoção ferrenha do
princípio jurídico da autonomia existencial e patrimonial da pessoa jurídica.
Ponderou que a circunstância de estarem quase todas as ações em nome
de Aaron e as remanescentes em mãos de pessoas de sua família não tinha, por
si só, o condão de afetar o fato de que a sociedade fora validamente constituída,
nem o de fazer nascer, contra a pessoa dos sócios, deveres que, de outra forma,
inexistiriam. Ademais, alegava também que a circunstância de virem as ações a
serem transferidas durante a vida da sociedade a uma só pessoa não afetava em
nada a existência nem a capacidade de uma sociedade cuja personalidade jurídica
foi reconhecida.108
Não obstante isso, podemos inferir que o célebre caso Salomon vs. Salomon
& Co. foi uma espécie de obdicter dictum pertinente à possibilidade de se atribuir
106
107
108
REQUIÃO, Rubens: Curso de Direito Comercial. 1º Volume. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.
390.
A High Court acreditava ser um estratagema de que Aaron se serviu para ter os lucros de uma atividade
econômica sem os riscos e a responsabilidade pelas dívidas. A sociedade seria um representante
(agent) de Aaron Salomon e teria direito, como todo representante, a obter do representado a soma
necessária à satisfação dos débitos contraídos no interesse do representado. De outra forma, a Court
of Appeal, embora preferindo falar em uma relação fiduciária, de trust, e não em agency, chegou ao
mesmo resultado. SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica
no Direito Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 31.
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito
Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 31.
254
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
responsabilidade pessoal ao sócio que utiliza, de forma indevida, a pessoa jurídica,
construindo, assim, o início da disregard doctrine, que, a propósito, alcançou
grande repercussão mundial.109
2.1.2 THE LIFTING OF THE CORPORATE VEIL E O CASO BANK OF
UNITED STATES VS. DEVEAUX
Suzy Koury, em sua obra A desconsideração da personalidade jurídica
(disregard doctrine) e os grupos de empresas, afirma haver inverdades com relação
à qualificação do caso inglês Salomon vs. Salomon & Co., como o verdadeiro e
próprio leading case da Disregard Doctrine, uma vez que foi julgado em 1897,
isto é, 88 anos após a primeira manifestação da jurisprudência americana (1809)
no caso Bank of United States vs. Deveaux.
Entretanto, conforme precisa advertência do ilustre professor Alexandre
Couto Silva,110 não configura o caso ora em debate como sendo um leading case
a respeito da Disregard Doctrine, mas, apenas e tão-somente, de uma primeira
manifestação, pela qual se olhou além da pessoa jurídica e se consideraram as
características individuais dos sócios.
Cuidava-se, na realidade, não de uma discussão sobre a separação subjetiva
e patrimonial dos sócios e da sociedade, mas, sim, sobre a competência da Justiça
Federal norte-americana, a qual só abrangia controvérsias entre cidadãos de
diferentes estados.111
Na notável obra intitulada Disregard of the corporate fiction and allied
corporation problems, Wormser assevera que a pessoa jurídica não pode ser
comparada ao cidadão de determinado Estado, na medida em que uma companhia
só está vestida com invisibilidade e intangibilidade. Assim, relata que, em 1809,
o Juiz Marshall, a fim de preservar a jurisdição dos tribunais sobre as sociedades
anônimas, foi compelido a olhar, além da pessoa jurídica, para o caráter dos
indivíduos que a compõem, proclamando o Tribunal (Supremo Tribunal dos Estados
109
110
111
A disseminação no seu uso fez com que a desconsideração da pessoa jurídica fosse conhecida por
diferentes expressões mundo afora. Na Alemanha, tomou o nome de Durchgriff; na Itália, superamento
della personalità giuridica; na França, mise à l´écart de la pernolatité morale; Na Espanha, teoria
de la penetración de la personalidad. ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de bens dos sócios:
obrigações mercantis, tributárias e trabalhistas: desconsideração da personalidade jurídica. 6. ed. São
Paulo: Saraiva, 2003, p. 191.
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito
Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 32.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 71.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
255
Unidos) que, substancial e essencialmente, as partes do processo são os acionistas
e que seus direitos e deveres como cidadãos poderiam ser alcançados.112
Enfim, o que impende destacar é que, independentemente do referencial
histórico adotado, não há dúvida de que foi, a partir da jurisprudência anglo-saxinônica,
que se desenvolveu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.113
2.1.3 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO
BRASIL
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, como verificamos
até agora, prescinde de fundamentos legais para sua aplicação, já que não há nada
mais justo do que conceder ao Estado, por meio da justiça, a faculdade de verificar
se o direito está sendo adequadamente realizado.114
O eminente doutrinador Marçal Justen Filho já ressaltava, em sua obra
preliminar à positivação da referida teoria no ordenamento pátrio, que: “A teoria
da desconsideração da personalidade jurídica societária não foi produzida pela
ciência do direito, mas a partir da jurisprudência (ou seja, da atividade judiciária
de aplicação do direito ao caso concreto)”.115 116
Entretanto, em que pese a tais considerações, o legislador nacional houve
por bem acolher a supracitada teoria em determinados dispositivos, a saber: art. 28
da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor); art. 18 da Lei n. 8.884/94
(praticamente cópia do disposto no art. 28 do CDC); e art. 4º da Lei n. 9.605/98
(reprodução quase literal do art. 28, § 5º, do CDC), embora, conforme observa
Tomazette,117 sem uma precisão desejável.
Isso porque o CDC, ao introduzir no direito positivo a teoria da
desconsideração, acabou por desvirtuá-la de sua concepção clássica, haja vista
ter consagrado hipóteses outras sob a mesma denominação, cogitando, assim,
112
113
114
115
116
117
WORMSER, I. Maurice. Disregard of corporate fiction and allied corporation problems. Washington.
Beard Books, 2000, p. 45.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 71.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 83.
JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 54.
Suzy Koury alega que a disregard doctrine é um meio bastante eficaz para impedir o divórcio entre
o direito e a realidade. KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade
jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 1997, introdução.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 84.
256
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
de desconsideração, questões que, na realidade, tratam de imputação pessoal dos
sócios ou administradores.118
Exemplo disso são as hipóteses de excesso de poder, infração de lei, fato ou
ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, além de falência, estado de
insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica, desde que provocados
por má administração,119 conforme o caput do art. 28 do mencionado CDC.
Quanto aos §§ 2º, 3º e 4º do supra artigo, embora estejam integrados no
rótulo da desconsideração, há apenas a preocupação com a responsabilidade das
sociedades controladas, consorciadas e integrantes de grupo, atribuindo-lhes
responsabilidade subsidiária ou solidária, conforme o caso.
Por fim, o tão falado § 5º do art. 28, por conferir um sentido bastante amplo
para a desconsideração, pois prevê a sua incidência sempre que a personalidade
for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos
consumidores, deve ser interpretado com bastante cautela, uma vez que a
existência de simples prejuízos causados aos consumidores não é suficiente para
a desconsideração.120
Dessa forma, não é o simples prejuízo que autoriza a desconsideração. Há
que se fazer uma interpretação lógica e teleológica do dispositivo, para considerálo como mais um no rol das hipóteses, sem abrir mão dos pressupostos teóricos da
doutrina da desconsideração,121 como constataremos ao longo deste trabalho.
Como se vê, não foram citados os casos dos artigos 10 e 16 do Decreto n.
3.708/19, nem os artigos 117 e 158 da Lei n. 6.404/76, tão pouco o art. 135 da Lei
n. 5.175/66 (CTN), ou inclusive o art. 2º, § 2º, da CLT, pois consideramos hipóteses
de simples responsabilidade pessoal dos próprios sócios ou de solidariedade.
Corroborando essa linha de pensamento, destaca Alexandre Couto Silva122
que, na legislação das sociedades limitadas, admite-se apenas a responsabilidade
perante terceiros, solidária e ilimitada, dos sócios-gerentes ou dos sócios que
derem nome à firma, por dívidas da sociedade, pelo excesso de mandato e pelos
atos praticados com violação do contrato ou da lei. Já na lei de sociedades por
118
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 86.
A definição do que vem a ser má administração é tão abstrata e subjetiva que, consoante relembra
Tomazette, poderá levar a inaplicabilidade do dispositivo.
120
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito
Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 159.
121
AMARO, Luciano. Desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 5, jan./mar. 93, p. 169; TOMAZETTE, Marlon. Direito
Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 89.
122
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito
Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 175.
119
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
257
ações, a atribuição de deveres e responsabilidades ao controlador por seus atos
configura responsabilização por atos próprios. No CTN, significa apenas que, em
determinadas circunstâncias, os sócios são responsáveis, por atos próprios, pelas
dívidas da sociedade.
Na CLT, Tomazette123 assevera que tal dispositivo excepciona a autonomia
resultante da formação de grupos empresariais, determinando a solidariedade
dos vários integrantes do grupo, sem cogitar dos requisitos fundamentais da
desconsideração.124
Em relação a esse critério de imputação de responsabilidade, Luciano Amaro
faz procedente comentário ao concluir que:
Quando a lei cuida de responsabilidade solidária, ou subsidiária, ou
pessoal dos sócios, por obrigação da pessoa jurídica, ou quando ela
proíbe que certas operações vedadas aos sócios, sejam praticadas pela
pessoa jurídica, não é preciso desconsiderar a empresa, para imputar
as obrigações aos sócios, pois, mesmo considerada a pessoa jurídica, a
implicação ou responsabilidade do sócio já decorre do preceito legal.
O mesmo se diga se a extensão da responsabilidade é contratual.125
Perfilhando a mesma opinião, Alfredo de Assis Gonçalves Neto, verbis:
Não se pode confundir desconsideração com quebra da autonomia
patrimonial. Há graus de autonomia patrimonial que o ordenamento
jurídico estabelece, em certas circunstâncias, para preservar valores
dignos de proteção jurídica, imputando ou estendendo a terceiro a
responsabilidade referente a determinados atos societários. Tem-se,
aí, um critério legal de imputação, de legitimação extraordinária, que
não dá lugar, igualmente, à desconsideração. 126
Com o advento do Código Civil de 2002, passou-se a afirmar que a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro se alinhou
aos seus fundamentos primitivos, aos seus reais contornos.127
Neste particular, o art. 50 preceitua que:
123
124
125
126
127
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 84.
Os referidos requisitos serão estudados no item 2.3.1
AMARO, Luciano. Desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 5, jan./mar.93, p. 175.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 37.
SILVA, Osmar Vieira. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 146.
258
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado
pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz
decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe
couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas
relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos
administradores ou sócios da pessoa jurídica.128
Com efeito, verifica-se que o fundamento principal para a desconsideração
é o abuso da personalidade jurídica, que pode ser provado pelo abuso de direito e
pela fraude, elementos a serem tratados adiante.
Ademais, nota-se que a existência de um fundamento legal explícito e mais
coerente com a doutrina clássica da teoria da desconsideração veio facilitar a
aplicação da referida teoria dentro do ordenamento jurídico pátrio.129
2.2
CONCEITO
Conforme acompanhamos no capítulo anterior, a pessoa jurídica existe e
deve ser usada por ser um instrumento importantíssimo da economia de mercado,
tanto que o próprio Estado incentiva sua criação, uma vez que prefere o progresso
à estagnação econômica, justamente por saber que o desenvolvimento da atividade
econômica, especificamente sob a forma associativa, permite a multiplicação da
riqueza privada e pública, produzindo resultados que nem o próprio Estado poderia
atingir sozinho.130
Entretanto, é evidente que a utilização adequada do privilégio da pessoa
jurídica é uma ilusão, até porque os efeitos decorrentes da personificação da
sociedade (vistos no capítulo anterior) levam a um cenário perfeito para o
cometimento de fraudes e abusos de direito.
Sendo assim, caso haja o uso inadequado da pessoa jurídica, não pode
predominar a distinção subjetiva entre sociedade personificada e seus sócios.
Nesse aspecto, Gonçalves Neto adverte que: “A assertiva de que a sociedade não
se confunde com a pessoa dos sócios e tem patrimônio próprio, distinto dos deles,
128
129
130
BRASIL. LEI N° 10.406/02, de 10.01.02. Institui o Código Civil. D.O.U. de 11.01.02.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 91.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 66; JUSTEN FILHO,
Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1987. p. 49.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
259
é um princípio jurídico, mas não se pode transformar em dogma a entravar a ação
do ordenamento jurídico positivado” (grifei).131 132
Dessa feita, em resposta a esse cenário, o ordenamento jurídico passou a se
preocupar com o desvirtuamento da utilização da pessoa jurídica, desenvolvendo
a teoria da desconsideração como forma de adequar a pessoa jurídica aos fins para
os quais foi criada.
Com muita propriedade, Amador Paes de Almeida ensina que:
Personificadas as sociedades e, por conseguinte, gozando de autonomia
patrimonial, não são elas, entretanto, intocáveis, onipotentes, a ponto
de se transformarem em escudos para negócios alheios ao objeto
social, acobertando o patrimônio particular de seus respectivos sócios,
a rigor, seus beneficiários exclusivos.
Assim, sempre que a pessoa jurídica seja utilizada para fins
diversos ao objeto para o qual foi criada, há de ser desconsiderada
sua personalidade com a conseqüente responsabilidade pessoal
dos respectivos integrantes, por eventuais prejuízos causados a
terceiros.133
Destarte, desvirtuada a utilização da pessoa jurídica, nada mais eficaz
do que retirar os privilégios que a lei assegura, isto é, descartar a autonomia
patrimonial no caso concreto, esquecer a separação entre sociedade e sócio.134 É
essa a função da desconsideração. Com tais contornos, Ulhoa assegura que: “Se a
131
132
133
134
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 33.
Deve-se relembrar, conforme visto ao longo do item 2.1 deste capítulo, que as primeiras “ações” do
ordenamento jurídico se desenvolveram na jurisprudência, especialmente anglo-saxônica, e não no
direito positivo, herança da “família” romano-germânica. Em percuciente análise dos pressupostos
metodológicos da ciência do direito, Marçal Justen Filho ressalta que a teoria da desconsideração não
se afina perfeitamente a eles. Isso porque a ciência do direito fundamenta-se em um procedimento de
raciocínio sistemático, no qual o ordenamento jurídico caracteriza-se por uma ordenação que parte
do genérico e abstrato para atingir o particular e concreto. De outra forma, o exame da referida teoria
evidencia uma forma de raciocínio problematizada, na qual, em vez de estabelecer conceitos genéricos
para tentar atingir o particular, procede-se inversamente. Intenta-se solucionar o problema a partir dele
mesmo, extraindo princípios e orientações de outros casos semelhantes (precedentes), em um típico
raciocínio indutivo. Justifica-se, assim, o surgimento da teoria da desconsideração a partir da atuação
jurisprudencial. JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito
brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 52/54.
ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de bens dos sócios: obrigações mercantis, tributárias e
trabalhistas: desconsideração da personalidade jurídica. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 193.
SERIK, Rolf. Apariencia y realidad en las sociedades mercantiles: El abuso de derecho por medio de
la persona jurídica. Traducción y comentarios de Derecho Español por José Puig Brutau. Barcelona:
Ariel, 1958, p. 241; TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003,
p. 68.
