_ PAISAGEM DIAGONAL: “o espaço háptico” de Gilles Deleuze e Felix Guattari na criação de formatos audiovisuais a partir da interface on-line. Eduardo Salvino1 _ Resumo Poderíamos pensar essa interface gráfica a luz de um dos modelos de Deleuze e Guattari usado para discorrer sobre os conceitos de espaço “liso” e espaço “estriado”, “maquinas de guerra” e “aparelhos de captura”: o espaço “háptico”? Assim objetiva nesse artigo refletir sobre interface gráfica (com seu banco de dados) como potencializadora desse “espaço háptico”, esse que tem como característica uma variação contínua de suas orientações, referências e junções. Nesse breve artigo observaremos alguns audiovisuais a partir de banco de dados da web que potencializam tais manobras. Palavras-Chave agenciamento; audiovisual; banco de dados; Interface; tags. _ O espaço liso, háptico e de visão aproximada, caracterizase por um primeiro aspecto: a variação contínua de suas orientações, referências e junções; opera gradualmente. Por exemplo, o deserto, a estepe, o gelo ou o mar, espaço local de pura conexão. Contrariamente ao que se costuma dizer, nele não se enxerga de longe, e não se enxerga o deserto de longe, nunca se está ‘diante’ dele, e tampouco se está ‘dentro’ dele (está-se ’nele’...). As orientações não possuem constantes, mas mudam segundo as vegetações, as ocupações, as precipitações temporárias (Deleuze e Guattari, 1980: 204). Falar em audiovisual a partir da Interface da Internet, um lugar sem demarcação, ou onde a paisagem não tem linha, não tem horizonte, somente conexões, onde os “fios” se tocam a propor experiências, é, também, refletir sobre o espaço “háptico” (1980: 213), um dos modelos dos filósofos Gilles 1 Eduardo Salvino (ESCOLA GUIGNARD/UEMG, Minas Gerais, Brasil) artista multimídia, Atualmente desenvolve pesquisa de mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica - Web Arte e novos Formatos Autorais, COS/PUCSP. Deleuze e Félix Guattari usado para discorrer sobre os conceitos de “liso” e “estriado”, conceitos presentes no livro Mil Platôs Volume 52. Referindo-se às faturas artísticas processadas na web, já que esta de natureza de inicio lisa e que ficou estriada devido à demanda do capital, marcação e mensuração desse espaço para propaganda, pesquisa para consumo, etc. Essa “captura”, “esquadrinhamento”, são processos análogos aos feitos pelos navegadores ao adentrar o mar e mapeá-lo, medindo-o ao redor do globo. No livro Mil Platôs Deleuze e Guattari esclarecem que é um conjunto de características tais como; um movimento artístico, científico e “ideológico”; é que pode ser uma máquina de guerra potencial, precisamente na medida em que traça um plano de consistência, uma linha de fuga criadora, um espaço liso de deslocamento, em relação com um Phylum (...), de maneira a definir uma máquina de guerra, assim como um nômade. Reflexões a partir daí sugerem contextos da comunicação, como a web, mobilizadores dessa “Maquina de Guerra”, estas dependem de uma série de articulações envolvendo todo um planejamento, ou um como propõem Deleuze e Guattari um Phylum maquínico, uma articulação contextual e seus desdobramentos, em sintonia com agenciamentos artísticos em novas mídias. Estes trabalhos constituem possíveis visões sobre intervenções do artista “nômade”, operando dentro de espaços “estriados”, desenvolvendo sua poética, construindo territórios “lisos”, instaurando ações com nuances: políticas, sociais e filosóficas. Celebrando a “desterritorialização”, o agente / artista pode enganar o “aparelho de captura“ (o que institui), evitando assim a “reterritorialização”, o funcionamento programado da Internet. Como pensar os conceitos: “liso”, “estriado”, “aparelho de captura” e a “máquina de guerra” nesses rearranjos imagéticos que são os audiovisuais hoje a partir da interface (banco de dados e algoritmos)? A interface, criada ou utilizada pelos agenciadores como espaço móvel — dados disponíveis para interação — no qual o usuário, agindo