Reforma do Poder Judiciário José Roberto Batochio e Sérgio Sérvulo da Cunha 1. Instituir o Poder Judiciário, significa, em vez de reprimir a conflitividade social, propor-se a resolvê-la com base no Direito Material. No Direito brasileiro, a amplitude desse compromisso é assinalada pelo disposto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Mais do que a garantia substantiva de acesso à prestação jurisdicional, contém-se, nessa norma, o princípio fundamental da função judiciária: sua coextensão com o Direito Material. No artigo 3º, inciso I, da Constituição, encontra-se o cerne do Direito Material, o propósito fundamental da União brasileira, com relação aos quais são instrumentais todas as demais normas do ordenamento: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Em face de tal disposição, nenhum tipo de conflito social fica à margem da competência jurisdicional; o Estado brasileiro deixou de lado toda a contenção da conflitividade social e assumiu como dever fundamental, para a sua resolução, garantir o acesso à prestação jurisdicional. Esse acesso compreende não só o direito de estar em Juízo, de aí produzir provas e alegações, mas também o direito de ser efetivamente ouvido; isso inclui a ampla defesa (Constituição, artigo 5º, LV), que significa o acesso a todos os meios processuais e recursais conducentes à decisão justa. O que vem, em ordem de importância, logo após o direito à prestação jurisdicional, e como seu natural corolário, é o direito ao devido processo legal (Constituição, artigo 5º, LIV). Esses são direitos de todos. O terceiro princípio do ordenamento é o da isonomia, que, no tocante aos dois anteriores, assim se expressa: justiça igual para todos. Perante a Constituição brasileira não pode haver uma justiça para o pobre e outra para o rico, uma para o cidadão e outra parta o Estado. 2. O nível de eficiência do sistema judiciário verifica-se no grau de efetividade do Direito Material. Esse o estação com que se mede o sistema judiciário: a comparação do perfil social com aquilo que o legislador previu como realização da justiça. “Se o Direito Material é bom, e quereis saber como é o Judiciário, olhai a realidade social”. O Estado peca por omissão constitucional se não garante igualmente, a todos, o acesso à prestação jurisdicional e ao devido processo legal. E ofende diretamente a Constituição se adota políticas inibidoras do acesso à prestação jurisdicional, políticas de contenção da demanda judicial, políticas restritivas do devido processo legal, políticas de contenção do uso dos meios processuais e recursais conducentes a uma decisão justa.O Estado falha se não aloca meios suficientes para o exercício da função jurisdicional. Falta o sistema judiciário se utiliza mal os meios que lhe foram alocados. Para essas insuficiências, é necessário corretivo. Não é possível, aos serviços públicos de saúde, circunscrever o atendimento aos portadores das doenças x e y, excluindo os portadores das doenças w e z. A concepção do Judiciário como serviço público essencial implica a universalidade subjetiva e objetiva da prestação jurisdicional. A ineficiência judiciária verifica-se: a) na dificuldade ou obstrução do acesso à prestação jurisdicional; b) na morosidade; c) na má qualidade dos seus serviços. 3. A participação nos bens da vida e no conjunto dos bens sociais não se dá apenas pela solução institucional dos conflitos, mas pelo exercício dos poderes e funções que compõem a estrutura material da sociedade. O que determina basicamente a realização da justiça é a distribuição dos “quanta” de poder pelos inumeráveis atores sociais e a regra básica da justiça social consiste em assegurar, a todos, acesso a esses poderes e funções. O primeiro passo no acesso à justiça é a proteção contra a injustiça, a promoção, de fato, à condição de sujeito de direitos.O problema do acesso à justiça, no Brasil, sempre foi tratado – ao menos até a década de 80 – como um tema exclusivo dos operadores jurídicos, e no âmbito do que se designava como assistência judiciária, ou seja, a tutela do Estado para os reconhecidamente pobres que deveriam