260
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
autonomia patrimonial não foi utilizada indevidamente, não há fundamento para
a sua desconsideração”.135
Há de se ressaltar que não se destrói a pessoa jurídica, uma vez que esta
continua a existir, sendo desconsiderada apenas no caso concreto,136 para aquele
determinado ato praticado. O escopo é de se preservar a pessoa jurídica, tanto
é assim que o plano do ato constitutivo atingido não é o de validade, mas o de
eficácia, e, mesmo assim, de forma episódica e momentânea.
Nesse toar, explica o professor Fábio Ulhoa Coelho que:
A desconsideração da pessoa jurídica não atinge a validade do ato
constitutivo, mas a sua eficácia episódica. Uma sociedade que tenha
a autonomia patrimonial desconsiderada continua válida, assim
como válidos são todos os demais atos que praticou. A separação
patrimonial em relação aos seus sócios é que não produzirá nenhum
efeito na decisão judicial referente àquele específico ato objeto da
fraude. Esta é, inclusive, a grande vantagem da desconsideração
em relação a outros mecanismos de coibição da fraude, tais como a
anulação ou dissolução da sociedade. Por apenas suspender a eficácia
do ato constitutivo, no episódio sobre o qual recai o julgamento,
sem invalidá-lo, a teoria da desconsideração preserva a empresa,
que não será necessariamente atingida por ato fraudulento de um de
seus sócios, resguardando-se, desta forma, os demais interesses que
gravitam ao seu redor, como o dos empregados, dos demais sócios,
da comunidade etc.(grifos nossos)137
Compartilhando do mesmo entendimento, Alexandre Couto Silva assevera
que:
A doutrina da desconsideração não visa anular a personalidade
jurídica; objetiva tão-somente desconsiderar, no caso concreto, dentro
de seus limites, a pessoa jurídica em relação às pessoas ou bens que
atrás dela se escondem. É este o caso de declaração de ineficácia da
personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo ela,
todavia, incólume para seus outros fins legítimos.(grifei)138
135
136
137
138
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 127.
TOMAZETTE, Marlon. . Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 68.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 127.
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito
Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 28.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
261
Desse modo, em virtude da leitura de inúmeras definições em várias
obras que tratam do assunto139, formulamos a seguinte: A desconsideração da
personalidade jurídica é a suspensão momentânea da eficácia do ato constitutivo
de uma pessoa jurídica, retirando-lhe, de forma casuística e excepcional, sua
autonomia patrimonial, a fim de permitir que o patrimônio pessoal de seus membros
e administradores seja alcançado por obrigações da pessoa jurídica, com o escopo
de evitar um resultado incompatível com a função para a qual foi criada, coibindo,
assim, o seu uso indevido.
2.3
APLICABILIDADE
Diante do exposto até aqui, constatamos que a personalidade jurídica é um
privilégio que deve ser controlado por meio da teoria da desconsideração, mas,
de forma cautelosa, especialmente nos países de tradição romano-germânica,
como o Brasil, onde o legislador, sensível às modificações sociais, políticas e
econômicas, não positivou a referida teoria, na maioria dos casos,140 de acordo com
sua verdadeira essência. Portanto, deve-se alertar que a utilização não criteriosa
dessa teoria traz o risco da insegurança jurídica, que é doença muito mais grave
do que aquela que se procura com ela remediar.141
Depreende-se daí que a função da supramencionada teoria é desconsiderar
a personalidade jurídica em consideração à própria personalidade jurídica,142
funcionando mais como um reforço ao instituto da pessoa jurídica, adequando-o a
novas realidades econômicas e sociais, evitando-se que seja utilizado pelos sócios
como forma de encobrir distorções em seu uso.143
139
140
141
142
143
Entre as principais, citam-se: COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 92; JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade
societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 56/57; SILVA, Alexandre
Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito Brasileiro. São Paulo:
LTr, 1999, p. 26/27; TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003,
p. 69/70.
Nesse particular, pode-se afirmar que a redação do art. 50 do Código Civil é a que mais atende aos
objetivos da verdadeira teoria da desconsideração.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 74; SILVA, Alexandre
Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito Brasileiro. São Paulo: LTr,
1999, p. 176; GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2004, p. 38.
BANDEIRA, Gustavo. Relativização da pessoa jurídica. Niterói: Impetus, 2004, p. 52.
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito
Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 35.
262
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
Realizadas tais considerações, podemos inferir que só se aplica a teoria
da desconsideração em ocasiões excepcionais, quando atendidos determinados
requisitos, quais sejam: a ocorrência do abuso do direito e da fraude relacionados
à autonomia patrimonial (principal efeito da personificação da sociedade).
2.3.1 REQUISITOS
A correta aplicação da teoria da desconsideração gira em torno justamente da
busca do critério básico, capaz de melhor operar a desconsideração. Nesse sentido,
a maioria dos autores144 considera o desvio de função como o elemento chave, pois,
apenas se comprovando cabalmente o desvio no uso da pessoa jurídica, seja por
meio do abuso do direito ou da fraude, é que cabe falar em desconsideração.145
Entretanto, com total pertinência, Alexandre Couto Silva146 chama a atenção
para um requisito que quase sempre passa despercebido pelos doutrinadores e
que é de suma importância. Poucos se detiveram em salientar que a limitação de
responsabilidade é outro requisito essencial junto com a personalidade jurídica e
o desvio de sua função.
Por conseguinte, pode-se afirmar que a aplicação da teoria se restringe apenas
a dois tipos societários, que são as sociedades anônimas e as sociedades por cotas
de responsabilidade limitada, haja vista ocorrer, nos demais tipos societários, uma
responsabilidade ilimitada de seus membros.
Feitas as devidas ponderações, analisemos de forma concisa os dois
requisitos que propiciam a constatação do desvio da função da pessoa jurídica, a
começar pela fraude.
Sempre que uma pessoa, movida por um intuito ilegítimo, lançar mão da
autonomia patrimonial para se ocultar e fugir ao cumprimento de suas obrigações
estará cometendo uma fraude relacionada à autonomia patrimonial.147
144
145
146
147
SERIK, Rolf. Apariencia y realidad en las sociedades mercantiles: El abuso de derecho por medio de
la persona jurídica. Traducción y comentarios de Derecho Español por José Puig Brutau. Barcelona:
Ariel, 1958; SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no
Direito Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999; TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2003; JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no
direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração
da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.
É claro que, antes de qualquer requisito, impende destacar que a própria terminologia empregada
evidencia, aprimo oculi, que a aplicação da referida teoria só é admissível no ordenamento jurídico que
considere a personalidade jurídica da sociedade como distinta da personalidade de seus membros.
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito
Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 26.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 78.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
263
Fraude, salvo melhor juízo, corresponde ao emprego de artifício malicioso
para prejudicar terceiros, podendo ser entendida como uma distorção intencional
da verdade com o intuito de prejudicar terceiro.148 Em outras palavras, é qualquer
manobra realizada para enganar, seja por um único ou vários atos combinados,
por supressão da verdade, ou sugestão do que é falso.149
Observa-se que essa fraude ora em debate não se limita aos credores, uma
vez que abrange qualquer sujeito de direito lesado em seus interesses jurídicos.150
Dessa forma, podemos dizer, categoricamente, que a pessoa jurídica não existe
para permitir que a pessoa física burle uma obrigação que lhe é imposta ou para
que faça algo que lhe é proibido.151 Sua existência se dá para o exercício normal
das atividades econômicas,152 para o tráfico jurídico e negocial de boa-fé.153
Nesse mesmo tom, a Lei de Registros Públicos declara que:
Art. 115. Não poderão ser registrados os atos constitutivos de pessoas
jurídicas, quando o seu objeto ou circunstâncias relevantes indiquem
destino ou atividades ilícitos ou contrários, nocivos ou perigosos
ao bem público, à segurança do Estado e da coletividade, à ordem
pública ou social, à moral e aos bons costumes.154
Ressalta-se, por oportuno, que não basta a existência de uma fraude, é
imprescindível que esta guarde correlação com o uso desvirtuado da autonomia
patrimonial da pessoa jurídica.
Por derradeiro, quanto ao requisito do abuso do direito, este possui
fundamento na necessidade de se imporem limites éticos ao exercício do próprio
direito. Justen Filho já enfatizava que: “a liberdade jurídica abrange a criação e
utilização de sociedades personificadas (pessoas jurídicas), contudo, sem a fixação
de um padrão mínimo de regulação da “conduta” dessas sociedades”.155
148
149
150
151
152
153
154
155
COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1989, p. 57;TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 78.
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito
Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 36.
COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1989, p. 57.
AMARO, Luciano. Desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 5, jan./mar. 93, p. 174.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 79.
SERIK, Rolf. Apariencia y realidad en las sociedades mercantiles: El abuso de derecho por medio de
la persona jurídica. Traducción y comentarios de Derecho Español por José Puig Brutau. Barcelona:
Ariel, 1958, p. 52.
BRASIL. LEI N° 6.015/73, de 31.12.73. Dispõe sobre os registros públicos. D.O.U. de 31.12.73.
JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 91.
264
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
A par de um estudo minucioso sobre a teoria do abuso do direito, Rubens
Requião, em seu reconhecido artigo Abuso de direito e fraude através da
personalidade jurídica,156 já nos ensinava que:
O direito, enfim, foi criado em atenção ao indivíduo, tendo por
objetivo ordenar sua conveniência com outros indivíduos. O exercício
de seus direitos, embora privados, deve atender a uma finalidade
social. A função social do direito, que se refere sobretudo aos contratos
e à propriedade, deve, pelo indivíduo ser atendida.
Assim, o sujeito não exercitará seus direitos egoisticamente, mas
tendo em vista a função deles, a finalidade social que objetivam.
O ato, embora conforme a lei, se for contrário a essa finalidade, é
abusivo e, em conseqüência, atentatório ao direito.157
Exemplo elucidativo para esse contexto é o que traz o saudoso professor
Pedro Batista Martins, encarregado de transportar para as nossas instituições
jurídicas a teoria do abuso de direito. Em sua clássica monografia Abuso do direito
e o ato ilícito, relatava que:
O titular de um direito que, entre vários meios de realizá-lo, escolhe
precisamente o que, sendo mais danoso para outrem, não é o mais
útil para si, ou mais adequado ao espírito da instituição, atentando
contra a justa medida dos interesses em conflito e contra o equilíbrio
das relações jurídicas.158
Portanto, o abuso do direito surge do inadequado uso de um direito, mesmo
que seja estranho ao agente o propósito de prejudicar o direito de outrem.159 É dizer
que o abuso que conduz à desconsideração é o abuso não permitido, ou melhor,
não assumido pelo direito e pela comunidade. É a situação de excessiva ofensa
aos princípios jurídicos.160
156
157
158
159
160
Artigo produzido na conferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná,
por ocasião das comemorações do primeiro centenário de nascimento do fundador da faculdade e seu
primeiro catedrático de direito comercial, Des. Vieira Cavalcanti Filho.
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais,
vol. 58, n. 410, São Paulo, dez/69, p. 16.
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais,
vol. 58, n. 410, São Paulo, dez/69, p. 16.
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais,
vol. 58, n. 410, São Paulo, dez/69, p.16.
JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 121.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
265
CAPÍTULO 3
3 QUOTAS SOCIAIS
Trata-se do estudo de relevante instituto o qual exercerá a função de ponte
temática para o debate principal deste trabalho, travado no capítulo 4. Assim
sendo, como toda análise institucional, tentou-se buscar a melhor definição de seu
conceito, natureza jurídica e análise de sua evolução histórica.
3.1
CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA
Preliminarmente, no intuito de gerar enleio com a definição do que venha a
ser quota social, impende destacar a conceituação de capital social, que, no escólio
de Carvalho de Mendonça, “representa a totalidade, expressa em dinheiro, dos
contingentes realizados ou prometidos pelos sócios, consubstanciando o fundo
autônomo à disposição dos órgãos administrativos para a realização dos fins
previstos no ato institucional”.161
Já no dizer do saudoso Egberto Lacerda Teixeira, o capital social seria
“o fundo originário e essencial da sociedade, fixado pela vontade dos sócios; o
montante constituído para a base das operações”.162
Ora, fazendo-se interpretação conjunta com o explanado nos capítulos
anteriores, depreende-se que o capital social constitui a matriz da autonomia
patrimonial de uma sociedade personificada.163
Feitas as respectivas ponderações, imperioso que se tenha à mão a definição
do que é uma quota social. Nesse diapasão, destaca-se o clássico conceito de
161
162
163
MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. V. III, Tomo II. Atualizado
por Paulo Benasse. Campinas: Bookseller, 2003, p. 430.
TEIXEIRA, Egberto Lacerda. Das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. São Paulo:
Max Limonad, 1956, p. 74/75.
Deve-se deixar claro que o capital social não se confunde com o patrimônio social, por uns chamado
de fundo social ou fundo líquido, uma vez que este é dinâmico, correspondendo a soma de todos os
bens que podem ser objeto de troca, possuídos pela sociedade, e compreendendo tudo o que a sociedade
adquire ao longo de sua existência. Por esse motivo, o patrimônio social não é considerado essencial
para a atribuição da personalidade jurídica à sociedade e, conseqüentemente, para a criação da pessoa
jurídica. Tanto é assim, que a principal crítica à teoria do patrimônio de afetação (uma das teorias que
tentavam explicar a natureza jurídica da pessoa jurídica) residia, conforme relembra Tomazette, no
argumento de que “a pessoa jurídica é sempre capaz de adquirir um patrimônio, sendo que a preexistência
deste nem sempre é necessária para que ela se constitua”. TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 51.
266
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
Egberto Lacerda Teixeira,164 verbis: “Quota é a entrada, ou contingente de bens,
coisas ou valores com o qual cada um dos sócios contribui ou se obriga a contribuir
para a formação do capital social”.165
Acrescenta o referido autor que o retro conceito trata de uma acepção
genérica, existindo, contudo, um sentido estrito, correspondendo à “porção de
capital que a cada sócio cabe na sociedade”.166 167
É esse o núcleo do conceito de quota social, conforme verificaremos adiante
com a confrontação deste com as modernas definições, pós-Código Civil de 2002.
Entretanto, enquanto não chega o momento oportuno, deve-se enfatizar que nunca
houve divergência doutrinária em relação ao âmago conceitual, porém há de se
reconhecer que existiu evolução no tratamento da matéria, especialmente quanto
ao sistema aplicado à quota social.
Isso porque previa o art. 5º do antigo Decreto n. 3.708/19168 um sistema
denominado de quota única inicial e posterior, cujo fundamento foi inspirado no
sistema português169 e alemão.170
Traduzia-se na proibição, após a aquisição de uma quota social, de eventual
acréscimo por outra quota posteriormente adquirida.171 Em outras palavras, o
número inicial de quotas era idêntico ao número de sócios, ou seja, cada sócio só
poderia possuir uma quota no capital originário da sociedade.172
164
165
166
167
168
169
170
171
172
Serve até hoje como parâmetro para definição de quota social, influenciando inúmeros doutrinadores
dedicados à matéria.
