Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de setembro de 2005 Intervenção: o aspecto tático na guerrilha cultural1 Henrique Moreira Mazetti2 Resumo Análise das práticas intervencionistas de grupos contestatórios surgidos principalmente na Europa e Estados Unidos a partir da década de 90, que se distanciam da política institucional para travarem sua luta no campo da cultura, na apropriação e deturpação dos bens simbólicos produzidos pela sociedade. Destacamos a dicotomia feita por Michel de Certeau entre tática e estratégia, caracterizando os dois modelos de ação, e buscamos identificar os aspectos táticos que se fazem presentes nestas ações contestatórias. Palavras-chave Intervenção; ativismo; tática; movimentos sociais; comunicação. Em meados da década de noventa, a Europa e os Estados Unidos presenciaram o surgimento de novas formas de contestação social que distanciavam-se da esfera política para focar seu interesse na produção cultural. Grupos como o liderado pela revista canandense Adbusters3 , especializados em paródias de peças publicitárias e manifestações anti-consumistas, o Luther Blissett Project4 , que incomodou a imprensa italiana com a criação e disseminação de notícias falsas, o site RTMARK5 , uma plataforma para a criação, discussão e financiamento de sabotagens coorporativas, e o Yes Men6 , conhecido por suas personificações, que vão de ações em que se passam por membros da Organização Mundial do Comércio ou partidários do presidente americano George Bush para satirizarem seus discursos, começam a inspirar manifestações brasileiras semelhantes, surgidas graças à internet e 1 Trabalho apresentado ao Eventos especiais III – Intercom Júnior 2 3 Ver http://www.adsbusters.org Ver http://www.lutherblissett.net 5 Ver http://www.rtmark.com/ 6 Ver http://www.theyesmen.org/ 4 1 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de setembro de 2005 que, de acordo com Ricardo Rosas, “atuam nos interstícios das práticas tradicionais da cultura instituida, em ações até agora de um viés mais low tech”7 . Tais manifestações têm caráter lúdico e experimental, buscam inspiração para suas ações em movimentos artísticos que remontam a uma tradição que tem seu início no dadaísmo alemã, formando um caminho que liga as experimentações formais na arte até as práticas comunicacionais subversivas praticadas por grupos da Guerrilha Cultural. Elas se dão em uma relação intrínseca às estruturas de poder, a partir do seu interior, no uso de suas técnicas, na exploração de suas falhas e até mesmo na apropriação de seu discurso. Conceituar tais práticas torna-se uma dificil tarefa graças à diversidade de suas ações. John Downing cunhou o termo “mídias radicais”, que se referiria “à midia – em geral de pequena escala e sob muitas formas diferentes – que expressa uma visão alternativa às políticas, prioridades e perspectivas hegemônicas”8 . Mark Dery, excolaborador da revista Adbusters, usou o termo Culture Jamming – que pode ser entendido como obstrução, engarrafamento ou confusão da cultura – aplicando-o a “qualquer forma de jamming em que as estórias contadas para o consumo em massa são re-trabalhadas perversamente”9 . Grupos europeus como o Luther Blissett Project dão nome as suas atividades de Comunicação Guerrilha, e chamam a atenção ao fato de que a intenção “não é ocupar, interromper ou destruir os canais dominantes de comunicação”, mas sim, ‘detournar’ e subverter as mensagens transportadas”10 . Somase a tais conceitos o de Mídia Tática, formulado por Geert Lovink e David Garcia, que pode ser definido como aquele em que as potencialidades da mídia são utilizadas para a crítica e oposição, mas não apenas para “noticiarem eventos, pois elas nunca são imparciais, elas sempre participam, e é acima de tudo isto que as separam da grande mídia”11 Une estes conceitos, a luta por uma “desnormatização social”, por meio da tentativa de, ao mesmo tempo, revelar regulamentações sociais a que a cultura hegemônica nos submete, da mesma forma que sugere uma maneira de se relacionar 7 Citado em ROSAS. Online DOWNING, John D. H. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo: SENAC São Paulo, 200,. p. 22. 