poder ingressar em Juízo com advogado dativo e isenção de custas. Esse enfoque não arranhava a arquitetura tradicional do Judiciário brasileiro, esboçada desde o início da República para atender aos conflitos entre proprietários, e que atravessou incólume o surto modernizador da década de 30 e o período desenvolvimentista da década de 50. É verdade que, a partir do primeiro desses momentos, quando o Estado deixou de tratar a questão social como caso de polícia, os assalariados já tinham sido incluídos na clientela judiciária, em função dos dissídios potenciais com seus patrões. Esse o maior salto quantitativo jamais verificado, em nossa história, na expansão do acesso à justiça. A expressão “procurar os seus direitos” popularizou-se, manifestando uma real expectativa de prestação jurisdicional. Corporificou-se o Direito Material do Trabalho como segmento autônomo das relações jurídicas no Estado de Direito, e desenvolveu-se simultaneamente o Direito Processual do Trabalho, como instrumento apto à sua concretização.Com a urbanização e o desenvolvimento da década de 50, as classes médias transformaram-se também em clientes potenciais, tendo em vista principalmente as relações de família, de consumo, de trânsito, de moradia e quejandos. Nas décadas de 60 e 70, a expansão da atividade estatal publicitou grande parte das relações jurídicas.As varas especializadas das fazendas públicas passaram a receber enorme quantidade de pleitos. Datam dessa mesma fase a criação da Justiça Federal, o congestionamento do Tribunal Federal de Recursos, e a adoção, pelo Supremo Tribunal Federal, dos chamados óbices regimentais (medidas regimentais restritivas à admissão de recursos, em matéria de sua competência). Entretanto, só na década de 80, passou-se a falar, no Brasil, de ações coletivas. É de julho de 1985 a Lei nº 7.347, que disciplinou a ação civil pública para a proteção de interesses difusos ou coletivos.A Constituição de 1988, por sua vez, criou dois instrumentos vigorosos de ação coletiva: o mandado de segurança coletivo e a ação direta de inconstitucionalidade. A instituição de controle abstrato (a possibilidade de declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese) representa amplificação, e não restrição do controle concreto. Milhões de pessoas, por meio da declaração de inconstitucionalidade em processo de controle abstrato, ganham proteção contra o arbítrio. Também em 1988 constitucionalizou-se a obrigação estatal de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que dela necessitarem (artigo 5º, LXXIV), e de criar defensorias públicas, para prestação dessa assistência (artigo 134); assegurou-se ao Poder Judiciário autonomia administrativa e financeira (artigo 99), e previu-se a popularização da prestação jurisdicional através dos juizados especiais (artigo 98, I). Continua nítida, entretanto, a desigualdade no acesso à prestação jurisdicional: as defensorias públicas não se instalaram ou o fizeram precariamente, e é reduzido o número de pessoas naturais que conseguem levar suas lides aos tribunais superiores. Não obstante a expansão observada após a Constituição de 1988, ainda é grande a “contenção da demanda”, ou a “litigiosidade reprimida”.{mospagebreak} 4. O juiz é, em parte, responsável pela morosidade da prestação jurisdicional. Todas as normas processuais novas, mesmo as criadas por iniciativa da magistratura, continuam fixando prazos para a prática de atos processuais pelos magistrados, embora se saiba que nenhum deles obedece aos prazos processuais. Isso acontece nas comarcas e varas onde há muito serviço, e nas comarcas e varas onde há pouco serviço. Desmoralizada a norma processual, nenhum juiz se preocupa mais em acrescentar ao seu despacho, como no passado os mais escrupulosos costumavam fazer: “excedi o prazo por acúmulo de serviço”. Não se faz – nem há preocupação em fazer – o controle desses excedimentos, para verificar se eles são justificados ou abusivos. Sem a obediência aos prazos processuais, por parte do juiz, não há reforma processual que consiga abreviar o litígio, salvo aquela que suprima os direitos das