O ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA COMO FONTE DE OBRIGAÇÕES José Roberto de Castro Neves SUMÁRIO: 1. Introdução: as fontes das obrigações - 2. O enriquecimento sem causa - 3. O enriquecimento sem causa como fonte das obrigações - 4. Conclusão. 1. INTRODUÇÃO: AS FONTES DAS OBRIGAÇÕES Com razão, busca-se definir quais os fatos que podem originar as obrigações, isto é, quais as situações que o ordenamento jurídico considera como suficientes para criar um vínculo entre duas pessoas, no qual uma delas possa exigir determinado comportamento de outra, que fica sujeita a esse dever jurídico. Fonte significa nascente d'água e, figurativamente, adota-se a palavra para expressar a origem de algo. Pois é neste sentido que se fala em fontes das obrigações. Procuram-se os fatos jurígenos, aptos a criar relações jurídicas obrigacionais. Há clássica discussão acerca de qual teria sido a primeira fonte reconhecida das obrigações; se o contrato ou o ato ilícito.(1) Com efeito, é intuitivo que o acordo de vontades - reconhecido pelo Estado - no qual as partes estabeleceram alguma conduta deva servir como fato capaz de desencadear uma relação obrigacional. O mesmo se pode dizer do delito; também parece claro que se alguém, por meio de um ato contrário ao ordenamento jurídico, causou dano a outrem fica obrigado a reparar o prejuízo. O contrato e o delito, assim, foram as primeiras fontes reconhecidas. Os romanos falavam em ex contractu e ex delicto. Inicialmente, tanto os contratos como os delitos eram tipificados, ou seja: o ordenamento jurídico então vigente enumerava os tipos de contrato e os de ilícito que poderiam originar um vínculo contratual. Ainda no desenvolvimento do direito romano, Gaio admitiu um terceiro tipo genérico de fonte das obrigações, que ele denominou de variae causarum figurae.(2) Nesse terceiro gênero arrolava-se uma série de causas, como, por exemplo, a gestão de negócios, a tutela, o pagamento indevido. Mais adiante, na escola bizantina, admitiu-se, como fonte, hipóteses nas quais não havia o contrato, mas a situação deveria ser tratada como se assim fosse. Eram os quasi ex contractu. Isso ocorria se houvesse um fato que originava obrigações, tal como se fosse um contrato, embora não houvesse a convergência de vontades, como, v.g., na gestão de negócios. Um pouco depois historicamente, até mesmo para dar tratamento simétrico, ajustou-se um outro gênero, os quasi ex delicto, incidente nos casos em que, embora não houvesse um ato ilícito, a situação deveria ser tratada de forma análoga. Exemplo de quase ex delicto era o effusum et dejectum, no qual se responsabilizava o proprietário do imóvel pela coisa, líquida (effusum) ou sólida (dejectum), que caísse de sua propriedade, ou, ainda, a responsabilidade por fato de terceiro. Os quasi ex contractu e os quase ex delicto se assemelhavam às suas fontes - contrato e delito, respectivamente -, porém não havia nelas o elemento intencional (ou mesmo a culpa, no caso dos ilícitos). O Código Justinianeu adotou essa quádrupla fonte: contrato, delito, quasi contractu e quasi delicto. Esse conceito permaneceu dominante durante muitos séculos, tanto assim que o Código de Napoleão, de 1804, encampou essas fontes (no que se refere ao quasi contractu, o Código tratou autonomamente da gestão de negócios e do pagamento indevido). Em 1865, o Código Civil italiano inova, acrescentando uma quinta fonte: a lei. Na realidade, antes dele, Pothier(3) já havia ressaltado que a lei deveria ser mencionada como outra fonte das obrigações. De fato, a obrigação pode surgir da norma, como, por exemplo, a obrigação de recolher algum tributo, ou no caso das obrigações propter rem. Vale transcrever, a propósito, a redação do art. 1.173 do Código Civil italiano de 1942: "As obrigações derivam do contrato, do fato ilícito, ou de qualquer outro ato ou fato idôneo para as produzir em conformidade com a ordem jurídica". Observou-se, mais modernamente, que deixou de existir necessidade que justificasse a distinção entre o delito e o quasi delicto. Isso porque se alargou o conceito de delito para albergar, também, algumas hipóteses nas quais inexista culpa; mas, ainda assim, entenda-se presente o dever de reparar. Na realidade, assistimos, hodiernamente, com as novas tarefas sociais assumidas pelo direito, a uma dilatação do conceito de ilícitos, para atingir hipóteses antes não registradas sobre essa categoria (e essa constatação será fundamental para a conclusão a que se quer chegar). Igualmente perdeu o sentido a existência isolada do quasi contractu. Veja-se que o quasi contractu - que tem na gestão de negócios o seu mais eloqüente exemplo - passou a ser referido na lei, ou seja, a obrigação decorrente da gestão de negócios é ajustada na norma, que justifica a origem da obrigação, sem a 2 necessidade de se recorrer a um gênero anômalo de fonte das obrigações.(4) Não há dispositivo no Código Civil de 1916 nem no de 2002 que indique as fontes das obrigações. A doutrina não oferece uma posição uníssona a respeito do assunto, muito ao contrário. Há várias opiniões acerca de quais seriam essas fontes no direito brasileiro. O Código Civil alemão indica como fontes o negócio jurídico e a lei.(5) A Lei portuguesa, por sua vez, no art. 473, arrola os contratos, os negócios unilaterais, a gestão de negócios, o enriquecimento sem causa (aí inserido o pagamento indevido), a responsabilidade civil (pelos atos ilícitos e pelo risco).(6) Para Aubry et Rau são a lei e o fato humano.(7) Já Planiol adota o contrato e a lei.(8) Domat, antes dele, destrinçava esse conceito, arrolando duas fontes: uma que consistia dos fatos derivados da manifestação de vontade, na qual se visava a criar um vínculo obrigacional, e outra na qual se aglutinavam fatos de outra natureza - não volitivos -, mas que, do mesmo modo, poderiam fazer surgir obrigações.(9) Silvio Rodrigues sustenta que a lei é sempre a fonte das obrigações, mediata ou imediatamente.(10) Com efeito, a lei é fonte primária dos direitos. A lei dará força jurígena à manifestação de vontade.(11) Há casos, contudo, em que a vontade funciona como elemento fundamental de constituição das obrigações. Por esse motivo, Caio Mário sustenta que as fontes das obrigações são a vontade e a lei.(12) Orlando Gomes tem posição semelhante, defendendo, como antes fizera Pothier, que a lei é a fonte imediata, ao passo que as fontes mediatas seriam outros fatos capazes de fazer nascer as obrigações.(13) Registre-se, ainda, a opinião de Serpa Lopes, que menciona as fontes contratuais (decorrentes do acordo de vontade) e as acontratuais (todas as demais, não derivadas do contrato, como a gestão de negócios, o enriquecimento sem causa, o pagamento indevido e as obrigações decorrentes de manifestação unilateral de vontade).