nessa interface, percorre esse labirinto que é o espaço da Internet, colaborando com os desdobramentos do audiovisual e formando uma área, aproximada, as quais poderiam denominar como “as extremidades do 2 A Deleuze e Guattari, Mil Platôs Vol. 5, Ed, 4 Ed, pág. 204, 1995. vídeo” 3. A apropriação do título do livro da critica de artes visuais Christine Mello se faz pertinente devido a deslocamentos e hibridez do vídeo, assim faz se necessário observar o trânsito deste nos novos meios, principalmente na interface da web. Em “as extremidades do vídeo”, a autora destaca a multiplicidade de meios utilizados pelos artistas brasileiros na exploração do audiovisual. Mello parte das extremidades, pontos de expansão com outras formas de criatividade, para entendê-lo em toda a sua heterogeneidade e alcance. Mostrando-nos o vídeo, hoje, inserido num contexto maior, a autora nos faz refletir sobre vídeoinstalação, espetáculos eletrônicos de VJs, videogame, experiências em rede of e on-line, etc. Segundo Mello: “O vídeo é reconfigurado em atuais circuitos de comunicação, tais como websites, blogs, estética do videogame, que descentralizam seu código, fazendo o compartilhar a lógica das redes digitais, dos arquivos e dos ambientes virtuais” (Mello, 2008: 196). O usuário interfere na interface, um ambiente com seus blogs com micronarrativas, seus websites com web-câmeras, enfim gerencia on-line o banco de dados audiovisuais na rede. Esse navegador não tem como se prevenir dos nós da rede, de corredores que se abrem e desembocam numa investigação junto ao incerto, ao aleatório e ao imprevisto, presentes na web. Precisamente a interface gráfica como suas várias janelas, seus elos e sobreposições, onde a cada novo acesso permite-se um reordenar constante dos excessos de informações imagéticas. “... esse filtro cultural do mundo o HCI (humancomputer interface) onde toda a cultura, passado e presente, veio a ser filtrada” (Johnson apud Manovich, 2001: 64). Mas o mesmo usuário encontra uma rede agora institucionalizada, medida, com suas múltiplas partições esquadrinhadas. Como ocupar esse espaço estriado? Isso implica pensar; outra lógica de ocupação, uma reorganização do espaço, um lisificação... O navegador, contudo, investindo em uma instância artística, pode interferir na interface da rede, ao burlar os sistemas de captura nela encontrados, ainda mais, se pensarmos tais ações sob duas definições de objeto digital citadas por Dietz no 3 MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Ed. SENAC, 2008. seu texto Beyond Interface: Net Art and Art on the Net II, ao problematizar os nomes dados a esses objetos por artistas que trabalham com a arte na Internet. A primeira é cunhada por Biggs: “arte interativa”, e a segunda por Simon, que fala que cada ícone na Internet é essencialmente um “jogo das instruções” (Dietz, 1998). Em A tecnologia na arte, o doutor em Estética e Artes Visuais Edmond Couchot (2003: 25) contemporiza que a indústria nos oferece também um depósito de percepções e de comportamentos novos, onde o artifício domina a cada dia, um pouco mais sobre o natural, havendo um alargamento do campo “tecnestésico” que, a partir do século XIX, faz surgir um novo “habitus” perceptivo. Nas palavras dele; “... qualquer que sejam os indivíduos, as psicologias, as idiossincrasias de uns e de outros, as memórias ou as idéias, o uso das técnicas conforma cada um segundo um modelo perceptivo partilhado por todos---um habitus comum sobre o qual se elabora uma cultura e da qual a arte se alimenta” (2003: 16). Para esse crítico não são mais somente as técnicas de figuração que são atingidas pouco a pouco pelo numérico, mas a maior parte das atividades humanas. Vide código de barras, leitor biométrico, caixas eletrônicos de banco, etc. Segundo ele, pode-se adicionar a isso, uma hibridização entre o sujeito e a máquina, através da interface, como uma situação nova que propõe uma redefinição do sujeito (Couchot, 2003: 271). Podemos