partes. As normas processuais e o excesso de serviço não podem ser o bode expiatório da morosidade recorrente.Excesso de serviço há tanto no Executivo quanto no Legislativo. Mas os juízes, catonianos quanto ao cumprimento dos prazos das partes, do Executivo e do Legislativo, são menos ortodoxos quanto à observância dos prazos que a lei lhes impõe. O volume de serviço transformou-se, não raro, no álibi universal, no véu que encobre o comodismo, a negligência, a desídia. A impunidade habitua a se encarar como o mesmo desprezo as outras normas processuais, que se aprende a aplicar à discrição. Surge aí o juiz que se mostra preocupado exclusivamente com sua distinção e progressão funcional, e que se acredita dono de sua vara, como se esta fosse um feudo cujo senhor colhe os respectivos frutos independentemente de sua eficiência.Os recursos são meio de controle – muitas vezes tardio ou insuficiente – das sentenças e despachos proferidos pelo juiz. Mas ninguém controla sua mora, suas omissões, seus abusos. O arbítrio é, por isso, freqüente nas relações do juiz com os jurisdicionados. Contrariamente ao que manda a lei orgânica da magistratura, processam-se em segredo as representações contra o juiz, e nunca se sabe, nem mesmo o próprio autor da representação, do seu andamento e resultado. Mas é que sempre certo e de antemão conhecido o resultado de ações criminais ou civis contra quem ouse criticar publicamente o juiz. Seria útil que a discussão do excesso de trabalho, decorrente da natural expansão dos serviços judiciários, fosse precedida de um certo saneamento, que pode ter início, por exemplo, com a extinção das férias judiciais coletivas. Se há excesso de serviço, qual a justificativa para a existência de férias coletivas? E por que hão de se cumular com as individuais? O juiz não pode atuar como um burocrata, encarregado de lançar ou assinar despachos nos processos que lhes são apresentados por sua secretaria. Ele é administrador, supervisor e corregedor dessa secretaria e de seus auxiliares – tais como oficiais de justiça e peritos -, responsável, portanto, pela ordem e eficiência desses serviços. O represamento de processos – a ordem para que suba para despacho ou relatório apenas um número x de processos, independentemente do volume de feitos em andamento – onde existe, atesta o alheamento do juiz com relação à eficiência e qualidade desses serviços, como se isso não lhe dissesse respeito. Difícil dizer, entretanto, se o mais perverso é o represamento de recursos, a colocação do processo numa prateleira de onde só sairá com o pedido de alguém com influência, ou sua aparente resolução mediante acórdãos que julgam sem decidir. Sufocado pelo grande número de processos, como em regra acontece nos grandes centros, o juiz passa, no segundo grau, a encarar os recursos com horror: a partir daí dedicase prevalentemente, em vez de julgá-los, a eliminá-los. A ordem passada aos seus assessores parece ser a de, quanto possam, desqualificar os recursos, ao invés de apreciá-los pelo mérito. Isso conseguem utilizando as normas de processo como obstáculo e não como veículo para a realização do Direito Material; o que é feito até mesmo sem a preocupação de verificar se os argumentos para desqualificá-lo tem a ver com a matéria do recurso: o importante não é que a jurisprudência, a doutrina ou o latim citados no acórdão tenham a ver com a matéria em discussão, mas manter a aparência de seriedade e erudição. Roberto A. O. Santos, em estudo sobre “Grupos de pressão de magistrados e governabilidade democrática” (in Ética, justiça e direito, Ed. Vozes, Petrópolis, 1996), examina aspectos do lobismo judiciário brasileiro. Justifica-se esse receio na medida em que os juízes individualmente considerados, a magistratura como um todo, e o Judiciário como poder político, tornaram-se, na república, a sede de atributos que caracterizavam a monarquia absoluta. Foi esse ordenamento que conferiu à magistratura os atributos perpétuos e majestáticos da soberania, da vitaliciedade e da irresponsabilidade.