CLARICE LISPECTOR E A DERIVA DOS CONTINENTES: DA DESCOBERTA DO MUNDO À ENCENAÇAO DA ESCRITA Mayara Ribeiro Guimarães Rio de Janeiro Março de 2009 CLARICE LISPECTOR E A DERIVA DOS CONTINENTES: DA DESCOBERTA DO MUNDO À ENCENAÇAO DA ESCRITA Mayara Ribeiro Guimarães Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientador: Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza Rio de Janeiro Março de 2009 2 Clarice Lispector e a deriva dos continentes: da descoberta do mundo à encenação da escrita Mayara Ribeiro Guimarães Orientador: Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Examinada por: Presidente, Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza - UFRJ Prof. Doutor Carlos Mendes de Sousa – Universidade do Minho Prof. Doutor João Camillo Penna – UFRJ Prof. Doutor Sérgio Martagão Gesteira – UFRJ Prof. Doutor Godofredo de Oliveira Neto - UFRJ Prof. Doutor Antonio Jardim – UFRJ, Suplente Prof. Doutor Adauri Bastos – UFRJ, Suplente Rio de Janeiro Março de 2009 3 A Simone e Roberto Cláudio, origem 4 AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu orientador, Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza com profunda admiração e respeito, a quem devo minha formação acadêmica, por guiar, com paciência e atenção, a feitura desta tese; Ao Prof. Doutor Carlos Mendes de Sousa, cuja tese inspirou e conduziu esta pesquisa, pela gentileza em aceitar meu convite e se propor ao diálogo além-mar; Ao Prof. Doutor João Camillo Penna, pelo afeto e diálogo constantes, pela amizade, pela generosidade intelectual e humana; Ao Prof. Doutor Sergio Martagão Gesteira, pelo fino olhar, pela leitura que sempre descobre a surpresa nas entrelinhas, a quem devo meu primeiro olhar de leitora crítica sobre a obra de Lispector na pós-graduação; Ao amigo e Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto, por permanecer sempre perto, antes e agora; A Maria Lúcia Guimarães, pelo apoio e carinho; A Simone Ribeiro, ouro, berço, amparo, A Roberto Cláudio, a difícil e sutil arte de exercitar a diferença no seio do amor; depois de muita procura, o reconhecimento – de ti jamais me separarei; A Evangelina Ribeiro, glória, tradição, raízes; A Yasmin Ribeiro, meu profundo afeto e respeito; A Gabriela Ribeiro, a fraternidade sempre presente no carinho e na paciência; A João Ângelo, anjo; A Silvia Nogueira, “meu amor de prata, meu amor de ouro”, a quem devo a calma aprendizagem da essência; A Izabela Leal, irmã, amiga, cúmplice, cuja existência pulsa viva bem próxima de meu coração; 5 A Márcia, Joseli, Marcos, Ricardo, Sonia, Paulinha, Pedro, Wilson, Dani, pelas tâmaras compartilhadas nas noites de quinta-feira, pelo mar largo do amor, sim, obrigada!, não sei como agradecer mais plenamente; A Arif - certeza; A Luis Maffei, pelo exercício da amizade amorosa, pelos profundos laços de afeto, tua presença é música; A Sebastião, Raquel, Ricardo, pela amizade, pela troca, pelo diálogo; A Sandra e Antônio Cláudio, pelo apoio que desde o início guiou e definiu percursos, jamais saberia agradecer apropriadamente; A Marcelo Jacques, com quem aprendi a apreciar o fino e sutil exercício da crítica, suas aulas eram pérolas; A Alberto Pucheu, em profunda admiração; Aos meus queridos professores que me ensinaram o caminho para chegar até aqui: Wellington, Eucanaã, Rosa, Dau; A todos os professores que me ajudaram nesse percurso: Célia, Afrânio, Ângela Beatriz, meu carinho sempre; Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, o meu agradecimento; A todos os meus alunos, com quem muito aprendi a ensinar e a escutar, em especial aqueles que se tornaram amigos; Por fim, a Kurt, porque o trabalho das estrelas se realizou. Em especial, ao CNPq, por ter me concedido a bolsa de pesquisa sem a qual a elaboração desta tese teria enfrentado grandes dificuldades e ao Programa de PósGraduação em Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da UFRJ, pelo apoio constante. 6 O Autor, de quem é o oráculo de Delfos, Não diz nem subtrai nada, assinala o retraimento (Fragmento93) - Heráclito 7 O brave poets, keep back nothing; Nor mix falsehood with the whole! Look up Godward! Speak the truth in Worthy song from earnest soul! Hold, in high poetic duty, Truest Truth the fairest Beauty! Pan, Pan is dead. Elizabeth Barrett Browning 8 RESUMO Clarice Lispector e a deriva dos continentes: da descoberta do mundo à encenação da escrita Mayara Ribeiro Guimarães Orientador: Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). A partir da leitura dos romances A Paixão Segundo G.H. (1964) e Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (1969), como objetos centrais desta exegese, Água Viva (1973), A via crucis do corpo (1974) e A descoberta do mundo (1991) e dos livros de contos como obras periféricas, a presente tese visa apontar a maneira pela qual a poética elaborada pela narrativa de Clarice Lispector desnarra a tradição judaico-cristã, que ensina a cisão metafísica entre corpo e alma, causa da ferida aberta na subjetividade. Esta fratura, que paralisa o ser, inscreve-se ontológica, cultural e esteticamente e interfere na relação que se estabelece entre sujeito e mundo, encenando o drama do desamparo da subjetividade face o fracasso da missão humana. Da experiência de falência introduz-se o cenário da culpa e a impotência do indivíduo revela-se como fracasso da linguagem, refletida no cenário da noite, do abjeto, da morte e do informe. Pela atualização destas forças na narrativa, a escrita se despe da herança da tradição e se torna abstrata e metatextual. A referência ao ato criativo leva ao questionamento da linguagem e ao limite da nomeação. Por sua vez, a interrogação do nome conduz à formação de novas imagens, expressão do sensível, de forma que o entrelaçamento do pensamento conceitual com o imagético suspenda a cisão entre abstrato e o sensível, o expressivo e o inexpressivo. O equilíbrio entre o pensar-sentir torna-se necessário para que a exposição da ferida se refaça pelo artifício da escrita. A constatação de que a ferida se atualiza como fronteira entre o mistério e a criação provoca um movimento de recomposição do ser descarnado, pela poesia. Assim, a obra clariciana realiza a encenação das máscaras – do artista, do personagem, do autor, da escrita – que o sujeito utiliza para lidar com a ferida aberta. Após a inscrição da palavra na tradição segue-se o desnarrar da letra por meio do despojamento e lento apagamento da escrita. Na alternância entre o vestir o nome, que é também máscara, e o despi-lo, que é também o vazio, entrevê-se a busca do nome que não é dado, mas inventado, inscrição da Poesia. Palavras-chaves: Literatura brasileira, tradição, memória, encenação, poiesis Rio de Janeiro Março de 2009 9 ABSTRACT Clarice Lispector and the continental drift: from the discovery of the world to the drama of writing Mayara Ribeiro Guimarães Orientador: Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). From the reading of Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (1969), and A Paixão Segundo G.H. (1964), as the main objects of this research, and of Água Viva (1973), A via-crucis do Corpo (1974) and the chronicles written between 1967 and 1973 as parallel objetcs of interpretation, this thesis tries to show how Clarice Lispector developes a deconstruction of the christian and jewish tradition, which introduces the metaphysical drift between body and soul that results in a forever open wound in subjectivity. This cut, which petrifies the being, conveys itself as na onthological, cultural and aesthetical cut and it interferes in the relationship between the self and the world, causing the narrative to stage drama of the abandonemment of the self before the failure of the human mission. From the experience of failure the author introduces guilt to the central drama of existence. And the guilt leads the individual to facing his weaknesses, which is reflected in the faileure of tha language to communicate. This failure finds its reflection in the fuundational images of the night, the grotesque, death and the Nameless. By renewing operation of such forces in the narrative, the writing frees itself from the burden of tradition and instead of repeating it, it becomes abstract and metalingusitic. By referring to the very act of literary creation, the text leads to the questioning of language and poetic writing, and to the limits of its conveyance. Such doubts, on the other hand, lead to the creation of new images to try and express sensitity, in a way that the fusion between conceptual and poetic thinking discontinuous the dissociation between the abstract and the concrete, as well as the expressive and the inexpressive. The balance between the thinking-feeling concepto of writing in Lispector’s work becomes necessary in order for the metaphysical wound to be solved by writing. By considering the wound as the limit between mistery and creation the individual may find a way of recomposing its wound by poetic writing. Clarice Lispectr’s narratives stages the masks that constitute the artist, the characters, the author and the writing, used by the individual in facing the wound. After the dialogue with the western tradition, Lispector’s writing blurs its herritage by erasing and depriving itself from this tradition. Keywords: Brazilian literature, tradition, memory, drammatization, poiesis Rio de Janeiro Março de 2009 10 CLARICE LISPECTOR E A DERIVA DOS CONTINENTES: DA DESCOBERTA DO MUNDO À ENCENAÇÃO DA ESCRITA SUMÁRIO PRÓLOGO DOS DESASTRES Ato I _______________________________________________________________ 12 Ato II ______________________________________________________________ 22 CAPÍTULO 1 1.1 - Da encenação de uma paixão ________________________________________ 26 1.2 – Só voa alto o que tem