9 Citado em DERY. Online. Tradução nossa para “any form of jamming in which tales told for mass consumption are perversely reworked” 10 Citado em AUTONOME....; BLISSETT; BRÜZELS. Online. Tradução nossa para “communication guerrillas do not intend to occupy, interrupt or destroy the dominant channels of communication, they focus on detourning and subverting the messages transported” 11 Citado em GARCIA; LOVINK. Online. Tradução nossa de “Tactical media do not just report events, as they are never impartial they always participate and it is this that more than anything separates them from mainstream media.” 8 2 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de setembro de 2005 com as produções simbólicas dos meios de comunicação da nossa sociedade, não só na produção de novos significados, mas principalmente na intervenção e deturpação dos significados que a cultura hegemônica produz por meio de seus aparelhos culturais. É a “guerrilha semiótica” proposta por Umberto Eco, em um ensaio de 1967. Eco parte do pressuposto de que o conteúdo de uma mensagem não é o bastante para mudar a natureza dos meios de comunicação. Como o autor coloca, Mesmo se os meios de comunicação, enquanto meios de produção, mudassem de dono, a situação de sujeição não mudaria. No máximo, é lícito suspeitar que os meios de comunicação seriam meios alienantes ainda que pertencessem à comunidade.12 Com esta visão, Eco critica a idéia de que para controlar “o poder das mídias”, deve-se ter controle sobre o emissor e o canal em que uma mensagem é enviada. Isto porque, para o autor italiano, as batalhas deveriam ser travadas não de onde a comunicação parte, mas sim aonde ela chega. Eco propõe uma solução de guerrilha, em que se explore as ambigüidades e múltiplos significados que a cultura de massa produz. Essas ambigüidades surgem na utilização dos códigos fixados pelo emissor e o receptor de uma mensagem. Eco vê uma intervenção, ou utilização, desta variabilidade de interpretações causadas pelos códigos como uma “ação para impelir o público a controlar a mensagem e suas múltiplas possibilidades de interpretação”13 . Esta mudança de foco encontra suas razões de ser principalmente na descrença na representação política institucional e também na conclusão de que, como o autonome a.f.r.i.k.a gruppe14 coloca, “o melhor argumento é inútil se ninguém quer ouvi-lo”15 . Luther Blissett afirma que “fazer contra-informação não é o suficiente. Não podemos nos libertar do cetro odiado do poder, simplesmente podemos entregá-lo em mãos mais confiáveis e amigáveis. Não se elimina o comando, passa-se a outro. Não acredite naquilo, acredite nisso”16 Ou seja, parte-se do principio de que é necessário buscar novas articulações, caso realmente se queira recuperar a noção de debate e participação na esfera pública, que Habermas17 e Richard Sennett18 , entre outros estudiosos, identificam como enfraquecidos. 12 ECO, UMBERTO, Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova fronteira. 1984, p 170. Id., Ibid., p. 174. 14 Grupo alemão que, além de participar de ações de intervenção, procurou dar base conceitual às suas práticas, lançando diversos manifestos na Internet. 15 Citado em AUTONOME.... Online. Tradução nossa de “the best argument is useless if nobody wants to hear it” 16 BLISSETT, Luther. Guerrilha Psíquica. São Paulo: Conrad, 2001, p 49. 17 Ver HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigação quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. 18 Ver SENNETT, Richard. O declínio do homem público. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 13 3 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de setembro de 2005 Tática e Estratégia Em “A invenção do cotidiano”, Michel de Certeau identifica certas práticas cotidianas, as “maneiras de usar”, que demonstram como os consumidores fogem à suposta passividade e massificação dos comportamentos a que estariam entregues. São procedimentos populares que jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los. A partir desta colocação, Certeau tenta criar modelos de ações característicos dos usuários e apresenta uma dicotomia entre tática, o conjunto de características das práticas que propiciam aos consumidores a possibilidade de burlar a “vigilância”, e a estratégia, características daqueles que tentam perpetuar o poder. Para Certeau, “A figura atual de uma marginalidade não é mais a de pequenos grupos, mas uma marginalidade de massa; atividade cultural dos não produtores de cultura, uma atividade não assinada, não legível, mas simbolizada, e que é a única possível a todos aqueles que no entanto pagam, comprando-os, os produtosespetáculos onde se soletra uma economia produtiva. Ela se universaliza. Essa marginalidade se tornou maioria silenciosa”19 Assim, restaria para a maioria silenciosa e não produtora de cultura, os pequenos e cotidianos procedimentos táticos, capazes de burlar a disciplina estratégica. “Na realidade, diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produção, de tipo totalmente diverso, qualificada como ‘consumo’, que tem como características suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas ‘piratarias’, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria seu lugar?) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos.”20 A estratégia se define pelo cálculo das relações de forças possibilitado pela determinação de um lugar tomado para si por um sujeito de querer e poder, de onde ele então irá gerir sua relação com a exterioridade, isolado, com um lugar próprio. Assim, a estratégia privilegia as relações espaciais em detrimento ao tempo, sempre capitalizando suas conquistas, em busca de independência em relação à variabilidade de circunstâncias. A determinação de um lugar próprio permite também que a estratégia exerça uma “prática panóptica”, controle o que está em seu campo de visão e antecipe o 19 DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. 9 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994, p. 44. 20 Id., Ibid., p. 94. 4 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de setembro de 2005 tempo pela leitura do espaço que tomou para si. A estratégia pretende perdurar e é determinada por um postulado de poder. Como Certeau exemplifica, “a nacionalidade política, econômica ou cientifica foi construída segundo esse modelo estratégico”21 . Já a tática é determinada exatamente pela falta de poder e a ausência de um lugar próprio. Desta forma, resta à tática o lugar do outro, e, assim, ela valoriza o tempo em relação ao espaço, à espera de ocasiões em que surgirão falhas na vigilância que lhe possibilitarão agir de maneira oportunista. A falta de um lugar próprio também dá a tática um caráter de invisibilidade e propicia a mobilidade. Características vitais à tática, uma vez que age sempre dentro do “campo de visão” da disciplina. A tática não guarda o que ganha é incapaz de assegurar independência em relação às circunstâncias. È sempre temporária e não pretende perdurar. Como coloca Certeau, “Muitas práticas cotidianas (falar, ler, circular, fazer compras ou preparar refeições etc.) são do tipo tática. E também, de modo mais geral, uma grande parte das ‘maneiras de fazer’: vitórias do ‘fraco’ sobre o mais ‘forte’ (os poderosos, a doença, a violência das coisas ou de uma ordem etc.), pequenos sucessos, artes de dar golpes, astúcias de ‘caçadores’, mobilidades da mão-deobra, simulações polimorfas, achados que provocam euforia, tanto poéticos quanto bélicos.”22 A Arte do Fraco Enteder as intervenções culturais praticadas por grupos como o Adbusters e o Luther Blissett Project como práticas do tipo tático vão ao encontro da teoria sobre Midia Tática, de Lovink e Garcia. Porém, enquanto a Mídia Tática se direciona principalmente ao uso das mídias – como podemos observar nos materiais apresentados no festival de Midia Tática Next Five Minutes23 – a Guerrilha Cultural procura subverter os significados produzidos pela cultura hegemônica. A característica que norteia o modelo tático é a falta de um lugar próprio e é também essa característica que vai delinear as práticas dos grupos de contestação. Em acordo com a Guerrilha Semiótica proposta por Eco, estas manifestações não buscam construir um discurso próprio, a partir de argumentos e contra-informação. Ao contrário, agem através da intervenção, trabalhando nas possibilidades criadas pela variabilidade de interpretações. 21 Id., Ibid., p. 46. Id., Ibid., p. 47. 23 Ver http://www.next5minutes.org/n5m/index.jsp 22 5 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de setembro de 2005 Assim, a subversão de anúncios publicitários feitos por grupos como o Adbusters optam por se apropriar das técnicas publicitárias e da identidade visual das grandes corporações. Nota-se o uso da técnica situacionista do détournement. Guy Debord e Gil J. Wolman afirmam que “qualquer elemento, não importa de onde tenha sido retirado, pode ser usado para se fazer novas combinações”24 . Dessa forma, tenta se inverter o significado que este elemento antes propunha. A idéia é tornar estranho aquilo que era familiar, causando um momento de