{mospagebreak} 5. A alienação quanto às condições do exercício da jurisdição, comum em primeira e segunda instâncias, não se observa nos tribunais superiores e, principalmente, no Supremo Tribunal Federal. Este, tradicionalmente, vem sendo o impulsionador do que se tem denominado como “reforma do Judiciário”, por conta, precipuamente, do volume dos feitos submetidos ao seu julgamento, especialmente pela via do recurso extraordinário. Por isso, a chamada “crise do Judiciário” tem sido ordinariamente confundida com o que também se convencionou chamar “crise do Supremo Tribunal Federal”, ou “crise do recursos extraordinário”.A Constituição provisória da República brasileira (Decreto nº 510, de 22/6/1890), em seu artigo 90, incumbia aos juízes ou tribunais federais decidir “as causas em que alguma das partes estribar a ação, ou a defesa, em disposição da Constituição Federal”. O sistema republicano de controle de constitucionalidade complementava-se com as normas que dispunham sobre o recursos extraordinário, já regulado no artigo 58 da mesma Constituição provisória. A Constituição de 1891 reconhecia ampla competência aos juízes, que podiam julgar “as causas em que uma das partes fundar a ação, ou a defesa, em disposição da Constituição Federal” (artigo 60, “a”), e em grau de recurso, as questões resolvidas pelos juízes federais e pelos tribunais estaduais quando se tratasse da validade de leis ou atos dos governos dos Estados em face da Constituição (artigo 59). O controle difuso de constitucionalidade foi mantido em todas as Constituições republicanas até a de 1988, segundo a qual cabe recursos extraordinário, para o Supremo Tribunal Federal, de decisão proferida em única ou última instância que: a) contrariar dispositivo da Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; ou c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição (artigo 102, III).Ao julgar recurso extraordinário, o Supremo pode cassar a decisão recorrida e pôr outra em seu lugar. Trata-se, por isso, de poderoso meio de controle de constitucionalidade. Dificilmente se pode considerar, como Estado Democrático de Direito, aquele em que a pessoa não tenha como levar ao Judiciário pleito de inconstitucionalidade: não é possível, sem dano à Constituição, impedir que o faça. O controle concreto de constitucionalidade decorre da natureza das coisas: favorecê-lo, em vez de cerceá-lo, é diretriz para a efetividade da Constituição. Sistemas que só possuam o controle abstrato são deficitários de efetividade, mas também em atos concretos do exercício de poder, seja da Administração, seja do particular.Tratando da chamada “crise do recurso extraordinário” ou “crise do Supremo Tribunal”, dizia Miguel Seabra Fagundes: “tal situação já se desenhava por volta de 1931, tendo dado lugar à divisão do Tribunal em duas Turmas, para lhe aumentar o rendimento, providência que, adotada sem propósito definitivo, definitiva se tornou com a Constituição de 16 de julho de 1934 (artigo 73). Em 1942, o congestionamento do serviço no Pretório Supremo se agravara de tal modo, que era apontado como alarmante por Filadelfo Azevedo, em artigo publicado no Arquivo Judiciário (vol. 62, suplemento) e, posteriormente, em trabalho intitulado “A crise do Supremo Tribunal”, divulgado nos Arquivos do Ministério da Justiça (vol. 1º, junho, 1943). Logo a seguir, Levi Carneiro trazia sua contribuição em torno do problema também acentuando sua gravidade: “Ainda a crise do Supremo Tribunal Federal”, Arquivos do Ministério da Justiça, vol. 2º, agosto, 1943” (A reforma do Poder Judiciário e a reestruturação do Supremo Tribunal Federal, Rev. Forense, 215/5). Deixando de lado qualquer consideração sobre a pertinência desse termo para designar algo que, por ser permanente, mais se assemelha a uma disfuncionalidade, não é por mera coincidência que a “crise” se agrava na década de 1950, ao se produzirem os efeitos da abertura constitucional. Vejamos, por exemplo, a aula inaugural proferida pelo prof. Alfredo Buzaid na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob o título “A crise do Supremo Tribunal Federal” (Revista de Direito Processual Civil, Saraiva, 6/25): “as estatísticas referentes a