APPARICIO SILVA RILLO: A TRANSIÇÃO DA TRADIÇÃO RUMO AO MODERNISMO Autor: Luiz Carlos Erbes1, mestrando Resumo Este artigo investiga a transição da poesia de Apparicio Silva Rillo rumo ao Modernismo. O poeta, que retratou de forma idealizada o espaço campeiro nas duas primeiras obras, incorporou novos elementos a partir do livro São Borja aqui te canto e passou a produzir uma poesia modernista. Tradicional no começo, Rillo rompe com a visão passadista e assimila um novo olhar, em que fala da angústia, da solidão, do vazio e de coisas simples. O rompimento vai além do conteúdo, se dá também com uma inovação na forma. Palavras-chave: Poesia, Tradição, Modernidade, Rio Grande do Sul Abstract This article investigates the transition from Apparicio Silva Rillo’s poetry work towards the Modernism. The poet, who captured an idealized idea of the pampa countryside in the first two works, incorporated new elements from the book São Borja aqui te canto and begin to write modernist poetry. Traditional in his early works, Rillo creates a rupture with his past view and absorb a new one, in which he talks about grief, loneliness, emptiness, and the unimportant things. The rupture goes beyond the content in the poems, it is also an innovation in its form. Key-words: Poetry, Tradition, Modernity, Rio Grande do Sul Do cancioneiro popular à produção atual, o regionalismo assume um papel relevante na produção poética no Rio Grande do Sul. A cor local está inscrita na poesia, seja na exaltação do campo e de seus habitantes seja no retrato humano de seus personagens, e ocupa um lugar destacado em todos os estilos de época, do Romantismo ao Modernismo. Esse olhar para o regional está não apenas presente na obra de Apparicio Silva Rillo2, mas assume um contorno, se não único, expressivo, pela transição que a sua obra poética, composta por oito livros publicados entre 1959 e 1985, reflete. Tradicional, ele rompe com a visão passadista e assimila elementos do modernismo. 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras, Cultura e Regionalidade da Universidade de Caxias do Sul – UCS. Email: [email protected] 2 Vamos nos referir a Apparicio Silva Rilo, na sequência do texto, com as iniciais do nome A.S.R. A produção literária de A.S.R. vai muito além da poesia, investigada neste artigo. A obra do poeta inclui contos de sucesso (a série Rapa de Tacho3), estudos folclóricos (destaca-se Já se vieram! - Tradição, folclore e a atualidade da cancha-reta no RGS, de 1978, que ganhou o prêmio Ilha de Laytano), textos para teatro e letras para músicas que animaram milhares de fãs de eventos nativistas e acumularam prêmios. Por essa significativa contribuição, foi eleito membro da Academia Rio-grandense de Letras, em 1981. Natural de Porto Alegre e registrado em Guaíba, A.S.R. fez o caminho inverso de muitos gaúchos na década de 1950: deixou a cidade e foi para o interior. Em 10 de outubro de 1953, dia do padroeiro de São Borja, ele chegou em Nhu-Porã, distrito do município, para trabalhar como contabilista numa casa especializada no comércio de lãs. Segundo informa o texto biográfico que acompanha a obra 30 anos de poesia, foi nesse meio que o autor teve, por cinco anos, contato permanente com os tipos mais singulares de nossa vida campeira: o fazendeiro e os peões de campo; o capataz e os esquiladores de safra; o tropeiro e os domadores; o carreteiro e os contrabandistas de médio e pequeno porte; o jogador profissional e os simples 'orelhadores de sotá' dos comércios de carreira. (RILLO, 1986, p. 151). Guilhermino Cesar, em Rio Grande do Sul – Terra e povo, coloca o poeta em um grupo de escritores, ao lado de Jayme Catetano Braun, João Otávio Nogueira Leiria, Zeca Blau, entre outros, em que predomina o “lirismo sentimental” (CESAR, 1964,p. 217). Cesar refere-se a esse grupo, que alcança ótima repercussão junto ao público, como a “linhagem dos poetas gauchescos” (CESAR, 1964, p. 216), pela