peso: a perigosa lição dos adoradores _______________ 51 CAPÍTULO 2 2.1 - Da memória de Eros como encenação de uma tradição ___________________ 104 2.2 - Do anúncio da escrita: a divina sombra de Ulisses _____________________ 117 2.3 – Eros cosmogônico: a hierofania do sensível _________________________ 127 CAPÍTULO 3 3.1 – Da descoberta do mundo à encenação da escrita _______________________ 168 3.2 –Do mundo da imagem à imagem da escrita ___________________________ 178 3.3 Da via crucis do corpo à noite da imagem ____________________________ 214 O RUMOR DA FERA ENTRE AS FOLHAGENS ________________________ 233 BIBLIOGRAFIA __________________________________________________ 241 11 PRÓLOGO DOS DESASTRES ATO I O tema da paixão de Cristo já foi extensamente estudado por críticos da obra de Clarice Lispector, uma vez que a própria autora concedeu-lhe caráter privilegiado na elaboração de romances como A paixão segundo G.H., explicitamente, ou alusivamente em A hora da estrela e A maçã no escuro, e ainda em livros de contos como A viacrucis do corpo. A edição crítica de A paixão segundo G.H., coordenada por Benedito Nunes na década de oitenta, foi conduzida com o propósito de apontar o diálogo que a obra estabelecia com o texto bíblico. Tom semelhante orientou o artigo de Olga de Sá, “Paródia e metafísica”, da mesma edição, a partir de uma interpretação parodística da via-crucis de G.H. como inversão da paixão de Cristo “do plano da transcendência para o plano da imanência” (SÁ, 1979: 220). Vilma Arêas, por sua vez, constata que o tema era inclusive uma obsessão pessoal de Clarice, para quem a “paixão de Cristo” configurava-se como condição irrevogavelmente humana (ARÊAS, 2005: 46). No entanto, se este episódio bíblico foi um tema recorrente na obra de Lispector, surgindo como fundo estruturador de várias obras, quero agora resgatar outra passagem bíblica com o fim único de servir como metáfora comparativa ao modo – forma – que a escrita clariciana concebe não só este mesmo tema, mas todos os outros que se entrecruzam em seu conjunto literário. O episódio a que me refiro é aquele que sucede à narrativa da paixão: a revelação de Cristo a Maria Madalena. Conhecida também pela expressão Noli me tangere, a cena bíblica descrita pelo Evangelho Segundo São João (João, 20:1-18) foi amplamente retratada por pintores da escola bizantina medieval, dos Renascimentos veneziano, florentino e alemão e do 12 Século de Ouro europeu. Giotto, Ticiano, Bronzino Dürer e Rembrandt são alguns deles 1 . A intenção é que este prólogo seja conduzido pela leitura do conto “Os desastres de Sofia” por meio da qual apresentarei os pontos abordados nesta tese e as alusões referentes ao Noli me tangere. Por que introduzir este episódio nesta apresentação? Primeiro porque na releitura de uma tradição, seja ela bíblica, mítica ou literária, alguns aspectos desta mesma tradição são ressignificados, ganhando novos sentidos e instaurando novos referentes a uma dada realidade. Este movimento, entretanto, quer-se duplo porque ao mesmo tempo em que se revisita um passado cultural, efetua-se também a sua crítica. A tradição em “Os desastres de Sofia” chega por duas vias: pela releitura da tradição de contos moralistas do século XIX e pela alusão bíblica ao par Jesus e Maria Madalena. A tradição literária a que me refiro retorna à cena pela referência que Clarice faz ao livro escrito pela Condessa de Segur, no século XIX, intitulado Les malheurs de Sophie. Como todas as narrativas moralistas dirigidas ao público infantil desta época, textos desta tradição não dissociavam a educação sentimental da criança de uma aprendizagem moral rigorosa, de cunho religioso, em que a figura encaminhadora dos ensinamentos era geralmente representada pela mãe ou por um educador. Através da narração dos ensinamentos, julga-se e condena-se a criança que não corresponde ao papel esperado, com a intenção de promover um modelo ideal de adulto. No conto de Clarice, invertem-se os termos desta escola da desaprendizagem. A figura de ordem é um professor que já de início indica a sua condição de nãolugar, rompendo com a estética classicizante de símbolo de autoridade e conhecimento: “Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos 1 As referências à cena da revelação de Jesus a Madalena ao longo desta apresentação são inspiradas na fina e diligente análise feita por Jean-Luc Nancy acerca do episódio em questão e dos artistas mencionados, na obra Noli me tangere – Essai sur la levée du corps (Paris: Bayard, 2003). 13 dele” (LISPECTOR, 1999: 11). Entretanto, é esta condição de desterritorializado que introduz a transgressão necessária e suficiente para que se estabeleça um movimento de atração e repulsa por parte de Sofia. Aproximação do mesmo, repulsa do diferente. E a relação professor-aluno repudia a clássica articulação repasse-recepção da aprendizagem vinculada a este par social. Estabelece-se inversamente uma relação de salvação-perdição em que “o projeto de salvação do professor” revela um movimento de “salvar-se a si mesma” (ROSEMBAUM, 1999: 55), como afirma Rosembaum, para ao fim converter-se em processo de transformação e auto-descoberta de ambos os personagens. Por trás deste mecanismo, parece-me configurar-se uma verdade mais complexa que a narrativa clariciana não cansa de atualizar a cada novo texto: o jogo de destruir para construir. No centro desta trama, outro fio narrativo aprofunda a camada textual que se estabelece sobre a relação adulto-criança. Nesta etapa de leitura, fica evidente o desastre: as inversões expõem o desamparo do real. A criança rebelde tenta corrigir a “vida errada” do professor, que reconhece como sendo a sua própria, porque “ter nascido era cheio de erros a corrigir” (LISPECTOR, 1999: 14). Neste jogo de destruição e construção, a violência da transformação, que conduz ao lento desaparecimento da criança e ao ritual iniciático no “mundo dos adultos”, acontece no abismo de uma visão. Visão do incompreensível e inominável. O que antes era do domínio de um conhecimento, de uma sophia, se converte em não-entendimento, ignorância. Em imagem. Neste ponto, o primeiro dos dois aspectos centrais do Noli me tangere é convocado. O episódio bíblico representa o momento em que Jesus aparece pela primeira vez depois de sua morte, apresentando-se a Maria Madalena na forma de um jardineiro, reconhecido apenas no momento em que pronuncia seu nome. Ao tentar tocar Jesus com 14 as mãos, o mestre recua e diz: Noli me tangere, convidando o espectador a participar do nascimento de uma visão. O interesse esbarra no sentido que esta cena carrega: a revelação, em abordagem laica, vem apresentar a “identidade do revelável e do revelar”, do “divino” lado a lado “do humano” e “mundano” (NANCY, 2003: 9-10). Em outras palavras, vem anunciar a atualização de um mistério: a identidade do que é visível chega ao mesmo tempo em que a identidade do invisível. E, se este episódio anuncia uma atualização, quer com isso indicar que a verdade não se finda com a revelação em si e tampouco com sua interpretação, porque é múltipla e infinita. Noli me tangere, que pode ser traduzido por “Já não podes tocar-me”, ilustra o aparecimento de um desmaio e evoca uma interdição violenta de contato. Mas, sobretudo, o que mais importa neste episódio é a construção de um delicado exercício de visão que se ergue na observação da cena retratada em imagens e que percorre não apenas o conto aqui referido, mas toda a obra de Clarice Lispector. A escrita desta tese foi a tentativa de mergulhar nesta visão e em todos os abismos que nela se apresentam. José Miguel Wisnik já acusara este exercício no artigo “Iluminações profanas (poetas, profetas, drogados)”. A propósito do conto “O ovo e a galinha”, Wisnik busca identificar uma poética do olhar na escrita de Clarice em que a visão introduz uma fenda por meio da qual “aquilo que se esconde no visível” apareça ao olhar como “pura presença” (WISNIK, 2006: 286). Mas para que isso ocorra, antes, o “olhar” e o “pensamento” precisam esvaziar-se de forma que possam tocar “a coisa” (idem). A partir deste ponto, o invisível se mostra como “desvelamento do real” 2 e enreda a palavra a construir um “texto que glosa ilimitadamente a margem entre o vazio e a palavra” (idem). Ou ainda, entre o visível e o invisível. Entre a presença e a ausência. A potência do texto clariciano reside, portanto, no “deslocamento do olhar” que força a 2 O cuidado referido à palavra “real” é apontado pelo próprio Wisnik: “embora a palavra real também tivesse que ser apagada e zerada para que sobreviesse um contato com um algo real, não-prescrito, nãocodificado, não-trilhado de antemão” (WISNIK, 2006: 286) 15 desterritorialização do próprio ser. Este deslocamento promove o contato entre dois universos distintos, um concreto e o outro inefável, que se aproxima bastante de um movimento engendrado pela estética do Surrealismo. Ainda que este encontro imponha um recuo, antecipa também uma aproximação, uma vez que a negação de seu significado expresso só aumenta a afirmação do gesto oposto. A anunciação daquilo que se deseja tocar, mas que se fecha em sua interdição, no entanto, chega com mais força até nós, até o ponto da visão, no caso de Sofia. O corpo, e poderíamos dizer: o real, que é uma verdade tangível, mas se apresenta como intangível, se esquiva ao contato e revela que a verdade está neste recuo. Porque o recuo dá a medida da presença. Estamos no campo da visão. Ao se apresentar por meio da interdição, o objeto aponta para uma presença que não está onde se acredita que esteja porque imediatamente já está em outro lugar. Lembremos que a visão é a do corpo ressuscitado que acusa um “túmulo vazio”, como aponta Nancy (NANCY, 2003:40). Já nesta imagem, vida e