recursos extraordinários entrados no Supremo Tribunal: de 1918 a 1934, acusam, ano por ano, sucessiva e respectivamente: 87, 123, 114, 188, 106, 126, 111, 74, 95, 82, 56, 61, 79, 74, 64, 89 e 78...................... As estatísticas mostram que, a partir de 1934, começam a avolumar-se os recursos extraordinários: 150 em 1935, 230 em 1936, 242 em 1937, 210 em 1938, 286 em 1939, 804 em 1940, 1.047 em 1941, 1.113 em 1942, 1.124 em 1943. Para vos não cansar com números, vamos apenas lembrar as estatísticas oficiais, correspondentes aos anos 1956 e 1957. Processos distribuídos: em 1956, 6.379, em 1957, 6.126. ....... Cândido de Oliveira mostra, à luz das estatísticas, a evolução federal, ao mesmo passo que aumentam as suas funções, dando lugar ao crescimento do volume de causas que a ele têm acesso: “Em relação ao Supremo Tribunal, houve coisa muito pior; diminuíram-lhe os juízes, à proporção que a população foi aumentando. Em 1882, o Supremo Tribunal de Justiça compunha-se de 17 juízes: a população do Brasil orçava em 10.112.061 habitantes. Em 1891, a população era de 24.333.915 habitantes: passou a ser de 15 o número de Ministros. Em 1913, esse número passou a ser de 11, número que foi mantido pelas Constituições de 1934 e de 1937. Neste ano, a população foi estimada em 43.246.931 habitantes. Em 1960, contando a nação quase setenta milhões de habitantes, mantém-se o mesmo número de ministros.” Em 12/8/1964, falando aos rotarianos mineiros, o ministro Victor Nunes Leal queixava-se da pletora de processos no Supremo Tribunal Federal, cerca de 7.000 decisões por ano; objetivando um sistema de “liberdade garantida” e não de “liberdade tolerada”, instalava o eixo da reflexão sobre o futuro da Corte Suprema: “Antes de pensar em reduzir a nossa competência, devemos esgotar as possibilidades de organizar, adequadamente, o nosso trabalho”. Referindo-se ao poder de que dispõe a Suprema Corte norte-americana de só julgar os casos que entenda relevantes, apresentava uma outra formula: “Não temos a prerrogativa de escolher os casos de relevância jurídica, mas poderíamos alcançar, indiretamente, resultados comparáveis. Bastaria simplificar o exame dos processos rotineiros não mediante vaga alusão à nossa jurisprudência, mas com precisa indicação dos precedentes em que a matéria foi mais amplamente apreciada... Firmar a jurisprudência de modo rígido não seria um bem, nem mesmo viável. A vida não pára, nem cessa a criação legislativa e doutrinária do direito”. Esse objetivo alcançou-se com a edição pelo Supremo Tribunal Federal, a partir de 13/12/1963, das súmulas de sua jurisprudência, prática que, todavia, viria a ser inexplicavelmente suspensa. Em 1970, uma comissão do Supremo Tribunal Federal, composta pelos ministros Thompson Flores, Xavier de Albuquerque e Rodrigues Alckmin, apresentou ao general Ernesto Geisel a proposta de “reforma do Poder Judiciário” para cuja instituição, mediante o “pacote de abril”, foi necessário fechar o Congresso.Com o pacote de abril nascia a “argüição de relevância”, um procedimento prévio ao recurso extraordinário, que podia resultar na recusa de seu processamento. Para apreciar as argüições de relevância, reunia-se o Conselho do Supremo Tribunal Federal, em sessão secreta. O advogado Theotonio Negrão assim radiografou a sessão do Conselho do Supremo no dia 12/8/1987: “começou às 17:30 e “julgou” 419 argüições de relevância. Se a sessão terminou às 19 horas e não teve interrupção, cada argüição foi, em média julgada em 12 segundos e 88 centésimos de segundo. Experimente ler o número da argüição, o nome do relator e as partes... fiz a experiência, cronometrando: deu 19 segundos e 8 décimos”. No mesmo berço autoritário da argüição da relevância, nasceram a avocatória e o efeito vinculante. Mediante a avocatória, entregava-se ao Supremo Tribunal Federal a faculdade de atrair, para seu julgamento, causas processadas perante quaisquer juízes ou tribunais. De um só golpe, feria-se a independência da magistratura, o princípio do juiz natural e a garantia dos jurisdicionados. O pacote de abril transformava o Supremo em tribunal de exceção