questionamento. Como Cristoph Behnke, em um artigo publicado no site Republicart sobre o Culture Jamming e as técnicas publicitárias, coloca, os trabalhos da Adbusters “se apóiam inteiramente na forma do espetáculo, para introduzir seu pólo inverso... tudo deveria funcionar da mesma forma que a publicidade, porém de forma contrária”.25 O grupo Yes Men dá uma nova dimensão às recontextualizações e às paródias da Guerrilha Cultural quando não só age no terreno de outro, como também se passa pelo outro através de personificações. Suas atividades começaram quando colocaram um site falso da Organização Mundial do Comércio na Internet26 , em 1999. Algumas entidades confundiram o site com o original e enviaram convites para conferências. Os Yes Men não só compareceram como membros da OMC, como fizeram discursos em que levavam algumas das políticas da organização às últimas conseqüências. Assim, em uma conferência internacional sobre leis do comércio em Salzburgo, na Áustria, os Yes Men propuseram uma “solução” de mercado livre para a democracia: quem fizesse a maior oferta ganharia o voto. Aparições como esta se repetiram em programas de tv europeus, em conferências têxteis na Finlândia, universidades americanas e culminaram com uma aparição na Austrália para uma conferência da Associação de Contadores, em que os Yes Men, como membros da OMC, anunciaram que a organização se dissolveria, por causa de todos os erros praticados durante sua existência. A última personificação do grupo Yes Men foi percorrer parte do território dos Estados Unidos em um “falso” ônibus de campanha para a re-eleição de George Bush, de 20 de agosto até a data da eleição presidencial americana. O ônibus era idêntico aos usados pela “verdadeira” campanha, porém com algumas capacidades adicionais como 24 Citado em DEBORD;WOLMAN. Online. Tradução nossa de “Any elements, no matter where they are taken from, can be used to make new combinations” 25 Citado em BEHNKE. Online. Tradução e grifo nosso de “culture jammers rely entirely on the form of the spectacle to introduce a polar reversal into the distracted appropriation. Everything should work the same way as in advertising, but the other way around.“ 26 O site pode ser encontrado em http://www.gatt.org/ (acesso em 20/05/2005) 6 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de setembro de 2005 uma máquina de fumaça e um ejetor de óleo que pretendiam simbolizar algumas das deficiências do governo americano. Durante sua viagem, o ônibus fez paradas em convenções republicanas e várias localidades personificando cabos eleitorais de Bush, porém exagerando algumas das características que enxergavam no presidente dos Estados Unidos. Assim, a sátira incluía uma petição para o corte de impostos para os ricos e panfletos a favor do alistamento militar não-voluntário distribuídos para a população, entre outras atividades. Por agir no lugar do outro, o modelo tático favorece as relações temporais, isto é, atenta-se às circunstâncias em busca de oportunidades. Este oportunismo também se revela nas intervenções culturais que, em grande parte, surgem a partir de possibilidades abertas por situações específicas e locais. No caso das atividades do grupo Yes Men, os próprios convites que recebiam em nome da OMC e a campanha eleitoral americana ditaram o momento em que suas ações ocorreriam. As subversões dos anúncios publicitários se aproveitam das campanhas publicitárias de maior evidência. Outra conseqüência da falta de um lugar próprio são as características de mobilidade e invisibilidade que as intervenções táticas ganham. Certeau afirma que aqueles que usam do modo tático, os consumidores, os não produtores de cultura, tornam-se migrantes, uma vez que “o sistema onde circulam é demasiadamente amplo para fixá-los em alguma parte, mas demasiadamente regulamentado para que possam escapar dele e exilar-lhe alhures”27 . Estes aspectos de mobilidade e invisibilidade - estudados também por autores como Hakim Bey28 e Gilles Deleuze e Félix Guattari29 - possibilita uma articulação política que foge de uma posição defensiva, já que não há um lugar, um espaço circunscrito, para ser defendido. O Luther Blissett Project exemplifica estes aspectos. A começar pela organização do grupo, que não se denominava exatamente como um grupo, e sim como um “condíviduo”, ou um nome múltiplo. Luther Blissett é uma identidade aberta, que poderia ser adotada por qualquer um. O projeto surgiu em Bolonha, Itália, na metade da década de 90 com a intenção de criar um mito, tal qual sub-comandante Marcos dos 27 DE CERTEAU, Michel, A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. 