morte se tocam, neste outro. Entretanto, com a interdição do toque por parte do sujeito, a própria imagem se desloca e toca o ponto mais vivo do sujeito que é a morte. Vida e morte se tornam um presente porque “morrer é ininterrupto” (LISPECTOR, 1999: 22). O desvelamento do real, nos termos de Wisnik, chegará para Sofia e para G.H, como para muitos personagens claricianos, por meio da visão. Uma visão que, como Madalena diante do túmulo, acontece no registro de um duplo olhar. O olhar na presença de um túmulo revela uma ausência – e desde o túmulo vazio o olhar retorna. Retorno da morte. Mas a ausência não é de todo vazia, uma vez que Jesus encontra-se presente, porém sob outro aspecto. Neste sentido, conforma-se uma dificuldade de reconhecimento, não tanto pela intangibilidade, invisibilidade ou indivisibilidade do objeto, como o coloca Wisnik, mas porque o real diante do indivíduo é o mesmo já 16 sendo outro, revelando uma dissociação de aspecto, e uma ausência de rosto. O paradoxo da visão, no entanto, ocorre no ponto em que no reconhecer há o desaparecer. Assim como as reencenações do episódio pela pintura, a escrita de Lispector é, da mesma forma, uma tentativa de enfrentar o invisível de frente, dar continuidade ao gesto de ver e conduzi-lo até o cegar do olho e a incandescência da imagem. “O que vi, vi de tão perto que não sei o que vi. Como se meu olho estivesse colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. O que era tão incompreensível como um olho” (LISPECTOR, 1999: 21). Ver se sobrepõe ao dizer, ao compreender e ao tocar. Mas no reconhecer há o desaparecer. Por isso esta realidade que morre congrega em si a presença de uma morte e de um viver. Voltemo-nos agora para o sujeito desta ação. O episódio da revelação de Jesus a Madalena envia-nos também a mensagem de que só os iniciados enxergam dentro do túmulo vazio. Dentro da morte. O que não é para ser visto só se deixa ver por poucos, por olhos que um dia já souberam ver dentro da noite. Por aqueles que se mantiveram de pé dentro e diante da morte. Para Sofia e para G.H. E o conto abre uma nova camada textual: aquela que se estabelece entre o homem e a mulher. A escrita da desaprendizagem de Sofia (de G.H. e de Lori, como busquei mostrar nos capítulos I e II) é também narrativa da desconstrução de mitos e papéis sociais erguidos durante séculos de civilização. “Em superfície de tempo fora um minuto apenas, mas em profundidade eram velhos séculos de escuríssima doçura” (LISPECTOR, 1999: 12). O tempo sofre corte vertical e se divide entre a narração de uma invenção (conto) e a invenção de uma cultura (tradição). Esta cultura reaparece no conto simbolizada pelo par homem-mulher, não mais pelas figuras da aluna e do professor. A narrativa entre Sofia e o professor é apenas “um dos motivos” do conto, 17 que não termina nunca porque é uma longa história, encenada em diferentes tempos por diferentes protagonistas. “É que outros fazem outras histórias” (LISPECTOR, 1999: 26), afirma a narradora do conto, indicando que o motivo continua o mesmo ainda que com outra aparência. Com o corte temporal, a narrativa é remetida ao par de Noli me tangere: a prostituta e o santo. “Sem saber que eu obedecia a velhas tradições, mas com uma sabedoria com que os ruins já nascem – aqueles ruins que roem as unhas de espanto -, sem saber que obedecia a uma das coisas que mais acontecem no mundo, eu estava sendo a prostituta e ele o santo” (LISPECTOR, 1999: 12). A prostituta, neste exemplo, segue o modelo daquela que está desviada do caminho reto, daquela que está em contato com o sujo e o imoral e que carrega também as marcas de Satã. Se seguirmos com a alusão a Madalena, a prostituta de quem Jesus afastou sete demônios, segundo o Evangelho de São Lucas (Lc, 8:2), então esta personagem, Maria Madalena ou Maria de Magdala, foi também aquela que mais se aproximou do divino por conhecer alguns de seus segredos. Como aponta Nancy (NANCY, 2003: 63-72), além da associação que lhe é feita ao papel da mãe de Jesus, abordado mais adiante, alguns episódios revelam seu contato com o divino, de dentro do mais baixo plano em que pode se encontrar o homem, lembrando que Madalena era a única a conviver com os aleijados, leprosos, mendigos e doentes de todos os tipos, a única que junto de si estabelecia um vínculo com o reino da morte, a quem os mortos não deixavam de acompanhar e para quem a morte não se restringia ao fim da vida. Como aponta Nancy, Madalena será a única a ocupar o lugar e a tarefa de lavar os pés de Jesus com água e ungir seus pés com óleo perfumado. Segundo o filósofo, este gesto é uma prefiguração do episódio da revelação porque ungir com óleo é também prática realizada para embalsamar os mortos e a única que responde ao título de Cristo nos batismos. Portanto, Madalena é o símbolo do 18 indivíduo iniciado que nesta vida e neste mundo mantém a proximidade com aquilo que não é deste mundo. Com aquilo que é do universo intangível, invisível e indivisível, nos termos de José Miguel Wisnik. A referência feita à prostituta no conto de Clarice seguirá como um mote repetindo-se três vezes ao longo da narrativa. Nessas repetições, nota-se que a imagem da prostituta vai confundindo seus limites com a imagem da virgem anunciada, descrição que remete à figura de Madalena e de Maria, mãe de Jesus. A prostituta de alma convertida pelo santo representante do rei da Criação. E, como Madalena, Sofia representa vários papéis, o principal – “ser matéria d’Ele”, papel que só seria perdoado pelo próprio Deus porque “só Ele sabia do que me fizera e para o quê” (LISPECTOR, 1999: 13) – transforma-a em uma adoradora da matéria e dos prazeres, motivo que a aproxima ainda mais da figura de Madalena, e que une as pontas do divino e do profano. Não se pode esquecer que a referência ao rei da Criação, este Deus que desenha e conduz os papéis encenados por suas criaturas, associa-se à figura do escritor que, tanto quanto Deus, só ele conhece os segredos e razões condutores de suas criaturas, e ao professor, figura de autoridade e conhecimento que, mais uma vez, vem inverter estes mesmos sentidos. Para Madalena, o reconhecimento daquele real disfarçado e fugidio acontece com a proclamação do nome. Maria só reconhece Jesus quando este a chama pelo nome porque outrora soubera ver dentro do túmulo e antecipar a morte de Jesus, ungindo seus pés. Como afirma Nancy, “Madalena vê a vida na morte porque já viu a morte na vida” (NANCY, 2003: 71). Mas o fundamental no episódio relido pelo filósofo francês não reside na condição que o iniciado tem de poder enxergar dentro das trevas, mas de “abrir os olhos dentro das trevas para que sejam invadidos por ela” (idem) – e se queimem, como “o santo se queima até chegar ao amor do neutro” (LISPECTOR, 19 1979: 164). O momento de escuta do nome é também, para Sofia, o que une dois extremos, tanto para professor, quanto para aluna: o da morte, despojamento da “crosta” que recobre a vida esmagada do professor que ocorre simultaneamente ao seu nascimento, também uma revelação. Note-se que aquela “matéria inerte”, que lentamente se ergue diante dos olhos da menina, é comparada a “um grande morto-vivo”, não no sentido fanstasmagórico, mas no sentido do tangível dentro do intangível. Mas a metamorfose é também da menina, portanto, dupla, porque a nomeação é um rosto. Presença dentro da ausência. A revelação do nome chega junto com a anunciação do rosto. “Foi quando ouvi meu nome” (LISPECTOR, 1999: 18). Como no episódio bíblico, este é o momento em que se introduz o único diálogo entre o par. Explicitamente, esta cena contém um dado que a faz aproximar-se de outra passagem bíblica, contextualizada em alusão a um episódio distinto dos anteriores: o da Anunciação. No momento em que o professor pede a Sofia para aproximar-se e pegar seu caderno, ocorre a anunciação. “Um arrependimento estóico manteve erecta minha cabeça. Pela primeira vez a ignorância, que até então fora o meu guia, desamparavame. Meu pai estava no trabalho, minha mãe morrera há meses. Eu era o único eu.” (LISPECTOR, 1999: 19). Como é comum na obra de Lispector, algumas frases, parágrafos e mesmo textos completos (como será visto nos capítulos II e III desta tese) se repetem ao longo da obra, como reescrituras ou mesmo como motes, reencenações do mesmo no outro. Esta última frase – “Eu era o único eu” – reaparece no conto “Miss Algrave”, de A via crucis... e é interpretado por Vilma Arêas. Em sua leitura dos índices reproduzidos hereticamente ao longo da obra, o da Anunciação aparece no conto mencionado através das núpcias entre Ixtlan, ser extraterrestre do planeta Saturno, e a secretária virgem e recatada que se transforma em prostituta, invertendo os 20 termos do episódio em questão. Ao se apresentar a Ruth Algrave, depois de entrar pela janela como um enviado de Deus, Ixtlan se autodefine, como Sofia, da seguinte maneira: “Eu sou um eu” (LISPECTOR, 1991: 29). Segundo Arêas, esta frase é “um claro simulacro do “sou o que sou”, palavras de Jeová a Moisés” (ARÊAS, 2005: 66), isto é, da anunciação de Deus ao profeta (Ex, 3:14). Em “Os desastres de Sofia”, ela se torna clara anunciação da prostituta que se transformará em santa. Depois deste encontro, que se apresenta quase como uma viacrúcis da criança e do professor, a ressurreição: “Estava sozinha, na relva, mal em pé, sem nenhum apoio, a mão no peito cansado como a de uma virgem anunciada” (LISPECTOR, 1999: 24). E aqui então a figura de Madalena se confunde com a de Maria, mãe de Jesus. E mais adiante, a repetição: Ali estava eu, a menina esperta demais, e eis que tudo o que em mim não prestava servia a Deus e aos homens. Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro. Como uma virgem anunciada, sim. Por ele ter permitido que eu o fizesse enfim sorrir, por isso ele me anunciara. Ele acabara de me transformar em mais do que o rei da Criação: fizera de mim a mulher do rei da Criação. (LISPECTOR, 1999: 25-6). Assim, Madalenas, Sofias, G.Hs. e Lóris iniciam-se como neófitas no universo do duplo domínio porque mergulham e permanecem naquela zona em que o descortínio do real é também o seu afastamento. E o gesto torna-se mais importante do que a imagem, ponto de abandono: abandonar-se a uma presença, ou a uma visão, que nada mais é do que seu próprio retirar-se, seu apagamento, é o mesmo que enxergar a glória, que, por sua vez, é ao mesmo tempo treva (NANCY, 2003: 72). Onde os olhos se abrem, sem medo da cegueira. De chofre se explica para que se nasce com olhos e garras, sem nojo da visão. É que outros olhos fazem outras histórias. 21 Não à toa, é a notícia da morte que introduz a escrita. Uma escrita elaborada em estrutura de mise-en-abîme introduz, por sua vez, pequenas mortes, seja nos distintos planos de relato, como aponta Rosembaum (ROSEMBAUM, 1999: 53), seja no plano do discurso, elaborado sobre paradoxos, pares opositivos, inversões. Uma vez que o sujeito se constrói na própria elaboração da linguagem e por isso devém escrita, pareceme que essa estrutura em espiral quer mostrar que não há construção definitiva do discurso e por isso repete o movimento de contínua e inexaurível metamorfose do ser. ATO II A presente tese de doutoramento busca avaliar o processo de criação das obras produzidas pela autora especificamente nas décadas de sessenta e setenta, entendendo que a elaboração de um projeto estético-literário na obra de Clarice Lispector é fruto de um processo de construção literária que convoca necessariamente toda a sua obra para uma melhor interpretação narrativa, pois a intratextualidade presente na poética da autora revela a unidade de significação de um universo próprio constituído na e a partir da obra. Para tal, a tese divide-se em três capítulos, nos quais se efetua uma leitura de A paixão segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres (1969), o datiloscrito elaborado entre os anos 1972 e 1973, intitulado “Objeto gritante”, Água viva (1973) e A via-crúcis do corpo (1974). Ao longo dos capítulos utilizei as crônicas escritas pela autora entre os anos 1967 e 1973 como comentários críticos e metaficcionais acerca de sua própria obra literária, além do único ensaio escrito pela autora, apresentado em congressos dentro e fora do Brasil, intitulado “Literatura de vanguarda no Brasil”. 22 No primeiro capítulo busco narrar a desconstrução do mito antropocêntrico do homem grego que institui o indivíduo e sua singularidade como centros totalizadores das realidades e diferenciações. O pensamento lógico-racional é tomado como critério único de verdade, o conhecimento da realidade passa a ser assegurado pela razão e por princípios lógicos e leis universais necessárias que asseguram o conhecimento da realidade pela razão até sua aceitação como verdade última e absoluta. Neste mesmo cenário surge a filosofia platônica que se disseminou como a base da tradição cristã, instituidora das idéias de Deus e da moral fundadora dos valores de conduta posteriormente introjetados pela sociedade ocidental. O caminho reto em direção ao que é certo conduz à salvação humana - ensinamento legado à humanidade. Do platonismo, a abdicação ao mundo sensível, a predileção pelo supra-sensível e pelo mundo das idéias, a metafísica, a idealidade. O destino do homem está pré-assinalado no Logos divino e todo indivíduo deve se submeter à ordem divina, que prega, inclusive, a participação do homem na perpetuação do modelo do bem. Na busca pela verdade absoluta, cujo propósito é atingir a forma ideal da realidade, aquele universal aceito por todos, o platonismo abandona o particular e o mundo sensível, e introjeta na civilização a cultura do dualismo psicofísico, que a narrativa clariciana desconstruirá e que esta tese abordará nos capítulos I e II. A verdade platônica opõe-se à realidade particular concreta, fundamentada na experiência que garante a existência do real, uma vez que, no platonismo, essa realidade apresenta-se como parcial, transitória e mutável. No segundo capítulo, faço a leitura de Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres buscando observar de que maneira Clarice Lispector transforma a herança mítica do mito cosmogônico do nascimento de Afrodite em nova mitologia, reinventando os próprios referentes e efetuando uma crítica ao legado cultural perpetuado por essa mesma tradição. Neste capítulo, busco mostrar como a autora 23 manipula a tradição pedagógica da iniciação amorosa herdada do platonismo, a partir do casamento simbólico entre Lóri e Ulisses, reencenando o mito do nascimento de Eros e propondo uma aprendizagem amorosa que inverte os termos dessa tradição. Para isso, mostrarei como a figura mítica de Eros nasce enquanto força teogônica nos versos de Hesíodo, adquire função filosófica e pedagógica por meio da maiêutica platônica e como é introduzida no cenário da narrativa clariciana como potência cosmogônica, desnarrando a função moral inculcada pela tradição. De 1967 a 1973, Clarice inicia um trabalho como cronista do Jornal do Brasil que marcará profundamente a maneira como desenvolve o seu fazer literário, concretizando um projeto de escrita já fragilmente manifestado desde a década de 50 em carta a Fernando Sabino. É também neste período de produção que, sentindo a necessidade de uma renovação artística, inicia fase em que a escrita toma novos rumos. Para que se forme esta poética, cujo comentário crítico e metanarrativo é feito pela autora em suas próprias crônicas, o pensamento começa a refletir sobre si próprio, e a linguagem se torna metaficcional e abstrata, preocupada com o questionamento de um fazer literário mais do que com o resultado de sua produção. Verifica-se que neste período Clarice escreve o seu único ensaio crítico sobre literatura intitulado “Literatura de vanguarda no Brasil”, texto apresentado em diversos congressos, nacional e internacionalmente, em que estabelece um conceito do que seja vanguarda, fazendo comentários sobre estética, revelando muito sobre a construção do seu próprio modo de elaboração literária. No terceiro capítulo desta tese, que realiza a leitura de Água viva, “Objeto gritante” e A via-crucis do corpo, buscou-se verificar de que modo tais alterações têm início com um projeto que discute o espaço e a tradição literária a partir da introdução de traços da estética surrealista. Entre tais características encontram-se a prática de 24 colagem ou justaposição paratática de textos que mesclam estilos de escrita distintos, a alternância de tom da narrativa como conseqüência do uso de distintas marcas estilísticas, a alteração do estatuto da enunciação a partir da elaboração de um narrador que se aproxima da figura do próprio autor e o desenvolvimento de uma escrita diarística e confessional, na qual incluem-se dados circunstanciais sobre o momento e a produção de sua escrita. Com isso Clarice estabelece uma narrativa que desestrutura a forma do romance, afirmando-se como anti-literária, estabelecendo uma relação de ambigüidade entre o universo da ficção e da realidade e questionando a tradição literária romanesca. Além disso, avalio de que modo o exercício da visão é conduzido pela mobilidade de blocos imagéticos criados pela poética dionisíaca de Lispector e pelo forjamento de um universo textual elaborado sobre imagens-conceito. Por meio destas, a abstração do pensamento lógico-conceitual (o pensar) se associa em movimento de intercâmbio com o pensamento poético e imagético (o sentir), formando uma escrita do pensar-sentir, nos termos da própria autora. Em seguida, verifico de que modo as transformações encaminhadas na obra de 1964 se configuram no universo da imagem e das referências ao fazer literário em “Objeto Gritante” e Água viva para, finalmente, se apresentarem como encenações da linguagem, colocando-a como a grande protagonista do universo de A via crucis do corpo, e debatendo suas faces realista, autobiográfica e grotesca. 25 CAPÍTULO I 1.1 DA ENCENAÇÃO DE UMA PAIXÃO Em “A poética dionisíaca de Clarice Lispector” (SOUZA, 1997: 123-143), Souza apresenta ao leitor o projeto estético clariciano em seus dois grandes romances, Perto do coração selvagem e A paixão segundo G.H.: narrar a passagem de uma ordem existencial estrangulada por uma subjetividade totalitária e autoritária, que separa o sujeito da vida em si, para uma nova ordem que implica a travessia até o limiar da paixão pelo neutro, de modo a atingir uma estrutura subjetiva por meio da qual o sujeito só encontra o seu centro vital no acesso ao inumano. Assim, o texto clariciano se constitui como busca de reformulação da existência através do contato com a alteridade, e da neutralização do narrador enquanto suporte da narratividade e representante da autoridade dentro da obra. Por meio do impacto causado pela fascinação da alteridade, o homem é retirado do seu centro e colocado em movimento, em direção a outro mundo e ao mundo em si. Em seguida, a linguagem repete esse movimento e é neutralizada enquanto sistema de signos, para que possa nascer uma nova palavra próxima do conteúdo de que trata: o neutro. Se os grandes personagens de Clarice encenam o drama de uma subjetividade enclausurada em si mesma, é a partir de A paixão segundo G.H. que o sujeito fraturado se reorganiza em nova forma de linguagem. Todos os personagens claricianos são marcados pela dupla carência de já não serem o que eram e de ainda não serem o que serão, porém G.H. é o exemplo máximo do personagem que rompe a ordem pré-estabelecida e passa de uma fase de liminaridade para uma fase de pós-liminaridade, na qual uma nova ordem vital e lingüística é instituída. 