que, para prevenir “imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas”, poderia suspender os efeitos de qualquer decisão judicial proferida no país e avocar o respectivo processo. A partir da emenda nº 7. De 28/8/1978, que alterou o regimento interno do Supremo Tribunal Federal, passaram a ter efeito vinculante as decisões dessa Corte proferidas na representação “interpretação interpretativa”. A Constituição de 1988 baniu o chamado “entulho autoritário”. Em vez de manter essas medidas restritivas do acesso à jurisdição e do controle difuso da constitucionalidade, praticamente bipartiu o Supremo Tribunal Federal. Criou o Superior Tribunal de Justiça, com no mínimo 33 ministros, a quem entregou grande parte da anterior competência do Supremo; este foi posto no caminho de se transformar num tribunal destinado a exercer apenas o controle de constitucionalidade. A criação de outra Corte ou Cortes para absorver parte da competência do STF era reivindicação antiga de advogados e professores de Direito. O Supremo Tribunal Federal, entretanto, sempre se opôs a essas propostas, como ser vê no documento denominado “Reforma judiciária” (STF, Departamento de Imprensa Nacional, 1965), entregue ao ministro da Justiça, Milton Campos. Por ocasião dos trabalhos preparatórios da Constituinte de 19871988, o Supremo Tribunal Federal ratificou sua posição contrária à criação do Superior Tribunal de Justiça, na “Exposição de Motivos” que enviou à Comissão Provisória de Estudos Constitucionais. Caso houvesse prevalecido a resistência do STF, a explosão da demanda (em 1997, o Superior Tribunal de Justiça apreciou mais de 100.000 processos) por si mesma provocaria a adoção de medidas excepcionais, do tipo de requisito da relevância ou do efeito vinculante (num primeiro momento após a Constituição de 1988, caiu o número de processos distribuídos no Supremo Tribunal Federal: de 18.674 em 1988 para 6.622 em 1989). Isso, certamente, devido à indefinição das novas regras e ao desvio de parte de sua competência para o Superior Tribunal de Justiça. Mas voltou a subir, em seguida: 16.777 em 1990, 19.349 em 1991, 27.656 em 1992, 27.205 em 1993, 25.813 em 1994, 28.677 em 1996, 33.963 em 1997. A alternativa que se põe, assim, parece estar entre reprimir a demanda ou reformar a máquina. A escolha está entre o sistema de “liberdade garantida”, preconizado pelo ministro Victor Nunes Leal, e o sistema da liberdade meramente “tolerada”. Em face da Constituição, como vimos, não há escolha possível senão a reforma da máquina, e a solução para a chamada “crise do Supremo” consiste em aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal e do Supremo Tribunal de Justiça; e em transferir para este a matéria de natureza extraconstitucional ou não estritamente constitucional que, após a Constituição de 1988, ainda restou incluída na competência do Supremo Tribunal Federal. Em palavras candentes as pseudo-soluções repressivas propostas para a “crise do Supremo”: “..... para situações emergentes só se encontram, destarte, soluções simplórias, estranguladoras do excelente remédio processual de amparo do indivíduo contra os atos administrativos inconstitucionais ou ilegais. É tudo, como bem se vê, o reflexo de um estado de espírito, de uma mentalidade, de uma posição restritiva em face da proteção dos direitos subjetivos, contrastantes com a larga visão das primeiras décadas da República..... Todos esses critérios se inspiram em razões contingentes, a primeira das quais é reduzir a carga insuportável de feitos, que sobe anualmente ao Supremo Tribunal. Mas a solução envolve um equívoco. O que importa, primeiramente, é assegurar a prevalência e a unidade do Direito da União, bem como justiça eficiente às populações brasileiras de todos os Estados. A carga de trabalho da Magna Corte há de ser vista em segundo plano”. (Evolução do sistema de proteção jurisdicional dos direitos no Brasil republicano, Rev. de Dir. Público 23/103, jan. mar. 1973). 