TEIXEIRA, Egberto Lacerda. Das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. São Paulo:
Max Limonad, 1956, p. 85.
TEIXEIRA, Egberto Lacerda. Das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. São Paulo:
Max Limonad, 1956, p. 85.
Entre os que se detiveram em salientar o duplo sentido da quota social, destaca-se o trabalho de Márcia
Cristina de Oliveira Ferreira Marinho, para quem o sentido genérico de quota é justamente o que se
empregava nos artigos 287, 289 e 302, n. 4 do Código Comercial, e o sentido estrito ou especial, o
utilizado no Decreto n. 3.708/19. MARINHO, Márcia Cristina de Oliveira Ferreira. Penhora de quotas
na sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1997, p. 18.
Art. 5º Para todos os efeitos, serão havidas como quotas distintas a quota primitiva de um sócio e
as que posteriormente adquirir. BRASIL. DECRETO N. 3.708/19, 10 de janeiro de 1919. Regula a
constituição de sociedades por quotas, de responsabilidade limitada. D.O.U. 15.1.1919.
Em verdade, trata-se de cópia do art. 6, § 1º, da lei portuguesa de 1801, que regulamenta a sociedade
limitada.
A precursora desse sistema foi a lei alemã de 1892, em seu art. 5, alínea 2ª.
MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades limitadas no Brasil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006,
p. 78.
BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial terrestre. 5. ed. 4. tiragem. Rio de Janeiro:
Forense, 1991, p. 347; TEIXEIRA, Egberto Lacerda. Das sociedades por quotas de responsabilidade
limitada. São Paulo: Max Limonad, 1956, p. 85.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
267
Em relação ao tema, João Eunápio Borges, com muita propriedade, relata
que, como a exigência legal da cota única primitiva constituía norma destituída
de sanção e de utilidade, a praxe mercantil rebelou-se contra ela, sendo comum
o contrato de sociedade por quotas, cujo capital fosse inicialmente dividido em
quotas de valor igual, cabendo a cada sócio determinado número delas.173 174
Além do sistema em comento, bem relembra Rodrigo Prado Marques175 que
existiam mais dois: o de quotas permanentes e o de pluralidade de cotas. O primeiro
determinava que posteriores aumentos de capitais não criavam novas quotas, apenas
elevavam o valor das já existentes. O segundo, consagrado na França em 1925, é
aquele em que se divide em quotas iguais o capital social, sendo livre a aquisição
destes por parte dos sócios, a exemplo das sociedades anônimas.176
Dessa feita, sensível ao estágio evolutivo da questão, o Código Civil de
2002, ao cuidar da seção das quotas, estabeleceu, em seu art. 1.055, que o capital
social divide-se em quotas, iguais ou desiguais, cabendo uma ou diversas a cada
sócio.177
Como se vê, podemos inferir que, ao menos em parte, caminhou o Código
Civil para a corrente da pluralidade de quotas. Corretas se entremostram as palavras
de Waldecy Lucena ao comentar o titubear do legislador pátrio. Senão vejamos:
Os projetistas do novo Código Civil simplesmente codificaram o
que já era praxe assente nos meios jurídicos, ou seja, a adoção do
sistema de pluralidade de quotas ou de quotas múltiplas. É certo que
o dispositivo fez concessões, no que andou mal, ao se referir a “uma
quota a cada sócio”.178
Com efeito, as definições que advieram depois do Código Civil de 2002
mantiveram a essência do conceito clássico. Entre elas, destacamos a de Waldo
173
174
175
176
177
178
BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial terrestre. 5. ed. 4. tiragem. Rio de Janeiro:
Forense, 1991, p. 347.
Subdividia-se a quota em tantas quotas quantas fossem as unidades, ou frações mínimas fixadas pelos
sócios quotistas. Assim, em vez de deter uma quota de $600.000,00, possuía 600 quotas de $1.000,00.
TEIXEIRA, Egberto Lacerda. Das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. São Paulo:
Max Limonad, 1956, p. 86.
MARQUES, Rodrigues Prado. Sociedades Limitadas no Brasil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006,
p. 78.
No que tange ao estudo dos sistemas de quotas, consultar, por todos, entre a doutrina nacional: LUCENA,
José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2005, p. 313/323; e TEIXEIRA, Egberto Lacerda. Das sociedades por quotas de responsabilidade
limitada. São Paulo: Max Limonad, 1956, p. 87/90.
BRASIL. LEI N° 10.406/02, de 10.01.02. Institui o Código Civil. D.O.U. de 11.01.02.
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6ª ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 322.
268
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
Fazzio Júnior,179 in textu: “O capital da sociedade limitada, como o de todas as
sociedades regidas pelo CC de 2002, é fracionado em quotas de participação
social”. Dessa forma, “Quota é o quinhão em dinheiro ou bens com que cada sócio
contribui para a constituição do capital social”.
Outra definição contemporânea é a de Celso Marcelo de Oliveira, para quem
as quotas “representam o contingente patrimonial com que o sócio concorre para
o capital da sociedade, podendo compreendê-la como parte do capital social”.180
Ministrando com muita sabedoria jurídica, Gonçalves Neto181 alerta ao
preciosismo técnico que deve ser empregado no conceito de quota. Afirma o referido
autor que se costuma dizer, na doutrina, que quota representa a contribuição que os
sócios fornecem para a formação do capital social (basta comparar as definições
vistas acima). Entretanto, adverte que, na realidade, quota não é contribuição, mas
uma contrapartida.
Para corroborar tal assertiva, assevera que as “contribuições” dos sócios,
quer em dinheiro, quer em outra espécie de bens, destacam-se do patrimônio
individual de cada um que as presta e se transfere para a sociedade a título de
propriedade (em regra), recebendo o sócio, em troca, uma parcela proporcional
do capital social, correspondente ao valor que sua “contribuição” irá representar
na composição desse capital.182
Sendo assim, ao destacar do seu patrimônio bens ou numerário para
a formação do capital social da sociedade, o sócio não sofre nenhuma perda
patrimonial: simplesmente troca aquela parcela do seu patrimônio individual
por uma outra, que é a quota social, isto é, um novo bem que corresponde à sua
participação na formação do valor do capital social.183 184
179
180
181
182
183
184
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Sociedades limitadas: de acordo com o Código Civil de 2002. São Paulo:
Atlas, 2003, p. 134.
OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Sociedade limitada à luz do novo Código Civil. Campinas: LZN, 2003,
p. 168.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 208.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 208.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 208.
Nesse toar, salienta Ferreira Marinho não ser possível a existência de um título ou papel que incorpore
a quota e tenha valor negocial de circulação. Assim, como parte ideal do capital de uma sociedade
limitada, a quota não é representada por título algum suscetível de transferência. MARINHO, Márcia
Cristina de Oliveira Ferreira. Penhora de quotas na sociedade por quotas de responsabilidade limitada.
Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1997, p. 19.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
269
Debatidos os conceitos, examinemos a natureza jurídica da quota social. Prima
facie, é de bom alvitre tratarmos dos direitos que emanam da quota para melhor
entendermos sua natureza jurídica e, consectariamente, sua penhorabilidade.
A quota social enfeixa, ao mesmo tempo, dois direitos, quais sejam: pessoais
e patrimoniais. O primeiro decorre do status socii,185 correspondendo ao direito de
deliberação, de fiscalização da sociedade, de votar e ser votado, de retirar-se da
sociedade e de, eventualmente,186 geri-la.187 Fázzio Júnior delimita ainda mais o
direito pessoal, traduzindo-o como em sentido estrito (atuação como administrador)
e em sentido amplo (atuação na fiscalização da sociedade).188
Com relação ao segundo (direitos patrimoniais), pode-se afirmar que se trata,
conforme esclarece o notável tratadista Carvalho de Mendonça,189 “de direitos
de crédito, consistentes em: a) perceber o quinhão de lucros durante a existência
social; b) participar na partilha da massa resídua, depois de liquidada a sociedade”.
Acrescenta-se a essa última subdivisão que os direitos patrimoniais podem ser
representados também quando ocorrer dissolução parcial da sociedade ou apuração
de haveres em decorrência de falecimento e da exclusão ou do exercício do direito
de retirada.190
Em feliz epítome a qual sufragamos, apostila Gonçalves Neto191 que a quota
social possui natureza de um bem imaterial ou incorpóreo, de existência autônoma
e de valor próprio, que pode ser objeto de relações jurídicas, submetido ao regime
jurídico de coisas móveis com a aplicação das regras especiais exigidas pela sua
feição imaterial.
185
186
187
188
189
190
191
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 313.
Como a gestão da sociedade, após a vigência do Código Civil de 2002, passou a ser permitida a estranho,
os direitos de ser eleito administrador e de gerir a sociedade deixam de ser inerentes à qualidade de
sócio (Exclusivos de sócio).
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 209.
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Sociedades limitadas: de acordo com o Código Civil de 2002. São Paulo:
Atlas, 2003, p. 134.
MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. V. III, Tomo II. Atualizado
por Paulo Benasse. Campinas: Bookseller, 2003, p. 437.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 209.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 209.
270
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
3.2
PENHORABILIDADE DE QUOTAS
Em virtude da natureza jurídica da quota social (estudada no item anterior),
pode-se inferir que tudo o que é alienável, cessível, pode, em tese, ser objeto de
penhora.192
Assim, no que tange à penhora das quotas sociais, frisa-se que será traçado neste
item, de forma objetiva e elucidativa, o sucinto panorama dentro do ordenamento
jurídico brasileiro. Demonstrar-se-á a evolução do tema desde a recalcitrância em
seu deferimento (égide do Código Comercial e do Código de Processo Civil de
1939), passando pelo entendimento intermediário (penhorabilidade com ressalvas
da década de 70), até a sua total viabilidade, a partir de decisões jurisprudenciais
que facilitam a compreensão do assunto, especialmente do Superior Tribunal de
Justiça (STJ). Dessa feita, passemos à analise individual de cada fase.
3.2.1 NO DECRETO 3.708/19: OMISSÃO
Conforme simples leitura do Decreto n. 3.708/19, depreende-se que este
não enfrentou, de forma explícita, a questão da cessão de quotas e penhorabilidade
relativamente às sociedades por quotas. Restringiu-se apenas a enunciar em seu
art. 5º que: “Para todos os efeitos, serão havidas como quotas distintas a quota
primitiva de um sócio e as que posteriormente adquirir”.193
Ressalta Egberto Lacerda Teixeira194 que não foi feita referência alguma
quanto ao modo de aquisição e à sua disciplina perante os sócios e perante terceiro,
motivo pelo qual adveio, fatalmente, toda confusão e perplexidade que se observou
em nossos escritos e tribunais ao longo dos anos.
3.2.2 NA ÉGIDE DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1939
Em razão da omissão legislativa do Decreto n. 3.708/19, demonstrada acima,
passaram os sócios componentes da sociedade por quotas a pensar nos fatores
192
193
194
BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial terrestre. 5. ed. 4. tiragem. Rio de Janeiro:
Forense, 1991, p. 359.
BRASIL. DECRETO N. 3.708/19, 10 de janeiro de 1919. Regula a constituição de sociedades por
quotas, de responsabilidade limitada. D.O.U. 15.1.1919.
TEIXEIRA, Egberto Lacerda. Das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. São Paulo:
Max Limonad, 1956, p. 224.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
271
positivos e negativos resultantes da escolha de um regime de maior ou menor
liberdade de cessão das quotas sociais.
Verificando que a questão estava intimamente ligada à da dissolução da
sociedade, indispensável seria manter o equilíbrio entre essas duas tendências
a fim de evitar que se instaurasse, na sociedade, ou um regime opressivo e de
constrangimento sufocante ou, pelo contrário, um sistema flácido e de excessiva
liberdade contratual.195
Assim, logo quando se começou a travar esse diálogo ventilando a respeito
da penhorabilidade das quotas sociais, boa parte (uma quase unanimidade)196 da
doutrina inclinava-se à impossibilidade da penhora.
Isso porque essa tese se sustentava com amparo na interpretação conjunta,
e por não menos, confusa, dos dispositivos do Código de Processo Civil de 1939
(art. 930, inciso V, art. 931, art. 942, inciso XII, e art. 943, inciso II)197 e do Código
Comercial (art. 292)198. Vejamos:
Art. 930. A penhora poderá recair em quaisquer bens do executado,
na seguinte ordem:
(...)
V – direitos e ações;
Art. 931. Consideram-se direitos e ações, para os efeitos de penhora:
as dividas ativas, vencidas, ou vincendas, constantes de documentos;
as ações reais, reipersecutórias, ou pessoais para cobrança de dívida;
as quotas de herança em autos de inventário e partilha e os fundos
líquidos que possua o executado em sociedade comercial ou civil.
Art. 942. Não poderão absolutamente ser penhorados:
(...)
XII – os fundos sociais, pelas dívidas particulares do sócio, não
compreendendo a isenção os lucros líquidos verificados em
balanço;
Art. 943. Poderão ser penhorados, à falta de outros bens:
195
196
197
198
TEIXEIRA, Egberto Lacerda Das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. São Paulo:
Max Limonad, 1956, p. 225.
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 368.
BRASIL. DECRETO-LEI 1.608/39, de 18 de setembro de 1939. Código de Processo Civil. CLB de
1939, Vol. 1, ág. 216.
BRASIL. DECRETO N. 3.708/19, 10 de janeiro de 1919. Regula a constituição de sociedades por
quotas, de responsabilidade limitada. D.O.U. 15.1.1919.
272
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
(...)
II – os fundos líquidos que possuir o executado em sociedade
comercial.
Art. 292. O credor particular de um sócio só pode executar os fundos
líquidos que o devedor possuir na companhia ou sociedade, não tendo
este outros bens desembargados, ou se, depois de executados, os que
tiver não forem suficientes para o pagamento.
Destaca Waldecy Lucena199 que houve, por parte do legislador, um baralho
conceitual entre “fundos líquidos” e “lucros líquidos”. Assim, para se entender o
alcance das expressões mencionadas, pertinente se mostra a distinção entre elas,
conforme ensina Carlos Henrique Abrão, ipsis litteris:
A expressão terminológica fundos sociais se refere ao dinheiro que
a sociedade usa no seu giro, incluindo os estoques, créditos, enfim
diz respeito ao complexo de bens que integram o ativo patrimonial
da sociedade. Por sua vez, fundos líquidos referem-se não somente
ao saldo à disposição do sócio, como também à parte ou quota que,
na liquidação da sociedade, for apurado. Compreendem, portanto,
todos os aportes que o sócio fizer à sociedade, o valor de suas quotas,
distinguindo-se, por corolário, da noção de fundo social. Por fim,
lucros líquidos dizem respeito àquelas quantias provenientes da
operação da empresa, verificadas em balanço, pertencentes ao sócio,
que se encontram sob a guarda da sociedade comercial.200 (grifei)
Observa-se que, à época, aduzia-se, em razão da separação patrimonial
da pessoa jurídica e da natureza personalista da sociedade por quotas de
responsabilidade limitada, a não-admissão da penhora, uma vez que redundaria
na entrada de estranho ao quadro social e por se entender que a quota integrava o
fundo social, isto é, o patrimônio da sociedade (sujeito autônomo).201
Dessa feita, raras eram as dissensões, entre as quais a de maior repercussão
foi a emanada pelo Ministro Nelson Hungria, em acórdão do dia 8.10.1953, do
qual se realça a seguinte ementa e excerto que merecem ser lidos, verbis:
Ementa: São penhoráveis as cotas de sociedade limitada, substituindose a final o credor-exeqüente nas vantagens e ônus do quotista199
200
201
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 368.