fixação na “temática fornecida pelo campeiro e pelas tradições ligadas à sociedade rural.” (Idem). Inserido nesse contexto, A.S.R. produz uma obra em que os elementos da tradição são preponderantes. Em 1959, quando já residia na cidade de São Borja, o autor publicou os primeiros versos. O olhar do poeta em Cantigas do tempo velho é, em sua essência, tradicional. As referências ao passado e ao espaço rural idealizado são constantes e aparecem em quase todos os poemas do livro lançado em 1959 e reeditado nos anos 1970. Essa tradição encontra-se nas referências ao espaço campeiro – a estância, o galpão, o bolicho – e a vivência da região, com um tom apológico e ufanista. Lisana Bertussi, ao falar da obra Alguns poemas, de Augusto Meyer, fala da tradição como uma visão linear da realidade (...) [com] enfoque do universo regional (...) otimista, luminoso, alegre, idealizador, como quer a tradição do Regionalismo gaúcho, que configura, romanticamente, o campo como um paraíso, isento de qualquer tipo de conflito. (BERTUSSI, 2009, p. 89) O poema “Galpão” traz uma série desses elementos. A construção presente nas estâncias 3 Série com gaúchos gauchescos conta com três lançados em 1982, 1983 e 1984, pela Editora Tchê. pelo Pampa afora e ponto de encontro de gaúchos é retratada como simples, mas acolhedora. É um quadro que se molda ao cancioneiro popular e à poesia romântica, em que o universo do gaúcho é retratado sempre como simples, com exceção da riqueza dos arreios do cavalo. Embora escrevendo no período modernista, A.S.R. mantém essa visão idílica no começo de sua produção poética. Isso evidencia-se na primeira estrofe: Meu tosco galpão de estância erguido sem aparato, aqui no mais de retrato sem te pedir permissão; abrigo guasca sem luxo, lar paterno do gaúcho, sala de estar do patrão. (RILLO, 1986, p. 126) Esse abrigo é “sem luxo”, embora o termo patrão indique que temos, no poema, um proprietário com terras, provavelmente com escravos ou peões contratados. O galpão, retratado como local da educação do gaúcho, é referido também com um espaço em que tudo é bom e positivo. Uma das boas referências envolve o churrasco, como nestes versos: Churrasco feito em teu fogo tem sabor mais apurado, porque se entranha no passado que devagar vai tostando, um aroma de mel de abelha que vem da tora vermelha do velho angico queimado... (RILLO, 1986, p. 126). Além disso, temos o galpão retratado como espaço para relembrar o passado, como evidenciam os versos: “Sob as traves do teu texto nossa gente rememora as arrancadas de outrora glorificadas no passado” (RILLO, 1986, p. 127). Foi, continua o poema, no “recesso de teu ventre” (RILLO, 1986, p. 127) que se “amalgamou-se esta raça / soberana nas coxilhas” (Idem) e se escreveu a “história dos farroupilhas” (Idem). O desfecho do poema reforça esse vínculo do galpão com o gaúcho, e seu valor do ponto de vista da história. Observe-se: Ao calor dos carvões rubros do fogo aceso em teu chão, a crioula tradição se retempera e se expande, conservando nas histórias as cicatrizes e as glórias do verdadeiro Rio Grande! (RILLO, 1986, p. 127). Em “Galpão”, os elementos tradicionais estão presentes do início ao fim. O espaço está claramente idealizado, como parte formadora da personalidade do gaúcho. Isso repete-se em “Bolicho”, referindo-se a um outro ponto de encontro do habitante dos pampas. Mais uma vez, é uma construção simples, com “paredes de pau-a-pique” (RILLO, 1986, p. 128) e o chão de “barro bem batido, com cobertura de capim” (Idem). Nas prateleiras, garrafas “se entreveram com chaleiras,/ peças de chita e de brim” (Idem). Esse bolicho, com o balcão “picado de faca” (RILLO, 1986, p. 128) e com presença de “algum buraco de bala” (Idem), traz uma referência à luta do gaúcho contra o governo imperial e, indiretamente, à Revolução Farroupilha. Veja-se: “Bolicho que dá-se o gosto / de nunca pagar imposto / pro Tesouro da Nação!” (Idem). É o