Procedimento restaurativo: a busca do grau de restauratividade com base na comunicação
não-violenta
Lenice Pons Pereira*
O procedimento restaurativo relatado foi realizado através de nossa experiência na Central
de Práticas Restaurativas do Juizado Regional da Infância e Juventude de Porto Alegre. Em
conformidade com os princípios da Justiça Restaurativa, nosso objetivo, ao receber o processo
oriundo da justiça instantânea, foi verificar a autoria do fato pelas adolescentes envolvidas e a
voluntariedade, centrando-se, no último ato, para a realização do Círculo Restaurativo (CR), que
deve focar o fato recente e verificar uma clara intenção em promover um acordo concreto.
Convém salientar também que sempre se procura identificar e aplicar, na medida do
possível, dentro do contexto do processo judicial na situação, os valores fundamentais da Justiça
Restaurativa. Exemplificando: a responsabilidade, o respeito, a honestidade, a participação, a
humildade, o empoderamento e a esperança. Esses valores são utilizados pela coordenação do
círculo, a partir da metodologia utilizada pela Central de Práticas Restaurativas (CPR), em que
aplicamos, como base, a comunicação não-violenta (CNV), nas várias etapas do CR. As etapas
específicas do CR, lato sensu, são: o pré-círculo (preparação), o círculo propriamente dito – stricto
sensu – (realização do encontro) e o pós-círculo (acompanhamento).
No primeiro contato, já se estabeleceram o vínculo e o acolhimento do caso encaminhado
pela juíza da justiça instantânea, como foi nessa situação especifica. O relato que faremos
representa um desafio para esta coordenadora, devido ao número elevado de participantes: a
infração, que foi cometida em frente a uma escola, envolveu seis adolescentes, sendo convidados,
para o círculo, seus familiares e mais aqueles indicados pelas participantes, inclusive pessoas da
escola.
A infração, que foi registrada no Departamento da Criança e do Adolescente, foi de lesão
corporal recíproca, cujo ato se deu em frente à escola pública, da qual participaram seis
adolescentes de classe média, que entraram em luta corporal, ofendendo, reciprocamente, suas
integridades corporais. Como nem as professoras e o guarda conseguiram contê-las, a Brigada
Militar foi acionada. As envolvidas no conflito tinham ingerido bebida alcoólica e estavam agitadas.
Três delas foram colocadas em separado das demais, nas dependências do Centro Integrado de
Atendimento à Criança e ao Adolescente.
Ao receber os documentos, oriundos da justiça instantânea, para atender, iniciamos
realizando o pré-círculo de cada uma e de suas famílias. Já, nesse momento, constatamos – num
processo respeitoso em relação a todos os participantes com suas peculiaridades próprias de seres
*
Assistente social, pós-graduada em Administração e Planejamento Social e coordenadora de procedimentos
restaurativos da Central de Práticas Restaurativas do Juizado da Infância e da Juventude.
humanos –, a complexa dinâmica familiar que as envolvia. Apenas uma adolescente não aceitou
participar do Círculo Restaurativo, referindo estar “apenas acompanhando sua irmã”. Depois ela
participou do pós-círculo e colocou o sentimento “que deveria ter aproveitado aquele momento tão
especial”.
O Círculo Restaurativo foi muito positivo pela maneira como as adolescentes conseguiram
ouvir-se e compreender-se, demonstrando, em sua fala, o quanto havia de mágoas e rancores entre
elas. Na medida em que conseguiam colocar-se de modo inclusivo e colaborativo com direito à
palavra, mas também, de serem ouvidas, a tensão foi amenizando-se e o entendimento
concretizando-se.
As adolescentes assumiram a participação no ato, responsabilizando-se e enfatizando as
conseqüências comuns que estavam afetando diretamente suas relações pessoais, como a perda de
confiança dos pais, restrições à liberdade e ao uso de telefone celular e internet. Ponderaram
claramente as necessidades não atendidas de todas, explicitando que buscavam respeito,
reconhecimento e afeto.
Nesse círculo, como em outros, constatamos que o processo interacional entre os envolvidos
apresenta maior grau de restauratividade quanto mais eles encontrarem no círculo um local de
liberdade para expressar-se e compartilhar idéias e soluções. Em outras palavras, quanto mais se
sentirem à vontade para resolver dificuldades, sem que sejam induzidas em resultados pelo
coordenador, mais frutífero será o encontro. Os autores Marshall, Boyack e Bowen (2005) referem
que o “processo não é restaurativo se os participantes-chave são forçados a permanecer em silêncio
ou passivos, ou se sua contribuição for controlada por profissionais que introduzem sua própria
agenda”.
Na situação relatada, que descrevemos como um conflito coletivo na origem do fato, a
contribuição de todos foi decisiva para chegar-se a um acordo, especialmente, porque, nesse caso,
como a lesão foi recíproca, todas eram autoras e receptoras do fato ao mesmo tempo.
Outro aspecto relevante que merece destaque foi observado pelo pai de uma participante
que, ao final do círculo, chamou a coordenadora para constatar que todas estavam abraçadas e
alegres no corredor do Foro.
O procedimento restaurativo teve sua conclusão no pós-círculo, no qual foi verificado o
cumprimento do acordo assumido. Quando chegamos à escola, as adolescentes estavam todas
juntas, maquiando-se umas às outras para participar da reunião que iria avaliar o que conseguiram
realizar quanto ao que se propuseram. Finalmente, elas conseguiram restaurar suas relações.
Nesse aspecto, citamos novamente Marshall, Boyack e Bowen (2005), ao afirmar que os
procedimentos restaurativos objetivam “resultados que atendem necessidades presentes e preparam
para o futuro, não simplesmente em penalidades que punem delitos passados”.
Referências
BRANCHER, Leoberto. Iniciação em Justiça Restaurativa – subsídios de práticas restaurativas
para a transformação de conflitos. Porto Alegre, 2006.
MARSHALL, Chris; BOYACK, Jim & BOWEN, Helen. Como a Justiça Restaurativa Assegura a
Boa Prática: Uma Abordagem Baseada em Valores. n: Bastos, Márcio Thomaz; Lopes, Carlos e
Renault, Sérgio Rabello Tamm (Orgs.). Justiça Restaurativa: Coletânea de Artigos. Brasília: MJ e
PNUD, 2005.
SLAKMON, C.; DE VITTO, C. R.; GOMES PINTO, R. (Org.). Justiça Restaurativa. Brasília:
Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005.
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