pensar, especificamente, a instauração de “espaços hápticos” (Deleuze e Guattari, 1980: 204) no alargamento do novo campo tecnestésico que se refere Couchot. Edmond Couchot nos mostra um exemplo de conceito tecnestésico, citando a condução de um automóvel. Segundo Couchot dirigir um veículo, um processo repetido e sistemático, molda nossa percepção global do espaço e do tempo, nossa audição, percepção de velocidade, da aceleração e da desaceleração, para o autor: “eu só posso viver esta experiência, que é também uma representação parcial e não simbólica do mundo, como ‘modalidade de uma existência geral’ (da qual nem eu e nem ninguém é o autor) e de representações comuns a milhões de outros automobilistas (Couchot, 2003:16)”. Ao apreciarmos alguns trabalhos dentro das novas capacidades operatórias que surgem com o fluxo na web e suas reverberações fora dela, observando a tensão e a recepção do imponderável na gênese criativa: teremos conteúdos e expressões em continuo movimento, acontecimentos, uma intensificação inserida numa extensão, “espaços hápticos” possibilitados por uma lisificação dos “espaços estriados”. Assim observaremos neste artigo, buscando apontar determinadas circunstancias que possibilitam “espaços hápticos”, alguns trabalhos que potencializam tais manobras. Tomaremos como exemplo, para esses “acontecimentos” em “espaços hápticos” os trabalhos dos artistas: Giselle Beiguelman, Lucas Bambozzi, Denise Agassi e Antoni Abad. . Os trabalhos que serão apresentados, sem a intenção de ilustrar o termo “espaço háptico” de Deleuze e Guattari, pretendem refletir sobre a interface da Internet pensada como operações poéticas visuais, articulando as questões: inserção social e fruição da obra nas suas mudanças de estatuto e alcance. Os artistas dessas obras lidam com as interfaces, a estética do banco de dados (imagens, sons, gráficos, etc.), programas, as formas de indexação de conteúdo, o institucional, a legalidade, regras de operação e a produção de informação. Operando nos meios da comunicação, esses agenciadores atuam de modo a penetrar e discutir o sistema que engendra esses circuitos, trabalhando a metalinguagem, abarcando o social, o político e o filosófico, fazendo do público seu cúmplice, ao deixar margem para uma fruição de arte menos contemplativa. A artista Giselle Beiguelman, por exemplo, agenciando e usando o meio tecnológico como mote operativo, interface móvel, desenvolve projetos envolvendo dispositivos de comunicação móvel desde 2001 e vem pensando e experimentando dentro das novas situações criadas na confluência entre arte e os meios. Com o trabalho "Poétrica", focando uma audiência dispersa, em trânsito pelos congestionamentos de carros, ela se apropriou dos “banners” eletrônicos da cidade de São Paulo. O acesso ao projeto se dava pelo site do trabalho ou envio de mensagens e torpedos, de no máximo 60 caracteres de fontes não-fonéticas, dando um novo significado ao texto inicial,, pelo público, via celular à rede Eletromídia num horário, alugado, determinado pela a artista. Uma das questões dos trabalhos de Beiguelman é questionar a figura do artista. Em “Poétrica”, a intenção da artista era criar um contexto para que qualquer um ocupasse o lugar dela. Beiguelman diz: “Eu não trabalho com estética. O que me interessa são os limites entre o público e o privado, a arte e a propaganda, a imagem e o texto” (Assis, 2003). Para a artista se houvesse mais intervenção nos painéis e conseqüentemente na cidade haveria mais criatividade, mais anonimato. Beiguelman produziu outro trabalho: “Egoscópio”, também combinando painéis eletrônicos e web, pensando o sujeito além do corpo físico e pontual, mapeando as identidades fluidas de um ser pós-subjetivo, sem sexo, idade, nem nacionalidade. Um trabalho sobre um ser totalmente mediado por mídias, em rede, onde a artista enviava perguntas e o espectador co-autor enviava sites correspondentes àquela pergunta, uma narrativa coletiva, criando esse ser