26 Entendendo que a vida é trânsito para além dos limites da individuação, a nova ordenação é viabilizada a partir do contato com a propulsão da força transformadora que provém do outro, quebrando a rigidez da forma estagnante, lançando a personagem ao abandono do cosmos constituído, seguido do livre trânsito no fluxo da vida em si mesma. Na narrativa de G.H. isso significa abrir mão do sujeito imperial que segmenta o homem para encontrar o estado coisal de que fala Manoel de Barros, o "estado larvar", no qual o sujeito centralizador é despersonalizado para que possa falar diretamente da sua condição de nadificação, anterior ao surgimento de uma nova forma, condição expressa pela redução do nome às iniciais. Como constata Souza, inicialmente, perder a forma humana significa desumanizar-se. Entretanto, se o mundo em que G.H. se encontra é o mundo humano, a vida deve ser entendida como vida humana. Por isso a narradora declara sua arte poética: Quero o inumano dentro da pessoa; não, não é perigoso, pois de qualquer modo a pessoa é humana, não é preciso lutar por isso: querer ser humano me soa bonito demais. (...) Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita (LISPECTOR, 1979: 152-3). Assim sendo, Souza situa A paixão segundo G.H. dentro da tradição da literatura ocidental como uma narrativa que visa desnarrar: 1. o mito grego do homem, i.e., o antropocentrismo, no qual o centro unificador que confere sentido ao mundo, à natureza e ao homem é o próprio homem em sua individualidade, através do qual todos os modelos e convenções de significado são instaurados; 2. o conceito platônico de idealidade, que passa a não se sustentar mais em meio à nova configuração, pois a catábase de G.H. implica abdicar à aspiração à idealidade, ao simulacro, à representação que impede a experiência do vivo, e habitar o espaço de uma realidade e de um real cuja experiência requer o consórcio dos opostos; e 3. o sujeito cartesiano, 27 que estabelece a subjetividade como fundamento absoluto da verdade, ratificadora da razão e legitimadora do real. Ao optar pela despersonalização, G.H. caminha rumo à destruição do simulacro que a terceira perna sustentava, rumo à “destituição do individual inútil” (LISPECTOR, 1979: 170) (a subjetividade totalizante) e, para tal, precisa descer aos infernos da desordem e do caos, realizando a catábase por meio da qual se iniciará a desconstrução do sujeito. Essa descese ocorrerá dentro da “casa” simbólica, desconstruída na narrativa, como será visto mais adiante. Para destituir-se de sua individuação e adentrar o espaço da realidade concreta e não idealizada, o narrador precisa vivenciar o seu “estado latente” encontrado na paixão da noite. “Somos criaturas que precisam mergulhar na profundidade para lá respirar, (...) só que minhas profundidades são no ar da noite” (LISPECTOR, 1979: 110). E a noite, apresentada como espaço do vazio, do não-ser, da morte, do nada, revela-se na obra clariciana como espaço fundador do ser e da escrita. “(...) Na noite a ansiedade suave se transmite através do oco do ar, o vazio é um meio de transporte” (idem). A noite habita o mesmo espaço que o inferno na trajetória de G.H., aparecendo inicialmente como anunciação da transformação e traduzindo-se como a iniciação do sujeito no reino do duplo domínio de opostos que se complementam. O apartamento de G.H., portanto converte-se em “laboratório do inferno”, simbolicamente representando uma entrada no reino da morte. Realizar a travessia da idealidade à realidade é possibilitar a travessia do humano ao inumano dentro do humano (SOUZA, 1997: 138); porém, não se trata de uma inversão, isto é, abandonar o espírito para enclausurar-se na matéria. A manducação da barata será analisada como ato voluntarioso, portanto, marcadamente humano que, ao tentar desumanizar o ser, acaba violentando-o e violando sua humanidade, para afirmar a animalidade da subjetividade. Sacrificar outro ser vivente é 28 sacrificar o outro para afirmar a si mesmo. Com o sacrifício da barata, G.H. descobre que, para encontrar o núcleo da vida, é necessário atingir o inumano, exigindo, portanto, um sacrifício de si mesmo e não do outro. Logo, para Souza, a manducação da barata será uma “iniciação às avessas” (SOUZA, 1997: 139), que acentua a subjetividade em detrimento de seu esvaziamento. A iniciação na pós-liminaridade só acontece com o abandono da posição centralizadora do sujeito, ato maior de sacrifício do humano dentro do humano, despojamento da máscara exterior. Só assim pode-se experimentar a vida em si mesma. “Ser humano não deveria ser um ideal para o homem que é fatalmente humano, ser humano tem que ser o modo como eu, coisa viva, obedecendo por liberdade ao caminho do que é vivo, sou humana.” 3 A manducação da barata se apresenta apenas como influxo da matéria sobre o espírito na tentativa de livrar-se do simulacro, do homem demasiadamente humano. A personagem erroneamente entende que para resolver o corte metafísico instituído pela subjetividade totalizante deve devorar um outro ser, sem perceber que esse ato é uma repetição da antropofagia que esmaga a alteridade e se confirma como ato máximo de afirmação de uma subjetividade centralizadora e totalitária. A leitura de Souza dialoga em parte com a crítica de Benedito Nunes que, em O drama da linguagem, lembra que a barata esmagada é objeto de atração e repulsa da personagem, pois ao enxergar a massa branca, a vida de um outro ser encarando-a, G.H. vê a si mesma, condição que acusa sua identidade dominadora afirmando o sujeito totalitário. Entretanto, o olhar assume duplo sentido expresso e, ao mesmo tempo em que condensa o sujeito em si mesmo, acaba lançando-o à condição oposta de esvaziamento, libertando sua impessoalidade. Ao mesmo tempo em que a barata a atrai, 3 Na obra de Clarice Lispector o termo liberdade ganha significado especial. Eduardo P. Coelho (1989:149) vê na escrita clariciana a distinção entre dois tipos de pensamento: aquele que tem forma, entendido como primário e transmissível, e aquele que não tem forma, chamado de liberdade, que "pensa a si mesmo e atinge o seu objetivo no ato de pensar". Se Clarice pretende ver as coisas "do ponto de vista das coisas" para isso desenvolve um "ponto de vista do pensamento", que seria a própria liberdade. 29 pois a lança em um movimento para fora de si, ela a repele, pois perder a individualidade humana é ter de sacrificar a si mesmo, e não ao outro, é ter que eliminar a terceira perna que sustenta o simulacro e impede a travessia. A metamorfose revela a identidade pura (ou verdadeira), que a personagem ainda não compreende. O "domínio da identidade pura" projeta um mundo de "figuras mutáveis" e reorganiza os "contrastes inconciliáveis da existência" (NUNES, 1995: 59) em nova ordem no seio da complementaridade: amor e ódio, santidade e pecado, sanidade e loucura, pureza e impureza, humano e divino, inferno e paraíso, como menciona o pesquisador, apresentam-se como opostos não mais antagônicos, mas complementares, que se conjugam na nova forma. Segundo Nunes, esses pólos em confluência "reduzem e suprimem as diferenças", assim como abolem a separação, a divisão. Somente a partir da anulação do sujeito dominante em nome da presença do objeto dominado e, ainda, após o erro da manducação, G.H. passa por conversão radical no processo de metamorfose existencial, através da experiência do sacrifício de sua subjetividade para dar origem a um novo ser em constante posição de intercâmbio com a alteridade e com a natureza. A despersonalização como a grande objetivação de si mesmo. A maior exteriorização a que se chega. Quem se atinge pela despersonalização reconhecerá o outro sob qualquer disfarce: o primeiro passo em relação ao outro é achar em si mesmo o homem de todos os homens. (LISPECTOR, 1979:170) Esse sacrifício liberta G.H. da superficialidade do ser para revelar-lhe o que a própria narradora chama de "a mulher de todas as mulheres", e que a obra de 1969 (Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres) reatualizará no percurso de Lóri rumo à descoberta de si enquanto “super-mulher”, assim como a barata se revela como o outro 30 de todos os outros. Este humano inumano aproxima-se do Übermensch nietzschiano, desta busca do “tornar-se novamente homem” (MACHADO, 2001: 44) que pressupõe a superação do humano e a reaproximação do indivíduo com a terra. O Übermensch é aquele que se auto-supera, é o humano além-do-homem, cujo movimento, cuja posição, ultrapassa a forma estática e encontra-se em trânsito, em processo de devir – o transumano. O diálogo com o Zaratustra de Nietzsche é bastante presente a partir da noção deste Übermensch, mas, e a morte de Deus? Porque existe um Deus na obra clariciana. Mas existe um outro que morre. Portanto, há pelo menos duas referências distintas à figura divina, senão uma terceira, criada pela própria Clarice. Mas há que se perguntar que Deus é este que morre e que Deus é este que vive na obra. O Deus deposto é o Deus da vertente da tradição judaico-cristã que sacrifica o corpo e enobrece o espírito, instituindo e perpetuando o dualismo antagônico psicofísico que formará toda a civilização ocidental. E o Deus que vive será, na exegese feita por esta tese, um Deus dionisíaco, ctônico por excelência, um Deus que se aproxima do homem não por ser humanizado, mas porque diviniza o homem, porque se apresenta em sua máscara maligna, oculta, provocando espanto e horror. Como aponta Lóri: “Meu amor, você não acredita no Deus porque nós erramos ao humanizá-Lo. Nós O humanizamos porque não O entendemos, então não deu certo. Tenho certeza de que Ele não é humano. Mas embora não sendo humano, no entanto, Ele às vezes nos