Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de setembro de 2005
Intervenção: o aspecto tático na guerrilha cultural1
Henrique Moreira Mazetti2
Resumo
Análise das práticas intervencionistas de grupos contestatórios surgidos principalmente
na Europa e Estados Unidos a partir da década de 90, que se distanciam da política
institucional para travarem sua luta no campo da cultura, na apropriação e deturpação
dos bens simbólicos produzidos pela sociedade. Destacamos a dicotomia feita por
Michel de Certeau entre tática e estratégia, caracterizando os dois modelos de ação, e
buscamos identificar os aspectos táticos que se fazem presentes nestas ações
contestatórias.
Palavras-chave
Intervenção; ativismo; tática; movimentos sociais; comunicação.
Em meados da década de noventa, a Europa e os Estados Unidos presenciaram
o surgimento de novas formas de contestação social que distanciavam-se da esfera
política para focar seu interesse na produção cultural.
Grupos como o liderado pela revista canandense Adbusters3 , especializados
em paródias de peças publicitárias e manifestações anti-consumistas, o Luther Blissett
Project4 , que incomodou a imprensa italiana com a criação e disseminação de notícias
falsas, o site RTMARK5 , uma plataforma para a criação, discussão e financiamento de
sabotagens coorporativas, e o Yes Men6 , conhecido por suas personificações, que vão
de ações em que se passam por membros da Organização Mundial do Comércio ou
partidários do presidente americano George Bush para satirizarem seus discursos,
começam a inspirar manifestações brasileiras semelhantes, surgidas graças à internet e
1
Trabalho apresentado ao Eventos especiais III – Intercom Júnior
2
3
Ver http://www.adsbusters.org
Ver http://www.lutherblissett.net
5
Ver http://www.rtmark.com/
6
Ver http://www.theyesmen.org/
4
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que, de acordo com Ricardo Rosas, “atuam nos interstícios das práticas tradicionais da
cultura instituida, em ações até agora de um viés mais low tech”7 .
Tais manifestações têm caráter lúdico e experimental, buscam inspiração para
suas ações em movimentos artísticos que remontam a uma tradição que tem seu início
no dadaísmo alemã, formando um caminho que liga as experimentações formais na arte
até as práticas comunicacionais subversivas praticadas por grupos da Guerrilha Cultural.
Elas se dão em uma relação intrínseca às estruturas de poder, a partir do seu interior, no
uso de suas técnicas, na exploração de suas falhas e até mesmo na apropriação de seu
discurso.
Conceituar tais práticas torna-se uma dificil tarefa graças à diversidade de suas
ações. John Downing cunhou o termo “mídias radicais”, que se referiria “à midia – em
geral de pequena escala e sob muitas formas diferentes – que expressa uma visão
alternativa às políticas, prioridades e perspectivas hegemônicas”8 . Mark Dery, excolaborador da revista Adbusters, usou o termo Culture Jamming – que pode ser
entendido como obstrução, engarrafamento ou confusão da cultura – aplicando-o a
“qualquer forma de jamming em que as estórias contadas para o consumo em massa são
re-trabalhadas perversamente”9 . Grupos europeus como o Luther Blissett Project dão
nome as suas atividades de Comunicação Guerrilha, e chamam a atenção ao fato de que
a intenção “não é ocupar, interromper ou destruir os canais dominantes de
comunicação”, mas sim, ‘detournar’ e subverter as mensagens transportadas”10 . Somase a tais conceitos o de Mídia Tática, formulado por Geert Lovink e David Garcia, que
pode ser definido como aquele em que as potencialidades da mídia são utilizadas para a
crítica e oposição, mas não apenas para “noticiarem eventos, pois elas nunca são
imparciais, elas sempre participam, e é acima de tudo isto que as separam da grande
mídia”11
Une estes conceitos, a luta por uma “desnormatização social”, por meio da
tentativa de, ao mesmo tempo, revelar regulamentações sociais a que a cultura
hegemônica nos submete, da mesma forma que sugere uma maneira de se relacionar
7
Citado em ROSAS. Online
DOWNING, John D. H. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo: SENAC São
Paulo, 200,. p. 22.