(14) San Tiago Dantas oferece uma boa opinião acerca do tormentoso tema: as fontes no nosso direito seriam a lei, o ato jurídico (bilateral e unilateral) e o ato ilícito (aí incluído o abuso de direito).(15) Essa breve introdução ao tema dá boa mostra da falta de uma posição unívoca acerca das fontes das obrigações. 2. O ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA 3 O ordenamento jurídico não admite o acréscimo do patrimônio de uma pessoa em detrimento da perda do patrimônio de outra, sem que ocorra uma causa jurídica que explique esse deslocamento econômico. O ordenamento jurídico não admite o acréscimo do patrimônio de uma pessoa em detrimento da perda do patrimônio de outra, sem que ocorra uma causa jurídica que explique esse deslocamento econômico. Como se disse, trata-se de um princípio do direito.(16) (17) O direito não aceita essa transferência ou perda de riqueza imotivada, porque, em uma última análise, isso refletirá um desequilíbrio injusto. O benefício de uma parte em prejuízo da outra cria uma obrigação (veja-se: o enriquecimento sem causa é fonte das obrigações). A parte lesada passa a ter o direito de reclamar de quem se beneficiou de um crédito do tamanho do dano que sofreu.(18) Com isso, visa-se a garantir o equilíbrio patrimonial e evitar uma iniqüidade. Assim o art. 473, nº 1, do Código Civil português, segundo o qual "aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou". Terá direito a reclamar o enriquecimento sem causa, por exemplo, aquele que constrói ou planta sobre o terreno alheio. O proprietário do bem deverá ressarcir quem realizou a plantação porque, de modo contrário, ele teria um benefício sem causa jurídica. A origem do instituto é antiga, mas não chega ao direito romano clássico,(19) aparecendo apenas no período Justianeu,(20) quando seus contornos gerais foram delineados,(21) embora o conceito fosse admitido como princípio geral.(22) De toda sorte, em Roma, não se desenvolveu a teoria da causa do negócio.(23) Segundo Beviláqua, "os romanos concebiam obrigações sem causa".(24) O conceito do enriquecimento sem causa encontra-se referido no Código Napoleão, de 1804, no art. 1.131: "A obrigação sem causa ou sobre uma falsa causa ou sobre uma causa ilícita não pode ter efeito algum". A idéia era a de que os negócios - e as obrigações tinham especial relevância nessa análise - deveriam ter uma causa, a fim de que não se desse vida a contratos ilícitos ou imorais.(25) Entretanto, a ação de enriquecimento não era admitida na França até o fim do século XIX, quando, a partir do julgamento de um caso pela Corte de Cassação francesa, passou-se a reconhecer os efeitos práticos do princípio. A decisão, importante precedente, ficou famoso como o caso Boudier. Ocorreu que um comerciante vendeu ao locador de um pomar certa quantidade de adubo, que foi 4 espalhada pela área. Antes que o fornecedor de adubo fosse pago, extinguiu-se a relação de locação e o dono da área assumiu a posse do pomar. Ao cobrar pelo produto vendido, o comerciante descobriu que quem o adquiriu, o ex-locador, era de todo insolvente. Diante disso, o comerciante ajuizou uma ação contra o proprietário do pomar, que se havia beneficiado do adubo em seu terreno. O judiciário francês deu ganho de causa ao comerciante, permitindo que ele recebesse do proprietário uma indenização, no limite do benefício obtido com o uso do adubo. A força dada à causa no direito francês decorre, em grande parte, das obras de Domat e Pothier, adeptas do jusracionalismo.(26) Transcreva-se, para ilustrar, a precisa lição de Pothier: "Todo o ajuste deve ter uma causa honesta. Nos contractos interessados a causa da obrigação que contrahe uma das partes é que a outra parte lhe dê ou se obrigue a lhe dar, ou se arrisque áquilo de que se encarrega. Nos contractos beneficos, a liberalidade que uma das partes quer exercer para com a outra, é causa sufficiente da obrigação que aquelle contrahe para com este. (Cod. Civ. Fr. Art. 1131). Mas quando a obrigação foi contrahida, é falsa, é nulla a obrigação, e nullo o contracto".(27) Informa Wieacker, em seu importante estudo do desenvolvimento do direito privado moderno, que esses autores, Domat e Pothier, "só muito tarde começaram a ter influência na Alemanha",(28) de sorte que, na elaboração do Código Civil alemão, não se deu a mesma importância à causa para fins de reconhecimento da validade do negócio jurídico. Para fins de análise de validade de um acordo, a causa não tinha maior relevância. A causa, contudo, era importante para aferir um eventual enriquecimento desprovido de fundamento jurídico justificador. O Código Civil alemão expressamente mencionou, no § 812 e nos dispositivos seguintes, a ação de enriquecimento sem causa de modo detalhado. O limite da restituição será o da vantagem obtida. A falta de causa num enriquecimento gera a obrigação de restituir. Tratou-se, pois, do enriquecimento como fonte das obrigações. Vale uma referência ao fato de que Savigny, no seu sistema de direito romano, afirma que as várias condictiones poderiam ser reduzidas a um princípio unificador e unitário que vedava o enriquecimento sem causa.(29) Ao tratar da doação, por exemplo, Savigny examinou a importância de haver uma causa que justificasse o incremento patrimonial de uma das partes.(30) 5 Na Itália, a Lei Civil de 1865 não positivara uma regra geral do enriquecimento sem causa, mas apenas examinava o pagamento indevido e a gestão de negócios. Houve, no início do século XX, a tentativa de um código único de obrigações Franco-Italiano, que jamais chegou a vingar. Nesse projeto de código de 1932, havia referência, de modo geral, à ação de ressarcimento em decorrência do enriquecimento sem causa. O princípio geral apenas foi incorporado ao direito positivo italiano com o advento do Código Civil de 1942: "2.041. Azione generale di arrichimento. Chi, senza una giusta causa, si è a danno di un'altra persona à tenuto, nei limiti dell'arrichimento, a indennizzare quest'ultimo della correlativa diminuzione patrimoniale. Qualora l'arricchimento abbia per oggetto una cosa determinata, colui che l'ha ricevuta à tenuto a restituirla in natura, se sussiste al tempo della domanda".(31) (32) Também o art. 473, nº 1, do Código Civil português cuida do tema. Para a lei lusa, "aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou". Vale o registro de que o Código português de 1867 não examinou a questão, o que só ocorreu com a Lei de 1966. O Código português seguiu a orientação alemã, no sentido de não arrolar a causa entre os elementos componentes do negócio jurídico. Historicamente, o nosso direito fez o mesmo. Beviláqua, de forma bastante enfática, defendia a corrente "anticausalista". Para ele, o requisito da causa como elemento do negócio jurídico "parece ter entrado no Código Civil francês por um equívoco", assim como afirma, citando Planiol, que "a noção de causa é perfeitamente inútil para a teoria dos atos jurídicos".