gaúcho bom de briga que ali aparece, que não aceita dobrar-se ao governo imperial. O lado viril dessa personagem ganha força expressiva na sequência do poema, sob a forma de uma briga: De repente estoura o “rolo” sem que se saiba o motivo! Rude embate primitivo onde advoga o facão, onde o juiz é o destino que às vezes, fora de tino, castiga quem tem razão! (RILLO, 1986, p. 129) O poema fala de um passado não definido na linha do tempo, glorificando-o como algo bom, idealizado. Isso pode ser observado nos versos “Quanta saudade ao lembrar-te, / bolicho do meu rincão” (RILLO, 1986, p. 129). Na última estrofe há destaque para o local, como espaço sagrado de vivência do regional: Bolicho beira de estrada! A tábua de teu balcão é a mesa de comunhão da gauchada gaudéria; é o rude confessionário onde o guasca solitário chora as mágoas da miséria. (RILLO, 1986, p. 129) “Bolicho” faz menção ao amor - “Centro social da campanha, / onde se afogam na cancha / os deserdados do amor” (RILLO, 1986, p. 129) -, mas é no poema “No bolicho” que o tema assume a condição central, a partir de um olhar tradicional: o gaúcho quer “beber no gargalo / para esquecer o pialo / que o tal de amor me atirou” (RILLO, 1986, p. 130). Esse guasca guerreiro, “índio duro de queda” (Idem), sucumbe diante do feitiço de uma tirana, como fica claro na estrofe: Caí no tiro de laço de um olhar de china atrevida, que embuçalou minha vida na armada negra das tranças pra depois de ter-me preso marcar-me com seu desprezo na picanha da esperança. (RILLO, 1986, p. 130-131) O amor retratado no poema carrega uma série de elementos presentes no cancioneiro popular, com um tratamento similar: o homem aparece como vítima, enquanto a mulher assume a condição de vilã, por enfeitiçá-lo. A produção inicial de Rillo é rica em termos do regionalismo gaúcho. “Galpão”, “estância”, “guascas”, “churrasco”, “coxilha”, “farroupilha”, “campanha”, “gaudério” são palavras recorrentes em Cantigas do tempo velho. Há ainda expressões que remetem à vida do campo, como no poema “No Bolicho”, em que aparece a frase “cancha reta do amor” (RILLO, 1986, p. 130). Na segunda obra, Violas de canto largo (1968), esse olhar permanece praticamente idêntico. “Romance de João da Gaita” tem uma série de termos ou expressões do universo regional gauchesco, como “estância”, “gaudério”, “vaqueano”, “cuia”, “rodas de chimarrão”, só para citar alguns. O espaço do poema é o pampa gaúcho, com referências à Guerra dos Farrapos. O protagonista, um tocador de gaita, é essencialmente livre, tal como o gaudério, pois “nem sabia o que buscava” (RILLO, 1986, p. 84), “andava como os arroios” (Idem) que “procuram seu próprio curso / pelos acasos do chão” (Idem). Há referências à hospitalidade gaúcha – “Se alvorotavam as estâncias / quando o gaudério chegava” (RILLO, 1986, p. 85) – e às apresentações em bolichos. Uma estrofe, em particular, é exemplar, pelo número de referências à cultura gauchesca: E o fogo bordava rendas no bastidor estirado do santa-fé do galpão. E a cuia fazia roda na ciranda centenário da volta do chimarrão. E a gaita velha chorava que nem china candongueira que enfrenou para carreira o flerte do coração. (RILLO, 1986, p. 84) O poema se passa na Revolução Farroupilha, ocorrida entre os anos de 1835-1845, em que o tocador de gaita é recrutado como “vaqueano da tropa” (RILLO, 1986, p. 87). João da Gaita se vê na luta e, nas horas de descanso, “puxando a gaita manheira” (RILLO, 1986, p. 88). O poema explora esse contraste, em que a personagem se vê envolvida. É o autor incorporando uma nova visão, como neste trecho: “La fresca, não entendia por que sina Deus lhe dera duas funções tão distintas para o mesmo par de mãos. (RILLO, 1986, p. 88) O protagonista João da Gaita, que sonha em ver a “querência irmanada”, revolta-se com o conflito, para ele fruto da “ambição pura de mando / dos chefões da capital...” (RILLO, 1986, p. 88), que levaram os gaúchos