ABRÃO, Carlos Henrique. Penhora de cotas de sociedade de responsabilidade limitada. 3. ed. São
Paulo: Universitária de Direito, 1996, p. 80.
MARINHO, Márcia Cristina de Oliveira Ferreira. Penhora de quotas na sociedade por quotas de
responsabilidade limitada. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1997, p. 38.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
273
executado, independentemente do assentimento dos demais.
Diferença entre o direito brasileiro e o francês.
(...) O nosso direito positivo, ao contrário, por exemplo, do direito
francês, não exige o consentimento da maioria absoluta dos cotistas
para que um destes ceda a terceiro sua respectiva cota. Embora não se
trate de sociedade somente de capital, pois nela não deixa de influir o
intuitus personae, o nosso legislador não cuidou de criar semelhante
restrição. A não ser que o contrato ou estatuto social explicitamente o
proíba, o cotista pode fazer cessão de sua cota a estranhos. E se assim
é, segue-se, logicamente, que as cotas são penhoráveis. O legislador
pátrio evitou a incongruência da lei francesa de não permitir, em face
de terceiros, a transmissão inter vivos e admitir a transmissão causa
mortis, bem como a estranha solução jurisprudencial ou doutrinária
de, no caso de adjudicação judicial, subordinar a validade desta à
aprovação dos demais quotistas, a qual, vem-se a falar, reduzirá
o direito do credor do quotista executado, que continuará dono da
quota, tão-somente aos lucros que lhe tenham sido ou forem sendo
distribuídos.
Em face do já citado artigo 18 da Lei n.º 3.708, nada tem a ver com
a espécie o artigo 292 do Código Comercial.
Tampouco têm pertinência ao caso os artigos 942, XII, e 931, do
Código de Processo Civil, pois não se trata de penhorar os fundos
sociais da recorrente, desfalcando-lhe o capital, nem coisa que exceda
os fundos líquidos do quotista executado, mas, sim, como bem
acentuou a sentença de primeira instância, o direito de tal quotista
à sua quota, da qual passará a ser titular o credor exeqüente, com as
respectivas vantagens e ônus, como o permite o artigo 18 da Lei n.º
3.708, combinado com o artigo 27, parágrafo 1º, do Decreto n.º 2.627,
de 1940 (sobre as sociedades por ações ou anônimas).202
Nessa linha de pensamento, começou a vir da doutrina certo ensaio em
relação à possibilidade de penhora, como se depreende da lição de João Eunápio
Borges, in textu:
No silêncio de nossa lei, parece-nos, tal preferência só poderá resultar
do contrato e lhes deverá ser assegurada sempre que, pelo contrato,
tiverem preferência para a aquisição de cotas à venda ou depender
de seu consentimento a alteração delas.
202
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 1ª Turma. RE 24.118. Rel. Min. Nelson Hungria. Brasília, DF,
08.10.1953. DJ 20.05.1954, p. 5556.
274
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
Entre nós, porém, se o contrato proibir a cessão das cotas, segue-se
que elas são inalienáveis, não podendo, pois, ser nem apenhadas, nem
penhoradas, a não ser com o consentimento dos sócios.203
Outro doutrinador que seguia a essência do posicionamento exposto na
orientação jurisprudencial do Supremo era Alcino Pinto Falcão, cuja opinião era
criticada por muitos como sendo uma tese que subverteria todo o direito brasileiro.
Todavia, com fulcro em obras técnicas de origem estrangeira,204 manteve sempre a
postura quanto à viabilidade da penhora da quota social e não apenas dos fundos
líquidos que, porventura, possuísse o executado.205
Advertia, contudo, para a controvérsia da matéria e solicitava os bons
préstimos dos juristas para que colaborassem com as suas luzes a fim de se poder
formar uma jurisprudência definitiva, não esquecida das necessidades práticas da
atualidade.206
3.2.3 A PARTIR DA DÉCADA DE 70: TRANSIÇÕES
No início dessa década, começou-se a abandonar também a segunda corrente
em termos de penhora de quotas,207 que, a propósito, só admitia a penhora dos
fundos líquidos para efeito de responsabilização do quotista inadimplente, haja
vista partir da premissa de que a penhora de quota social era um desrespeito aos
princípios gerais da sociedade limitada (affectio societatis e intuitu personae), por
possibilitar o ingresso de terceiro ao quadro social.208
Nesse sentido, é de bom alvitre trazer à baila acórdão de referência da 6ª
Câmara Civil do Tribunal de Alçada da Comarca de São Paulo, no qual ficou
assentado, de forma bem clara, o início da transmutação de pensamento em relação
203
204
205
206
207
208
BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial terrestre. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1969,
p. 352/353.
Parte dessa doutrina era formada por: Adolfo Berio, Lino Salis, Gaston Morin, André Tschoffen, Roger
Lecoultre, Luigi Lordi e Georges Ripert.
FALCÃO, Alcino Pinto. Sociedade de responsabilidade - penhora de cota social. Rio de Janeiro:
Revista Forense, CXXI, 1949, p. 609/611.
FALCÃO, Alcino Pinto. Sociedade de responsabilidade - penhora de cota social. Rio de Janeiro:
Revista Forense, CXXI, 1949, p. 609/611.
A primeira corrente em relação ao tema, conforme exposto no item anterior, era no sentido da absoluta
impossibilidade jurídica de se penhorar a quota social, em razão da autonomia existencial e patrimonial
da pessoa jurídica em relação à pessoa de seus membros, concluindo, portanto, pela proibição de penhora
em bens de terceiros, nos quais a sociedade figuraria como terceiro em relação aos sócios.
MARINHO, Márcia Cristina de Oliveira Ferreira. Penhora de quotas na sociedade por quotas de
responsabilidade limitada. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1997, p. 41.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
275
à possibilidade da penhorabilidade das quotas, traçando distinção entre fundos
sociais e fundos líquidos, que constituíam, à época, o grande entrave em relação
à matéria.
Todavia, a interpretação dos mencionados dispositivos – art. 942, nº
XII, e art. 943, II, do CPC – não comporta a limitação pretendida pelo
agravante, e, em sentido contrário, mesmo mais profundamente do
que ficou decidido no saneador, é de se entender que as cotas sociais
dos sócios, ainda que o contrato social disponha a inalienabilidade das
cotas, podem ser penhoradas por dívidas particulares do proprietário
das cotas, salvo se existirem outros bens conhecidos suficientes para
a cobertura do débito ajuizado.209
Com o advento do Código de Processo Civil de 1973, foi suprimido o
dispositivo que vedava a penhora de quotas por dívida particular do sócio.210 Por
estabelecer a penhorabilidade como regra, é mister observar que o artigo 649 do
CPC de 1973 não vedava a penhora de quotas, assim como nenhuma outra norma
jurídica. Ademais, admitia, por seu turno, a penhora de direitos.
Dentro desse novo cenário, passou a quota a ter outra acepção, sendo
traduzida como um direito do sócio em relação à sociedade, representando um
bem incorpóreo, dotado de conteúdo econômico, referente à relação existente
entre o sócio e a sociedade. Surgia, então, a terceira corrente em sede de penhora
de quotas, arrimada no conteúdo capitalista da sociedade limitada conjuntamente
com o disposto no art. 655, inciso X, do CPC de 1973.211
Dessa forma, os doutrinadores começaram a modificar seus entendimentos
acerca da matéria, para aceitar a não-integração da quota nos fundos sociais,
passando a entendê-la de forma bem parecida com sua atual conjuntura.
É claro que a aceitação foi lenta e gradual, tanto que Waldírio Bulgarelli
era da opinião de que a penhora das quotas sociais, em um primeiro plano, era
possível, mas não quanto à exeqüibilidade.
Em outras palavras, Bulgarelli propunha discussão quanto ao tema,
asseverando que a questão da penhorabilidade não estava bem colocada à luz dos
postulados societários. Defendia que a quota não constituía um direito de crédito,
ou um crédito, contra a sociedade; tratava-se de uma parte ideal do capital social,
209
210
211
Tribunal de Alçada Civil da Comarca de São Paulo, 6ª Câmara. Apelação Cível n.º 139.571. Pres. Des.
Alves Barbosa. Rel. Des. Moreno Gonzáles.
O então novo Código de Processo Civil não reproduziu as observações contidas no diploma normativo
de 1939 (já debatidas no item anterior deste trabalho).
MARINHO, Márcia Cristina de Oliveira Ferreira. Penhora de quotas na sociedade por quotas de
responsabilidade limitada. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1997, p. 40/41.
276
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
que gerava, quando muito, uma expectativa de direito do seu recebimento no
momento da liquidação da sociedade e se houvesse numerário. Por outro lado, a
quota conferia ao seu titular o direito de sócio ou, como mais modernamente se diz,
o status de sócio, considerando como um conjunto de direitos e obrigações.212
Sendo assim, de um lado, não se pode obrigar que a sociedade aceite um
sócio que lhe é imposto por constrição judicial, em substituição ao que efetivamente
existe, e, do outro, não se vêem vantagens no fato de o credor aceitar em pagamento
do seu crédito um direito de participação societária, que não só lhe acarretará
direitos, mas, também, obrigações.213
A outro giro, doutrinadores, como Egberto Lacerda Teixeira, passaram
a questionar os fundamentos jurídicos pertinentes à penhorabilidade das cotas,
afirmando que, em face de nosso direito positivo, devia a referida penhora
corresponder tanto quanto possível à penhora no rosto dos autos.214
Para o referido autor, equivaleria a uma restrição à eventual disponibilidade,
pelo devedor-executado, de sua quota, bem como dos fundos ou lucros líquidos
que lhe viessem a caber na divisão dos lucros de balanço ou na partilha final da
liquidação.215
É claro que, depois, o douto doutrinador, que era favorável à impenhorabilidade
da quota social, quando muito admitindo correspondesse a penhora da quota à
penhora no rosto dos autos, evoluiu seu pensamento para passar a admitir a penhora
da quota social com as devidas cautelas.216
Sobreleva notar que, tão logo ocorrida a mudança de pensamento, os
pregoeiros da impenhorabilidade reabriram as disceptações, apegados ao art. 292
do Código Comercial e ao argumento da natureza personalista da sociedade por
quotas de responsabilidade limitada.
212
213
214
215
216
BULGARELLI, Waldírio. Sociedades, Empresas e Estabelecimento. São Paulo: Atlas, 1980, p. 254.
BULGARELLI, Waldírio. Sociedades, Empresas e Estabelecimento. São Paulo: Atlas, 1980, p. 254/255.
TEIXEIRA, Egberto Lacerda. As implicações da Nova Lei das Sociedades por Ações nas Sociedades
por Quotas de Responsabilidade Limitada. Revista de Direito Mercantil (RDM), nova fase, n. 23.
Publicação do Instituto Brasileiro de Direito Comercial Comparado e Biblioteca Tulio Ascarelli e do
Instituto de Direito Econômico e Financeiro, anexos aos departamentos de Direito Comercial e Direito
Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: RT, 1976,
p. 151/157.
TEIXEIRA, Egberto Lacerda. As implicações da Nova Lei das Sociedades por Ações nas Sociedades
por Quotas de Responsabilidade Limitada. Revista de Direito Mercantil (RDM), nova fase, n. 23.
Publicação do Instituto Brasileiro de Direito Comercial Comparado e Biblioteca Tulio Ascarelli e do
Instituto de Direito Econômico e Financeiro, anexos aos departamentos de Direito Comercial e Direito
Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: RT, 1976,
p. 151/157.
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 382.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
277
Exemplo dessa inconciliabilidade das correntes em oposição é o notável
aresto do Supremo Tribunal Federal,217 de meados da década de 80, no qual
duelaram dois notáveis juristas: os Ministros Xavier de Albuquerque e Cunha
Peixoto, que, respectivamente, foram votos vencedor e vencido.
No supracitado julgado, o Ministro Xavier de Albuquerque erigiu, de forma
excepcional, entendimento jurisprudencial quanto à viabilidade da penhora de
quotas, defendendo idéia imortalizada até hoje de que as quotas são bens de valor
econômico que representam os direitos do quotista sobre o patrimônio líquido da
sociedade, neste compreendido o próprio capital. Nesse sentido, não poderiam as
quotas deixar de responder pelas obrigações do seu titular.
Assim, com fulcro nesse argumento de peso, é que doutrinadores, como
Waldecy Lucena, posicionam-se no sentido de que a quota social é e sempre foi
sujeita à penhora, não podendo ficar esta à mercê da mera convenção privada
(contrato social), reguladora da cessão das quotas sociais, uma vez que a penhora
constitui instituto de direito processual e, portanto, público.
3.2.4 PELA ANÁLISE DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ)
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o Superior Tribunal de
Justiça (STJ) foi alçado à categoria de órgão de controle infraconstitucional, ou
seja, no plano da legalidade, passou a ditar a última palavra acerca da matéria.
Dessa feita, em razão de a dialética a respeito da penhora de quotas girar em
torno dos preceitos estabelecidos no diploma processual civil (infraconstitucional),
inaugurou-se, na Egrégia Corte, dissenso em relação ao princípio-regra da
responsabilidade patrimonial fixado no art. 591 do CPC, cujo conteúdo disciplina
que o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os
seus bens presentes e futuros, salvo restrições legais.
Era justamente aí, nas restrições legais, que pairavam as controvérsias no
direito pretoriano da supramencionada Corte. A questão era saber se, entre essas
exceções, estariam as quotas sociais das quais era titular o devedor. Em outras
palavras, voltou-se à velha discussão se seriam as quotas penhoráveis ou não.
Verifica-se, portanto, que, mesmo tendo sido o insigne Tribunal criado dentro
de um contexto no qual o posicionamento majoritário era no sentido de se instituir
a tese da relação de participação do sócio na sociedade (participação essa tanto de
natureza pessoal quanto patrimonial), considerando-se a quota não mais como parte
217
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Plenário. Embargos no RE 90.910/PR. Rel. Min. Djaci Falcão.
Brasília, DF, 29.02.1984. R.T.J. 109/1004.
278
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
integrante do patrimônio da sociedade, e, sim, como instrumento para conferir o
status de sócio, atribuindo direitos e deveres, foi aberta divergência.
Preliminarmente, a 3ª Turma do STJ confirmou decisão favorável à
impenhorabilidade das quotas sociais, sob o antigo fundamento da natureza
personalista da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, no qual
predomina o elemento humano sobre o capital. Vejamos, assim, a íntegra da
ementa, ipsis litteris:
Sociedade por Cotas de Responsabilidade Limitada – Penhorabilidade
das Cotas do Capital Social.