(33) No nosso ordenamento, o enriquecimento sem causa não foi referido pelo CC/1916, o que fez muito restrito seu uso.(34) Entretanto, embora não existisse um capítulo específico acerca do tema, as suas hipóteses mais comuns foram registradas. Isso se deu com o pagamento indevido, espécie do gênero enriquecimento sem causa, tratada pelos arts. 964 a 971 do CC/1916; com o dever de o proprietário indenizar as benfeitorias feitas por terceiros, nos arts. 516 a 519 do CC/1916; com a perda de efeito da doação propter nuptias se o casamento for desfeito (art. 1.173 do CC/1916); com o direito de retenção do inquilino (art. 1.199 do CC/1916). A dificuldade de aplicação dos casos de enriquecimento não mencionados na lei também se relaciona à atitude reticente do legislador de 1916 sobre o conceito de "causa". Aliás, a dificuldade 6 reside, também, nas diversas acepções do termo "causa",(35) que podem levar a conclusões díspares. De fato, como adverte Galvão Telles, "A noção de causa do enriquecimento é muito controvertida e difícil de definir".(36) Cuidando especificamente das causas no direito contratual, Maria Celina Bodin de Moraes reconhece, no mesmo sentido, que "A noção de causa do contrato é tida como das mais difíceis e complexas em todo o direito civil".(37) Pode-se assumir o termo como "causa-motivo" (na feliz expressão de Moncada, o "fim presente na consciência do sujeito de direito"(38)), isto é, o que o agente desejava ao praticar o ato, avaliando-se aspectos psicológicos da atitude. Como se sabe, seguimos a orientação alemã, de não incluir a "causa-motivo" entre os elementos do negócio jurídico (ao lado da vontade, do objeto e da forma). O conceito de "causa-motivo" relaciona-se à vontade, embora não se confunda com ela. Trata-se do propósito psicológico adotado pela pessoa para realizar um ato, como, por exemplo, a pessoa adquiriu uma casa de campo em Teresópolis porque isso o fazia lembrar de sua infância.(39) Esse motivo é irrelevante para validade do negócio, pois o nosso sistema não coloca o motivo como elemento do negócio jurídico, salvo se ele for referido expressamente como sua razão determinante (art. 140 do Código Civil). Outra acepção do termo, que parece ser a referida ao se tratar do enriquecimento sem causa, é "o fim jurídico do acto"(40) ou a sua razão econômica e social ou, ainda, "o sentido da razão explicativa da prestação".(41) Em um negócio oneroso a causa é obter a contra-prestação: compra-se um carro para adquirir esse bem. Nos negócios gratuitos, a causa consiste numa generosidade do instituidor, a vontade de realizar algo de bom ao contemplado. Note-se que não se avalia qualquer elemento interno (o "motivo" pelo qual o ato foi feito).(42) Afere-se, apenas, se a atividade de uma pessoa está admitida no ordenamento como apta a gerar um crescimento patrimonial.(43) Se não há causa ou se esta causa é injusta, "o enriquecimento está condenado".(44) Os espinhos do tema se devem, em considerável parcela, ao debate entre "causalistas", ancorados na linha francesa, e nos "anticausalistas", de orientação alemã. Nós seguimos, classicamente, a corrente alemã, como antes se deu notícia ao expor a apaixonada posição de Beviláqua acerca da matéria.(45) De fato, a legislação civil pátria jamais mencionou o elemento "causa" entre os integrantes da relação obrigacional, tanto no Código revogado como no atual. Não há, por exemplo, a 7 referência da causa entre os fundamentos que importam nulidade do negócio jurídico (basta conferir o art. 166 do Código Civil). Adotouse, por grande parte da doutrina nacional, uma posição "anticausalista", de sorte que sequer se discute a causa, ou que, ao menos, admite que "há, porém, negócios jurídicos em que se não cogita da causa".(46) A defesa dessa posição "anticausalista", hodiernamente, tornou-se mais difícil. O artigo 421 do Código Civil de 2002 incorpora definitivamente a noção de função social do contrato. Ora, a função social do contrato se verifica precisamente na sua causa. Afinal, o interesse finalístico das partes ao realizarem o negócio deve estar em harmonia com o ordenamento jurídico, sob pena de não cumprir uma função social. Com efeito, uma análise da forma como o ordenamento jurídico recebe a autonomia privada não se pode fazer sem aferir a causa. Nesse passo, vale repetir a lição sempre atual de Emilio Betti: "El Derecho - y ya antes que él la conciencia social aprueba y protege a la autonomia privada, no en cuanto sigue el capricho monetáneo, sino en cuanto procura um típico interés en el cambio del estado de hecho y se dirige a funciones sociales dignas de tutela".(47) Resta, portanto, afastada a possibilidade de analisar um negócio sem apreciar sua causa. Com efeito, o citado artigo 421 assevera que "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato". Assim, a causa que encontra amparo no ordenamento jurídico servirá como limite e norte da liberdade de contratar e, em última análise, da própria validade do negócio.(48) O direito não tolera que alguém receba vantagem, obtendo acréscimo patrimonial em detrimento de outrem sem uma causa jurídica, isto é, por meio de um ato que não seguiu uma estrutura econômico-social reconhecida pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o negócio sem causa não receberá reconhecimento jurídico, porquanto o ato não estará cumprindo a sua função social.(49) Assim, se alguém paga algum valor a outrem indevidamente, o ordenamento entende que esse enriquecimento, sem uma causa jurídica justificável, lhe é contrário, impondo a quem recebeu a vantagem indevida que a restitua e, com isso, promova o reequilíbrio patrimonial. Veja-se que o negócio sem causa é válido. Não se buscará sua nulidade, pois os elementos necessários à sua existência e 8 validade encontram-se presentes. Entretanto, o ordenamento jurídico não consente com o benefício sem uma causa. A vantagem econômica acompanhada da ausência de causa jurídica é considerada imoral. Por isso se admitirá que o lesado reclame a restituição de seu patrimônio. Verifica-se o enriquecimento sem causa se presentes (a) a vantagem patrimonial propriamente dita, consistente no benefício aferível em dinheiro - que se verifica não apenas no aumento de bens, mas também na diminuição do passivo e na economia de algumas despesas -; (b) o empobrecimento, de outra ponta, que se verifica diante da perda de patrimônio; (c) o nexo causal, isto é, o liame entre o enriquecimento de um e o empobrecimento de outro; (d) e, por fim, a ausência de causa.