Revista NELORE Ano XXI – Setembro 2011 - 123 - “A minha vida é uma aventura e tenho de valorizá-la” Fernando Penteado Cardoso Revista NELORE Ano XXI – Setembro 2011 - 124 - Um presente no Natal, Fernando Penteado Cardoso e a Magdalena Leme Cardoso, em companhia dos seis filhos, 20 netos e 28 bisnetos Fotos: Arquivo de Família “Sou um privilegiado, mas apenas por uma benção” Por Luis Fernando Jurkowitsch e Ivaris Júnior Responsável pelo aprimoramento da linhagem Nelore Lemgruber e presidente da Fundação Agrisus, Fernando Penteado Cardoso divide com a Família Nelorista um pouco da sua experiência e visão de prosperidade no campo Revista NELORE Marcamos uma entrevista com Fernando Penteado Cardoso, nelorista, empresário e atual presidente da Fundação Agrisus (Agricultura Sustentável), em uma quinta-feira do mês de agosto, em seu escritório, na região da Avenida Paulista. Estaríamos frente a frente com um dos mais notáveis engenheiros agrônomos que o País já produziu. Fernando foi jubilado em 1936 pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”. E jubilado com mérito, já que foi acarinhado com o prêmio “Epitácio Pessoa”, destinado ao melhor aluno da turma. Nascido em São Paulo em 19 de setembro de 1914, casou-se com Magdalena Leme Cardoso, companheira de uma vida, com quem vive rodeado por seis filhos, 20 netos e 28 bisnetos. Conta, portanto, hoje, com 96 anos de idade. Ano XXI – Setembro 2011 – 127 - Fernando Cardoso, Fernando Cardoso Filho e Fernando Cardoso Neto Preparamo-nos, bastante, na redação. Tínhamos consciência de que não seria uma missão fácil. Pautamos a entrevista: que ele nos contasse sobre sua trajetória, sua família, suas experiências, seu grande conhecimento sobre o campo e sua visão de mundo e brasilidade. Tomados de toda cautela em virtude do trânsito caótico da capital paulista nos antecipamos ao horário marcado e chegamos com vinte minutos de antecedência. Fomos recebidos afavelmente por sua secretária e encaminhados a uma sala anexa, espaço provavelmente de relevância ao entrevistado, pelas comendas, certificados e quadros que as paredes exibiam. Estão lá os retratos de Justus Von Liebig (1803-1873), Pai da Nutrição Mineral das Plantas; Fritz Harber (18691934) e Carl Bosch (1874-1940), Pais da Síntese da Amônia e dos Fertilizantes Nitrogenados; Travis A. Hignet (1907-1989), Pai da Tecnologia de Fertilizantes; e Norman E. Borlaug (19142009), Pai da Revolução Verde. Faltava o dele. Fernando Penteado Cardoso é fundador do Grupo Manah, ao lado de Eduardo Lacerda de Camargo, e esteve na presidência e diretoria da empresa desde os anos 40. A companhia se expandiu ao longo dos anos, inicialmente devido a escassez de insumos agrícolas logo após terminada a Segunda Guerra Mundial, tornando-se protagonista no salto produtivo que a agricultura brasileira executou. Quem não se lembra do bordão “com Manah, adubando dá”. Nosso entrevistado chegou a ocupar o cargo de secretário da Agricultura do Estado de São Paulo, na década de 60. Com a pauta em mãos, fomos recebidos pontualmente às cinco horas da tarde. Com passos firmes e ágeis, a primeira característica que saltou foi a amabilidade, uma informalidade formal. Ele nos levou a uma ampla sala de reuniões, permeada por enormes fotos de satélites, de todas as regiões do Brasil. Acomodados, sem que perguntássemos nada, Fernando disparou um discurso pleno de vitalidade, imaginando que a conversa fosse sobre o Nelore: – Em Brotas nós começamos (a Manah) com o Nelore no início da década de 70. Foi uma decorrência dos nossos investimentos no Pará, porque havia lá um sistema de incentivos, permitindo que 50% do investimento fossem deduzidos do imposto de renda. Até então a Manah não tinha qualquer relação com pecuária. Então, começamos. Aí há uma passagem muito curiosa. Eu não tinha experiência na Amazônia nem no Nelore e queria encontrar uma pessoa que não me deixasse errar muito. Ela foi Nhonhô de Almeida Prado. O Nhonhô já era uma espécie de guru da família Junqueira. Ele foi um gentleman e nos ajudou muito, apontando para as coisas que nós devíamos prestar atenção. Uma delas foi a seguinte: “no Nelore você não erra”. Ouvimos e optamos pelo Nelore. Havia na época também um incentivo para reflorestamento no Estado de São Paulo. Avaliamos, ponderamos e concluímos que valia a pena fazer um novo investimento. Foi quando Revista NELORE compramos a fazenda em Brotas (SP), visando o reflorestamento. O incentivo fiscal era bastante vantajoso. E logo veio a idéia de fazer Nelore também em Brotas, de modo que pudéssemos produzir tourinhos, reprodutores para servir na fazenda do Pará e até para terceiros. Mas tive um ponto de muita dúvida. Para fazermos melhoramento de reprodutores, precisávamos ouvir vozes independentes, alguém que poderia nos ajudar. Surgiu então o nome do professor zootecnista Jan Bonsma, da África do Sul. Ele já havia estado no Brasil por três ocasiões. Entramos em contato e ele veio por conta da Manah. Para recebê-lo e valorizar a oportunidade, organizamos um seminário (1982). Ele disse tudo que pensava. Reunimos na Fazenda Mundo Novo 20 cientistas de melhoramento animal topes no Brasil. Ficaram quatro dias na fazenda e estes homens nunca mais esqueceram este encontro. Este é o nosso espírito. “A família é sempre um pouco sacrificada quando se trabalha muito” A braquiária e o Nelore fizeram as grandes revoluções na pecuária brasileira Após breve pausa, enquanto o lenço percorria o rosto contra o suor, Fernando Cardoso prossegue, nos impedindo de colocar uma questão ou pergunta: – Inicialmente nós não sabíamos bem qual caminho tomar dentro do Nelore. O que estava na Ano XXI – Setembro 2011 - 128 - moda era o touro Chumak, filho de Karvadi. Conseguimos então o maior estoque de sêmen de Chumak do Brasil. Nós nos dávamos muito bem com um agrônomo de Sertãozinho (SP), com muito mérito, Fausto Pereira Lima. Ele conta que havia feito um julgamento de gado Nelore, em Curvelo (MG), e que havia ficado impressionado. Perguntei o que era e ele me disse que se tratava do gado originado do Sr. Manoel Lemgruber, importado para o Brasil nos anos de 1870, primeiramente para a região de Nova Friburgo, mas que ao longo dos anos foi se espalhando pelo Brasil. O gado dele nunca cruzou, ficou naquela linhagem antiga. Fomos, então, para Curvelo e propus dar continuidade à seleção daquele gado. Tivemos a coragem de vender o maior estoque de sêmen Chumak que havia para comprar o gado do sr. Geraldo de Paula. Houve, ainda, uma segunda viagem a Curvelo para comprarmos um tourinho de nome Jango, que estava muito famoso. Mas não conseguimos que ele vendesse. Aí eu disse no final da tarde: “se o senhor não quer vender este tourinho, vende o pai dele!”. Compramos, então, o Mistério. A partir dali só utilizamos reprodutores filhos deste touro e batizamos a linhagem com o nome de Lemgruber, homenageando o Sr. Manoel. Depois compramos do mesmo Geraldo de Paula um lote de vacas da mesma linhagem, porque nós não tínhamos fêmeas fechadas. Uma de nossas vacas, uma neta de Chumak, acasalou com um touro chamado Barranco, que veio bezerro de Curvelo, parindo um touro excelente, o Charuto. O Arnaldinho (Arnaldo de Souza Machado Borges), lá de Uberaba, avaliou o animal e o achou muito promissor. Logo em seguida, a Lagoa de Serra se interessou e o comprou, com o compromisso de reservar para nós uma quantidade de sêmen, de modo que continuássemos utilizando aquela linhagem. Charuto, aliás, era o apelido, pois ele foi registrado como 1646 da MN. Deixou uma criação. O Ubaldo Oleá fez lá em Marília um obelisco com os dez touros mais expressivos do Nelore e lá está o Charuto. Esta é a minha pequena história no Nelore. Depois a Manah foi vendida e os novos proprietários não se interessaram em tocar o negócio pecuária. Meus filhos decidiram, então, comprar o rebanho de Brotas. Trouxemos de lá cerca de quatro mil cabeças de gado para Uberaba. Uma aventura que durou cerca de quatro meses. Vale lembrar que depois de vendido o Grupo Manah, em 2000, o então empresário passou a dedicar-se exclusivamente à agropecuária. Logo depois, em 2001, criou a Fundação Agrisus – Agricultura Sustentável –, com o intuito de promover a conservação da fertilidade da terra e do Revista NELORE ambiente envolvido, tendo em vista uma agropecuária economicamente sustentável. A Agrisus oferece recursos para capacitação profissional e incentivo à pesquisa agronômica, no interesse de estimular a difusão de tecnologias capazes de assegurar a fertilidade da terra de forma sustentável. Antes de mais nada, a entidade tornou-se um ambiente favorável à discussão das principais questões do campo e um celeiro de idéias que geram respostas. Mas de volta à entrevista, fomos mais uma vez atropelados pelo vigor do entrevistado, que não desgarrava da palavra