O artigo 591 do CPC, dispondo que o devedor responde, pelo
cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens, ressalva
as restrições estabelecidas em lei. Entre elas se compreende a
resultante do disposto no artigo 64, I do mesmo Código que afirma
impenhoráveis os bens inalienáveis.
A proibição de alienar as cotas pode derivar do contrato, seja em virtude
de proibição expressa, seja quando se possa concluir, de seu contexto,
que a sociedade foi constituída “intuitu personae”. Hipótese em que
o contrato veda a cessão a estranhos, salvo consentimento expresso
de todos os demais sócios. Impenhorabilidade reconhecida.218
Em sentido diametralmente oposto, em acórdão da lavra do Ministro Sálvio
de Figueiredo, foi consignado pela 4ª Turma que a penhora de quotas era plenamente
viável, inclusive, se o contrato social vedasse a cessão das quotas. O argumento
utilizado baseava-se na premissa de que a impenhorabilidade só pode resultar de
lei, e não da vontade das partes. Logo, eventual cláusula vedatória de cessão de
quotas a terceiros não se poderia sobrepor a uma regra de ordem pública a qual
permite a penhora de direitos.
Nesse tom, vejamos a célebre ementa do acórdão do REsp n. 39.609/SP,
verbis:
Processo civil e direito comercial. Penhorabilidade das cotas de
sociedade de responsabilidade limitada por dívida particular do sócio.
Doutrina. Precedentes. Recurso não conhecido.
I – A penhorabilidade das cotas pertencentes ao sócio de sociedade
de responsabilidade limitada, por dívida particular deste, porque não
vedada em lei, é de ser reconhecida.
218
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 3ª Turma. REsp n.º 34.882/RS. Rel. Min. Eduardo Ribeiro.
Brasília, DF, 30.06.1993. DJ 09.08.1993, p. 15230.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
279
II – Os efeitos da penhora incidente sobre as cotas sociais hão
de ser determinados em atenção aos princípios societários,
considerando-se haver, ou não, no contrato social, proibição à
livre alienação das mesmas.
III – Havendo restrição contratual, deve ser facultado à sociedade,
na qualidade de terceira interessada, remir a execução, remir o bem
ou conceder-se a ela e aos demais sócios a preferência na aquisição
das cotas, a tanto por tanto (CPC, arts. 1117, 1118 e 1119).
IV – Não havendo limitação no ato constitutivo, nada impede
que a cota seja arrematada com inclusão de todos os direitos a ela
concernentes, inclusive o status de sócio.219
Alinhamo-nos, ao cotejar as ementas transcritas acima, com o Ministro
Sálvio de Figueiredo, cumprindo observar que a exposição e o voto concedidos
por este constituem essencial instrumento sintetizador da matéria,220 além de
formador do entendimento majoritário naquele tribunal, influenciando até mesmo
a 3ª Turma.221
CAPÍTULO 4
4
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
INVERSA?
4.1
A PENHORABILIDADE DE QUOTAS À LUZ DO CÓDIGO CIVIL
DE 2002
Verificar-se-á, ao longo deste capítulo, que o Código Civil de 2002 encerrou
em definitivo as dissensões existentes, haja vista ter adotado in totum o juízo
externado por dois precedentes jurisprudenciais analisados no capítulo anterior,222
219
220
221
222
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 4ª Turma. REsp n.º 39.609/SP. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo
Teixeira. Brasília, DF, 14.03.1994. DJ 06.02.1995, p. 1356.
MARINHO, Márcia Cristina de Oliveira Ferreira. Penhora de quotas na sociedade por quotas de
responsabilidade limitada. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1997, p. 58.
Basta verificar os últimos julgado quanto ao tema. Entre eles: Resp n.º 712.747/DF, DJ 10.04.2006;
AgRg no AG n.º 347.829/SP, DJ 01.10.2001; REsp n.º 221.625/SP, DJ 07.05.2001.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Plenário. Embargos no RE 90.910/PR. Rel. Min. Djaci Falcão.
Brasília, DF, 29.02.1984. R.T.J. 109/1004; e SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 4ª Turma. REsp
n.º 39.609/SP. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Brasília, DF, 14.03.1994. DJ 06.02.1995, p.
1356.
280
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
ou seja, de que a penhorabilidade das quotas sociais, exatamente por se tratar de
um bem de expressão econômica incluído no patrimônio do devedor, é plenamente
viável para o cumprimento das obrigações do sócio em débito.223
Todavia, antes de analisarmos a sistemática posta no Código Civil de 2002,
torna-se necessária a elucidação de alguns pontos para melhor fixação do tema.
Assim sendo, com base no que foi exposto ao longo do capítulo anterior, podemonos afeiçoar com a máxima de que, nem mesmo ao tempo do CPC de 1939, era a
quota social impenhorável.
Isso porque, conforme bem explica o professor Waldecy Lucena, a locução
“fundos líquidos”, constante do artigo 292 do Código Comercial, não tem o
significado restritivo, que lhe quiseram emprestar, de permitir a penhora apenas
dos “lucros líquidos” a distribuir, apurados no exercício, e, somente por ocasião
da oportunidade da dissolução e liquidação da sociedade, alcançar o quinhão que
caberia ao sócio executado.
Na realidade, significa que, não bastando os “lucros líquidos” a distribuir
à satisfação do crédito do exeqüente, passar-se-á imediatamente à liquidação da
quota do sócio devedor, ou seja, à chamada dissolução parcial da sociedade (objeto
de estudo no item 4.4 deste capítulo).
Nesse aspecto, partindo-se para a liquidação da quota, deve-se relembrar
do que explicitado no Capítulo 3, item 3.1, quanto aos direitos que emanam da
quota. Naquela oportunidade, foi comentado que a quota social enfeixa, ao mesmo
tempo, dois direitos, quais sejam: pessoais e patrimoniais. Assim, ao subscrever e
integralizar quotas da sociedade, passa o sócio a ser titular de um direito pessoal
e outro patrimonial.
Dessa forma, o que se deve deixar claro aqui é que esse direito pessoal
do sócio jamais poderá acarretar a impenhorabilidade da quota social, apenas
determinar, juntamente com as restrições impostas no contrato social à cessibilidade
das quotas, qual o rumo da execução (objeto de análise nos subitens 4.3.2 e
4.3.3 deste estudo), isto é, se esta irá alcançar apenas o direito patrimonial, ou
ambos.224
Sopesadas as questões aventadas, passemos ao exame da matéria no
regramento do Código Civil de 2002.
223
224
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 383.
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 378.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
281
4.2
EXAME DO ART. 1.026, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO DO
CÓDIGO CIVIL DE 2002
Preliminarmente, é de bom alvitre ressaltarmos que o codificador pátrio
buscou inspiração no Código Civil italiano, que disciplinou a expropriação da quota
social, para a sociedade simples, nos artigos 2.270 e 2.288. Senão vejamos:
Creditore particolare del socio
Art. 2270 – Il creditore particolare del socio, finché dura la società,
può far valere i suoi diritti sugli utili spettanti al debitore e compiere
atti conservativi (2905) sulla quota spettante a quest’ultimo nella
liquidazione.
Se gli altri beni del debitore sono insufficienti a soddisfare i suoi
crediti, il creditore particolare del socio può inoltre chiedere in ogni
tempo la liquidazione della quota del suo debitore. La quota deve
essere liquidata entro tre mesi dalla domanda, salvo che sia deliberato
lo scioglimento della società(2272 s., 2288).
Esclusione di diritto
Art. 2.288 – È escluso di diritto il socio che sia dichiarato fallito.
Parimenti è escluso di diritto il socio nei cui confronti un suo creditore
particolare abbia ottenuto la liquidazione della quota a norma
dell’articolo. 2270. 225 226
Por pertinente, calha rememorar que houve certa influência também da Lei
de Sociedades argentina, como se vê do texto a seguir transcrito, verbis:
Art. 153 – omissis.
En la ejecución forzada de cuotas limitadas en su transmisibilidad,
la resolución que disponga la subasta será notificada a la sociedad
con no menos de quince días de anticipación a la fecha del remate.
Si en dicho lapso el acreedor, el deudor y la sociedad non llegan a
un acuerdo sobre la venta de la cuota, se realizará su subasta. Peo el
juez no la adjudicará si dentro de los diez días la sociedad presenta
225
226
ITÁLIA. Codice Civile e la leggi complementari. A cura di Gian Vito Califano. San Marino: Maggioli,
2005.
Frisa-se que, na Itália, a sociedade de responsabilidade limitada é considerada como uma subespécie da
sociedade por ações, por se entender ser aquela (sociedade limitada) uma sociedade preponderantemente
capitalista. Nesse sentido, quanto à penhora da quota social, cuida o art. 2.480 do Código Civil Italiano
da espropriazione della quota.
282
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
un adquirente o ella o los socios ejercitan la opción de compra por
el mismo precio, depositando su importe.227
A seu turno, dispôs o Código Civil brasileiro de 2002 que:
Art. 1.026. O credor particular de sócio pode, na insuficiência
de outros bens do devedor, fazer recair a execução sobre o que a
este couber nos lucros da sociedade, ou na parte que lhe tocar em
liquidação.
Parágrafo único. Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor
requerer a liquidação da quota do devedor, cujo valor, apurado
na forma do art. 1.031, será depositado em dinheiro, no juízo da
execução, até noventa dias após aquela liquidação.228
Com efeito, demonstra-se como o Código Civil de 2002 coadunou-se,
escorreitamente, com os melhores preceitos do direito comparado, admitindo
plenamente a penhora de quotas sociais, mas a submetendo à ocorrência de algumas
condições prévias.
A primeira delas é a de que a penhora recairá sobre as quotas sociais, apenas
se houver “insuficiência de outros bens do devedor” (art. 1.026, caput). Como
bem adverte Waldecy Lucena,229 prudente e sábia é a exigência, uma vez que, se
existentes outros bens livres, de execução simples e linear, desnecessária se torna
a expropriação das quotas, haja vista serem conhecidas as dificuldades para tal
constrição e os transtornos que esta causa à sociedade e aos consórcios.
A segunda condição é a de que, antes de se liquidar a quota do sócio devedor,
primeiro se executem os lucros deste na sociedade, ou, se a sociedade houver sido
dissolvida, o que lhe tocar na respectiva liquidação.230
227
228
229
230
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 386.
BRASIL. LEI N° 10.406/02, de 10.01.02. Institui o Código Civil. D.O.U. de 11.01.02.
LUCENA, José Waldecy. p. 378. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 378.
Registra-se, inclusive, que, no direito comparado, essas condições também estão presentes. Nesse tom,
correta se entremostra a obra portuguesa de Avelãs Nunes, ganhadora do Prêmio Calouste Gulbenkian
(1966-1967). Consigna o nobre doutrinador que: “O direito do credor de exigir a liquidação da quota
foi-lhe concedido apenas no caso de insuficiência dos restantes bens do devedor; sendo assim, parece que
só na medida necessária para o integral pagamento do seu crédito é que o credor pode exigir a satisfação
do seu direito. Esta idéia leva-nos a pensar que a sociedade pode evitar a liquidação pagando ao credor a
parte do débito (que pode ser o débito total) não coberta pelos restantes bens do sócio-devedor. O credor
particular do sócio nada terá a opor, já que os seus interesses recebem cabal satisfação e fica melhor
protegida a sociedade, para a qual a liquidação da quota pode causar sérias dificuldades”. NUNES,
A. J. Avelãs. O direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais. Reimpressão brasileira. São
Paulo: Cultural Paulista, 2001, p. 120/121.
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283
Como se vê, há um benefício de ordem. Só se inexistirem outros bens do
sócio devedor,231 se não houver lucros ou se estes forem insuficientes para suportar
a execução, e, finalmente, se a sociedade não estiver dissolvida, somente, então,
dar-se-á a penhora das quotas sociais.232
Quotas essas que serão objeto de liquidação, cujo valor, consoante o previsto
no art. 1.026, parágrafo único, e art. 1.031, § 2º, será depositado em dinheiro, no
juízo da execução, até noventa dias após a conclusão da liquidação.233
4.2.1 APLICABILIDADE À SOCIEDADE LIMITADA
Conforme topologia do próprio Código Civil de 2002, verifica-se nitidamente
que este não dispôs sobre a possibilidade de penhora das quotas sociais em execução
por dívida pessoal do sócio no âmbito da sociedade limitada, mas regulou a matéria
para o sócio de sociedade simples.
Nesse passo, ex vi legis do atual artigo 1.053, caput, podemos afirmar
categoricamente que a sociedade limitada pode-se sujeitar à disciplina supletiva
do regime da sociedade simples.
Para corroborar tal intelecção, corretas se entremostram as palavras de
Ricardo Negrão, in textu:
A solução é aplicável, em sua inteireza, para a sociedade limitada, não
somente em razão da omissão do legislador, ao tratar da matéria no
capítulo correspondente, mas também porque, admitida expressamente
pela lei a excussão de parcela do capital social em sociedade intuitu
personae – como é a sociedade simples – não há qualquer óbice para
sua aplicação no campo societário tipicamente de capital ou misto,
natureza a que se subordina a sociedade limitada.234
Cabe enfatizar que, mesmo se o contrato social da sociedade limitada
previsse a regência supletiva desta pelas normas da sociedade anônima, como
institui o parágrafo único do já mencionado art. 1.053, ainda assim, estará a
sociedade limitada submetida às disposições da sociedade simples, haja vista não
231
232
233
234
Verificaremos o reposicionamento dos bens sujeitos à penhora no subitem 4.3.4 deste capítulo.
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 378.
Em relação à liquidação da quota social, lembramos que esse tema será submetido à análise no item
4.3.3 deste capítulo.
NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa. 4. edição, São Paulo: Saraiva, 2005,
p. 365/366.
284
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
haver, na legislação das sociedades anônimas, norma alguma sobre a matéria que
pudesse ser invocada.235
A despeito de hábil baliza explanada por Waldecy Lucena, Fábio Ulhoa
defende que, somente no caso de o contrato social não eleger expressamente a Lei
das Sociedades Anônimas como diploma de regência supletiva, sobrepujar-se-ia
a limitada às regras da sociedade simples.236
Destaca-se que as dissensões, no que tange ao melhor diploma para
regência supletiva da sociedade limitada, sempre geraram uma inquietação.237
Entretanto, qualquer que seja o diploma supletivo, inclusive o que prevê regência
exclusivamente pelas normas da sociedade anônima, há de se ressaltar que estes
não influenciarão a matéria posta em debate (penhora de quota social), pois a
falta de previsão na legislação das sociedades anônimas não pode comprometer
a legitimidade social e política do exercício da jurisdição, sob pena de negar
vigência ao princípio-regra da responsabilidade patrimonial do art. 591 do CPC,
violentando, assim, a tônica das diretrizes metodológicas do processo civil moderno
(a efetividade do processo).238
4.3
PROCEDIMENTO
4.3.1 DISPOSIÇÕES GERAIS
Temos que retomar aqui os principais aspectos da penhorabilidade das quotas
sociais na sistemática do Código Civil de 2002, ou seja, que a expropriação de
235
236
237
238
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 385.
COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade Limitada no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 37.