(50) Haverá enriquecimento sem causa se presente esse nexo causal entre a vantagem e a perda do patrimônio de duas pessoas, sem uma causa jurídica geradora que justifique essa alteração.(51) (52) O art. 884 do Código Civil de 2002, inovando em relação à Lei revogada, expõe o conceito de enriquecimento sem causa e informa qual a conseqüência jurídica de sua verificação: a obrigação de o beneficiado restituir o que recebeu indevidamente, em montante que não pode exceder o benefício.(53) O novo Código, entretanto, manteve as hipóteses de enriquecimento específicas antes referidas no CC/1916, como, para dar exemplos, o dever de indenizar o possuidor de boa-fé pelas benfeitorias (agora nos arts. 1.218 a 1.222) e no pagamento indevido (arts. 876 a 873 do CC/2002). Diante disso, a aplicação direta do instituto, pela incidência do art. 884 do Código Civil, possui um caráter subsidiário, ou seja, ela vai ocorrer se nenhuma das hipóteses de enriquecimento admitidas no ordenamento jurídico se aplicar no caso específico.(54) (55) (56) Ontologicamente análogo, vale citar a hipótese do desaparecimento da causa. Isso ocorre se deixar de existir a causa, que havia no momento em que ato foi realizado. Tome-se o exemplo da perda, sem culpa, do objeto de uma obrigação de dar coisa certa. Sem objeto, extingue-se a obrigação (art. 234 do Código Civil). Se o devedor já recebeu a prestação, deve restituir o valor ao credor, porque não há mais obrigação, pela perda de objeto. Do ponto de vista do pagamento feito, ele tornou-se sem causa. Nesse sentido, muito corretamente, a regra da segunda parte do art. 885 do Código Civil. 9 3. O ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA COMO FONTE DAS OBRIGAÇÕES Classicamente, o enriquecimento sem causa era tratado como quasi contractu.(57) Essa divisão, contudo, já não encontra espaço na doutrina moderna.(58) Diante disso, interessante pesquisar se o enriquecimento sem causa é fonte autônoma das obrigações, ou se é espécie de outro gênero. No início deste texto fez-se uma referência às fontes das obrigações e de como a doutrina as divide. Há, com efeito, viva discussão acerca de como o enriquecimento sem causa vai inserir-se nas fontes: se ele figura como uma fonte autônoma, se vai ser arrolado como um tipo de ato ilícito, se ele decorre da lei ou, mesmo, se é um ato unilateral, como quis fazer crer o CC/2002. Com efeito, não se discute que o enriquecimento sem causa serve como fonte das obrigações. Uma vez verificado, ele gera um dever para quem obteve a vantagem de reparar a parte lesada. A finalidade reside em reequilibrar os patrimônios dos envolvidos na relação. A posição do enriquecimento sem causa entre as fontes das obrigações com a entrada em vigor do novo Código Civil ganhou novo campo de debate. Isso porque, no Código Civil de 2002, o enriquecimento sem causa foi arrolado entre os atos unilaterais, logo depois do pagamento indevido, também inserido entre os atos unilaterais. Na verdade, trata-se de um duplo equívoco. Para começar, não seria "geograficamente" correto ajustar o pagamento indevido antes do enriquecimento sem causa, uma vez que aquele é espécie deste. Seria o mesmo que, ao expor o reino animal, tratar dos símios antes de falar dos mamíferos. Além disso, o enriquecimento sem causa não é um tipo de ato unilateral, embora, por vezes, ele possa envolver, como um dos elementos de sua verificação, um ato unilateral (como se dará, por exemplo, no pagamento indevido). O ato unilateral - mesmo aquele consistente do pagamento indevido -, por si só, não será suficiente para criar o dever de restituir (ou seja, fazer nascer a obrigação pelo enriquecimento sem causa). Há necessidade de outro elemento, que funcionará como o fato gerador: a ausência de causa jurídica. No ato unilateral há a manifestação de vontade de uma só parte, que acaba por vinculá-la a terceiro. É o que vai ocorrer, v.g., na promessa de recompensa, hipótese corretamente referida na lei, 10 nos arts. 854 a 860, como tipo de ato unilateral. Note-se que nessa hipótese há a presença de uma causa jurídica. Em outras palavras, não é a natureza eventualmente unilateral que vai qualificar o enriquecimento sem causa, mas a ausência dessa causa. Frise-se: o que distingue o enriquecimento é a falta de causa jurídica justificando o deslocamento de patrimônio. Haverá sempre um ato das partes, de uma delas, ou de ambas, sendo relevante apenas o resultado. Tampouco o enriquecimento é um negócio jurídico. Não há convergência das vontades das partes direcionada à sua ocorrência. Isso seria um contra-senso, pois o acordo de vontades, por si só, é causa jurídica reconhecida. Por esse motivo, aliás, Serpa Lopes registra o enriquecimento como uma fonte acontratual das obrigações.(59) Veja-se que, por vezes, o enriquecimento sem uma contraprestação de seu beneficiado ocorre e será admitido pelo ordenamento jurídico, porque a situação se encontra justificada numa norma jurídica, como, por exemplo, o dispositivo legal que admite a usucapião (uma pessoa obtém a propriedade da outra, que a perde sem direito a qualquer indenização). Aqui fica claro o conceito de que o fundamental, no momento de aferir a causa, é observar a existência de um respaldo jurídico para o incremento no patrimônio. Ressaltou-se, anteriormente, a inexistência, entre nós, de dispositivo genérico acerca do enriquecimento sem causa até a vigência do Código Civil de 2002. Agora há menção expressa ao fenômeno. Isso, contudo, não permite dizer que o enriquecimento sem causa passa a ser fonte das obrigações de origem legal. A lei funciona apenas como fonte imediata, registrando o fato como jurígeno, assim como ele registra os contratos típicos. Qualificar o enriquecimento sem causa como fonte autônoma das obrigações (como fazem os portugueses(60) (61) e, entre nós, Orlando Gomes(62) e Serpa LOPES(63) (64)), embora seja uma sedutora solução, parece restringir o conceito de atos ilícitos, que, atualmente, tem uma acepção ampla. Afinal, na medida em que o ato não encontra um respaldo no ordenamento, ou, em outras palavras, se o ato não cumpre a sua função econômico-social, ele se colocará em situação marginal e, logo, poderá ser qualificado como ilícito. O que agride o ordenamento jurídico não é lícito, não havendo espaço para um tertium genus. Assim, parece correto Planiol, que arrola o enriquecimento sem causa entre os atos ilícitos.