diviniza” (LISPECTOR, 1991a: 181-2). Portanto, o inumano no humano. Um Deus ligado à terra, um Deus próximo ao homem. E se antes da morte de Deus, tal qual realiza Nietzsche, o delito maior cometido pelo homem era contra Deus, com a sua deposição, o delito é contra a natureza, mas também contra o próprio ser humano do homem. Para Clarice, “humanidade” e “humanização” são termos insuficientes para explicar “a coisa vivente” dentro do 31 Comentário: Verificar depois o Deus em PCS, “Perdoando Deus”, OEN homem e pertencem ao mesmo universo dos “acréscimos” e “sentimentações”, de tudo aquilo que é simulacro, aparência, mimese. O vivo, que é o neutro e inumano, não tem absolutamente qualquer relação com os termos referidos acima. “Humanidade” e “humanização” são entendidas como construções distantes da “identidade das coisas”, embotadas pela civilização, portanto, a identidade é algo anterior ao civilizado, à cultura, algo larvar e germinal, algo ctônico. A “humanidade está ensopada” de uma “falsa humanização” que “impede o homem e impede a sua humanidade”, afirma G.H. (LISPECTOR, 1979: 153). Então, trata-se de pensar uma humanidade tão anterior quanto o homem anterior. Nunes aponta a dor e o paradoxo de uma experiência que se traduz como perda e ganho de si mesma simultaneamente. Pela negação, G.H. alcança a realidade verdadeira. O outro se apresenta como espelho e revela ao mesmo tempo o simulacro e o oculto, sendo este último o único espaço no qual o sacrifício de si mesmo pode acontecer. Comentário: Lindo!!! A paixão de G.H. é o amor pelo neutro, e este, por sua vez, é o consórcio dos duplos. A partir da associação de contrários complementares, cada parte age com a mesma intensidade e totalidade. “Quando uma pessoa é o próprio núcleo, ela não tem mais divergências” (LISPECTOR, 1979: 111). Em outras palavras, com a abdicação dos dualismos antagônicos identificados nos pares caos x cosmos, ordem x desordem, ser x não-ser, início x fim, nascimento x morte, silêncio x palavra, cede-se espaço ao indelimitado, que não diferencia os opostos porque age a partir de sua interação. E mais, quando entende que para atingir o inumano precisa primeiro atingir o núcleo vivo, descobre que é necessário inventar uma linguagem que possa dar forma ao inexprimível – o neutro – através da palavra, e que não repita a expressividade tradicional da obra de arte. Com isso, a narradora percebe que a única forma de 32 expressão do vazio, do neutro - que é o mais profundo núcleo vivo - é o inexpressivo. “Quando a arte é boa é porque tocou no inexpressivo, a pior arte é a expressiva” (LISPECTOR, 1979: 138). Para Lispector, o expressivo é a forma artística representada pela subjetividade que define o belo, a ordenação da forma e os valores: “Também não quero a minha sensibilidade porque ela faz bonito; (...) não quero o amor bonito. Não quero a meia-luz, não quero a cara bem-feita, não quero o expressivo. Quero o inexpressivo” (LISPECTOR, 1979: 152). A única linguagem capaz de exprimir o inexpressivo é a da palavra poética que evoca o enigma. A realidade de G.H., portanto, torna-se a realidade do múltiplo, que contém em si a afirmação e a negação do enigma. Em vez de tentar dar forma voluntariosa ao que não é passível de forma, ao inexpressivo, a narradora apenas deixa-se existir dentro desse núcleo de forças. Na experiência da verticalidade, vivida por G.H. em sua travessia rumo ao inumano, aprendemos com Bachelard que não é possível separar o impulso para o alto da queda para baixo. A queda está associada à vertigem e ao abismo e é descrita pelo filósofo francês como “a nostalgia inexpiável da altura” (BACHELARD, 1997: 95). Uma das imagens associadas à queda é representada, no romance, pelo desmaio ou pela vertigem associados à imagem do abismo e da morte, que necessariamente abre espaço para o surgimento da vida. Não se trata do domínio do sonho porque, como já apontara Coelho, o sonho é um pensamento primário, com uma forma, ainda que incoerente ou incongruente, mas transmissível, da ordem da comunicabilidade. Trata-se, no entanto, da abertura para o reino do pensamento que não tem forma e que Coelho chama de “pensamento do sono”, próximo ao vazio experimentado pelo abismo, pela vertigem – aberturas para o reino da morte. No sono “o sujeito não pensa” (COELHO, 1984: 213), apenas vive o atrás do atrás do pensamento, como se esse domínio preenchesse a cena, e não mais a subjetividade, “des-autorizando” a subjetividade do personagem e do 33 Comentário: Talvez seja o caso de citar A Doença como metáfora, creio que da Susan Sontag- Um espaço de não-vida e não-morte. próprio autor (idem). A morte, que traz o aniquilamento do ser, é pressentida no desmaio. Porém, a impressão da queda essencial, no limite da morte e do abismo, não pode deixar de ser associada ao esforço de ascensão e à tomada de consciência da vertigem. "Só voa alto o que tem peso" (LISPECTOR, 1979:137), diz a narradora. O esvaziamento do sujeito em sua forma humana construída culturalmente é condição fundamental para o eclodir de uma identidade reconciliada com a vida em si mesma, isto é, mergulhada na corrente vital do universo, que já não permite que esquemas dicotômicos separem o indivíduo da natureza, da alteridade e do mundo, uma vez que o “eu”, ou o sujeito, na obra de Lispector “é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo” (LISPECTOR, 1979: 174). Em outras palavras, o sujeito, já livre de sua montagem humana, está reconciliado a tudo aquilo que constitui o seu nãoser, uma vez que a realização da “super-mulher” ou do “super-homem”, como aponta Ulisses em Uma aprendizagem..., é a recuperação do inumano dentro do humano para que o homem saia de si mesmo para o mundo. Para G.H., “talvez eu agora soubesse que eu mesma jamais estaria à altura da vida, mas que minha vida estava à altura da vida” (LISPECTOR, 1979:174). Exteriormente, esta reconciliação se efetua com a Natureza, os indivíduos, até que se permita a união de tudo que estava separado. Ulisses anuncia o projeto que, anteriormente, fora anunciado por G.H.: - Lóri, você é agora uma supermulher no sentido em que eu sou um superhomem, apenas porque nós temos coragem de atravessar a porta aberta. Dependerá de nós a chegarmos a ser o que realmente somos. Nós, como todas as pessoas, somos deuses em potencial. Não falo de deuses no sentido divino. Em primeiro lugar, devemos seguir a Natureza, não esquecendo os momentos baixos, pois que a Natureza é cíclica, é ritmo, é como um coração pulsando. Existir é tão completamente fora do comum que se a consciência de existir demorasse mais de alguns segundos, nós enlouqueceríamos. A solução para esse absurdo que se chama “eu existo”, a solução é amar um 34 outro ser que, este, nós compreendemos que exista. (LISPECTOR, 1979: 177) Já em G.H. o sentido do ser se apresenta pela reconciliação com o não-ser. “Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for” (LISPECTOR, 1979: 174). Esta zona de existência implica inclusive a experiência do baixo, que para G.H. é o ínfimo. E o mundo é o ínfimo, não o superior, o que aproxima o sentido de divino do homem e desconstrói a noção de heroísmo, afirmação da subjetividade ou da individualidade, e a de santidade, afirmação de superioridade. Oh, Deus, eu me sentia batizada pelo mundo. Eu botara na boca a matéria de uma barata, e enfim realizara o ato ínfimo. Não o ato máximo, como antes eu pensara, não o heroísmo e a santidade. Mas enfim o ato ínfimo que sempre me havia faltado. Eu sempre fora capaz do ato ínfimo. E como o ato ínfimo, eu me havia deseroizado. Eu, que havia vivido do meio do caminho, dera enfim o primeiro passo de seu começo (ibidem) Na introjeção da história da civilização ocidental, a negação da natureza do e no homem era um dos sacrifícios introduzidos ao sujeito. Como aponta Adorno, esta negação constituiu o “núcleo de toda a racionalidade civilizatória” (ADORNO/HORKHEIMER, 1985: 60) e provoca o exercício constante da dominação, seja da natureza do homem e do homem na natureza, seja do social, do material e do espiritual sobre outros indivíduos, impedindo a realização da própria vida. “O domínio do homem sobre si mesmo, em que se funda o seu ser, é sempre a destruição virtual do sujeito a serviço do qual ele ocorre; pois a substância dominada, oprimida e dissolvida nada mais é senão o ser vivo” (idem, 61). Este exercício é transferido para a sua relação com o mundo e o homem repete o mesmo gesto com o exterior. Destruir todas essas 35 Comentário: Dante, “no meio do caminho...” camadas sedimentadas durante séculos é tarefa do escritor comprometido com sua obra e com a vida. Internamente, a reconciliação se realiza na dissolução dentro do atonal e do neutro. A narrativa cosmogônica, ao narrar o nascimento de um novo cosmos e um novo homem no plano do conteúdo, promove, no plano da expressão, a criação de uma nova linguagem isomorficamente elaborada para engendrar o projeto estético do autor, como no caso de Clarice Lispector. É essa idéia de literatura como instância desestabilizadora dos discursos autoritários da tradição literária que retira a autoridade do autor e do leitor e coloca-a na palavra. A filosofia grega, diferentemente da pré-grega, isto é, de povos orientais, define-se a partir de dois princípios elementares: a ruptura com o elemento míticoreligioso e a explicação racional da origem das coisas e do mundo, ao contrário do pensamento mítico marcantemente presente nas sociedades arcaicas, que narram a origem das coisas e do mundo a partir da ação ordenadora de uma força divina e oculta, por meio de uma linguagem mágica permeada de metáforas e analogias. A filosofia grega, ao racionalizar e laicizar a narrativa mítica, abandona o passado poético para instituir o presente científico, no