Esse comportamento se deve, especialmente, à importância de alguns temas e ao quorum necessário
para a deliberação dos sócios, destacando-se entre eles: alteração do contrato social, incorporação, fusão
e dissolução da sociedade. Assim, alguns causídicos de grandes limitadas defendem que a previsão da
regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da anônima permite a escolha exclusivamente do
diploma das S/A, de forma direta. Com isso, o quorum para aprovação das referidas matérias reduziria
bastante, de no mínimo ¾ do capital (art. 1.076, inciso I, do CC) para metade das ações com direito a
voto (art. 136 da Lei n. 6.404/76). É óbvio que se torna desnecessário explicar que tal corrente espanca
a etimologia do adjetivo supletivo (a qual provém do latim suppletivu – que serve para complementar).
Um pouco mais moderada, há outra corrente no sentido de que, no caso de omissões, deverá ser a
limitada regida pela lei das sociedades anônimas, assim como previsto no antigo Decreto n. 3.708/19,
sem previsão das sociedades simples. Esse é um dos objetos do Projeto de Lei n. 3.667/04, de autoria
do Deputado Luiz Carlos Hauly e de relatoria do Deputado Ronaldo Dimas.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. Vol. 2. (jurisprudência anotada). São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1989, p. 930.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
285
bem do patrimônio do sócio-devedor para o cumprimento de suas obrigações deve
ter aplicação subsidiária239 e de forma incondicionada à mera convenção privada
(contrato social) reguladora da cessibilidade de quotas.
Em outras palavras, a penhora sempre será efetivada sobre a quota social.
Portanto, uma vez realizada e tendo sido a sociedade notificada, duas são as opções
que então se abrem para satisfação do credor por dívida particular do sócio: 1)
a sociedade ou os sócios, no exercício de direito de preferência, acaso constante
do contrato social, ou como terceiros interessados, podem remir a execução,
consignando o valor da dívida e sub-rogando-se nos direitos do credor (art. 651
do CPC c/c art. 304 do CC); 2) liquida-se a quota do sócio-executado, se os lucros
líquidos que este tem direito na sociedade inexistirem ou forem insuficientes
ao pagamento da dívida. Isto é, apuram-se seus haveres (dissolução parcial da
sociedade).240 241
É claro que as alternativas erigidas acima terão seus pormenores, conforme
a natureza dada à sociedade limitada pelo contrato social e identificada segundo
à cessibilidade de suas quotas.
Dessa forma, com supedâneo no escólio de Waldecy Lucena,242, asserimos
que, em sociedade limitada formada intuitu personae, reconhecida pela previsão,
no contrato social, de cláusula restritiva à livre cessibilidade das quotas sociais,
realmente não se poderá impor, contra a vontade dos demais sócios, que o
arrematante243 ingresse na sociedade e se invista do status socii.
Nesses casos, penhorada a quota do sócio-devedor, a execução alcançará
apenas o direito patrimonial, jamais o pessoal.244 Vale dizer, o credor-exeqüente
tornar-se-á titular apenas de um direito de crédito, em relação aos lucros líquidos
239
240
241
242
243
244
Com a reformulação da redação do art. 655 do CPC pela Lei n. 11.382/06, a subsidiariedade mencionada
ocorre apenas em relação aos bens anteriores, haja vista ser a quota social o sexto bem na ordem de
preferência e não mais em relação a todo o patrimônio do devedor.
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 379.
Propomos, para melhor elucidação das opções aventadas, a seguinte ordem: 1) remição da execução
pela sociedade ou demais sócios; 2) execução dos lucros líquidos; 3) Em caso de inexistência ou
insuficiência destes, liquidação da quota com a respectiva apuração dos haveres.
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 378/380.
Este será ou o próprio credor do sócio-devedor, ou um terceiro absorto da relação jurídica.
Como vimos anteriormente (item 3.1), isso é plenamente possível, em virtude dos direitos que
emanam da quota. Nesse aspecto, Fazzio Júnior leciona que os direitos patrimoniais detêm primazia,
pois constituem direito de crédito eventual em face da pessoa jurídica, possuindo os direitos pessoais
característica instrumental, em face dos direitos patrimoniais, sejam expressos no voto, sejam na
fiscalização. FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Sociedades limitadas: de acordo com o Código Civil de 2002.
São Paulo: Atlas, 2003, p. 134.
286
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e/ou aos haveres apurados, jamais se investindo na condição de sócio, que,
com a liquidação da quota, simplesmente se extingue, sem ser transferido a
ninguém, restando preservada a affectio societatis que presidiu a constituição
da sociedade.245 246
Logo, é evidente que, caso a sociedade não faça a remição da dívida e não
sejam os lucros líquidos do sócio-devedor suficientes ao pagamento, a liquidação
da quota, com a respectiva apuração dos haveres, redundará, automaticamente, na
redução do capital social e do número de sócios da sociedade.247 248
De outra sorte, se a sociedade limitada for preponderantemente de capital,249
deduzido da livre cessibilidade de suas quotas, denotativa de que foi lastreada
antes no capital do que na pessoa de seus sócios, ou seja, assemelhando-se a uma
sociedade constituída intuitus pecuniae, nenhum entrave haverá quando a execução
alcançar tanto o direito patrimonial como o direito pessoal do devedor.
Portanto, ocorrendo eventual apuração dos haveres, poderá o terceiro
(arrematante)250 ingressar tranqüilamente na sociedade, em substituição ao sócio
executado com as respectivas vantagens e ônus.
Do exposto, verifica-se quão lúcido e atual foi o voto do memorável Ministro
Sálvio de Figueiredo no REsp. n. 39.609/SP, especialmente no que toca a essa
parte da dialética: “IV – Não havendo limitação no ato constitutivo, nada impede
que a cota seja arrematada com inclusão de todos os direitos a ela concernentes,
inclusive o status de sócio”.251
Por derradeiro, cabe sanar possível dúvida a respeito da penhorabilidade
das quotas no Código Civil de 2002, em caso de omissão do contrato social.
Nessa hipótese, ainda há parte da doutrina, v.g. Fazzio Júnior, que sustenta sua
inviabilidade com arrimo em suposta mitigação da cessibilidade das quotas por
245
246
247
248
249
250
251
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p.378/380.
Um reforço a esse argumento é a própria exclusão de pleno direito prevista no art. 1.030, parágrafo
único, do Código Civil para aquele cuja quota tenha sido liquidada nos termos do parágrafo único do
art. 1.026, ou seja, exclusão automática do sócio-devedor.
Conclusão que segue o preceito estabelecido no célebre julgado do SUPERIOR TRIBUNAL DE
JUSTIÇA, 4ª Turma. REsp n.º 39.609/SP. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Brasília, DF,
14.03.1994. DJ 06.02.1995, p. 1356.
Hipótese positivada no § 1º do art. 1.031 do Código Civil.
Assim como ocorre na Itália, onde a sociedade de responsabilidade limitada é considerada como uma
subespécie da sociedade por ações.
Este será ou o próprio credor do sócio-devedor ou um terceiro alheio à relação jurídica.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 4ª Turma. REsp n. 39.609/SP. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo
Teixeira. Brasília, DF, 14.03.1994. DJ 06.02.1995, p. 13.56l
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287
condição legal (anuência de titulares de mais de ¾ do capital social – art. 1.057).
Assim assevera o notável jurista:
Bem, com o advento do CC de 2002, no silêncio do contrato social, a
penhora de quotas não tem lugar. É que, nessa circunstância, a própria
cessibilidade é mitigada por condição legal, qual seja, a anuência de
três quartos do capital social.
À luz do sistema inaugurado pelo estatuto de 2002, a sociedade
limitada só será uma sociedade de capital se os sócios expressarem
essa opção no contrato social ensejando a cessão livre das quotas
a terceiro e a conseqüente viabilidade de sua eventual constrição
judicial. Silenciando a respeito, prevalecem as normas do CC, e estas
não permitem maiores indagações, cogitando de outras.252
Permitimo-nos discordar, haja vista o supra entendimento, data venia, ferir
a autêntica sistemática aventada no Código Civil de 2002. Pela intelecção dos
argumentos aduzidos por esse segmento da doutrina, caso o contrato social seja
omisso quanto à cessibilidade, infere-se que a sociedade limitada não é de capital,
e, sim, de pessoas (intuitu personae), razão pela qual a viabilidade da penhora
ficaria adstrita ao assentimento dos demais sócios, que representem ¾ do capital
social (art. 1.057).
Entretanto, reitera-se aqui o argumento de que a penhorabilidade da quota
social independe da existência ou não de qualquer disposição estatutária restritiva,
na medida em que o direito pessoal a que se visa tutelar253 influencia apenas no
rumo da execução e não na efetivação da penhora. Assim, caso ocorra penhora
de quotas em sociedade constituída com a índole pessoal, recairá a execução
apenas sobre o direito patrimonial do sócio-devedor, conforme todos os motivos
anteriormente explanados.
4.3.2 E X E C U Ç Ã O S O B R E O S L U C R O S ( P R O C E D I M E N T O
PRELIMINAR)
A par das premissas estabelecidas254 e sob a ressalva de que a execução sobre
o que couber ao sócio-devedor nos lucros da sociedade é condição suspensiva
252
253
254
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Sociedades limitadas: de acordo com o Código Civil de 2002. São Paulo:
Atlas, 2003, p. 146.
No caso das avenças particulares que prevêem restrição quanto à cessão de quotas.
Remete-se o leitor ao Capítulo 3, item 3.1 e subitem 3.2.2, bem como ao Capítulo 4, item 4.2.
288
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
para o processamento da penhora das quotas sociais,255 podemo-nos ater ao que
se afigura principal.
Assimila-se que, na relação societária, os lucros constituem um direito per
se stante do sócio,256 que, precisamente, por meio do contrato de sociedade, quis
que os lucros fossem divididos entre todos os sócios, com a conseqüente reserva
de uma parte deles para si, independentemente da divisão dos bens, a fazer-se
somente quando a sociedade desaparecer (dissolução total).257
Ressalta-se, por oportuno, que, em princípio, serão tidos como lucros
disponíveis os resultados positivos provindos do objetivo específico estabelecido
na convenção privada, isto é, da atividade social ordinária. Não fora assim, adverte
o eminente jurisconsulto Hernani Estrella, desfalcar-se-ia o patrimônio social, pois
a retro distribuição dos lucros redundaria na partilha antecipada deste, quando,
ao contrário, deve ser mera separação dos créditos efetivamente auferidos, sem
afetar-lhe a consistência econômica.258
Esse direito do sócio-devedor, embora conserve caráter patrimonial, é um
direito abstrato, no sentido de que fica na dependência de quando e como será
concretizado. Disso ocupa-se, ordinariamente,259 o contrato social, que, seguindo
as praxes comerciais, costuma indicar o momento e o critério adotado.260
Nesse aspecto, quanto à periodicidade da distribuição dos lucros, há muito
tempo generalizou-se o repasse anual. Já em relação aos métodos necessários para
o cálculo do resultado útil de cada exercício, têm-se destacado o inventário e o
balanço geral como instrumentos plenamente hábeis.261
255
256
257
258
259
260
261
Proceder-se-á à penhora das referidas quotas, apenas se os lucros líquidos a que o sócio-devedor tem
direito na sociedade inexistirem ou forem insuficientes ao pagamento da dívida.
Esse direito é pressuposto necessário do status socii.
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 90.
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 89.
Na prática, virou quase unanimidade, haja vista o Código Civil não ter indicado o respectivo momento
e o modo como serão analisados os lucros, assim como o fez quanto à liquidação da quota social (art.
1.031, parágrafo único).
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 89.
STRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 89.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
289
4.3.3 EXECUÇÃO SOBRE O VALOR DA QUOTA SOCIAL
Consoante declinado previamente (item 4.2 deste capítulo), a liquidação da
quota social é o último estágio na busca da satisfação da dívida do sócio-devedor
pelo seu credor particular.262
4.3.3.1 LIQUIDAÇÃO E APURAÇÃO DE HAVERES
Preliminarmente, importantíssimo mostra-se anotar a distinção entre
liquidação de quota e liquidação da sociedade, haja vista propiciarem problemas
processuais de grande repercussão.
Apesar de claramente afirmada, a distinção entre as liquidações geralmente
não é notada no bojo do art. 1.026 do Código Civil. Lá se estabelece que a penhora
de quotas sociais só ocorre no caso de a sociedade não estar dissolvida (art. 1.026,
parágrafo único, do Código Civil),263 justamente porque, nessa hipótese, estarse-á realizando a liquidação da própria sociedade (é essa a liquidação a que faz
referência o art. 1.026, caput, in fine, do Código Civil).264
Destarte, enquanto a liquidação propriamente dita (da sociedade)265 implica
rigorosa partilha dos bens, a simples liquidação da quota, ao revés, se traduz, em
definitivo, numa cifra em dinheiro. Nota-se, desde já, a substancial diferenciação
entre as duas situações.
Na dicção de Hernani Estrella:
Na liquidação da sociedade, atuam órgãos específicos (liquidantes)
que têm atribuições bem definidas e podem ser considerados, a certos
respeitos, como sobrepostos à própria sociedade liquidanda e aos
sócios. Na apuração de haveres de sócio, ao contrário, o procedimento
262
263
264
265
Há um benefício de ordem. Só se inexistirem outros bens do sócio devedor (incisos I a IV do art. 655
do CPC), se não houver lucros, ou se estes forem insuficientes para suportar a execução, e, finalmente,
se a sociedade não estiver dissolvida, somente, então, dar-se-á a penhora das quotas sociais.
Art. 1.026. O credor particular de sócio pode, na insuficiência de outros bens do devedor, fazer recair
a execução sobre o que a este couber nos lucros da sociedade, ou na parte que lhe tocar em liquidação.
Parágrafo único. Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor requerer a liquidação da quota do
devedor, cujo valor, apurado na forma do art. 1.031, será depositado em dinheiro, no juízo da execução,
até noventa dias após aquela liquidação. BRASIL. LEI N° 10.406/02, de 10.01.02. Institui o Código
Civil. D.O.U. de 11.01.02.
Idem à nota anterior.
Também chamada de dissolução total. COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 17. ed.
São Paulo: Saraiva, 2006.
290
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
se desenvolve e conclui entre a sociedade e o sócio, sem interromperse a marcha normal dos negócios daquela. Ali, por já desfeito o
vínculo associativo, os bens remanescentes vão constituir uma massa
comum, cuja divisão judicial há de fazer-se segundo as normas do
juízo divisório; aqui, pelo contrário, subsiste o senhorio da pessoa
coletiva, cuja preservação vem refletir sobre o critério como se hão
de contemplar os elementos patrimoniais ativos, para os efeitos de
apurar-se a soma devida ao sócio afastado.(grifei)266
Nos dizeres de Fábio Ulhoa:
A dissolução, assim, não será da pessoa jurídica, propriamente, mas
dos vínculos contratuais que a originaram. Se houver dissolução de
apenas parte destes vínculos, permanecendo a sociedade por força
dos demais não-dissolvidos, estar-se-á diante da dissolução parcial.
Se, ao revés, dissolveram-se todos os vínculos contratuais e, por isso,
a sociedade deixar de existir, então será o caso de dissolução total.