9
Citado em DERY. Online. Tradução nossa para “any form of jamming in which tales told for mass consumption
are perversely reworked”
10
Citado em AUTONOME....; BLISSETT; BRÜZELS. Online. Tradução nossa para “communication guerrillas do
not intend to occupy, interrupt or destroy the dominant channels of communication, they focus on detourning and
subverting the messages transported”
11
Citado em GARCIA; LOVINK. Online. Tradução nossa de “Tactical media do not just report events, as they are
never impartial they always participate and it is this that more than anything separates them from mainstream media.”
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com as produções simbólicas dos meios de comunicação da nossa sociedade, não só na
produção de novos significados, mas principalmente na intervenção e deturpação dos
significados que a cultura hegemônica produz por meio de seus aparelhos culturais.
É a “guerrilha semiótica” proposta por Umberto Eco, em um ensaio de 1967.
Eco parte do pressuposto de que o conteúdo de uma mensagem não é o bastante para
mudar a natureza dos meios de comunicação. Como o autor coloca,
Mesmo se os meios de comunicação, enquanto meios de produção, mudassem
de dono, a situação de sujeição não mudaria. No máximo, é lícito suspeitar que
os meios de comunicação seriam meios alienantes ainda que pertencessem à
comunidade.12
Com esta visão, Eco critica a idéia de que para controlar “o poder das mídias”,
deve-se ter controle sobre o emissor e o canal em que uma mensagem é enviada. Isto
porque, para o autor italiano, as batalhas deveriam ser travadas não de onde a
comunicação parte, mas sim aonde ela chega. Eco propõe uma solução de guerrilha, em
que se explore as ambigüidades e múltiplos significados que a cultura de massa produz.
Essas ambigüidades surgem na utilização dos códigos fixados pelo emissor e o receptor
de uma mensagem. Eco vê uma intervenção, ou utilização, desta variabilidade de
interpretações causadas pelos códigos como uma “ação para impelir o público a
controlar a mensagem e suas múltiplas possibilidades de interpretação”13 .
Esta mudança de foco encontra suas razões de ser principalmente na descrença
na representação política institucional e também na conclusão de que, como o autonome
a.f.r.i.k.a gruppe14 coloca, “o melhor argumento é inútil se ninguém quer ouvi-lo”15 .
Luther Blissett afirma que “fazer contra-informação não é o suficiente. Não podemos
nos libertar do cetro odiado do poder, simplesmente podemos entregá-lo em mãos mais
confiáveis e amigáveis. Não se elimina o comando, passa-se a outro. Não acredite
naquilo, acredite nisso”16 Ou seja, parte-se do principio de que é necessário buscar
novas articulações, caso realmente se queira recuperar a noção de debate e participação
na esfera pública, que Habermas17 e Richard Sennett18 , entre outros estudiosos,
identificam como enfraquecidos.
12
ECO, UMBERTO, Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova fronteira. 1984, p 170.
Id., Ibid., p. 174.
14
Grupo alemão que, além de participar de ações de intervenção, procurou dar base conceitual às suas práticas,
lançando diversos manifestos na Internet.
15
Citado em AUTONOME.... Online. Tradução nossa de “the best argument is useless if nobody wants to hear it”
16
BLISSETT, Luther. Guerrilha Psíquica. São Paulo: Conrad, 2001, p 49.
17
Ver HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigação quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
18
Ver SENNETT, Richard. O declínio do homem público. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
13
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Tática e Estratégia
Em “A invenção do cotidiano”, Michel de Certeau identifica certas práticas
cotidianas, as “maneiras de usar”, que demonstram como os consumidores fogem à
suposta passividade e massificação dos comportamentos a que estariam entregues. São
procedimentos populares que jogam com os mecanismos da disciplina e não se
conformam com ela a não ser para alterá-los. A partir desta colocação, Certeau tenta
criar modelos de ações característicos dos usuários e apresenta uma dicotomia entre
tática, o conjunto de características das práticas que propiciam aos consumidores a
possibilidade de burlar a “vigilância”, e a estratégia, características daqueles que tentam
perpetuar o poder.