múltiplo, caleidoscópico, que se realizava pela mídia e na mídia um sujeito over midiático, sendo tudo e nada ao mesmo tempo. Para a artista (Beiguelman, 2002), “estamos configurando novas formas de criação que prescindem da noção de autoria, de um eu soberano e onipotente, isso é o melhor e o mais interessante dos fenômenos que estamos vivendo”. Hoje, Giselle Beiguelman envolve cada vez mais plataformas nos projetos (celulares, palms, plotters, DVDs dentre outras), além de produzir vídeos que utilizam sonorização de outros artistas postada na net. A partir da exposição de Beiguelman sobre seu “Egoscópio”, para pensar o audiovisual mediado, em rede, principalmente no que se refere à utilização maximizada da interface (utilização de banco de dados, aspecto randômico e labiríntico), pretende-se destacar proximidades e diferenças a partir do levantamento dessas gradações performáticas; interferências nos padrões estabelecidos, códigos, domínio dos artistas sobre suas obras após o início do trabalho, refletindo sobre o limiar entre proposição estética e entretenimento em ações audiovisuais na web. Assim refletir criticamente, também, as ações de outros artistas tais como Lucas Bambozzi, Denise Agassi e Antoni Abad sob a luz do espaço “háptico” de Deleuze e Guattari, é pensar não em um espaço fechado, uma instancia delimitada, mas talvez, pensar multiplicidade com dimensões crescentes, podendo recuar e até mesmo explodir. Já que para os autores as passagens entre espaço “liso” e espaço “estriado” não são objetivas e certeiras, mas perturbadoras, que as diferenças se dão abstratamente, podendo haver misturas; “uma arte nômade” (Deleuze e Guattari, 1980: 203). “Uma arte nômade”, sem polaridades, assim como a arquitetura árabe que coloca embaixo o leve e o aéreo, ao passo que o sólido ou o pesado se situam em cima, numa inversão das leis da gravidade em que a falta de direção, a negação do volume, tornam-se forças construtivas. “Um absoluto nômade existe como a integração local que vai de uma parte a outra, e que constitui o espaço liso na sucessão infinita das junções e das mudanças de direção” (Deleuze e Guattari, 1980: 205). Deleuze e Guattari nos mostram reflexões densas ao acompanhar / observar processos de criação artística em pintura, as quais foram expostas em dois livros desses autores. O primeiro livro é “Lógica da Sensação” o qual Deleuze discorre sobre o processo pictórico do artista Francis Bacon, quando esse usa seu “diagrama” (termo que esclareceremos a seguir) e o segundo é o já citado livro, nesse artigo, Mil Platôs de Gilles Deleuze em parceria com Félix Guattari, especificamente na parte que eles falam do processo pictórico de Cézanne, com as suas leis e regras próprias de operação pictórica. Para nos auxiliar nas reflexões sobre o modelo de “espaço háptico”, da dupla, no que se refere a audiovisuais a partir da interface da Internet, faremos um ajuntamento, uma associação, do “diagrama” de Bacon e do processo pictórico de Cézanne, porem, antes, discorreremos sobre tátil, óptico e olho tátil. Um amigo meu que veleja diz que, quando não está com a barra do leme na mão, tem pouquíssima sensação do que está acontecendo com o barco. Não há dúvida de que navegar proporciona uma sensação renovada de estar em contato com algo, uma sensação que nos é negada por nossa vida automatizada, cada vez mais protegida (Hall, 2005: 75). O antropólogo e investigador intercultural Edward T Hall em seu livro “A Dimensão Oculta”, o qual discorre sobre percepções culturais do espaço, ainda nos esclarece que “a imagem inconsciente que temos de nós mesmo é composta dos fragmentos de feedback sensorial num ambiente em grande parte fabricado” (Hall, 2005 : 77), ou seja, levamos uma vida completamente mediada. Assim recorremos à crítica que o pensador, visionário, Vilém Flusser faz ao afirmar que: “a ‘sociedade informática’ desse futuro não muito distante será sociedade composta por tateadores de teclas em busca de informação nova. E