a uma guerra civil enquanto “ficavam tomando mate / peleando só por jornal...” (RILLO, 1986, p. 89). O protagonista resolve desertar. Observe-se: Desertor? Talvez o fosse fazia pouca questão. Mas desertor por consciência, ficasse bem entendido - soldado não é bandido para abater um amigo só porque manda o chefão... (RILLO, 1986, p. 89) Nesta parte do poema, A.S.R. constrói uma personagem que está longe de ser o mitificado herói gaúcho, que não teme inimigos e jamais foge de uma luta. Pelo contrário, João da Gaita não se coaduna mais com esse rótulo, ao deixar a luta para trás. Embora o poema tenha uma série de elementos, que configuram o tradicional, “Romance de João da Gaita” já apresenta, em alguns aspectos, uma visão inovadora. Essa incorporação do olhar modernista leva A.S.R. e rever as duas primeiras obras, em um prefácio num relançamento das duas obras iniciais, nos anos 80, em que o poeta afirma: Cantigas do Tempo Velho e Viola de Canto Largo não seriam editadas. Pelo menos se a decisão dependesse apenas de mim. Uma e outra obra (…), embora a boa receptividade do público leitor, tanto que se esgotaram em menos de dois e um ano, respectivamente, parecem-me, hoje, carecer de um melhor cuidado formal, de um mais acabado tratamento de estilo, de aprofundamento e escolha mais acurada de temas. Em sua, enfeixam, com algumas exceções, trabalhos que classificaria como de principiante. (RILLO, 1984, p. 11) Nas obras seguintes, há em A.S.R. uma nova visão do universo gauchesco, modernista. Essa nova abordagem configura-se, na poesia, a partir de uma apreensão da realidade, em que a intuição, a deformação, a fragmentação, a impessoalidade e o novo conceito de belo feio estão presentes. Como afirma Lisana Bertussi: Afastando-se das formas racionalistas com que muitas tendências anteriores olhavam o mundo real, na modernidade inaugura-se uma nova maneira de captação da realidade que é intuitiva, sinestésica, deformadora, fragmentária, rearticuladora, respeitando todas as possibilidades de percepção, inclusive o sonho. Esses procedimentos representam um esforço grandioso de configuração do sentido, num momento em que a limitação do mundo remete ao inexorável vazio, o que não rouba do poeta a vontade de recuperar a oportunidade de momentos epifânicos, reveladores da significação quase impossível. (BERTUSSI, 2009, p. 21). Com o modernismo, destaca Bertussi na obra Tradição, Modernidade, Regionalidade, o foco do fazer poético não está muita vezes centrado no objeto, mas no movimento; o objeto passa por um processo de “desconcretização” (BERTUSSI, 2009, p. 33). O olhar já não está mais voltado para o passado, mas para o presente; ou, por vezes, se aborda a influência do passado na vida presente. O campo cede lugar ao urbano, o público se sobrepõe ao privado. A angústia, a solidão e o vazio passam a permear a poesia. Há inovação também na forma, numa reação ao tecnicismo, como afirma Lisana Bertussi, ao citar Paul Verlaine: “Não se poupa a eloquência, que deve ser destruída e se considera a rima como um confinamento do qual não se podem controlar as possibilidades.” (BERTUSSI, 2009, p. 35). As novas ideias, que surgiram na Europa no final do século XIX e começo do século XX, foram assimiladas pelo movimento modernista brasileiro. No Rio Grande do Sul, poetas como Augusto Meyer, Vargas Netto, Manoelito de Ornelas e Tirteu da Rocha Viana, só para citar alguns, incorporam alguns desses elementos no seu fazer poético, a partir de 1928, ano apontado por Guilhermino Cesar como “o mais significativo para o nosso modernismo” (Schüler, 1987, p. 143). Na obra de Apparicio da Silva Rillo, esse novo olhar começa a aparecer em São Borja aqui te canto, lançado em 1970. Em “Nossa Senhora dos Navegantes no seu dia de festa no Passo de São Borja”, a inovação na forma, marcante no Modernismo, está destacada, como neste trecho: Chhhhhhhhhhhhhhhh à – cum PÃO!!! A molecada corre para apanhar a