9 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994. p. 104. 28 Ver BEY, Hakim. TAZ: zona autônoma temporária. São Paulo: Conrad, 2001. 29 Ver DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. Volume V. Rio de Janeiro: 34, 1995. 7 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de setembro de 2005 Zapatistas, uma espécie de herói popular da revolução cultural, baseado no arquétipo de Robin Hood. “Um mito lúdico, esperto, cativante, eficaz, de fato “pop”, que divulga uma visão livre e feliz da vida e da luta de classes.”30 . Assim, Luther Blissett torna-se um exército invisível, incapaz de ser identificado ou localizado. Enfim, o modelo tático, sem lugar próprio e atuando a partir de oportunidades, não capitaliza as vantagens que adquire, pois tem caráter temporário. De pequenas adulterações em outdoors, que ficarão expostas por pouco tempo e sem grande abrangência de público, a infiltração de notícias falsas em jornais da “grande mídia”, não há uma expectativa a longo prazo, o que mais importa é a criação de “curtos e ofuscantes momentos de confusão e distração que nos mostram que tudo poderia ser completamente diferente: uma utopia fragmentada como a semente da mudança”31 Uma vez que o Yes Men revela sua personificação da OMC em um determinado congresso, o grupo desaparece e vai ressurgir em outra ocasião, em que não haverá nenhum vínculo com suas manifestações anteriores. É inclusive necessário não capitalizar suas vitórias, pois se tornaria reconhecível, isolável. Aqui se revela o verdadeiro aspecto de guerrilha destas práticas, a luta “golpe por golpe”. Com o avanço das táticas, Certeau imagina que Haveria uma proliferação de manipulações aleatórias e incontroláveis, dentro de uma imensa rede de coerções e seguranças sócio-econômicas: miríades de movimentos quase invisíveis, operando na textura sempre mais fina de um lugar homogêneo, contínuo e próprio a todos. Seria já o presente ou ainda o futuro da grande cidade?32 Podemos transpor tal cenário para a questão das ni tervenções praticadas por grupos da Guerrilha Cultural. Manipulações também “aleatórias e incontroláveis”, oferecendo uma nova forma de se relacionar com os meios de comunicação em uma posição menos passiva frente à produção cultural hegemônica. Deportation Class Um exemplo de manifestação social que se deu através da intervenção e apropriação de bens simbólicos a partir do modelo tático foi uma campanha chamada 30 BLISSETT, Luther. Guerrilha Psíquica. São Paulo: Conrad, 2001. p. 39. Citado em AUTONOME...;BLISSETT; BRÜZELS. Online. Tradução nossa de “those short and shimmering moments of confusion and distortion, moments that tell us that everything could becompletely different: a fragmented utopia as a seed of change” 32 DE CERTEAU, Michel, A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. 9 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994. p. 101. 31 8 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de setembro de 2005 Deportation Class, que fazia parte do projeto “Ninguém é ilegal” iniciado na Alemanha, em 1999. Rapidamente a campanha se juntou à rede “No Border”, que trabalha com questões da política de imigração. Para trazer à tona a deportação de imigrantes ilegais, diversos grupos europeus uniram forças e, aproveitando-se de uma situação delicada: a de que o governo alemão obrigava as empresas aéreas a transportarem deportados em seus vôos comerciais, criaram a Deportation Class. Uma campanha contra a empresa aérea alemã Lufthansa que criava a falsa “classe de deportação”. Foram impressos panfletos, produzidos vídeos e um site foi colocado na Internet33 anunciando que a empresa era obrigada a transportar imigrantes ilegais para fora do país, porém estava consciente de que a situação poderia ser incômoda para os passageiros comuns, uma vez que os deportados muitas vezes resistiam. Desta forma, a Lufthansa oferecia preços reduzidos para quem fizesse tais vôos. O slogan da campanha era uma leve alteração do próprio slogan da empresa. Enquanto a Lufthansa prometia “We fly you there”, sua “classe de deportação” prometia que “We fly you out”. Além dos recursos de détournement no roubo da identidade visual da empresa – todo o material gráfico produzido