isto, precisamente por ser sociedade programada para tatear sobre teclas” (Flusser, 2008: 38). Como negociar, e perpassar a mediação, interferir com ações e proposições criticas na programação. Parafraseando Flusser “liberdade como deliberação no interior de um programa” (Flusser, 2008: 38). Segundo o arqueólogo das mídias Erkki Huhtamo em seu artigo “TWIN- TOUCH-TES-REDUX”, que faz uma abordagem arqueológica da mídia para arte, interatividade e tatibilidade: esclarece-nos que na prática real do olhar, o “óptico” e o “háptico” nunca podem ser inteiramente separados. Pelo contrário, o observador negocia entre esses dois modos, hora um, hora outro. “A idéia de uma ‘visualidade háptica’ implica a transposição de qualidades do toque para o domínio da visão e da visualidade. Ela confronta indiretamente a questão da dimensão física do toque, por meio de uma operação corporal que envolve os olhos e o cérebro” (Huhtamo, 2007: 114). Huhtamo nos fala, também, que para o artista Marcel Duchamp, em vez de se apegar aos efeitos da superfície como os impressionistas fizeram, a arte teve de se tornar “cerebral” (Huhtamo, 2007: 119), penetrar além da retina, além do puramente visual. O espaço háptico implica operações com dinâmicas próprias; um acontecimento sem mensuração, dinâmica essas potencializadas na interface da web. Vamos refletir num olho como objeto mais tátil do que ótico, uma visão aproximada; “o liso”. Um olho que se soma aos outros órgãos que possuem capacidades táteis. Deleuze em seu livro “lógica da Sensação” fala do “diagrama” que o pintor Francis Bacon usa como recurso. Esse é um “diagrama manual” (Deleuze 2007: 160) formado por manchas e traços insubordinados. Com ele há uma desorganização da figuração criada por um “espaço táctil-óptico” préexistente, daí surge uma forma de natureza diferente chamada figura, assim teríamos uma função háptica em decorrência de ultrapassagem visual sobre a dualidade do táctil e do ótico. Pois nesse ínterim aconteceria uma insubordinação da mão em relação ao olho, e vice versa. Segundo Deleuze para Francis Bacon “o diagrama não deve produzir catástrofe. Sendo uma zona de borragem, ele não deve borrar o quadro... em suma, sendo manual, ele dever ser reinjetado no conjunto visual em que se desdobra em conseqüências que o ultrapassam” (Deleuze, 2007: 160). Atentemos para os questionamentos, a seguir: “... é um espaço liso que é capturado, envolvido por um espaço estriado, ou é um espaço estriado que se dissolve num espaço liso, que permite que se desenvolva um espaço liso?” (Deleuze e Guattari, 1980: 180). Assim, nos dizeres de Deleuze e Guattari, corre se o risco de se perder sem referência de espaço “liso” e nascer a “estriagem”, a mensuração. Entendemos um pouco mais essa definição de “espaço háptico” proposta pelos autores Em Mil Platôs, quando estes nos mostram sutis diferenças nos modelos de ação: no ato de pintar do precursor do cubismo Cézanne no processo de construção artística deste em relação ao uso do diagrama feito por Bacon para construir seus quadros (como visto acima a partir do livro lógica da sensação). Para esses autores: “ademais, é sempre preciso corrigir por um coeficiente de transformação, onde as passagens entre estriado e liso são, a um só tempo, necessárias e incertas e, por isso, tanto mais perturbadoras” (Deleuze e Guattari, 1980: 203 e 4). Continuam os autores se referindo ao pintor, “É a lei do quadro, ser feito de perto, ainda que seja visto de longe, relativamente” (Deleuze e Guattari, 1980: 204). Pensemos uma analogia relativa ao liso e ao estriado, em uma negociação, onde Cézanne investe nas regras e intuições com uma dinâmica de troca intercambiante e contínua durante a feitura do quadro. Continuam os autores: “Pode-se recuar em relação à coisa, mas não é bom pintor aquele que recua do quadro que está fazendo” (Deleuze e Guattari, 1980: 204). Isso se aplica também em relação ao objeto referente, pois Cézanne falava da necessidade de já não ver o campo