6. A jurisdição é exercida por juízes singulares e por tribunais. Mas, à parte os casos de competência originária destes, exerce-se propriamente pelos juízes. O juiz é agente político no qual se concentra a soberania: entre ele e o tribunal de sua circunscrição inexiste subordinação ou vinculo hierárquico. E, como de regra, as partes não são obrigadas a recorrer, pode-se dizer que, no juiz singular, reside a garantia constitucional da prestação jurisdicional. A possibilidade de recorrer, levando o pleito a um tribunal, é reforço dessa garantia, que os tribunais exercem subsidiariamente. No juiz singular, a cuja presença comparecem as partes, diante do qual se produzem as provas e se deduzem as razões dos litigantes, é que o Estado Democrático de Direito, segundo a ordem constitucional brasileira, deposita a garantia de conhecimento do litígio e a realização do Direito Material.Uma coisa é situar um juiz em vara especializada em Direito de Família ou em Direito Falimentar. Isso diz respeito à competência da vara em que está, transitoriamente, exercendo sua função como juiz, ao conceito de judicatura e à própria concepção do Direito como sistema. Se pretender restringir de tal forma a função do juiz já seria difícil sob a Constituição de 1891 – que não incluía declaração de direitos e garantias – que dizer sob a analítica Constituição de 1988, que se transformou no esqueleto de todo o ordenamento jurídico, inseparável das normas de Direito Público, Direito do Trabalho, Direito Ambiental, Direito das Coisas, Direito de Família? A Constituição assumiu, perante o conjunto sistemático do ordenamento, um papel muito mais preponderante do que aquele que, em boa parte deste século, foi desempenhado pelo Código Civil brasileiro e sua lei de introdução. Nesse contexto, é impossível. Conceber a figura de um juiz mutilado que só pudesse sentenciar quando a lide fosse dissociável de toda e qualquer referência constitucional. Também é difícil conceber um tribunal suficientemente dotado para conhecer das questões subtraídas, por força dessa mutilação, ao conhecimento do Juízo comum, a não ser que se assumisse a repressão da demanda como princípio estruturante dos serviços judiciários.Desdobra-se em três extratos a independência judiciária: a independência do Judiciário como Poder político, a independência individual do magistrado, e a independência da magistratura como um todo. Órgãos superiores do Judiciário são aqueles que exercem: a) funções jurisdicionais superiores, podendo reformar decisões de juízos singulares e tribunais inferiores; b) funções administrativas, provendo meios materiais e organizacionais para o exercício da atividade jurisdicional. Se é possível falar, sob esse ponto de vista, em hierarquia dentro do Judiciário, é impossível falar de hierarquia dentro da magistratura. Todo juiz singular é agente político – vinculado apenas à lei – tanto quanto um juiz do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. De que valeria assegurar-se a independência do magistrado perante as partes se ela lhe faltasse perante órgãos superiores do Judiciário? Não tem Constituição o país em que qualquer pessoa, natural ou jurídica, ferida em seus direitos constitucionais, não pode pedir proteção ao juiz do lugar. Regimes de controle concentrado não se estabelecem para a guarda da Constituição, mas para a preservação do poder. O controle concentrado, que já não é feito pelo povo (por iniciativa dele) também não é do povo, nem para o povo. 7. São duas, e apenas duas, as possíveis reformas do Judiciário: uma, no interesse do povo; outra, no interesse do poder. A primeira, tendo por base os princípios constitucionais, o direito à prestação jurisdicional, o respeito ao devido processo legal, a concepção do Judiciário como serviço essencial, a independência da magistratura. A outra, em tudo contrária a primeira.Diante de tais razões, é inaceitável a proposta de reforma contida no substitutivo que, por encomenda do poder, se apresentou na Comissão Especial da Câmara dos Deputados que trata da reestruturação do Poder Judiciário.Esse substitutivo deve ser rejeitado não só porque nada tem a ver com nossa realidade; não só porque descura das reais finalidades de uma efetiva reforma, que busque eficiência e