e seguia encontrando uma infinidade de temas. Depois entendemos que se tratava de assuntos aos quais ele dedicou toda uma vida. Nossa pauta inicial realmente pareceu sucumbir frente ao encantamento com que falava Fernando, além de uma especial habilidade em entrelaçar diversos assuntos: – Quero pedir para que me dêem um exemplo de como produzir alimento nas sombras das árvores. Eu quero que me dêem um exemplo de uma civilização moderna que não tirou suas matas naturais. Tirar a sombra para deixar entrar a luz é uma necessidade da vivência humana. A escala em que se fez isso depende muito. Na Europa cortaram praticamente tudo. Na Inglaterra, também. Na Alemanha, tudo, já que a Floresta Negra é uma brincadeira. E agora virou moda este assunto de floresta em pé. Pior que ninguém aborda estudos científicos mais sérios. Abrigar a fauna? O homem não vive disto. Tirar a mata é uma questão de expansão para capitalizar aquilo que temos: o Sol, a chuva e o calor. O vegetal é muito conhecido. De noite ele absorve oxigênio e emite gás carbônico; de dia ele absorve gás carbônico e emite oxigênio. Quando os galhinhos caem no chão, porque a floresta não cresce até o céu, e quando apodrecem, eles retiram oxigênio e emitem gás carbônico. A floresta tira gás carbônico e emite oxigênio. Nessa mesma floresta, quando seus detritos apodrecem, retira oxigênio e emite gás carbônico. Todos os estudos dizem o seguinte: toda floresta em equilíbrio tanto absorve quanto emite. Esta questão do gás carbônico existe, inclusive conosco. A queima de carvão mineral, a queima de petróleo em suas várias formas e a queima da rocha calcária para fazer cimento, tudo isto tem números astronômicos. Mas se fizermos uma comparação entre floresta e a queima de fósseis, estes números são irrisórios. Quando a floresta queima ela libera gás carbônico. Mas quando vem a capoeira, ela reabsorve grande parte do gás. A braquiária reabsorve também! Isto não foi contabilizado. Derruba-se a mata e no queimar libera gás carbônico, mas grande parte é reabsorvida pela Ano XXI – Setembro 2011 - 129 - pastagem, não no total, mas boa parte. E continua: – Basta criar o vício de observar todo dia o movimento das nuvens. A mata é decorrente da chuva e não o contrário. Se não chovesse seria deserto. A chuva vem do mar. O mar, na zona equatorial, é quente, evapora, e a terra caminha por debaixo da calota indo de encontro a esta massa úmida. São os ventos alísios que entram na Amazônia. O clima é oceano, Sol e rotação da terra. Depois vêm alguns fatores menores. Estes são os grandes. E talvez se possa incluir as grandes cadeias de montanhas. Dizer que a floresta interfere no clima é tolice. Em São Paulo chove 1.200mm e quando São Paulo era só mato também chovia os mesmos 1.200mm. O mesmo ocorre no Norte do Paraná, onde chove 1.500mm e quando era só mato também chovia 1.500mm. Bem! Certos de que não podíamos como ele, decidimos nos unir a ele. Indagamos sobre quais seriam as revoluções ocorridas no campo, ao longo dessas décadas. Fernando foi taxativo: São quatro “Fernandos Penteados Cardosos” – A braquiária. Na década de 70 nós acreditávamos que podíamos formar pastagens no cerrado. Tínhamos que tirar o cerrado para deixar vir o Sol. E para amortizar a formação destas pastagens plantávamos arroz. No segundo ano a cultura começava a sentir com a concorrência das ervas invasoras. Na época não existiam os herbicidas tão especializados quanto os de hoje. Então, no segundo ano, misturávamos sementes de braquiária ao adubo e fazíamos a segunda lavoura de arroz. Colhíamos e simplesmente estava formado o pasto. A braquiária permitiu que este sistema fosse coroado de êxito; ou seja, permitiu a formação ao redor de 70 milhões de hectares de pastos, após o arroz, para amortizar as despesas. Formar pasto em terra boa já era uma estratégia conhecida. Plantávamos capim Jaraguá, Revista NELORE resultando, por exemplo, nas famosas invernadas de engorda de Barretos (SP) e Araçatuba (SP). Mas no Cerrado não era assim. Cerrado só com braquiária, mesmo. Ela revolucionou a disponibilidade de forragem no Brasil. A outra revolução foi a introdução do Nelore. Nós não teríamos hoje o rebanho de corte que temos sem ele. A raça cria fácil. Isso sem falar da sua capacidade de passar fome. Visitando certa vez uma fazenda no Pantanal vi que o Nelore Ano XXI – Setembro 2011 - 130 - caminhava um dia para chegar onde