de trigo, de ficar próximo demais dele, perde-se sem referência, em espaço liso. A partir desse momento pode nascer a estriagem; o desenho, a geometria e mensuração. “Sob pena de que o estriado, por sua vez, desapareça numa ‘catástrofe’, em favor de um novo espaço liso, e de um a outro espaço estriado” (Deleuze e Guattari, 1980: 204). O espaço liso é um campo sem condutos nem canais. Um campo, um espaço liso heterogêneo, esposa um tipo muito particular de multiplicidades: as multiplicidades não métricas, acentradas, rizomáticas, que ocupam o espaço sem medi-lo, e que só se pode explorar “avançando progressivamente” (Deleuze e Guattari, 1980: 38). Um avançar, não só “linkar”, mas torna-se elo sob a perspectiva apresentada acima. O “espaço háptico”, no que se refere a audiovisuais a partir da interface da Internet, pensado como uma instancia que se instaura nesse processamento da construção do audiovisual, “o acontecimento: (um absoluto que se confunde com o próprio devir ou com o processo)” (Deleuze e Guattari, 1980: 2005). Como o pensado por Deleuze e Guattari o olho como função háptica, visão próxima sem espaço visual, céu e terra da mesma substancia, sem linha divisória, sem linha do horizonte, sem perspectiva, sem limite, sem contorno forma e centro, um processo criativo análogo à arte nômade, precisamente à “arquitetura árabe”. No processo de apreensão, recepção, contato ou o que quer que seja o elo com o banco de dados da net, a proposta é uma “paisagem diagonal”, onde o navegador se torne agente diagonal, “desentorpecido” (flusser 2008: 69) dos “gadgets” programados. “Velejador” atuante criticamente na interface da rede, na seara WWW. Que esse agente quebre com a ordenação. Que esse navegador deslize, mova e estenda, também, as terras cultiváveis, deixando de ser, ele, também, porque não, um “gadget” Lacaniano. Pensemos, aqui, um prolongamento da “arte nômade” (Deleuze e Guattari, 1980: 204): “com animais retorcidos sem terra, solo que constantemente muda de direção, próximos a uma acrobacia aérea (...) o conjunto e as partes dando ao olho que as olha uma função que já não é óptica, mas háptica”. Os procedimentos contemporâneos ligados, principalmente, a arte digital e suas interações com as interfaces; a obra em processo durante sua recepção nos apresenta uma dinâmica de redundância, de repetição. Como introduzir elementos não previstos nas operações com novos meios? Não ser somente um mero funcionário do aparelho (flusser, 2002), projetista de jogos, um programador de videogames, um simples repetidor de estruturas, imagens, personagens e interfaces que já existem? Enfim “programa” e ou “gadget” responsáveis por entupir o sistema de consumo com estruturas que se repetem. No que se refere ao audiovisual via banco de dados na interface é possível driblar essa redundância e essa obediência tanto no papel de produtor / programador / artista tanto quanto receptor / interator, quebrar o “totalitarismo programador”, veremos isso nos trabalhos “YOUTAG”; “Subindo a Torre Eiffel”; “Canal Motoboy” e “edo(ar)do”, respectivamente. Lucas Bambozzi partindo do banco de dados, material existente na Internet, tais como vídeos e fotos, cria o “youTag”; um dispositivo de busca de palavras-chave na rede como forma de criação de peças audiovisuais remixadas, re-significadas. Esse trabalho é segundo Bambozzi: “um gerador e d-indexador de vídeos on-line que propõe um deslocamento do estatuto de estabilidade associado aos tags e sistemas indexadores”. Utilizando-se do randômico o trabalho potencializa as tags como somente uma referencia inicial de significado, sem o determinismo de representação, descrição fiel do conteúdo acessado: coisa, palavra, forma; buscada, pesquisada na rede. Não estaria Bambozzi extraindo informações novas do aparelho? Ao propor uma nova estrutura narrativa, uma nova temática. Nessa nova interface, criada por ele, o artista dribla a redundância, engana o aparelho (banco de dados), conseguindo fugir do