seguia as cores azul e laranja da Lufthansa, contava com seu logotipo e mesmo tipo gráfico – a campanha apropriava-se da própria imagem cultivada pela Lufthansa de um mundo sem fronteiras, em que a empresa levaria a qualquer lugar, para inverter a mensagem de forma maliciosa. Ao mesmo tempo, sugeria que a empresa aérea ainda lucraria com isso. Teatro invisível em que deportações eram encenadas em aeroportos e diversas outras formas de promoção da “Deportation Class” foram feitas, fazendo com que a Lufthansa reagisse. Porém, a empresa não pôde negar que transportava imigrantes, ou que eles não causavam inconveniências aos demais passageiros. Assim, a empresa, após inutilmente tentar imobilizar a campanha fechando sites na Internet e movendo ações legais contra os participantes da manifestação, negociou com sucesso com o governo para que não mais transportasse deportados. De acordo com o modelo tático, a “deportation class”, agiu sempre no terreno do outro, seja apropriando-se do discurso da empresa aérea ou em encenações que se passavam no próprio aeroporto, sem se distinguir como um verdadeiro protesto, e assim circunscrevendo seu próprio lugar. Enquanto temporária, e incapaz de capitalizar suas 33 O site pode ser visto em http://www.deportation-class.com/ (acesso em 20/05/2005) 9 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de setembro de 2005 conquistas, a “deportation class” conseguiu feitos por meio desta campanha – as linhas aéreas se negaram a transportar imigrantes deportados. Porém, tal conquista não pode se configurar como uma vitória, já que os países europeus continuam com políticas de imigração questionáveis. Considerações Finais Ao identificarmos os aspectos táticos da Guerrilha Cultural, podemos transformar suas características em um modelo de ação que facilita o entendimento de todas as potencialidades desta forma de protesto. O uso da intervenção nos produtos simbólicos da sociedade é uma saída que vem sendo encontrada por diversas manifestações sociais para apresentarem crítica sociais de forma diferenciada ao público. Pode-se argumentar que, por serem manifestações de caráter tático por excelência, ou seja, não capitalizarem suas conquistas, seria presumível que tais manifestações só poderiam formar um amplo projeto de resistência se tais atividades formassem uma “estratégia feita de táticas”. Porém, através da intervenção, apropriação e deturpação de mensagens, não só busca-se criar um distanciamento no consumidor, no público, mas também oferecê-lo uma nova maneira de relacionar com os bens simbólicos que consome. E mais, de forma lúdica, busca-se transformar esse consumo em produção, o que sugere inclusive uma renovação na forma de participar da vida pública. Referências bibliográficas AUTONOME A.F.R.I.K.A GRUPPE; BLISSETT, Luther; BRÜZELS, Sönja. What about Communication Guerrilla?: A message out of the deeper german backwoods. Version 2.0. 1998. Disponível em < http://www.nettime.org/Lists-Archives/nettime-l-9809/msg00044.html> Acesso em 20/05/2005 AUTONOME A.F.R.I.K.A GRUPPE. Communication Guerilla: Using the Language of Power. 2003. Disponível em < http://ionnek.strg.at/bin/view/Main/KgUsingLan > Acesso em 20/05/2005 BEHNKE, Christoph. Culture Jamming and Advertising Technique. Disponível em < http://www.republicart.net/disc/artsabotage/behnke01_en.htm > Acesso em 20/05/2005 10 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de setembro de 2005 BLISSETT, Luther. Guerrilha Psíquica. São Paulo: Conrad, 2001. 260p. DEBORD, Guy; WOLMAN, J.G. A User’s Guide to Détournement. 1956. Disponível em <http://www.bopsecrets.org/SI/detourn.htm> Acesso em 20/05/2005 DE CERTEAU, Michel, A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. 9 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994. 351p. DERY, MARK. Culture Jamming: Hacking, Slashing and Sniping in the Empire of Signs. Disponível em <http://www.levity.com/markdery/culturjam.html.> Acesso em 20/05/2005 DOWNING, John D. H. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo: SENAC São Paulo, 2002. 544p. ECO, UMBERTO, Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova fronteira. 1984. 351p. GARCIA, David; LOVINK, Geert. The ABC of Tactical Media. Disponível em: <http://amsterdam.nettime.org/Lists-Archives/nettime-l-9705/msg00096.html.> Acesso em: 20/5/2005 ROSAS, Ricardo. Nome: Coletivos, Senha: Colaboração. 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