(grifo nosso)267
Assim, retomando-se a preocupação com a influência processual do emprego
equivocado da dissolução parcial, de criação pretoriana e, por esse motivo, carente
de regramento processual, deve-se advertir quanto ao deslize dos órgãos julgadores
ao socorrerem-se, constantemente, das normas pertinentes ao procedimento da
dissolução total.
No que tange a essa problemática, relata Priscila Corrêa da Fonseca, in textu:
Não são poucos os juízes que, com freqüência, utilizando-se do
recurso à analogia, outorgam aos liquidantes a tarefa de apurar
os haveres correspondentes à participação societária detida pelo
retirante. Ora, a dissolução parcial comporta apenas a figura de um
perito contador, assessorado eventualmente por outros profissionais
capacitados para a avaliação dos bens que integram o ativo, a quem
incumbirá, depois de levantar o patrimônio líquido, estabelecer o
montante dos haveres devidos ao sócio que se afasta da sociedade.
Assim, a tal expert, não incumbe, como ao liquidante, representar
a sociedade ativa e passivamente em juízo, alienar bens integrantes
do ativo social, pagar o passivo, promover a cobrança de dívidas,
praticar os atos necessários para assegurar os direitos da sociedade
266
267
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 99.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.
170/171.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
291
etc. Uma vez levantado pelo avaliador o quantum devido ao retirante,
terá lugar o pagamento.
Estas são, em linhas gerais, as normas de caráter processual a serem
observadas na dissolução parcial e que, em absoluto, assemelham-se
às preconizadas para as dissoluções totais.268
Com muita exação, Hernani Estrella se detém em salientar, como poucos,
a imprecisão conceitual entre dissolução efetiva da sociedade e simples resilição
parcial do contrato,269 observando que a falta de tal técnica jurídica resulta o
emprego freqüente, tanto entre os autores, como nos tribunais, do qualificativo
“dissolução parcial”, para designar a hipótese de simples afastamento de sócio
com a sobrevivência da sociedade.270
Sendo assim, o douto professor ensina que:
Embora tenham entre si certas analogias, o afastamento de sócio
e a dissolução da sociedade não se identificam, eis que inspirados
em princípios não só diversos, senão até completamente opostos. É
que a resilição parcial do contrato, limitada ao sócio que se desliga,
tem por fundamento a conveniência ou necessidade de preservação
do organismo societário que se mostra ou se supõe apto a continuar
operando, apesar de lhe vir a faltar um de seus membros. Na
dissolução, ao revés, cuida-se de extinguir o organismo que, por
ter chegado ao termo de vida, ou pelo advento de alguma outra
causa dissolutória, está privado de vitalidade, seja pela exaustão
de seu objeto ou de seu patrimônio, seja por falta de indispensável
colaboração dos sócios.271
Como se vê, há, em verdade, diferenciação sensível no antecedente
lógico-jurídico. 272 Isto é, em um caso (resilição parcial do contrato), o
antecedente é a aptidão para o prosseguimento do escopo social que justifica a
sobrevivência do ente coletivo (pessoa jurídica). No outro (dissolução efetiva),
o antecedente é a incapacidade do ente coletivo (pessoa jurídica), que enseja
o fim de sua existência.
268
269
270
271
272
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução Parcial, Retirada e Exclusão de Sócio no Novo Código
Civil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 98.
A confusão conceitual se dá devido à forte correlação existente entre eles, haja vista ter a resilição
parcial se formado como uma subespécie de dissolução.
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 95.
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 96.
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 137.
292
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
Em suma, podemos afirmar que a dissolução total se predispõe ao
desaparecimento definitivo do ente coletivo, enquanto a resilição parcial do
contrato, inversamente, visa conservar a entidade econômica, em razão dos
múltiplos interesses que gravitam em torno da produção e da circulação de
riquezas.
Refletidas as considerações acima, examinemos a liquidação da quota social
de acordo com as orientações legais e técnicas. Para tanto, recorramos mais uma vez
ao escólio de Hernani Estrela, que, ademais de jurista, foi Doutor em Economia.
Partindo da premissa de que a liquidação da quota se concretiza com a
apuração de haveres, recorda o supracitado autor que, para se chegar ao resultado
colimado pela apuração de haveres, há a necessidade de se passar por dois
procedimentos: um nitidamente contábil, baseado em fatos pré-jurídicos e intitulado
de determinação da quota; e outro essencialmente jurídico, com fulcro em normas
jurídicas e chamado de liquidação da quota.273
Nesse passo, o referido autor adverte que ambas as expressões (determinação
e liquidação da quota), por vezes assemelhadas tanto pela doutrina como pela
jurisprudência, são estruturalmente diversas. Assim, com muita propriedade,
ministra que:
À determinação da quota preside critério puramente técnico-contábil,
deduzido de regras teórico-práticas, por meio das quais, e pela
constatação objetiva de alterações qualitativas e quantitativas do
patrimônio da empresa, se chega a precisar, num dado momento, o
valor numérico da quota. Pode desempenhar essa tarefa quem quer que
tenha a aptidão indispensável; tanto pode ser pessoa completamente
estranha às partes, como qualquer uma destas. A liquidação da quota,
pelo contrário, reclama indefectivelmente a idéia de direito, e mostra
plenamente a sua essência psicológico-subjetiva: quem estivesse
provido dos necessários conhecimentos técnicos, poderia proceder
à determinação da quota, ao passo que, para a liquidação desta, deve
ocorrer a relativa legitimação passiva. É assim de todo óbvio que
aquele que seja legitimado para a liquidação poderá também proceder
à determinação da mesma; mas, se, porventura, esta foi efetuada por
outrem, que não os sócios, os quais têm o dever e também o poder
de promovê-la, parece necessário que eles a façam sua, aceitando-a
como se própria fosse.274
273
274
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 96.
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 137/138.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
293
Suplantada a diferenciação, migremos de foco, a fim de analisarmos a
liquidação de quotas, conforme regramento legal previsto no Código Civil (art.
1.026, parágrafo único e art. 1.031), verbis:
Art. 1.026. (...)
Parágrafo único. Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor
requerer a liquidação da quota do devedor, cujo valor, apurado
na forma do art. 1.031, será depositado em dinheiro, no juízo da
execução, até noventa dias após aquela liquidação.
Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um
sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente
realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário,
com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução,
verificada em balanço especialmente levantado.275
Dessa feita, verifica-se que o legislador indicou o respectivo modo e o
momento em que será examinada a liquidação da quota social. De maneira clara,
estabelece que se procederá com base na situação patrimonial da sociedade,276
verificada em balanço especialmente levantado (modo) e realizado à data da
resolução (momento).
Contudo, antes de adentramos ao estudo específico do balanço, torna-se
imperioso comentar a ressalva feita pela própria legislação, no sentido de se poder
derrogar a orientação legal para se acolher disposição contratual em contrário.
Nota-se que a lei concedeu ampla autonomia às partes, rendendo-lhes ensejo
para que ditem o regulamento de seus próprios interesses. Nesse sentido, chama-se a
atenção para o fato de que é, na órbita negocial, que vão aparecer formas singulares,
cuja configuração e até mesmo exeqüibilidade prática suscitam problemas quase
insolúveis, haja vista suas imprecisões técnicas e redacionais.277
Com efeito, dada a infinita variedade de critérios para se realizar a apuração
de haveres, restringimo-nos a apontar apenas as hipóteses convencionais mais
generalizadas, quais sejam: a) dispensa-se o balanço, para considerar o já existente
e aprovado, computando-se nele os lucros auferidos posteriormente e até a data
da retirada; b) faz-se o cálculo em função dos valores contabilizados, com certa
275
276
277
BRASIL. LEI N° 10.406/02, de 10.01.02. Institui o Código Civil. D.O.U. de 11.01.02.
É claro que a determinação do valor da quota, por não exprimir seu valor nominal, pode variar conforme
as oscilações em virtude da ocorrência de diversos fatores, entre os quais, a maior ou menor prosperidade
da empresa no momento em que se vai concretizar o direito patrimonial do sócio. ESTRELLA, Hernani.
Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de Janeiro: Forense, 2004,
p. 140.
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 140.
294
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
margem percentual de desconto sobre créditos sociais a receber e operações ainda
iliquidadas; c) fixa-se anualmente, por deliberação coletiva, o preço da participação
social para fins de reembolso; d) predetermina-se valor fixo, pelo qual se fará o
reembolso, qualquer que seja a situação patrimonial da empresa na ocasião.278
Voltando-se à disciplina legal do balanço a ser especialmente levantado
(art. 1.031 do Código Civil), insurge o questionamento jurídico do que vem a ser
precisamente um balanço. Em resposta, pode-se afirmar, com supedâneo na melhor
doutrina,279 que balanço é um processo técnico, destinado a ministrar conhecimento
sobre a situação e a composição de um patrimônio num dado momento.
Embora todo balanço tenha um traço comum, ou seja, transmitir conhecimento
de um estado de coisas, existem diferenças peculiares em função do fim colimado.
E é isso que faz surgir inúmeras categorias de balanços, classificados por Hernani
Estrella como balanço de exercício, cessão, liquidação e de determinação.280
Ressalta-se que há de se considerarem as várias espécies de balanços, uma
vez que a liquidação da quota é realizada justamente por balanços.281 Logo, muito
importa saber qual deles é aplicável.
Descurando de minúcias, para nos ater somente ao que se nos afigura
principal, identificamos o balanço de liquidação como o mais adequado aos
preceitos normativos do Código Civil (art. 1.031).
Nesse compasso, destaca-se o ensinamento do mestre Hernani Estrella:
O balanço de liquidação, por seu turno, visa à determinação o mais
possível aproximada do real valor do patrimônio, na data do balanço,
levando em conta a probabilidade de realização do ativo e do que
possa produzir para solução do passivo, ensejando ainda eventual
repartição do remanescente. Como é a perspectiva de realização
(venda) que preside a feitura do balanço de liquidação, deste se
excluem certos bens incorpóreos que aderem à empresa e somente
têm existência e valimento em função dela. (grifo nosso) 282
278
279
280
281
282
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 141.
Nela integram-se Osmida Innocente e Erymá Carneiro.
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 143.
Observa-se que, como objeto de direito, o balanço está sujeito à dupla disciplina (contabilidade e
direito), que devem coexistir harmonicamente para que a feitura do balanço seja considerada perfeita
e eficaz. ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini.
Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 145/146.
ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Atualizado por Roberto Papini. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 144/145.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
295
Frisa-se aqui, em relação ao critério patrimonial adotado pelo Código Civil
para liquidação da quota, ferrenha crítica doutrinária,283 no sentido de afirmar que
tal procedimento pode propiciar facilmente a fraude.
No intuito de elucidar tais argumentos, relata Ulhoa a seguinte situação:
Imagine que a sociedade possua patrimônio de valor elevado, mas,
por qualquer razão, seu valor econômico é inferior. Isso ocorre, por
exemplo, se a empresa se encontra tecnologicamente defasada, ou
se há perspectiva de ingresso de novos e poderosos concorrentes no
mesmo segmento de mercado. Nesses casos, os sócios só encontrariam
pessoa interessada em adquirir, pelas quotas sociais, valor inferior ao
patrimonial. Um deles poderia, então, simular dívida com terceiro,
que, valendo-se da faculdade aberta pelo art. 1.026, parágrafo único,
do CC, obteria a liquidação da quota pelo valor patrimonial. A
sociedade (quer dizer, os demais sócios) teria de pagar ao pretenso
credor um valor maior que o da quota social liquidada.284
Por essas e outras razões, defende Ulhoa que a lei se mostra anacrônica
e injusta, concluindo que a liquidação da quota a pedido de não-sócio é uma
intromissão injustificável na vida da sociedade.285
Por fim, a última determinação legal refere-se ao depósito do valor apurado
na liquidação da quota por meio da apuração de haveres. Senão vejamos:
Art. 1.026. (...)
Parágrafo único. Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor
requerer a liquidação da quota do devedor, cujo valor, apurado
na forma do art. 1.031, será depositado em dinheiro, no juízo da
execução, até noventa dias após aquela liquidação.
Art. 1.031. (...)
§ 2º A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa
dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual
em contrário. (grifei) 286
O primeiro aspecto a ser comentado é a imposição do depósito em dinheiro,
e em prazo determinado, do valor apurado da quota social. Quanto a essa exigência
legal, Ulhoa a recrimina veementemente, por entender que é inconciliável com o
moderno princípio da preservação da empresa, assegurando que:
283
284
285
286
Cujo maior expoente é Fábio Ulhoa Coelho.
COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade Limitada no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 39.
Opinião com a qual, a despeito de ser respeitada, não concordamos em virtude dos argumentos
explicitados ao longo de todo este capítulo.
BRASIL. LEI N° 10.406/02, de 10.01.02. Institui o Código Civil. D.O.U. de 11.01.02.
296
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
Se a sociedade – como é usual – não possui em caixa disponibilidade
para realizar o depósito previsto em lei, só poderá obtê-la por meio
de empréstimo bancário ou venda de ativos; nas duas hipóteses, a
empresa é afetada, seja pelos encargos do mútuo bancário que deverá
suportar, seja pelo desinvestimento.287
Ora, há de se discordar, visto que a intenção do legislador foi de fixar maneira
mais prática de se buscar a efetivação do processo e da satisfação do credorexeqüente, além de evitar que o complexo de bens que integra o ativo patrimonial
da sociedade seja diminuído.
No que tange ao último ponto de análise, enfatiza-se que a redação da parte
final do parágrafo único do art. 1.026 induz a pensarmos que a liquidação se dará
por meio de ação autônoma. Entretanto, afasta-se desde já tal intelecção, sob pena
de ferir a doutrina da efetividade do processo.
Como bem demonstrado por Waldecy Lucena,288 tornar-se-ia desarrazoado
que o desditoso credor ajuizasse, paralelamente à execução, uma nova ação para
liquidação da quota do sócio-devedor. Alinhamo-nos, portanto, ao pensamento de
que a liquidação da quota social é mero incidente da execução.
4.3.3.2
EXCLUSÃO DE PLENO DIREITO EM RELAÇÃO AO SÓCIO
DEVEDOR (ART. 1.030, PARÁGRAFO ÚNICO)
É uma conseqüência automática, inerente ao fenômeno da liquidação da
quota social do sócio-devedor e que independe da natureza preponderante da
sociedade (pessoal ou de capital).
Portanto, alcançando-se o último estágio na busca da satisfação da dívida do
sócio-devedor pelo seu credor particular (liquidação da quota), o seu processamento
levará sempre à perda do status socii do sócio-devedor. Por isso, é dito em exclusão
de pleno direito. Vejamos, ipsis litteris:
Art. 1.030 (...)
Parágrafo único. Será de pleno direito excluído da sociedade o sócio
declarado falido, ou aquele cuja quota tenha sido liquidada nos termos
do parágrafo único do art. 1.026.289
287
288
289
COELHO, Fábio Ulhoa. A sociedade limitada no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 38.
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 379.