caráter de “entropia da máquina” (Flusser, 2007). Segundo Bambozzi, “Ironicamente, seria como se houvesse um filme/vídeo lógico associado projeto YOUTAG sugere um a cada palavra de uma modelo de desnormalização, uma sinopse”. “O ‘intervenção econômica’ nos processos de circulação e fruição de formatos audiovisuais” Disponível em: < http://www.youtag.org/teste/>. Acesso em dezembro de 2008. Bambozzi é um dos “jogadores” (Flusser, 2008: 91), que gera informação nova, seja alterando a situação do jogar, seja faltando ao próprio jogo, deixando de ser funcionário da máquina. Ele observa que: “Entre tantas imagens produzidas diariamente por webcams, handycams e celulares, espontaneamente colocadas em circulação (25 mil uploads diários apenas no You tube – o que definitivamente não resulta em experiências com significados relevantes em termos de contundência ou discurso expressivo)”; vale a pena pensar em reaproveitá-las, em atribuir novas configurações de sentido ao encadeamento seqüencial ou causal entre vídeos – seja em um processo de re-significação ou desnormalização. Como os vídeos gerados: “meu amor” (Jakeline Santana, gerado em: 03/05/2009 www.youtag.org/44); “Aula São Paulo” (Marina Levy, gerado em: 29/04/2009 www.youtag.org/42); “calango morto” (Bárbara, gerado em: 26/04/2009 www.youtag.org/40). Esses vídeos fazem sobreposições de imagens díspares, sons eruditos e populares, imagens e sons originários, via youtube, em sua maioria de programas de TV. Denise Agassi com a obra em net art “Subindo a Torre Eiffel” (2009) é outro artista que faz refletir sobre as novas formas de construção do audiovisual, tais como conversão e edição de vídeos em modo on-line, se aproximando de um jogo interativo de palavras onde tags e dados são ferramentas, possibilitando a cada interação do usuário da interface a edição de filmes sem narrativas lineares. Agassi usa o banco de dados da web de uma forma a nos fazer refletir sobre o ser “turista” hoje: o turista como uma “personagem”; com sua máquina fotográfica se tornando somente mais uma “ferramenta” para um arquivamento de imagens. A partir desse trabalho de Agassi questionamos sobre porque não ser um turista alfabetizado? Penetrar na “caixa preta” (Flusser 2002), entender sua programação, interferir em sua lógica, processar as imagens criticamente? Vilém Flusser afirma, em seu livro Filosofia da Caixa Preta afirma que: “Toda crítica da imagem técnica deve visar ao branqueamento dessa caixa.” Ou seja, usar mais que o “input e output” (Flusser 2002: 15). A artista nos mostra que poderíamos nos tornar mais que um “turista” flusseriano ao não permitir que; estoque de “Souvenirs”, coleção de “Omiyage”, lembranças que possivelmente serão apagadas da memória das câmeras, celulares e ou computadores, não sejam apagadas de nossa memória, que essas imagens, que abarcam texto e contexto não sejam somente imagens técnicas a se transformarem em “magia programada”. “Tudo, atualmente, tende para as imagens técnicas, são elas a memória eterna de todo empenho” (Flusser 2002: 18). “Subindo a Torre Eiffel” compreende a criação de um sistema algoritmo que busca vídeos na rede, essa agenciando em tempo real, um fluxo informacional que através de um conjunto de tags, compreendidas como palavras que definem o acesso ao conteúdo on-line. As tags se referem aos registros de pessoas subindo a Torre Eiffel, em diversos idiomas: (inglês) Eiffel Tower elevator, (alemão) Auffahrt auf den Eiffelturm, (dinamarquês) i elevatoren af Eiffeltårnet,... e (português) subindo a Torre Eiffel. Segundo Agassi: “A utilização de diversos idiomas sugere uma Torre de Babel”. Assim como os trabalhos de Bambozzi a obra vincula-se a uma lógica de uma programação randômica que se vale de uma coleção de vídeos arquivada na rede, principalmente, no grande portal de vídeos “You tube”. Reitera a artista: “Este trabalho consiste em gerar um vídeo on-line, que fique o tempo todo se atualizando, ou seja, o vídeo não tem começo nem fim, ele