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20 mai 2015 O Globo
Os que devem e não pagam
Brasileiro ainda não consegue planejar sua vida financeira, pensar a médio e longo prazo, isto é, projetar
receitas e despesas para o que virá a seguir
Brasileiros não sabem planejar a vida financeira. Entre os sinais da crise econômica — queda do
consumo em geral, desemprego, aumento de preços —, o que mais me surpreendeu foi o revelado por
uma pesquisa recente de que mais de 55 milhões de brasileiros estão inadimplentes. Ou seja, a cada dez
entre nós, quatro estão com suas contas atrasadas. De acordo com os indicadores do Serviço de Proteção
ao Crédito e da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas, são quase 40% da população entre 18 e 95
anos. E só no mês passado 600 mil compradores foram incluídos em cadastros dos “devedores
negativados”. Esses resultados mostram que a inadimplência, que estava em queda desde o segundo
semestre de 2014, subiu vertiginosamente nesses primeiros meses de 2015. Isso significa que somos
caloteiros? Será que pertencemos à famosa categoria do “devo e não nego, pago quando puder?” Não foi
o que aprendi em casa, de uma família pobre, mas para a qual um dos princípios éticos sagrados era pagar
à vista os remédios na farmácia e saldar religiosamente as dívidas semanais da caderneta do armazém.
Prestação, nem pensar.
Mudaram os tempos. Pelo que li, uma das explicações dos especialistas para o fenômeno de agora é
cultural. Mesmo depois de um razoável período de equilíbrio monetário após 20 anos de inflação, o
brasileiro ainda não consegue planejar sua vida financeira, pensar a médio e longo prazo, isto é, projetar
receitas e despesas para o que virá a seguir. Ao contrair uma dívida para ser paga em 12 meses, por
exemplo, o consumidor de hoje se preocupa mais em saber se a prestação vai caber na sua renda mensal
do que calcular o custo final da compra, acrescido dos juros que vêm embutidos. Além disso, a propaganda
do “compre hoje e pague depois” cria a ilusão de que é um grande negócio esse de receber o produto
antes de pagar a “perder de vista”.
Outro dia, um conhecido de baixa renda aqui da rua me perguntou o que era um consumidor com o
nome negativado. Ele já tinha motocicleta, geladeira, computador, smartphone e queria comprar um
tablet “baratinho”. “Mas tudo a prestação”, disse, diante do meu espanto e achando que assim me
tranquilizava. Estava visivelmente orgulhoso da eufêmica classificação, que provavelmente lhe tinha sido
dada por alguém a título de advertência, “cuidado”. Mas ele gostou do adjetivo, que lhe soava como um
elogio: para ele, negativado era o que não devia mais nada. Quando eu lhe disse que era o mesmo que ter
o nome sujo na praça, acho que não acreditou e foi perguntar a outras pessoas.
Espero que a resposta tenha sido a mesma para esse consumidor compulsivo, conspícuo e, com
certeza, negativado, assim como a quase metade dos brasileiros.
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