Para Certeau,
“A figura atual de uma marginalidade não é mais a de pequenos grupos, mas
uma marginalidade de massa; atividade cultural dos não produtores de cultura,
uma atividade não assinada, não legível, mas simbolizada, e que é a única
possível a todos aqueles que no entanto pagam, comprando-os, os produtosespetáculos onde se soletra uma economia produtiva. Ela se universaliza. Essa
marginalidade se tornou maioria silenciosa”19
Assim, restaria para a maioria silenciosa e não produtora de cultura, os
pequenos e cotidianos procedimentos táticos, capazes de burlar a disciplina estratégica.
“Na realidade, diante de uma produção racionalizada, expansionista,
centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produção, de tipo
totalmente diverso, qualificada como ‘consumo’, que tem como características
suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas
‘piratarias’, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase
invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria
seu lugar?) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos.”20
A estratégia se define pelo cálculo das relações de forças possibilitado pela
determinação de um lugar tomado para si por um sujeito de querer e poder, de onde ele
então irá gerir sua relação com a exterioridade, isolado, com um lugar próprio. Assim, a
estratégia privilegia as relações espaciais em detrimento ao tempo, sempre capitalizando
suas conquistas, em busca de independência em relação à variabilidade de
circunstâncias. A determinação de um lugar próprio permite também que a estratégia
exerça uma “prática panóptica”, controle o que está em seu campo de visão e antecipe o
19
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. 9 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994,
p. 44.
20
Id., Ibid., p. 94.
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tempo pela leitura do espaço que tomou para si. A estratégia pretende perdurar e é
determinada por um postulado de poder. Como Certeau exemplifica, “a nacionalidade
política, econômica ou cientifica foi construída segundo esse modelo estratégico”21 .
Já a tática é determinada exatamente pela falta de poder e a ausência de um
lugar próprio. Desta forma, resta à tática o lugar do outro, e, assim, ela valoriza o tempo
em relação ao espaço, à espera de ocasiões em que surgirão falhas na vigilância que lhe
possibilitarão agir de maneira oportunista.
A falta de um lugar próprio também dá a
tática um caráter de invisibilidade e propicia a mobilidade. Características vitais à tática,
uma vez que age sempre dentro do “campo de visão” da disciplina. A tática não guarda
o que ganha é incapaz de assegurar independência em relação às circunstâncias. È
sempre temporária e não pretende perdurar.
Como coloca Certeau,
“Muitas práticas cotidianas (falar, ler, circular, fazer compras ou preparar
refeições etc.) são do tipo tática. E também, de modo mais geral, uma grande
parte das ‘maneiras de fazer’: vitórias do ‘fraco’ sobre o mais ‘forte’ (os
poderosos, a doença, a violência das coisas ou de uma ordem etc.), pequenos
sucessos, artes de dar golpes, astúcias de ‘caçadores’, mobilidades da mão-deobra, simulações polimorfas, achados que provocam euforia, tanto poéticos
quanto bélicos.”22
A Arte do Fraco
Enteder as intervenções culturais praticadas por grupos como o Adbusters e o
Luther Blissett Project como práticas do tipo tático vão ao encontro da teoria sobre
Midia Tática, de Lovink e Garcia. Porém, enquanto a Mídia Tática se direciona
principalmente ao uso das mídias – como podemos observar nos materiais apresentados
no festival de Midia Tática Next Five Minutes23 – a Guerrilha Cultural procura
subverter os significados produzidos pela cultura hegemônica.
A característica que norteia o modelo tático é a falta de um lugar próprio e é
também essa característica que vai delinear as práticas dos grupos de contestação. Em
acordo com a Guerrilha Semiótica proposta por Eco, estas manifestações não buscam
construir um discurso próprio, a partir de argumentos e contra-informação. Ao
contrário, agem através da intervenção, trabalhando nas possibilidades criadas pela
variabilidade de interpretações.