havia pasto e outro voltava para poder beber. Era um vaivém: um dia com fome, um dia com sede. Só o Nelore para suportar isso e ainda criar. O telefone tocou e logo chamou a atenção do nosso entrevistado. Tocou uma segunda vez e outra em seguida. Ele levantou e atendeu. Ficamos em silêncio, certos de que teríamos nossa chance. Ao desligar, antes de se sentar, emendou: “Vovotur” Uma vez ao ano, Fernando Penteado Cardoso viaja com a família pelo “Vovotur” – Gado é comida. Gado transforma forragem. Sobrevoei a região de Alta Floresta depois de 30 anos e vi pastos muito bem formados. Mas sabemos que a capacidade de sustento baixou. Um pasto novo naquelas terras da Amazônia comporta, nos dois ou três primeiros anos, quatro cabeças por hectare; depois de trinta anos, uma, no máximo duas, quando a terra é muito boa. Assim, a oferta de forragem está se esgotando. Não tenho dúvida que a nossa pecuária vive um momento de contração e de dificuldade para produzir bezerros, por exemplo. Está tudo ficando mais difícil. Se não tem forragem, não tem boi gordo, não tem a carne. A produção de forragem apresenta uma queda inexorável de quatro cabeças por hectare para uma cabeça por hectare até que um dia a prática da adubação for econômica. E hoje não é. Econômico é pasto novo em terra boa. Levar adubo a mais de três mil quilômetros não é econômico. É mais econômico ficar com uma cabeça por hectare do que querer voltar para duas ou três cabeças por hectare. Enfim, perguntamos: – Isto não é um impasse muito grande para as nossas pretensões? – Claro que é! Estruturamos uma pecuária baseada na abertura de mais de 15 a 20 milhões de Revista NELORE hectares de pastos de primeira na mata e de repente dizem que não pode mais. Então o panorama é outro. Este pasto novo na mata virgem decai na sua capacidade de sustento, conseqüência normal da perda de fertilidade. Não tem jeito. Quando se tem uma mina de estanho, esta mina uma hora se esgota. O pasto novo em terra boa é uma mina nova. Põe-se a pastagem e o boi come o capim. Este processo vai se repetindo e esgotando a terra. O problema só não é tão grave por dois motivos. Primeiro, porque a nossa pecuária evoluiu para boa parte do boi não precisar do pasto para engordar. Quando ele engorda com milho a demanda dele por pasto é menor. Mas isto tem limites de preço. Entretanto, há um caminho fantástico e atraente: o pasto de inverno depois da Ano XXI – Setembro 2011 - 131 - cultura de verão. O que se pode fazer de pasto após soja ou após a cultura de milho de verão é uma coisa enorme e barata. Aduba-se para soja e ela precocemente sai em janeiro ou fevereiro, permitindo que se plante o pasto no dia seguinte. Plantar capim depois da soja é um estouro e barato. É a única forragem que tem preços equivalentes aos preços da forragem na mata nova. Demora um pouco para engrenar. Pelos números da Agrisus, fornecidos pelos projetos que financiamos, fazer pasto depois de soja é possível, com resultados em cem dias. Ganha-se mais dinheiro fazendo o pasto depois da soja que com a própria soja. E olha que sua produção não é barata, pois envolve uma série de insumos e maquinários, sem contar a infra estrutura de armazenamento. Engordar um boi em um pasto de inverno depois da soja custa um terço do boi engordado no confinamento. O acabamento é o mesmo. O confinamento representa 10% do gado abatido, enquanto o restante abatido foi engordado em invernada. Este processo tem tudo para engrenar. Adiantados na conversa, finalmente Fernando Cardoso atende a uma das demandas da pauta inicial e fala sobre a família, esboçando emoção: – A família é sempre um pouco sacrificada quando se trabalha muito. Nessa área, normalmente a gente viaja muito. Então a família em geral sofre um pouco, principalmente nas ausências. Mas há uma compreensão e vamos tocando. Eu sou um privilegiado. Tenho uma mulher que compreendeu as minhas ausências, entendeu o meu trabalho no domingo, o meu trabalho de noite. Além do mais tenho seis filhos sadios, responsáveis por 20 netos sadios e mais 28 bisnetos também sadios. Isto é uma bênção! É uma aventura e tenho de valorizá-la. E não é porque eu tenha méritos, simplesmente, porque aconteceu. Então nos demos por satisfeitos, estarrecidos e catamos o rumo de casa. Conversa mesmo, só do congestionamento. Foi um grande dia em nossas carreiras. Em 1995, recepção a Norman Borlaug, pai da Revolução Verde.