(65) Convém ponderar, nesse passo, 11 que, atualmente, se observa um alargamento do conceito de fatos contrários ao ordenamento jurídico, que acabam por ensejar uma obrigação por uma das partes. Nem sempre o reconhecimento de que certo fato contraria o ordenamento ensejará a decretação de sua nulidade ou anulabilidade, mas o sistema admite gradações na resposta a situação em que ele é afrontado.(66) (67) Ainsi que la vertú le crime a ses degrés. Não se discute que o enriquecimento sem causa contraria o interesse do ordenamento jurídico; diga-se mais: é contrário a ele. Na hipótese específica, a solução dada pelo direito consiste em impor à parte injustamente beneficiada o dever de restituir ao lesado a vantagem indevida. Tome-se o seguinte exemplo: se uma pessoa alimenta um cão, na crença de que esse animal lhe pertence, mas, posteriormente, descobre que o animal é de terceiro, este - que teve seu patrimônio acrescido porquanto não custeou a alimentação de seu cão - tem o dever de reparar o patrimônio de quem gastou para prover o cachorro.(68) Caso contrário, haveria um enriquecimento sem causa. Admitir que o dono do animal pudesse ficar com o seu animal sem reparar quem o alimentou agride o ordenamento jurídico. Saliente-se, nesse passo, uma distinção fundamental na reparação decorrente do enriquecimento sem causa e da responsabilidade aquiliana. Nesta, afere-se o prejuízo do lesado, para que o dano seja plenamente indenizado, ao passo que no enriquecimento sem causa a recomposição será mensurada pelo benefício sem justificação jurídica. A distinção não é sutil. O dano pode ser maior, mas, no enriquecimento sem causa, a reparação se limita à devolução do benefício ou proveito.(69) O enfoque primordial, portanto, é, ao mesmo tempo, no ganho do patrimônio do beneficiado e no decréscimo no patrimônio do lesado (embora valha a ressalva de Agostinho Alvim: se o prejuízo for menor do que o ganho, o beneficiado somente deve restituir no limite do dano. Isso mesmo, se o enriquecimento for maior do que o empobrecimento, a reparação deve limitar-se ao montante verificado neste, a fim de que se considere o valor menor).(70) Se a pessoa beneficiou-se sem causa em R$ 2 em detrimento de outra, que perdeu R$ 2, não haverá dúvida de que a restituição deve ser dos R$ 2, o que garantirá o equilíbrio patrimonial. Caso, entretanto, tenha havido um benefício de R$ 1, mas a perda tenha sido de R$ 2, a restituição será apenas de R$ 1. Afinal, o beneficiado não pode ser obrigado a dar mais do que obteve. Por último, pode o benefício ter sido de R$ 2, mas a perda 12 de apenas R$ 1. Aqui, a restituição será de somente R$ 1, sob pena - atente-se - de haver um enriquecimento sem causa do lesado. 4. CONCLUSÃO Ressalvando não haver nada próximo de um consenso na doutrina nacional, pode-se dizer que existem as seguintes fontes das obrigações: (1) a lei, (2) os atos jurídicos (bilaterais e unilaterais), e (3) os fatos ilícitos. Ao se reconhecer que o ordenamento jurídico não consente com o enriquecimento sem causa, aponta-se para inserir o fenômeno entre os fatos ilícitos, juntamente com o abuso de direito (este, aliás, corretamente referido no art. 187 do Código Civil de 2002 entre os atos ilícitos). A admissão do enriquecimento sem causa como fonte das obrigações reside no reconhecimento de que a sua verificação contraria o interesse do ordenamento, que quer dar a cada um o que é seu, não lesar a ninguém e garantir uma convivência harmonizada pela honestidade, para citar a lapidar lição de Ulpiano. NOTAS (1) RUGGIERO diz que o delito foi a primeira fonte a obter reconhecimento: "Se as primeiras a aparecer historicamente foram as obrigações nascentes da ofensa ou violação da esfera jurídica alheia, isto é: de delito, correspondendo a relação contratual apenas a um estado mais avançado de civilização". (Instituições de direito civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, v. III, 1973. p. 133). (2) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. II, 1996. p. 24. (3) Traités des oligations. Paris: Ed. Depelafol, n. 2, 1835. (4) Nesse sentido a crítica de JOSSERAND. Cours de droit positif français. 3. ed. Paris, p. 7. (5) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 24. (6) Lei Civil Portuguesa, Decreto-Lei. 47.344 de 25.11.1966. (7) AUBRY et RAU, Droit civil français. Paris: A. Ponsard et N. Dejean de la Batiê, p. 106. (8) "Cette classification ne doit pas faire illusion; sans être entiérement fausse, elle est superficielle, sa nomenclature est vicieuse, et elle répond mal à la réalité. A vrai dire, toutes les obligations dérivent de deux sources seulement: le contrat et la loi". (PLANIOL, Marcel. Traité élémentaire de droit civil. Tome Deuxième. 13 Sixième Édition. Paris: Librairie Générale de Droit & de Jurisprudence, 1912. p. 254) PLANIOL, entretanto, reconhece que: "Dans l'opinion unanime des auteurs, le droit français admet cinq sources distincts d'obligations: 1º les contrats; 2º les quasicontrats; 3º les delits; 4º les quasi-delits; 5º la loi. Les contrats sont des conventions productives d'obligations. Les quasi-contrats sont des faits volontaires et licites, qui different des contrats, en ce qu'ils excluent l'accord de volonté qui forme la convention. Les délits et les quasi-délits different des deux sources précédentes, en ce qu'ils constituent des faits illicites. La loi en fait naître des obligations lorsqu'ils causent à autrai un dommage; elle oblige leur auteur à réparer lê tort qu'il a causé. On peut done les définir "des actes illicites et dommageables pour autrui". D'autre part, les délits different des quasi-délits en ce qu'ils sont accomplis sciemment el avec intention de nuire, tandis que les quasi-délits excluent cette intention et supposent que le dommage a été causé par maladresse ou négligence et qu'il n'a pas été intentionnel. Quant à la loi, on la considere comme étant la source de toutes les obligations qui ne rentrent dans aucune des quatre catégories précédentes. Les Romains disaient de même que certaines obligations naissaient lege". (Op. cit., p. 254.) (9) DOMAT, Jean. Odre do leur dos dans dos civiles de lois. Paris, 1689. (10) "A meu ver, as obrigações sempre têm por fonte a lei, sendo que nalguns casos, embora esta apareça como fonte mediata, outros elementos despontam como causadores imediatos do vínculo. Assim, a vontade humana ou o ato ilícito." (RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 12. ed. São Paulo: Saraiva, v. II, 1981. p. 10.) (11) "Do exposto fácil é denotar que as obrigações decorrem de lei e da vontade humana, e em ambas trabalha o fato humano, e em ambas atua o ordenamento jurídico, pois de nada valeria a vontade sem a lei, e a lei sem um ato volitivo, para a criação do vínculo obrigacional. O fato jurídico stricto sensu não