21
Id., Ibid., p. 46.
Id., Ibid., p. 47.
23
Ver http://www.next5minutes.org/n5m/index.jsp
22
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Assim, a subversão de anúncios publicitários feitos por grupos como o
Adbusters optam por se apropriar das técnicas publicitárias e da identidade visual das
grandes corporações. Nota-se o uso da técnica situacionista do détournement. Guy
Debord e Gil J. Wolman afirmam que “qualquer elemento, não importa de onde tenha
sido retirado, pode ser usado para se fazer novas combinações”24 . Dessa forma, tenta se
inverter o significado que este elemento antes propunha. A idéia é tornar estranho aquilo
que era familiar, causando um momento de questionamento. Como Cristoph Behnke,
em um artigo publicado no site Republicart sobre o Culture Jamming e as técnicas
publicitárias, coloca, os trabalhos da Adbusters “se apóiam inteiramente na forma do
espetáculo, para introduzir seu pólo inverso... tudo deveria funcionar da mesma forma
que a publicidade, porém de forma contrária”.25
O grupo Yes Men dá uma nova dimensão às recontextualizações e às paródias
da Guerrilha Cultural quando não só age no terreno de outro, como também se passa
pelo outro através de personificações. Suas atividades começaram quando colocaram
um site falso da Organização Mundial do Comércio na Internet26 , em 1999. Algumas
entidades confundiram o site com o original e enviaram convites para conferências. Os
Yes Men não só compareceram como membros da OMC, como fizeram discursos em
que levavam algumas das políticas da organização às últimas conseqüências. Assim, em
uma conferência internacional sobre leis do comércio em Salzburgo, na Áustria, os Yes
Men propuseram uma “solução” de mercado livre para a democracia: quem fizesse a
maior oferta ganharia o voto. Aparições como esta se repetiram em programas de tv
europeus, em conferências têxteis na Finlândia, universidades americanas e culminaram
com uma aparição na Austrália para uma conferência da Associação de Contadores, em
que os Yes Men, como membros da OMC, anunciaram que a organização se dissolveria,
por causa de todos os erros praticados durante sua existência.
A última personificação do grupo Yes Men foi percorrer parte do território dos
Estados Unidos em um “falso” ônibus de campanha para a re-eleição de George Bush,
de 20 de agosto até a data da eleição presidencial americana. O ônibus era idêntico aos
usados pela “verdadeira” campanha, porém com algumas capacidades adicionais como
24
Citado em DEBORD;WOLMAN. Online. Tradução nossa de “Any elements, no matter where they are taken from,
can be used to make new combinations”
25
Citado em BEHNKE. Online. Tradução e grifo nosso de “culture jammers rely entirely on the form of the spectacle
to introduce a polar reversal into the distracted appropriation. Everything should work the same way as in advertising,
but the other way around.“
26
O site pode ser encontrado em http://www.gatt.org/ (acesso em 20/05/2005)
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uma máquina de fumaça e um ejetor de óleo que pretendiam simbolizar algumas das
deficiências do governo americano. Durante sua viagem, o ônibus fez paradas em
convenções republicanas e várias localidades personificando cabos eleitorais de Bush,
porém exagerando algumas das características que enxergavam no presidente dos
Estados Unidos. Assim, a sátira incluía uma petição para o corte de impostos para os
ricos e panfletos a favor do alistamento militar não-voluntário distribuídos para a
população, entre outras atividades.
Por agir no lugar do outro, o modelo tático favorece as relações temporais,
isto é, atenta-se às circunstâncias em busca de oportunidades. Este oportunismo também
se revela nas intervenções culturais que, em grande parte, surgem a partir de
possibilidades abertas por situações específicas e locais. No caso das atividades do
grupo Yes Men, os próprios convites que recebiam em nome da OMC e a campanha
eleitoral americana ditaram o momento em que suas ações ocorreriam. As subversões
dos anúncios publicitários se aproveitam das campanhas publicitárias de maior
evidência.