vareta que desprendida da carga do foguete vem d e s c e n d o arranhando o esmalte do céu. (RILLO, 1986, p. 61) Essa originalidade formal aparece em outros dois trechos do poema, uma imitando o som do tambor e outra para falar do “rio abaixo”. Além disso, A.S.R. adota o recurso de usar algumas palavras em maiúscula – como PÃO –, para dar ênfase ao retrato da festa em homenagem à Nossa Senhora dos Navegantes. Esse recurso aparece nas obras seguintes do poeta: em Doze mil rapaduras & outros poemas, embora sem o mesmo destaque de São Borja aqui te canto; nas demais obras, essa inovação na forma é bem mais sutil. Outra novidade, em relação aos poemas de obras anteriores, está no uso da linguagem popular. Nos dois primeiros livros, o poeta recorre a termos e expressões regionais, praticamente inexistentes agora. Em seu lugar, A.S.R. reproduz a fala de pessoas comuns, como neste diálogo: - Quanto custa o copo? - Cinco pila. - Cruiz... (RILLO, 1986, p. 61) Outro exemplo: As empregadinhas se engasgam de paixão - Manja que bosa o deste pintosão. “Oiá o dourado que bateu no inspinhé traiz a canoa que rio fundo não dá pé,” (RILLO, 1986, p. 62). O poema mostra um rompimento em relação às obras anteriores. Nos livros seguintes, o escritor mantém esse novo olhar. No poema “Meu boi barroso”, do livro Caminhos de Viramundo (1979), ele retoma um tema do folclore popular, mas para falar de lembranças da infância. Entre aspas, reproduz uma estrofe do Boi barroso original, para abrir o poema, mas na sequência ele introduz o tema: “Infância que volta a brincar de saudade.” (RILLO, 1986, p. 53). O poema foca lembranças, como uma “cantiga de ronda dos pousos de tropo / trauteada baixinho na rouca garganta.” (Idem) Ou como neste trecho: “Ingênua toada empilchada em simpleza. / Recanto sereno de acento campeiro / que o ouvido da infância colheu e guardou.” (RILLO, 1986, p. 53-54). O poema traz expressões do universo gauchesco, como “empilchada”, “campeiro”, “tropeiro”, “piá”, mas são termos que apenas identificam uma região, não a idealizando. O tema é outro, o das lembranças fragmentadas do passado que permanecem vivas, como evidencia a estrofe que encerra Meu boi barroso: Quem sabe de onde brotou este canto! A humana memória não sabe onde foi. E a velha toada cinzela em constância no bronze do tempo e no assombro da infância a gesta campeira do homem e do boi. (RILLO, 1986, p. 54) Em Pago Vago, essa nova visão fica ainda mais evidente. A.S.R. retoma a temática regional, em destaque nos dois primeiros livros de poesia, mas a abordagem é distinta. Nas obras iniciais, ele idealiza a região, permitindo a sua classificação como literatura regionalista, denominação que se refere, segundo João Cláudio Arendt, a “obras que promovem a cultura da região como programa e paradigma, que se distinguem de outros espaços ou se defendem em relação a um centro” (ARENDT, 2010). A referência a uma região específica se mantém em Pago Vago, mas não no sentido de idealizá-la; pelo contrário, por vezes esse universo regional assume uma representação de um fardo. No poema que dá título ao livro, isso está presente. O pago, antes um lembrança que remetia a algo bom que havia se perdido no tempo, assume a condição de “cicatriz” (RILLO, 1986, p. 112): “Raiz de minhas íntimas origens, / veio subterrâneo de onde vim.” (Idem). A presença da região é acessória; a essência é o vazio que o poeta sente e o peso da saudade da terra natal. O desfecho é revelador: Vago é meu pago Este que trago, como sombra e manto. É meu destino a cruz de sustentá-lo nos alicerces de vento de meu canto. (RILLO, 1986, p. 112) Em “Cantiga de não voltar”, o poeta retoma o tema do passado, presente em grande parte de sua obra poética, no qual aborda a infância de um menino e o seu sonho de se aventurar pelo mundo. Há referências constantes ao mar, que remete à viagem, ao desconhecido: Meu cais de sombra e flechilha onde em tardes de aquarela