BRASIL. LEI N° 10.406/02, de 10.01.02. Institui o Código Civil. D.O.U. de 11.01.02.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
297
4.3.4 LEI 11.382/06 E O NOVO ROL DO ART. 655 DO CPC
Em compêndio a nosso juízo anteriormente externado, a quota social sujeitarse-á sempre à penhora, já que dotada de valor econômico, integrando, assim, o
patrimônio do sócio-devedor.
Dessa feita, nada mais natural do que considerar o princípio-regra da
responsabilidade patrimonial (art. 591 do CPC) suficientemente abrangente para
abarcar em sua locução290 as quotas sociais.
Assim, por não serem as quotas excepcionadas de expropriação judicial,
nem pelo próprio CPC, nem por lei específica, é que se conseguiu estabelecer
a base da argumentação jurisprudencial no sentido da penhorabilidade das
quotas.291
No decorrer do tempo, o legislador se viu envolvido pela doutrina
dominante do processo civil moderno (efetividade do processo), segundo a
qual o processo há de ser apto a cumprir toda a sua função sociopolíticojurídica, ou seja, fazendo valer o direito, eliminando as insatisfações, educando
o jurisdicionado no cumprimento das leis, e, assim, propiciando-lhe viver
socialmente em segurança jurídica.292
Nessa perspectiva, sentiu-se o legislador mais seguro para começar a
fazer uma reforma processual aplicando-se a tônica mais importante na linha
metodológica dos processualistas contemporâneos: efetividade processual. Com
efeito, entre as inúmeras leis, destaca-se a de n. 11.382/06, que, regulando o
novo procedimento pertinente ao processo de execução extrajudicial, alterou
a redação do art. 655 para adequá-lo ao novo critério de prioridade dos bens
penhoráveis.
Dessa forma, passou a penhora sobre as quotas sociais a ter menção expressa
na lei de ritos, além de ter uma alocação bem melhor em relação à sua posição
anterior no referido artigo. Senão vejamos:
290
291
292
Art. 591. O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes
e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei. BRASIL. LEI N° 5.869/73, de 11.01.73. Institui o
Código de Processo Civil. D.O.U. de 17.01.73.
Seguem alguns exemplos de julgados da época: “responde o devedor com todos os seus bens, presentes
ou futuros, para o cumprimento de suas obrigações, não havendo lei que exclua da execução as quotas
do sócio em sociedade de responsabilidade limitada” (RT, 699/206); “a penhorabilidade das cotas,
porque não vedada em lei, é de ser reconhecida” (RT, 712/268).
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 387.
298
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
(redação antiga)
Art. 655. Incumbe ao devedor, ao fazer a nomeação de bens, observar
a seguinte ordem:
I - dinheiro;
II - pedras e metais preciosos;
III - títulos da dívida pública da União ou dos Estados;
IV - títulos de crédito, que tenham cotação em bolsa;
V - móveis;
VI - veículos;
VII - semoventes;
VIII - imóveis;
IX - navios e aeronaves;
X - direitos e ações.
(nova redação)
Art. 655. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:
(Redação dada pela Lei n. 11.382, de 2006).
I - dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição
financeira; (Redação dada pela Lei n. 11.382, de 2006).
II - veículos de via terrestre; (Redação dada pela Lei n. 11.382, de
2006).
III - bens móveis em geral; (Redação dada pela Lei n. 11.382, de
2006).
IV - bens imóveis; (Redação dada pela Lei n. 11.382, de 2006).
V - navios e aeronaves; (Redação dada pela Lei n. 11.382, de
2006).
VI - ações e quotas de sociedades empresárias; (Redação dada pela
Lei n. 11.382, de 2006).
VII - percentual do faturamento de empresa devedora; (Redação dada
pela Lei n. 1.382, de 2006).
VIII - pedras e metais preciosos; (Redação dada pela Lei n. 11.382,
de 2006).
IX - títulos da dívida pública da União, Estados e Distrito Federal com
cotação em mercado; (Redação dada pela Lei n. 11.382, de 2006).
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
299
X - títulos e valores mobiliários com cotação em mercado; (Redação
dada pela Lei n. 11.382, de 2006).
XI - outros direitos. (Incluído pela Lei n. 11.382, de 2006).293
Com isso, a subsidiariedade na aplicação da penhorabilidade das quotas
sociais, como forma de expropriação de bem do patrimônio do sócio-devedor,
ocorre apenas em relação aos bens anteriores, haja vista ser a quota social o sexto
bem na ordem de preferência, e não mais em relação a todo o patrimônio do
sócio-devedor.
Nesse diapasão, não há dúvida de que o diploma processual encerrou em
definitivo os questionamentos a respeito da possibilidade, ou não, da penhora,
razão pela qual não mais se contestará a respeito da matéria, bastando que o direito
pretoriano aplique o novo regramento.
4.4 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
INVERSA?
A pergunta que vem à tona depois de longa exposição a respeito da
penhorabilidade das quotas sociais é a seguinte: haveria necessidade de se
desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade para se liquidar a quota social
de sócio-devedor a fim de apurar seus haveres?
De plano, pensamos que desnecessária se entremostra a invocação de tal
instrumento, uma vez que o ato de penhora guarda lastro no princípio-regra da
responsabilidade patrimonial do art. 591 do CPC, além do novíssimo art. 655, inc.
VI, do mesmo diploma legal.
Ademais, basta lembrar os preceitos de Luciano Amaro no sentido de que,
“quando o direito já fornece o remédio legal, não é preciso superar ou penetrar
nenhuma forma jurídica”.294 Isso porque estabelecido está um critério de imputação
direta de responsabilidade.
Como bem ressalta Gonçalves Neto,295 não se pode confundir desconsideração
com quebra da autonomia patrimonial. Há graus de autonomia patrimonial
293
294
295
BRASIL. LEI N° 5.869/73, de 11.01.73. Institui o Código de Processo Civil. D.O.U. de 17.01.73;
BRASIL. LEI Nº 11.382/06, de 6.12.06. Altera dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de
1973 - Código de Processo Civil, relativos ao processo de execução e a outros assuntos. D.O.U. de
7.12.06.
AMARO, Luciano. Desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 5, jan./mar. 93, p. 175.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 37.
300
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
estabelecidos pelo ordenamento jurídico, em certas circunstâncias, para preservar
valores dignos de proteção jurídica, imputando ou estendendo a terceiro a
responsabilidade referente a determinados atos societários. Tem-se, aí, um critério
legal de imputação, de legitimação extraordinária, que não dá lugar, igualmente,
à desconsideração.
Portanto, conforme assevera Waldecy Lucena,296 a simples aplicação da
solução legal já se apresentaria como uma alternativa axiologicamente correta, na
medida em que a lei atribui responsabilidade ao sócio-devedor por suas dívidas (art.
1.026, caput e parágrafo único; art. 1.030, parágrafo único, do Código Civil).
Todavia, quer-se ainda propor uma maior reflexação quanto ao questionamento.
Assim, seria realmente forçoso pensar que, enquanto na desconsideração da
personalidade jurídica existem fatos da sociedade (mau uso da pessoa jurídica)
que acabam por envolver a pessoa física do sócio (responsabilização), na penhora
de quotas, ao revés, ocorrem vicissitudes dos sócios (dívida) que comprometem
a vida da sociedade (eventual redução do capital social)?
Até que ponto o efeito da autonomia patrimonial constituiria uma barreira
de proteção entre as duas realidades (da pessoa física e da pessoa jurídica)?
Há de se ressaltar que a autonomia patrimonial da pessoa jurídica não
significa um distanciamento completo da pessoa dos sócios, porquanto pertencendo
a estes as quotas e os frutos destas, o patrimônio da pessoa jurídica é expressão
também do patrimônio dos sócios.297
Esse liame demonstra que o argumento de que o capital pertence à sociedade,
e não aos sócios, traduz apenas meia verdade. Consoante observa Waldecy
Lucena,298 é ele pertencente à sociedade, sem dúvida, mas, não sendo fruto de
geração espontânea, forma-se necessariamente pelas contribuições dos sócios
que o integralizam.
Logo, seria ingenuidade afirmar que, com a liquidação da quota social, não
haveria abalo na sociedade. Sendo assim, não se poderia construir pensamento na
contramão da desconsideração da personalidade jurídica, um tipo de desconsideração
da personalidade jurídica inversa? Expliquemos melhor.
Pelo fato de o patrimônio da pessoa jurídica também ser a expressão do
patrimônio do sócio, quando este vier a ser eventualmente executado, por dívida
296
297
298
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 381.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 62.
LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas de responsabilidade limitada. 6. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 381/382.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
301
particular sua, devendo responder com todos os seus bens presentes e futuros,
hipótese em que a sua quota social poderá ser objeto de constrição, apurada por
meio de liquidação, caso ocorra, não se estará penetrando igualmente na pessoa
jurídica, uma vez que o capital social não é exclusivamente desta?
Apesar de, em um primeiro momento, ser um argumento tentador, verificase que não podemos considerar tal entendimento uma desconsideração da
personalidade jurídica propriamente dita, sob pena de desvirtuá-la de sua concepção
clássica, ou seja, desvirtuamento da função para a qual o ente coletivo foi criado,
demonstrado pela ocorrência do abuso do direito e da fraude relacionados à
autonomia patrimonial.
Na realidade, na penhorabilidade de quotas, não há literal desvirtuamento
algum da função do ser humano (sócio), quiçá da pessoa jurídica a qual este
integra. Tampouco, estão caracterizados o abuso do direito e a fraude relacionados
à autonomia patrimonial.
Com isso, evita-se considerar hipóteses transversas, cogitando, assim, de
desconsideração questões que, na realidade, tratam de imputação pessoal dos
sócios, como no caso vertente, de responsabilidade patrimonial.
Entretanto, asserimos indefectivelmente que não há como negar certo enleio
entre a liquidação da quota social e a sociedade da qual se retira sua condição de
existência. Assim, em virtude do exposto, a despeito de não se poder cogitar de
uma desconsideração da personalidade jurídica inversa, há de se reconhecer certa
intromissão na vida da sociedade.
CONCLUSÃO
Sobreleva notar que, diante de todo o pugilato intelectual travado no decorrer
deste trabalho, ficou caracterizado, de forma evidente, que a personalidade jurídica
é o instrumento legal atribuído pelo Estado à sociedade, a fim de que esta atue como
pessoa jurídica (centro autônomo de direitos e obrigações) e, assim, concretize os
fins econômicos almejados.
De igual forma, comprovou-se ser a personalidade jurídica um atributo de
viabilização econômica, por ajudar a desenvolver a moderna economia de mercado,
conferindo maior segurança à atividade empresarial, na medida em que sua concessão
possibilita à pessoa jurídica agir com toda desenvoltura, já que passa a ter uma
estrutura singular com nome, patrimônio, domicílio e nacionalidade próprios.
Entretanto, é evidente que a utilização adequada do privilégio da pessoa
jurídica mostrou-se uma utopia, até porque os efeitos decorrentes da personificação
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da sociedade (enunciados acima) levam a um cenário perfeito para o cometimento
de fraudes e abusos de direito.
Sendo assim, o próprio Estado se incumbiu em desenvolver instrumento (teoria
da desconsideração da personalidade jurídica) capaz de retirar, excepcionalmente,
referidos efeitos e atingir, de forma momentânea, a responsabilidade patrimonial
dos sócios e dos administradores, já que não há nada mais justo do que conceder ao
Estado, por meio da justiça, a faculdade de verificar se o direito por ele concedido
está sendo adequadamente realizado.
Notou-se, contudo, que esse mecanismo se operava perfeitamente quando
se tratava de credores da pessoa jurídica que não conseguiam receber seus créditos
em virtude da inexistência ou insuficiência de patrimônio da sociedade, uma vez
que a função social havia sido desvirtuada.
Entretanto, quando se ventilava de credor particular de pessoa natural
integrante de pessoa jurídica, que não conseguia recuperar seu crédito diante da
inexistência ou insuficiência de patrimônio do sócio-devedor, não havia solução
jurídica visível.
Daí é que, a partir do século XX, passou-se a discutir a respeito da possível
penhora de quotas da pessoa natural (sócio) que integrasse uma pessoa jurídica de
responsabilidade limitada, como meio de se poder levantar determinada quantia
em dinheiro a fim de solver a dívida particular do sócio-devedor.
Por essas razões aventadas é que se demonstrou imperioso estudar os
principais aspectos da quota social (conceito e natureza jurídica), exercendo, além
do mais, função de ponte temática para o debate principal.
Dessa feita, em apertada síntese, consignou-se ser a quota social o contingente
patrimonial com que o sócio concorre para a formação do capital da sociedade,
traduzindo-se, assim, em um bem imaterial ou incorpóreo, de existência autônoma,
objeto de relações jurídicas e de valor econômico próprio.
Outrossim, de forma objetiva e elucidativa, traçou-se, dentro do ordenamento
jurídico brasileiro, sucinto panorama evolutivo a respeito da penhora de quotas,
desde a recalcitrância em seu deferimento (égide do Código Comercial e do
Código de Processo Civil de 1939), passando pelo entendimento intermediário
(penhorabilidade com ressalvas da década de 70), até a sua total viabilidade, a partir
de decisões jurisprudenciais que facilitam a compreensão do assunto, especialmente
do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Alcançando-se a sistemática do Código Civil de 2002, em paralelo com a
novíssima reformulação do CPC (conferida pela Lei n. 11.382/06) e examinando
os regramentos legais e técnicos pertinentes, verificou-se que os referidos
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 15, Edição Especial, pp. 231-307, Dez. 2007.
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diplomas legais encerraram em definitivo as dissensões existentes a respeito da
penhorabilidade das quotas sociais, haja vista terem adotado in totum o juízo de
que a penhorabilidade das quotas sociais, exatamente por se tratar de um bem de
expressão econômica incluído no patrimônio do devedor, é plenamente viável para
o cumprimento das obrigações do sócio em débito.
Por derradeiro, partindo-se da premissa de que o patrimônio da pessoa
jurídica também é expressão do patrimônio dos sócios, haja vista a autonomia
patrimonial da pessoa jurídica não significar um distanciamento completo da pessoa
dos sócios, porquanto pertencendo a estes as quotas e os frutos daquela, estimulouse o leitor à seguinte reflexão: já que, na desconsideração da personalidade jurídica,
existem fatos da sociedade (mau uso da pessoa jurídica) que acabam por envolver
a pessoa física do sócio (responsabilização); poder-se-ia rotular de desconsideração
da personalidade jurídica inversa a penhora de quota social, na situação em que,
ao revés, ocorrem vicissitudes dos sócios (dívida) que comprometem a vida da
sociedade (eventual redução do capital social)?
Em resposta a tal silogismo, asseverou-se ser aleivoso concluir no sentido
afirmativo, uma vez que constituiria um raciocínio dedutivo falho pelo fato de se
divorciar da concepção clássica da teoria da desconsideração.
De outra sorte, à guisa de conclusão, afirmou-se escorreitamente que não
há como negar certo enleio entre a liquidação da quota social e a sociedade da
qual se retira sua condição de existência. Em outras palavras, a despeito de não se
poder cogitar de desconsideração da personalidade jurídica inversa o fenômeno
jurídico da penhorabilidade de quota social, há de se reconhecer, a partir dele, certa
intromissão na vida da sociedade.
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