constitui, portanto, fonte mediata de obrigações. A lei (fonte imediata) faz derivar obrigações apenas dos atos jurídicos stricto sensu, dos negócios jurídicos bilaterais ou unilaterais e dos atos ilícitos (fontes mediatas). Os contratos e as declarações oriundas de atos ilícitos é a lei que impõe ao culpado o dever de ressarcir o dano causado. Realmente, a lei é fonte imediata das obrigações, pois rege apenas as condições determinantes do aparecimento delas, impondo 14 ao devedor o seu cumprimento, cominando-lhe uma sanção se inadimplente; portanto, não cria quaisquer relações creditórias." (DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 45-46). (12) "Diante destas considerações, podemos mencionar duas fontes obrigacionais, tendo em vista a preponderância de um ou de outro fator: uma, em que a força geratriz imediata é a vontade: outra, em que é a lei." (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 29). (13) "Nestas condições, impõe-se, em caráter preliminar, a distinção entre fonte imediata e fontes mediatas das obrigações. Fonte imediata, isto é, causa eficiente das obrigações, é unicamente a lei. Fontes mediatas, isto é, condições determinantes do nascimento das obrigações, são diversos fatos ou situações suscetíveis de produzirem especificadamente esse efeito. Por isso se dizem fatos constitutivos das obrigações." (GOMES, Orlando. Obrigações. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 25-26). (14) LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, v. V, 1995. p. 9. (15) DANTAS, Francisco Clementino San Tiago. Programa de direito civil II. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1978. p. 146. (16) A jurisprudência reconhece o interesse em vedar o enriquecimento sem causa como princípio. Confira-se, a propósito, trecho de recente julgado do Superior Tribunal de Justiça: "1 - É entendimento assente desta Corte que a repetição é conseqüência lógica do reconhecimento judicial da ilegalidade de cláusulas contratuais abusivas e do acolhimento do pedido de restituição do que foi pago a mais, em atenção ao princípio que veda o enriquecimento sem causa, prescindindo, pois, da prova do erro, prevista no art. 965 do Código Civil. Precedentes (AgRg no REsp 733.037/RS e AgRg no REsp 699.352/RS)". (REsp 557301/RS, 4ª Turma do STJ, Rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 28.06.2005). (17) "Indubitavelmente a proibição do enriquecimento à custa de outrem é um princípio integrante do ordenamento jurídico, não se limitando a uma vaga reminiscência histórica, a uma mera regra moral ou ética, ou a um preceito eqüitativo, mas consubstanciando-se em um efetivo mandamento com conteúdo normativo. Se a ordem civil-constitucional assegura a livre iniciativa, a autonomia privada e outros elementos indispensáveis a fim de garantir uma equilibrada relação negocial, com esteio na função 15 social do contrato, a proibição do enriquecimento sem causa é um princípio congênito. Nesse sentido, Agostinho Alvim tipifica o instituto como um princípio geral de direito: 'Por outro lado, é inquestionável que a condenação do enriquecimento injustificado é princípio geral de Direito, porque, com maior ou menor extensão, ela tem sido recomendada por todos os sistemas, no tempo e no espaço. Não obstante isso, apesar da teoria em tela ser coerente ao pensamento que se adota, ela é imperfeita. A teoria que se propõe não é limitada como sustentado nesse segmento, mas tem outros contornos que não se circunscrevem a um mero princípio integrativo do direito, a ser aplicado na omissão da lei, segundo dispõe o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. A vedação do enriquecimento sem causa é um princípio norteador do direito obrigacional, que possui fundamento na Constituição Federal e legislação infra-constitucional, possibilitando o seu uso como uma fonte obrigacional por meio da ação de enriquecimento e como supedâneo a qualquer medida litigiosa." (NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 123-124). (18) A ação proposta com a finalidade de recompor o enriquecimento sem causa denomina-se actio in rem verso. (19) "A razão será, talvez, porque a matéria não tenha encontrado no Direito romano o desenvolvimento que fora de desejar. Faltaram-lhe segurança e aquele rigor lógico que os jurisconsultos souberam imprimir aos institutos. Parece, mesmo, que se não chegou a construir um verdadeiro sistema de princípios, limitando-se as fontes a apontar soluções de inspiração na eqüidade, porém dispersas." (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 183). (20) "As institutas de Justiniano (III, 27, 6) enquadram entre os quase-contratos a indebit solutio (pagamento do indevido), que é uma das hipóteses de enriquecimento sem causa, na qual o que recebeu indevidamente está obrigado a restituir aquilo que lhe foi pago. Ao lado da indebiti solutio (pagamento do indevido), há outros casos de enriquecimento sem causa em que se reconheceu, no direito romano, a obrigação de restituir o que foi recebido sem causa jurídica. Essas hipóteses também devem ser colocadas entre os quase-contratos." (ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. II, 1986. p. 258). (21) LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 61-62. (22) LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 63. 16 (23) AMARAL, Francisco. Direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, p. 431. (24) Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, v. I, 1956. p. 271. (25) AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 432. (26) WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 234. (27) Tratado das obrigações pessoais e recíprocas. Rio de Janeiro: Garnier, tomo I, 1906. (28) WIEACKER, Franz. Op. cit., p. 234. (29) GALLO, Paolo. L'arrichiamento senza causa. Padova: Cedam - Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 1990. p. 133-134. (30) Traité de droit romain. Paris: Librairie de Firmin Didot Fréres, tome quatriéme, 1856. p. 78. (31) Uma interessante análise ao dispositivo em CIAN, Giorcio; TRABUCCHI, Alberto. Commentario breve al Codice Civile. 