qual o indivíduo e sua singularidade passam a ser o centro totalizador da realidade e das diferenciações. Ao divorciar o homem da unidade primordial, a filosofia grega cria unidades separadas e com realidades próprias capazes de dar origem a elementos diferenciados, porém descomprometidos com a integração. O homem passa a ter domínio do seu destino e das leis. Com o surgimento das cidades livres e organizadas, o poder decisório passa para as mãos do indivíduo e a razão (o pensamento) é tomada como critério da verdade. A função do lógos é buscar, por meio do discurso, respostas que possam ser provadas e demonstradas, além de princípios lógicos universais que 36 Comentário: Proto, os présocráticos. Cita o comentário do Nietzsche acerca do Sócrates. garantam a efetivação de um pensamento ordenado e sua aceitação como verdade última. Cresce a idéia de que pensamento e discurso estão estruturados e organizados por leis necessárias que asseguram o conhecimento da realidade pela razão e pela linguagem. Fertiliza-se o solo para a fundação do mito antropocêntrico do homem grego como centro das idéias do próprio homem, da natureza e do mundo, com noções absolutas de verdade, rebaixando a segundo plano a verdade múltipla apresentada pelo pensamento mitopoético. Como lembra Chauí (CHAUÍ, 2001: 27), a filosofia para Nietzsche começa e termina com os pré-socráticos, uma vez que a dualidade e o conflito para estes filósofos eram o núcleo da realidade. Para Nietzsche, estes gregos foram os criadores da tragédia, antes mesmo da filosofia. Entenda-se por tragédia a narrativa da morte e renascimento do deus Dioniso, expoente das lutas subterrâneas entre as forças titânicas, fazendo surgir a organização da forma a partir da indiferenciação caótica. E Anaximandro, como présocrático cujo pensamento exalta como elemento primordial o apeiron, o indiferenciado, anuncia que o espaço da indiferenciação apaga as contradições sem desfazer as tensões. “O devir é esse movimento ininterrupto da luta entre os contrários e terminará quando forem todos reabsorvidos no apeiron” (CHAUÍ, 2001: 61). No estudo da narrativa clariciana a imagem do apeiron anaximândrico, pneuma lispectoriano, desponta como dimensão que conduzirá ao neutro, que é também o inexpressivo na palavra. O lado sombrio e desordenado das forças da natureza e dos homens apresenta-se na desmesura e na luta de contrários, que marca o interminável jogo dos opostos. Para Nietzsche, o princípio dionisíaco aparece ao lado do princípio apolíneo da clareza, harmonia, perfeição e individuação de modo a guiar a tragédia grega. O que separa os seres de sua unidade originária é a individuação, impedindo que retornem ao 37 Comentário: Herberto Helder!!!! primordial indiferenciado. Portanto, observa-se que a filosofia dos pré-socráticos diferencia-se do pensamento desenvolvido a partir de Sócrates, quando nasce o racionalismo, perde-se a proximidade com a força vital da natureza e a razão passa a atuar como princípio único do real e da conduta humana. Originam-se aí também os valores do belo, do bem e do justo, que devem reinar entre os homens e servir de modelo para domar o espírito agonístico da alma humana. Lembremos que o “anseio do feio”, para Nietzsche, é anterior ao “anseio de beleza” (NIETZSCHE, 1992: 17), buscado pelos gregos, e caminha lado a lado com o mito trágico, o terrível, o enigmático e o fatídico. Este outro lado gera a maligna beleza do sublime, e o dionisíaco é aquilo que coroa o universo do riso, da dança e da loucura precisamente como forças de afirmação da vida, ao contrário do desenvolvimento de um pensamento lógico-científico que culminou na “velhice” e “fadiga fisiológica” dos gregos. O que de mais vital e jovial existiu, de algum modo, também sempre esteve presente no reino dionisíaco... É aqui que Clarice Lispector se apresenta como autora de uma narrativa dionisíaca por natureza, que desnarra a tradição da separação psicofísica ao criar narrativas que tratam principalmente da interação dos contrários, de modo a renovar a afirmação da vida em si mesma integrada à natureza, tendo, como isso, que aniquilar o sujeito atomizador do real. A realidade, bem como a vida e o mundo, não é satisfatoriamente resolvida unicamente pela razão, pois há um limite que o rigor da norma e das classificações não consegue atingir: a fronteira do real intangível, do mistério e do segredo. A narrativa clariciana utiliza a linguagem mitopoética para falar deste segredo, presente no tempo e espaço primordiais, instâncias nas quais se realiza a reconciliação de forças antagônicas em nome da formação de uma identidade subjacente aos princípios opostos e que garante a permanência em meio à 38 multiplicidade porque “é precisamente isto o que está em jogo: a desvalorização do humano enquanto espaço de complementaridade e harmonia, enquanto equívoco absorvente dos sentimentos, de toda a soma de causas e razões com que se vai embebendo a existência” (COELHO, 1984: 205). A realidade da vida em si, não a “pretensa realidade do homem civilizado” (NIETZSCHE, 1992: 57), de que fala Nietzsche em O nascimento da tragédia, abre-se para uma poesia que está necessariamente dentro do mundo, apesar de se apresentar como a “realidade do neutro” (LISPECTOR, 1979: 96), segundo G.H.. Somente nessa experiência o sujeito poderia alcançar a realidade e ser tão real quanto ela. Fora dessa experiência, o real toma dimensões de irrealidade e a obra conduz ao tema central: desnarrar o “mito da verdade” (idem, 96). Desnarrar o mito da verdade requer antes desnarrar o mito do homem e buscar realizar o humano não como um fim, mas como uma passagem, abandonando a organização subjetiva construída pela tradição dicotômica para encontrar o “antes do humano”, este homem anterior que, segundo Zaratustra, é: Uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre um abismo. Perigosa travessia, perigoso a-caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiar-se e parar. O que é grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim: o que pode ser amado no homem é que ele é um passar e um sucumbir. (NIETZSCHE, 2006: 38) Em outras palavras, o homem é homem humano e finito; a reconciliação do elo entre homem e natureza não subtrai a ferida e a falha lançando-o à zona da totalidade, apenas instaura a tensão necessária para a manutenção do enigma e do movimento, “corda” sobre o “abismo”, arrepio, percurso, “ponte”. Assim, o homem deve superar o 39 “ser homem” e encontrar este “anterior” do humano a que se refere a narradora de A Paixão..., que é também o “demoníaco” (LISPECTOR, 1979: 97), e é “vida préhumana divina” (idem). Em outras palavras, a subjetividade passa pela experiência do dionisíaco e, ao fazê-lo, perde suas fronteiras. Porque o demoníaco é uma das máscaras do dionisíaco. Estar “perto do demoníaco” é “passar a viver” isto é, estar do lado do selvagem coração da vida. O “mito da verdade” na obra de Lispector, que está diretamente vinculado ao real, esbarra antes na constituição da subjetividade, uma vez que é este sujeito em sua relação com o mundo que confere sentido à realidade. Portanto, desconstruir o mito da verdade pressupõe antes de tudo desconstruir a noção de homem demasiadamente humano erguida durante séculos e séculos de civilização ocidental. Por isso a desmontagem do edifício, da “monstruosa” “máquina”, “superestrutura” erguida “havia séculos”, que é resultado de um “acúmulo” “pesado” demais, leva ao questionamento do “quem é, quem não é?” e à inevitável busca da “identidade mais última” do ser e das coisas, soterrada e impedida de eclodir devido à “grossa humanidade que sempre fora feita de conceitos grossos” (LISPECTOR, 1979: 128). Essa busca, que se constitui como experiência de destruição, conduzirá inevitavelmente à experiência da linguagem. E em que consiste esta experiência para Lispector? Ainda que este experimentum lenguae encontre equivalente que o resuma na linguagem do “inexpressivo”, parece-me que a obra lispectoriana esbarra no problema de que os limites da linguagem não são buscados fora da linguagem, como aponta Agambem, em uma zona do indizível e do inefável, como a crítica gosta de apontar, mas precisamente no de dentro desta mesma linguagem. Não significa que o inominável não seja atingido ou desejado, apenas que a obra lispectoriana não pára neste ponto. Nas palavras de Agambem, o inefável é “aquilo que a linguagem deve pressupor para poder significar” (AGAMBEM, 2005: 40 11). Mas o que se realiza está para além desta zona de reconhecimento. A escrita de Lispector parece-me buscar justamente os limites da linguagem naquilo que a torna matéria “supremamente dizível”, na língua tangível, corpórea, viva, precisamente na relação entre experiência e linguagem. Dentro dessa óptica, a identidade é muito mais do que a substância individualizante. No jogo dialético de ocultação e revelação, no qual cada princípio não poderia existir sem o seu oposto, a identidade espraia-se na multiplicidade. "Deus é o que existe, e todos os contraditórios são dentro do Deus, e por isso não O contradizem" (LISPECTOR, 1979: 155). A identidade, portanto, é o Deus-neutro. A vida traz dentro de si a morte, o dia traz dentro de si a noite, o bem traz dentro de si o mal, assim como o humano traz dentro de si o inumano, que é também o divino. Deus reside no indiferenciado. Iniciar-se no conhecimento do inumano é ritualizar vida e mundo. “O ritual é o próprio processar-se da vida do núcleo, o ritual não é exterior a ele: o ritual é inerente. (...) O ritual é a marca do Deus” (LISPECTOR, 1979: 111-12). O homem cumpre o seu destino divino quando desintegra a estrutura que o aprisiona nas categorias do mundo inteligível e ultrapassa a fase de liminaridade através do gesto ritualístico que se