é um sistema vivo, um work in progress.” (Disponível em: <http://www.deniseagassi.net/subindoatorreeiffel/>. Acesso em: 15 de abril de 2009). A programação é estruturada com tags, que dizem respeito a pessoas subindo a Torre Eiffel, o sistema busca vídeos no youtube, corta 45 segundos e exibe um seguido do outro. Há tags, palavras chave em 11 idiomas, sendo que, a cada nova busca, um idioma é escolhido, aleatoriamente. Dentro dos resultados encontrados no youtube, é sorteado um entre os 20 primeiros. “... O sistema fica funcionando full time, isso significa que o trabalho é parte de um sistema de ubiqüidade existente na rede”, expõe a artista. Esse trabalho não se limita a somente uma apresentação na Internet, em seus desdobramentos Agassi torna possível, como a montagem em um espaço expositivo (executada na Escola São Paulo, São Paulo em maio de 2009), novas leituras. Uma que se processa, dentre as leituras possíveis, referenciando formalmente a escultura “A Coluna Infinita” (1937-1938) uma obra do célebre escultor romeno Constantin Brancusi (1876-1957). Na Escola São Paulo ela apresenta o trabalho em três monitores, fixados na parede, um sobre o outro, verticalmente, que segundo ela: “corresponde aos três níveis de figurativização da Torre Eiffel. Desse modo, a apresentação acontece de forma simultânea nos três monitores, que exibem diferentes trechos dos vídeos”. É pertinente citar “Canal Motoboy”, outro exemplo de proposta artística que pode se configurar como audiovisual, um trabalho que dialoga muito bem com as questões: fluxo, espaço e tempo, uma intervenção artística e social que envolve espaços públicos reais através do uso de mídias móveis. Antoni Abad com seu projeto, iniciado em 2007 na cidade de São Paulo, “Canal Motoboy”, uma rede na qual motoqueiros, mediados por uma interface de computador, similar a um blog, trocam conteúdos produzidos em seus celulares: vídeos, fotos, textos e áudios. (Disponível em: < http://www.zexe.net/SAOPAULO/intro. php?qt=>. Acesso em: julho de 2008.) Poderiamos pensar esse funcionamento em rede, essa potencialização de trocas, as colaborações como um “mega-audio-visual”?. Assim como a artista Giselle Beiguelman, Abad nos faz pensar , usando da profusão de meios moveis e fixos, nas perspectivas e desafios de um ativismo atualizado às interfaces do www seja em redes fixas ou móveis, baseadas em sistemas locativos e imersos na trama da cidade, sua realidade social urbana. Beiguelman (2004) questiona se o futuro está na convergência de mídias ou se o que se impõe é um cenário de leitura distribuída em diversas mídias, respondendo à demanda de um leitor em movimento. É importante lembrar que os painéis eletrônicos utilizados pela artista em “Poétrica” e “Egoscópio” não existem mais, uma lei antipoluição visual aplicada pela administração pública proibiu tais meios de propaganda, além dos tradicionais cartazes e outdoors, na cidade de São Paulo. Mas isso não impede que Beiguelman e outros artistas criem intervenções, em outros meios de propaganda tais como: telas e monitores de tv, ônibus, computadores em estações de trens, aeroportos, alem de meios e espaços que se re-configurem ou surjam. Para a crítica em processo criativo em artes, Cecília A. Salles “a criação é, assim, um projeto vago e dinâmico, onde o artista é impulsionado a vencer desafios. Assim ao analisar processos criativos devemos observar as tendências dos mesmos que agem como rumos vagos direcionando os próprios processos” (Cadernos de Daniel Senise: Sótão de objetos pessoais/ Cecília Almeida Salles). Instabilidades, elos, cotidiano, movimento, cartografia e rede; ações e propostas para se pensar o agenciamento e a colaboração no processo criativo de uma obra de arte. _ Bibliografia BAMBOZZI, L.; BASTOS, M.; Figueira, Rodrigo M.(org.) Mediações, tecnologia e espaço público – experiências em mídias móveis. Editora Associação do Audiovisual. São Paulo. 2008. 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