Outra conseqüência da falta de um lugar próprio são as características de
mobilidade e invisibilidade que as intervenções táticas ganham. Certeau afirma que
aqueles que usam do modo tático, os consumidores, os não produtores de cultura,
tornam-se migrantes, uma vez que “o sistema onde circulam é demasiadamente amplo
para fixá-los em alguma parte, mas demasiadamente regulamentado para que possam
escapar dele e exilar-lhe alhures”27 .
Estes aspectos de mobilidade e invisibilidade - estudados também por autores
como Hakim Bey28 e Gilles Deleuze e Félix Guattari29 - possibilita uma articulação
política que foge de uma posição defensiva, já que não há um lugar, um espaço
circunscrito, para ser defendido.
O Luther Blissett Project exemplifica estes aspectos. A começar pela
organização do grupo, que não se denominava exatamente como um grupo, e sim como
um “condíviduo”, ou um nome múltiplo. Luther Blissett é uma identidade aberta, que
poderia ser adotada por qualquer um. O projeto surgiu em Bolonha, Itália, na metade da
década de 90 com a intenção de criar um mito, tal qual sub-comandante Marcos dos
27
DE CERTEAU, Michel, A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. 9 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
p. 104.
28
Ver BEY, Hakim. TAZ: zona autônoma temporária. São Paulo: Conrad, 2001.
29
Ver DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. Volume
V. Rio de Janeiro: 34, 1995.
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Zapatistas, uma espécie de herói popular da revolução cultural, baseado no arquétipo de
Robin Hood. “Um mito lúdico, esperto, cativante, eficaz, de fato “pop”, que divulga
uma visão livre e feliz da vida e da luta de classes.”30 . Assim, Luther Blissett torna-se
um exército invisível, incapaz de ser identificado ou localizado.
Enfim, o modelo tático, sem lugar próprio e atuando a partir de oportunidades,
não capitaliza as vantagens que adquire, pois tem caráter temporário. De pequenas
adulterações em outdoors, que ficarão expostas por pouco tempo e sem grande
abrangência de público, a infiltração de notícias falsas em jornais da “grande mídia”,
não há uma expectativa a longo prazo, o que mais importa é a criação de “curtos e
ofuscantes momentos de confusão e distração que nos mostram que tudo poderia ser
completamente diferente: uma utopia fragmentada como a semente da mudança”31
Uma vez que o Yes Men revela sua personificação da OMC em um
determinado congresso, o grupo desaparece e vai ressurgir em outra ocasião, em que
não haverá nenhum vínculo com suas manifestações anteriores. É inclusive necessário
não capitalizar suas vitórias, pois se tornaria reconhecível, isolável. Aqui se revela o
verdadeiro aspecto de guerrilha destas práticas, a luta “golpe por golpe”.
Com o avanço das táticas, Certeau imagina que
Haveria uma proliferação de manipulações aleatórias e incontroláveis, dentro de
uma imensa rede de coerções e seguranças sócio-econômicas: miríades de
movimentos quase invisíveis, operando na textura sempre mais fina de um lugar
homogêneo, contínuo e próprio a todos. Seria já o presente ou ainda o futuro da
grande cidade?32
Podemos transpor tal cenário para a questão das ni tervenções praticadas por
grupos da Guerrilha Cultural. Manipulações também “aleatórias e incontroláveis”,
oferecendo uma nova forma de se relacionar com os meios de comunicação em uma
posição menos passiva frente à produção cultural hegemônica.
Deportation Class
Um exemplo de manifestação social que se deu através da intervenção e
apropriação de bens simbólicos a partir do modelo tático foi uma campanha chamada
30
BLISSETT, Luther. Guerrilha Psíquica. São Paulo: Conrad, 2001. p. 39.
Citado em AUTONOME...;BLISSETT; BRÜZELS. Online. Tradução nossa de “those short and shimmering
moments of confusion and distortion, moments that tell us that everything could becompletely different: a fragmented
utopia as a seed of change”
32
DE CERTEAU, Michel, A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. 9 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
p. 101.
31
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Deportation Class, que fazia parte do projeto “Ninguém é ilegal” iniciado na Alemanha,
em 1999. Rapidamente a campanha se juntou à rede “No Border”, que trabalha com
questões da política de imigração.