2. ed. Padova: Cedam, 1984. p. 1407. (32) No Código Civil italiano, o enriquecimento sem causa é examinado logo após a gestão de negócio. Paolo Gallo, no excelente trabalho acima referido acerca da matéria, lamenta que se trate do princípio depois de enunciar uma de suas hipóteses: "(...) Ma vi è di più; il legislatore ha collocato l'articolo nel punto meno opportuno, ovvero dopo aver disciplinato non solo l'azione di gestione, ma anche il pagamento dell'indebito. Si tratta di una sistematica che fa precedere all'enunciazione del principio ispiratore dell'intera materia l'enunciazione dei casi particolari: là dove un tale principio avrebbe dovuto esser anteposto sia alla gestione d'affari altrui che al pagamento dell'indebito, o per lo meno a quest'ultimo, como accade nel BGB. La sistematica del codice è perciò stata criticata specie dalla dottrina tedesca, la quale ha giustamente considerato che l'enunciazione del principio generale dovrebbe precedere e non seguire i cais particolari". (GALLO, Paolo. L'arricchimento senza causa. Padova: Cedam, 1990. p. 139-140). Com razão o mestre italiano. Curiosamente - e desgraçadamente - o nosso Código de 2002 comete a mesma impropriedade; trata-se primeiro do pagamento indevido para, logo depois, cuidar do enriquecimento sem causa. (33) Op. cit., p. 271. (34) Assim, expressamente, registra ALVIM, Agostinho. Do enriquecimento sem causa. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 259, 1957. p. 3. 17 (35) "Note-se que a palavra causa é comumente utilizada na terminologia do direito em múltiplas acepções. Pelo que toca ao aspecto que nos interessa aqui, verifica-se que os juristas e os legisladores, dada a grande variedade das situações possíveis, têm dificuldade em elaborar uma fórmula unitária que sirva de critério para a determinação exaustiva das hipóteses em que o enriquecimento deve considerar-se privado de justa causa." (COSTA, Mário Julio de Almeida. Direito das obrigações. Coimbra: Livraria Almedina, 1980. p. 62). (36) Direito das obrigações. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1982. p. 136. (37) A causa dos contratos. In: Revista Trimestral do Direito Civil, Rio de Janeiro: Padma, v. 21, 2005. p. 95. (38) MONCADA, Luis Cabral de. Lições de direito civil. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1995. p. 654. (39) LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 481. (40) MONCADA, Luis Cabral de. Op. cit., p. 654. (41) ALVIM, Agostinho. Op. cit., p. 23. (42) O termo "causa-motivo" revela-se um completo pleonasmo, pois as palavras causa e motivo são sinônimos, o que pode gerar confusão. Não se deve, contudo, confundir a causa com o motivo (ou a "causa motivo"). O motivo se relaciona aos elementos internos, psicológicos, que levaram a pessoa a adotar certo comportamento. Consoante se mencionou, o motivo é irrelevante ao negócio jurídico, salvo se referido como sua razão determinante. O Código Civil de 2002, no artigo 140, corrige a lei revogada que, erroneamente, tratava por causa o que, na realidade, era motivo (cf. artigo 90 do Código Civil de 1916). (43) Newton de Lucca corretamente adverte a dificuldade de se definir o enriquecimento sem causa, anotando que não se consegue "achar uma fórmula genérica do que seria efetivamente a falta de causa legítima". (Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, v. XII, 2003. p. 108). (44) ALVIM, Agostinho. Op. cit., p. 25. (45) PEREIRA, Caio Mário da Silva. (Instituições de direito civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 1997. p. 320) apresenta uma lista dos doutrinadores de nomeada que seguem uma outra posição: "Esta controvérsia tormentosa e infindável não se resolve na leitura dos escritores que ocupam posição de combate, seja no campo causalista, com Domat, Pothier, Aubry et Rau, Demolombe, Colin et Capitant, Venzi, Carioca-Ferrara, Ruggiero, Mirabelli, 18 Bonfante, Stolfi, Messineo e tantos outros, como entre nós Amaro Cavalcanti e Torquato Castro; seja nas hostes anticausalistas, com Planiol, Laurent, Demogue, Dabin, Windscheid e, entre nós, Carvalho de Mendonça, civilista, e Clóvis Beviláqua". (46) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 320. (47) Teoria general del negocio jurídico. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, p. 140. (48) "...o ordenamento civil brasileiro não dá qualquer guarida a negócios abstratos, isto é, a negócios que estejam sujeitos, tão-somente, à vontade das partes, exigindo, ao contrário, que os negócios jurídicos sejam causais, cumpridores de uma função social. Nesta linha de raciocínio, teria o legislador exteriorizado, através dos termos gerais da cláusula geral do art. 421, o princípio da 'causalidade negocial'." (MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 119). (49) Betti examina o assunto com maestria em capítulo específico denominado: "Transcendência político-legislativa de la causa del negócio como razón de la tutela jurídica", op. cit., p. 147152. (50) NETO, Abílio. Código Civil anotado. Lisboa: Livraria Petrony, 1980. p. 214. (51) "O incremento do patrimônio é produto do labor, resulta do esforço individual ou coletivo, através de atos jurídicos, correlacionando coisas e pessoas, com subjugação ao império do senhor, dos bens ofertados pela natureza, ou transformados, ou produzidos pelo ente humano, precipuamente para aprazimento de seus interesses. É o justo enriquecimento. Legítimo ele há de ser dentro da composição jurídica que o ampara, seja no aspecto puramente econômico (todo ato de direito tem extrato de economicidade), seja no ângulo social (já que toda produção está voltada para os fins da assembléia humana). Ilegítimo, ele o é quando ilícito, tendo a reprovação da lei. Ou, ainda, quando desprovido de liceidade, de juridicidade, de justa causa, por não encontrar no sistema ordenatório princípio legal ou de justiça a tutelar ou desamparar a alteração da universitas bonorum." (PAES, Pedro. Enriquecimento sem causa. Rio de Janeiro: Resenha Universitária, 1977. p. 31). (52) "Na opinião de outros, finalmente, dentre os quais cumpre salientar Cunha Gonçalves, para justificar a ação do não locupletamento nenhuma teoria é precisa além dos princípios clássicos da justiça e do Direito: 19 'dar a cada um o seu (suum cuique tribuere), não lesar ninguém (neminem leadere)'. O não locupletamento é uma resultante desses dois axiomas jurídicos. O locupletamento pode nascer, tanto de um fato lícito, como de um fato ilícito, mas é sempre uma lesão involuntária do patrimônio alheio. Há que restituir ou indenizar, porque não há direito absoluto de gozar ou conservar. Não restituir ou não indenizar é praticar um ato ilícito, é apropriar-se uma pessoa do que, de direito, não lhe pertence, ou aproveitar-se do sacrifício, do trabalho, ou do dano de outrem, contra a vontade deste, que de nenhum modo pretendeu beneficiar o locupletador (Op. cit., número 607, in fine). A eqüidade, a nosso ver, é o fundamento do princípio do não locupletamento às custas de outrem. Vale o mesmo que dizer que Cunha Gonçalves está com a razão, quando assevera que para justificar a ação do não locupletamento nenhuma teoria é precisa além dos princípios clássicos da justiça e do Direito a que aludiu, porquanto esses princípios nada mais traduzem do que regras de eqüidade. Realmente, a ação de in rem verso deve ser admitida de uma maneira geral, como sanção da regra de eqüidade de que não é permitido a ninguém enriquecer injustamente às custas de outrem: jure naturae aequum est, neminem cum alterius detrimento et injuria locupletatiorem fieri (L. 206, D. de R.J. - 50,17)." (SANTOS, J. M. Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado. 8. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, v. XII, 1963. p. 382-383). (53) O art. 206, § 3º, IV, do Código de 2002 ajustou o prazo prescricional de três anos para a parte lesada invocar o enriquecimento sem causa. (54) "Todos os juristas pátrios, que cuidaram do problema do enriquecimento sem causa, ao cogitarem da questão relativa ao caráter da ação de enriquecimento, propenderam, embora limitadamente, pelo seu cunho subsidiário." (LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 77). (55) Esse conceito consta expresso na lei civil portuguesa: "Consoante dispõe, na sua primeira parte, o artigo 474 do Cód. Civ., "não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indenizado ou restituído"". (COSTA, Mário Júlio de Almeida. Op. cit., p. 451). (56) Transcreva-se a seguinte ementa, na qual o instituto foi corretamente aplicado: "Ação de indenização. Utilização pelo empregador, estabelecimento hoteleiro, em cardápio de seu restaurante, de foto 20 estampada de sua empregada, valendo-se de relação de subordinação a que estava esta última submetida. Uso abusivo da imagem caracterizado. Indenização. Fixação - levando em conta que a autora não é modelo fotográfico - em valor justo sem os excessos que possam conduzir a enriquecimento sem causa da autora. Desacolhimento do pedido de pagamento de percentual sobre o faturamento do restaurante, por ser inimaginável que dito faturamento possa ter aumentado, pelo fato da existência da foto da autora no cardápio. Sentença parcialmente reformada para redução do valor da indenização". (Ap. Civ. 1999.001.07237, 7ª CCTJ, Relatora Des. Áurea Pimentel Pereira, j. 30.06.1999) (57) DEMOGUE. Traité des obligations. Paris: Arthur Rousseau, v. III, 1925. p. 7. (58) "A clareza do princípio não deixa dúvida quanto à indicação do pagamento indevido como fonte autônoma de obrigações." (GOMES, Orlando. Op. cit., p. 247). (59) LOPES, Miguel Maria de Serpa. Op. cit., p. 55. (60) "O Cód. Civ. considera o enriquecimento injustificado uma fonte autônoma de obrigações, estabelecendo no art. 473, n. 1: 'Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou'." (COSTA, Mário Júlio de Almeida. Op. cit., p. 58). (61) VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. 8. ed. Coimbra: Almedina, 1970. p. 308. (62) "Das situações que condicionam o nascimento de obrigações, oferece particular relevo, a ponto de ser destacada como fonte autônoma, aquela em que se encontra alguém que, sem causa legítima, obteve vantagem patrimonial à custa de outrem. Diz-se que, nesse caso, há enriquecimento seu causa. A lei o condena, obrigando quem tirou o proveito a restituí-lo." (GOMES, Orlando. Op. cit., p. 32.) "Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir." (GOMES, Orlando. Op. cit., p. 247). Orlando Gomes fundamenta a sua opinião: "Em conclusão: o pagamento indevido é um fato do qual a lei faz derivar obrigações. Não se enquadra entre as fontes voluntárias, nem pode ser incluído na categoria do ilícito civil. É, portanto, irredutível a qualquer das grandes categorias pelas quais se distribuem as mais freqüentes causas geradoras das obrigações. Apresenta-se como um dos eventos que condicionam o nascimento de obrigações específicas." (GOMES, Orlando. Op. cit., p. 250). 21 (63) Serpa Lopes, contudo, assim fundamenta a necessidade de o enriquecimento sem causa servir como fonte de obrigações: "A ordem jurídica não poderia permanecer indiferente ante um deslocamento de riqueza imotivado, causando um desequilíbrio injusto. Assim, é o caso de alguém ter feito construções ou plantações em terrenos alheios, enriquecendo o dono do solo, ou o de efetuar o pagamento de um débito já liquidado. Em tais circunstâncias, há um rompimento de equilíbrio entre dois patrimônios. Uma providência se impõe e o remédio consiste em se conceder ao empobrecido um crédito contra o enriquecido, do mesmo modo que se outorga à vítima de um delito uma ação contra o causador do dano. Assim, o enriquecimento sem causa se transforma numa fonte das obrigações, tal qual ocorre na culpa extracontratual ou na gestão de negócios." (Op. cit., p. 56-57) (64) Essa também é a opinião de Arnoldo Wald (Direito das obrigações. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 86). (65) "Caractère illicite de l'enrichissement sans cause. Traditionnellement on considère cet enrichissement comme faisant naître une action quasi-contractuelle, l'action "de in rem verso". Ceci tient à ce que l'ancienne action romaine de ce nom se rattachait à la gestion da pécule el par conséquent dérivait d'actes contractuels. Mais si l'on réfléchit que ce qui oblige à restituer est le principe d'après lequel il n'est pas permis de conserver un enrichissement obtenu sans cause aux dépens d'autrui, on se convainera que celle acition appartient à la famille des actions nées de faits illicites." (PLANIOL, Marcel. Op. cit., p. 313). (66) Almeida Costa faz distinção entre os atos anti-jurídicos e os ajurídicos para explicar porque o enriquecimento deve ser referido entre as fontes autônomas das obrigações e não referido como um tipo de ilicitude. Eis o trecho: "O problema consiste em distinguir, entre as vantagens patrimoniais que um indivíduo pode obter na vida de relação, aquelas que - embora não chegando ao extremo de serem conseqüências de comportamentos antijurídicos ou factos ilícitos (que envolveriam uma responsabilidade por danos) - determinam, todavia uma obrigação de restituição, por não se encontrarem dotadas de suficiente justificação em face do direito. Quer dizer: reputa-se que o enriquecimento carece de causa, quando o direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial. Mas ele é apenas ajurídico, no sentido de 22 substancialmente ilegítimo ou injusto, e não formalmente antijurídico." (Op. cit., p. 62-63) (67) Ressalte-se que o novo Código Civil permite, em algumas situações, que se saneie atos anuláveis, como vai se dar, por exemplo, no § 2º do art. 157, relativo à lesão, e no art. 144, tratando do erro. (68) Caso quem alimente o animal saiba que o animal pertence a outrem, mas dá de comer ao cão para que ele não morra, será o caso de gestão de negócio, consoante registra o art. 870 do Código Civil Brasileiro de 2002. (69) ALVIM, Agostinho. Op. cit., p. 19. (70) ALVIM, Agostinho. Op. cit., p. 19. -x-x-x-x- 23