sonhava com caravelas quem não sabia remar (RILLO, 1986, p. 42). Em outra estrofe, A.S.R. poetiza os sonhos aventureiros do menino, que não se vê preso aos limites do campo: Meu porto de fim de campo onde um piá vagabundo sonhava ganhar o mundo na popa de uma canoa. (RILLO, 1986, p. 42). Em Pago Vago, Rillo também evidencia as dificuldades e os contrastes encontrados na região. Em “Natalina – III”, o tema é a pobreza do posteiro Zé Qualquer, que vive em um “rancho de pau a pique / como filho novo e mulher” ((RILLO, 1986, p. 80). As duas últimas estrofes evidenciam a condição social e, também, a revolta do poeta: José, Maria e seu filho e um rancho na solidão. Natal de fome e silêncios doendo no coração. Não quero Natais em festa, ao menos enquanto houver tanta pobreza amargando os ranchos do Zé Qualquer (RILLO, 1986, p. 80). Em “Devaneio”, que integra a obra Itinerário de Rosa, Rillo fala de uma jovem que se apaixonou por João. Novamente, os termos regionais estão presentes, mas eles apenas indicam a região, sem exaltá-la. O tema é outro: o da paixão de uma jovem, como vemos nos versos: “Quando estourou a carreira / todo mundo olhou pra cancha, /menos João... João não olhou. (RILLO, 1986, p. 142). Na parte final, o poeta fala da ponta da trança. O foco, mais uma vez, não está no objeto, mas no movimento, como preconizam os modernistas. Veja-se: Chininha sonha acordada mordendo a ponta da trança ao lado do coração. E o laçarote da trança fazendo cosca nos lábios parece a boca do João... (RILLO, 1986, p. 142) Na fase modernista, A.S.R. poetiza as pequenas coisas, pois tudo pode ser tema da poesia. Na obra Doze mil rapadura & outros poemas (1984), marcada pelas pouquíssimas referências regionais, temos vários exemplos disso. Em “Mínimos cantos”, ele fala da formiga, da abelha, do canto do galo, das cigarras. Em “Verbis”, o tema é a palavra. Em “Volta – I”, fala da ausência, do vazio, como evidenciam esses versos: A cama feita. O lençol nevando no azul da lã. O Cristo de dois mil anos na palidez da parede. A bica vertendo água e ele morrendo de sede. Na casa fria e vazia. (RILLO, 1986, p. 29). Em Alma Pampa, a temática campeira volta a estar na configuração da poesia de Rillo, mas ela está longe de ser central. Não está presente em todos os poemas, e quando a região é referida, não aparece na forma apológica. Em “Perfil”, há vários termos regionais, mas o poema não está centrado na vida campeira, mas nas experiências vividas e que o acompanham, como pode se ver nestes versos: Dou rédia aos potros que monto na cancha das invenções, puando esporas de tempo no pelo dos redomões. (RILLO, 1986, p. 113) Seria possível ampliar o número de exemplos mostrando esse nova visão que configura a segunda fase da obra poética de Apparicio Silva Rillo. A partir de São Borja aqui te canto, a poesia de A.S.R. contempla elementos que evidenciam uma nova abordagem do espaço regional, em oposição à visão presente nas duas obras iniciais. Há um rompimento, que altera o foco do poeta: inicialmente, ele fala da vida campeira (o galpão, o bolicho, a pipa, a relação do homem com esse espaço), de uma forma tradicional; depois, focaliza o ser humano, com suas angústias, sonhos, alegrias e vazios, desenvolvendo um percurso da tradição à modernidade. REFERÊNCIAS ARENDT, João Cláudio. Notas para o estudo das literaturas regionais. BERTUSSI, Lisana. Tradição, Modernidade, Regionalidade. Caxias do Sul: Educs e Movimento, 2009. CESAR, Guilhermino. A vida literária no Rio Grande do Sul, in Rio Grande do Sul: Terra e povo. Porto Alegre: Ed. Globo, 1964. OLIVEN, Ruben. A parte o todo: A diversidade cultural no Brasil-nação. Petrópolis-RJ: Ed. Vozes, 2006. RILLO, Apparicio da Silva. Cantigas do tempo velho. Porto Alegre: Ed. Martins Livreiro, 1984. RILLO, Apparicio da Silva. 30 anos de poesia. Porto Alegre: Tchê Editora, 1986. Schüler, Donaldo. A poesia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.