Para trazer à tona a deportação de imigrantes ilegais, diversos grupos europeus
uniram forças e, aproveitando-se de uma situação delicada: a de que o governo alemão
obrigava as empresas aéreas a transportarem deportados em seus vôos comerciais,
criaram a Deportation Class. Uma campanha contra a empresa aérea alemã Lufthansa
que criava a falsa “classe de deportação”. Foram impressos panfletos, produzidos vídeos
e um site foi colocado na Internet33 anunciando que a empresa era obrigada a transportar
imigrantes ilegais para fora do país, porém estava consciente de que a situação poderia
ser incômoda para os passageiros comuns, uma vez que os deportados muitas vezes
resistiam. Desta forma, a Lufthansa oferecia preços reduzidos para quem fizesse tais
vôos. O slogan da campanha era uma leve alteração do próprio slogan da empresa.
Enquanto a Lufthansa prometia “We fly you there”, sua “classe de deportação”
prometia que “We fly you out”.
Além dos recursos de détournement no roubo da identidade visual da empresa
– todo o material gráfico produzido seguia as cores azul e laranja da Lufthansa, contava
com seu logotipo e mesmo tipo gráfico – a campanha apropriava-se da própria imagem
cultivada pela Lufthansa de um mundo sem fronteiras, em que a empresa levaria a
qualquer lugar, para inverter a mensagem de forma maliciosa. Ao mesmo tempo,
sugeria que a empresa aérea ainda lucraria com isso. Teatro invisível em que
deportações eram encenadas em aeroportos e diversas outras formas de promoção da
“Deportation Class” foram feitas, fazendo com que a Lufthansa reagisse. Porém, a
empresa não pôde negar que transportava imigrantes, ou que eles não causavam
inconveniências aos demais passageiros. Assim, a empresa, após inutilmente tentar
imobilizar a campanha fechando sites na Internet e movendo ações legais contra os
participantes da manifestação, negociou com sucesso com o governo para que não mais
transportasse deportados.
De acordo com o modelo tático, a “deportation class”, agiu sempre no terreno
do outro, seja apropriando-se do discurso da empresa aérea ou em encenações que se
passavam no próprio aeroporto, sem se distinguir como um verdadeiro protesto, e assim
circunscrevendo seu próprio lugar. Enquanto temporária, e incapaz de capitalizar suas
33
O site pode ser visto em http://www.deportation-class.com/ (acesso em 20/05/2005)
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conquistas, a “deportation class” conseguiu feitos por meio desta campanha – as linhas
aéreas se negaram a transportar imigrantes deportados. Porém, tal conquista não pode se
configurar como uma vitória, já que os países europeus continuam com políticas de
imigração questionáveis.
Considerações Finais
Ao identificarmos os aspectos táticos da Guerrilha Cultural, podemos
transformar suas características em um modelo de ação que facilita o entendimento de
todas as potencialidades desta forma de protesto. O uso da intervenção nos produtos
simbólicos da sociedade é uma saída que vem sendo encontrada por diversas
manifestações sociais para apresentarem crítica sociais de forma diferenciada ao
público.
Pode-se argumentar que, por serem manifestações de caráter tático por
excelência, ou seja, não capitalizarem suas conquistas, seria presumível que tais
manifestações só poderiam formar um amplo projeto de resistência se tais atividades
formassem uma “estratégia feita de táticas”. Porém, através da intervenção, apropriação
e deturpação de mensagens, não só busca-se criar um distanciamento no consumidor, no
público, mas também oferecê-lo uma nova maneira de relacionar com os bens
simbólicos que consome. E mais, de forma lúdica, busca-se transformar esse consumo
em produção, o que sugere inclusive uma renovação na forma de participar da vida
pública.
Referências bibliográficas
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<http://www.republicart.net/disc/artsabotage/yesmen01_en.pdf> Acesso em 20/05/2005
11
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Intervenção: o aspecto tático na guerrilha cultural Henrique Moreira