presteza nos serviços judiciários; não só porque é indispensável à cidadania participar de órgãos de planejamento, supervisão e controle da atividade administrativa do Judiciário; não só porque, em sua elaboração, foram ignoradas, em grande parte, as emendas e sugestões da maioria dos sub-relatores da Comissão Especial (inclusive o substitutivo global oferecido pelo primeiro signatário). Mas, principalmente, porque é contra a letra, o espírito, os fundamentos, as garantias e as cláusulas pétreas da Constituição. Porque agride o povo em sua necessidade de justiça, a magistratura em suas prerrogativas, o Parlamento em seu brio e os parlamentares em sua inteligência.Busquem-se, nos anais do Congresso, as razões de rejeição do pacote de abril. Seria este Parlamento menos cioso de sua competência que o de então?Observem-se as passagens do substitutivo que se fixaram no período pré-1988, pretendendo restaurar o modelo ditatorial do Judiciário, inspirado no pacote de abril, e ressuscitar institutos como o efeito vinculante, a argüição de relevância e a avocatória (esta agora encoberta como “incidente de inconstitucionalidade” ou “incidente de interpretação”) – que tanto repugnaram – e pretendendo ainda desfazer o equilíbrio de poderes, como ocorre quando propõe colocar o Supremo Tribunal Federal acima da própria Constituição.Merecem especial reflexão as passagens que buscam conferir força de lei a decisões judiciais. Aqui, o recuo histórico seria ainda maior, porque estaríamos restaurando características do Judiciário colonial e ressuscitando os velhos assentos que mereceram a condenação unânime da doutrina moderna; desde o dealbar do constitucionalismo, com as revoluções constitucionais francesa e americana, cabe ao Legislativo, como sede e expressão maior da soberania, o poder de ditar a norma universalmente obrigatória. Quebra o equilíbrio dos poderes permitir-se ao Supremo Tribunal Federal ditar norma de “status” constitucional que só ele – nem mesmo o Congresso – poderia alterar. Por ser inconveniente, sob todos os aspectos, entregar a quem já possui a faculdade de controlar os atos do Legislativo de modo definitivo e irrecorrível, o poder de estabelecer norma irrevogável de “status” constitucional, a tradição constitucional brasileira estabeleceu a fórmula, politicamente ortodoxa e processualmente mais simples, de entregar-se ao Legislativo a faculdade de suspender a execução da norma declarada inconstitucional (v. artigo 52, X, do texto constitucional vigente). Pretenderá o Congresso brasileiro renunciar a essa expressão de sua soberania? Essa a fórmula processual e doutrinariamente correta de se conferir eficácia “erga omnes” às decisões de inconstitucionalidade, sem os inconvenientes políticos e as violências processuais que acarretariam a atribuição de força de lei (efeito vinculante) às decisões do Supremo Tribunal Federal. Só nas ditaduras seria possível visualizar-se a soma de poderes que em grau tão elevado o substitutivo pretende concentrar em Corte cujas decisões são irrevogáveis. Vale menos o atual Congresso que o de 1970? Estando aberto, é menos que o de então, mesmo fechado? Estando vivo, é como se fosse morto? “Uma grande nação” – dizia Seabra Fagundes, ao examinar a “crise do recurso extraordinário” – “se constrói não apenas pela prosperidade material senão também pela soma, na sucessão das gerações, do que de positivo cada uma oferece ao acervo espiritual comum. Por isto mesmo, em matéria como a que nos ocupa não é possível encarar os fatos e buscar as soluções, em termos do medíocre dia-a-dia das medidas de emergência, mas sim com a visão do futuro, que se mede por dezenas de anos, e recolhendo o que de fecundo se elaborou no passado. Um patrimônio jurídico da excelência do construído, na lei e na jurisprudência, em fase áurea da vida republicana, para proteção eficaz dos direitos subjetivos, merece ser desenvolvido e aprimorado, nunca mutilado ao sabor de conveniências ocasionais” (ob. e loc. cit.). Obs.: O substitutivo global oferecido pelo Deputado Federal José Roberto Batochio encontra-se à disposição dos interessados na AASP.