concretiza no “ato de consumição própria” (LISPECTOR, 1979: 111), que é também ritual dionisíaco e garante a entrada no reino do duplo domínio dos contrários – o núcleo da vida. E, “quando uma pessoa é o próprio núcleo, ela não tem mais divergências” (idem), ela é a própria “marca do Deus”. Essa é a verdadeira identidade a que se chega após abandonar-se a organização humana. “A identidade – a identidade que é a primeira inerência – era a isso que eu estava cedendo? era nisso que eu havia entrado?” (LISPECTOR, 1979: 95), questiona-se a narradora, pois dentro da verdade absoluta da tradição estabelecida o pecado original é conhecer a identidade real da coisa em si, por isso a narradora reconhece: “A identidade me é proibida” (idem). O 41 processo de reconstituição pelo qual o sujeito vai passar é anunciado pela narradora: “Mas me reorganizarei através do ritual com que já nasci” (ibidem) porque a identidade é “o plasma do Deus”. Para atingir o neutro, que não se encontra na categoria da humanização do homem por conta da interposição dos esquemas de inteligibilidade entre o sujeito e a realidade sensível, para viabilizar a experiência do real em si, é necessário desintegrar essa estrutura que garante a “montagem humana”. Ao fazê-lo, abre caminho para o caos, pois desintegrar a ordem é também desintegrar a forma e a norma para entrar no informe. Ao esvaziar-se de conteúdos humanos, G.H. perde a forma anterior, refletida na abreviação do próprio nome que a distingue enquanto sujeito e a opõe ao outro, e inicia a busca por uma nova possibilidade de experiência humana que revele a vida em si, não mais pautada pela inteligibilidade e pelo sujeito totalizador. Inaugurar a trajetória da desintegração do sujeito cartesiano, que gera o princípio da subordinação da totalidade do real pelas categorias da inteligibilidade, é ter que retornar ao processo da humanização histórica desenrolado na Grécia arcaica, berço da civilização européia e da tradição do pensamento ocidental, que gerou também o conceito platônico da divisão do mundo em sensível e inteligível e postulou as idéias de Deus, do bem, do infinito e do belo. A obra de Clarice Lispector, incluindo contos e romances, visa, em seu conteúdo, refutar a ordem instituída pela metafísica que deu origem ao pensamento hegemônico e à separação das categorias inteligíveis e sensíveis como instâncias dicotômicas e antagônicas. No entanto, confutar essa ordem não significa reagir ou se rebelar e, tampouco, instaurar a desordem, mas instituir uma nova ordem onde os extremos contrapolares coexistam em complementaridade na voz da poesia. Assim sendo, destacamos os conceitos de ordem, verdade e sujeito desintegrados por G.H. para apresentarmos aqueles que sua narrativa institui. 42 Comentário: Talvez a abreviação do nome deva ser mais desenvolvida também. Sim, deve!!! E aqui não deixe de ver uma dicção, talvez na negativa, romântica. Considerar a verdade como absoluta e eterna remonta aos idos da filosofia platônica que se disseminou como a base da tradição cristã, instituidora das idéias de Deus e da moral fundadora dos valores de conduta posteriormente introjetados pela sociedade ocidental. O caminho reto em direção ao que é certo conduz à salvação humana, este o ensinamento legado à humanidade. Do platonismo, a abdicação ao mundo sensível, a predileção pelo supra-sensível e pelo mundo das idéias, a metafísica, a idealidade. O destino do homem está pré-assinalado no Logos divino e todo indivíduo deve se submeter à ordem divina que prega, inclusive, à participação do homem na perpetuação do modelo do bem. O cerne da discussão platônica recai sobre a possibilidade do conhecimento da realidade, conseqüentemente, do mundo tal como ele é e de suas relações, de modo a identificar com o valor de bem todo esse conhecimento produzido. Na busca pela verdade absoluta, cujo propósito é atingir a forma ideal da realidade, que é também o universal aceito por todos, o platonismo abandona o particular e o mundo sensível, atrofiando todo o legado trágico e constituindo um discurso legitimador de todos os valores e crenças. A verdade platônica opõe-se à realidade particular concreta, fundamentada na experiência que garante a existência do real, pois para o platonismo essa realidade apresenta-se como parcial, transitória e mutável. A filosofia platônica, por conseguinte, compromete-se com a busca da verdade e saber absolutos, adotando critérios definidos e argumentação lógico-racional para tal fim. E é essa verdade que forma e valida a linguagem para expressar o conhecimento através de suas regras e princípios discursivos. Portanto, para conhecer a natureza essencial (sua forma ou idéia) do ser e das coisas em seu sentido eterno, objetivo máximo da teoria das idéias desenvolvida por Platão, é necessário desenvolver uma teoria de conhecimento que defina o tipo de compreensão da realidade e paute a ação 43 humana. Com isso, a reflexão filosófica torna-se contemplativa e se afasta do mundo da experiência imediata e concreta, posição oposta à proposta de reflexão instaurada pela narrativa clariciana. É certo que a obra de Platão em si mesma aponta para uma complexidade que esta tese não visa contemplar. Ainda que aponte também para uma tradição filosófica própria, o Eros platônico de O Banquete em certos aspectos se diferencia do Eros mais embriagante e mântico de Fedro. Da mesma forma, assim como em A República Platão aparece como detrator das artes, no Íon a poesia é colocada como tema central do diálogo, pensando a si mesma. Entretanto, como se trata de ler o texto clariciano pela ótica do dionisíaco, não é possível deixar de fora o comentário de Nietzsche acerca do influxo causado por Sócrates na história universal. Instaurando uma “rede conjunta de pensamentos” que promove o “estabelecimento de leis para todo um sistema solar” (NIETZSCHE, 1992:94) que enfraquece o “prazer de viver” e impõe o “saber” e o “conhecimento” como remédios para a correção do “erro”, da “aparência” sensível e do “inesclarecível” (idem, 95), apenas o “conhecimento trágico” (ibidem) pode se fazer circular. É na “ilusão” e no “instinto”, considerados como faltas que, para Sócrates, reina a desestabilidade do homem. Pela “correção” (NIETZSCHE, 1992: 85) desse erro da existência, Sócrates funda uma cultura que busca eternamente a felicidade na repetição dessa correção. Para Clarice, no entanto, a escrita, enquanto práxis artística diária, retira seu vigor e força justamente da intuição e do instinto. Em crônica intitulada “Forma e conteúdo”, diz: “Só a intuição toca na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha” (LISPECTOR, 1994: 271). Precisamente aquilo que Nietzsche chama de “força afirmativa-criativa” (NIETZSCHE, 1992:86). 44 Em outra crônica a autora nos confia a força afirmativa de sua escrita, que se sustenta pelo livre movimento no fluxo vital. Clarice diz que, durante um tempo, o sofisma era “uma forma de raciocínio” com alguma atração para seu ofício de escritora e que a razão disso residia no fato de o sofisma ser um belo instrumento para a defesa e não, ao contrário, para a afirmação da vida que inclui o erro, a incongruência, a falha e a ilusão, inclusive. A escrita clariciana, portanto, é aquela que se afirma pelo abandono e desistência, não pela defesa, porque a vida em si mesma não precisa de defesas. Será? Conclui a autora que “De agora em diante eu queria me defender assim: é porque eu quero” (LISPECTOR, 1994: 329). O caminho do “raciocínio-sofisma” é aquele que “faz ganhar muito em discussões” (idem). Porém, no diálogo poético não há, no entanto, perdas e ganhos. Há acontecimentos. Os princípios e valores universais, abstratos e permanentes, pré-determinados pelos racionalismos, que conduzem à existência do indivíduo em um universo equilibrado e regulado, impedem a ação do caótico e da imprevisibilidade como forças que impelem o humano. A distância que separa o idealismo da realidade da matéria presente no mundo sensível, na trilogia de mitos encontrada em A República, é abissal. Na teoria platônica, o homem comum, prisioneiro da matéria, enxerga a realidade de maneira limitada, distorcida e parcial e deve aspirar à plenitude da forma ideal do ser que lhe garantirá o conhecimento da totalidade do real. Essa posição segmenta o mundo em duas partes: a da matéria e a do espírito. O homem, não sendo espírito ideal, está preso à matéria sensível e animal. O sujeito que constitui a forma anterior da qual G.H. se desfez é o exemplo de sujeito platônico refutado e acusado pela narrativa clariciana como aquele que aprisiona o homem e pauta sua existência segundo as convenções e regras instituídas. É também o caso de Joana, de Perto do coração selvagem. Nesta obra inaugural, o drama do 45 dualismo psicofísico encenado por Joana apresenta-se por meio de uma estratégia estrutural que jamais abandonará a obra de Clarice e que será uma das características principais de sua escrita: a da narrativa que privilegia uma sucessão de descontinuidades apresentadas por blocos de imagem justapostas. O drama é narrado por construções imagéticas que complexificam a leitura uma vez que interrompem o processo de consecutividade e instauram um movimento de segmentos descontínuos. Esse procedimento se realiza como reflexo da descontinuidade que é a vida de Joana. A existência é comandada pelo sujeito enclausurado e ilhado em si mesmo, cindido pelo dualismo que afirma o desejo da matéria só para apontar a prisão do espírito na idealidade. Essas vozes reverberam na voz de Joana como a tradição que a condena. E o movimento de isolamento vivido pelo sujeito enclausurado encontra equivalência na estrutura formal erguida pela narrativa em blocos de descontinuidade. O movimento de insulamento vivido por Joana é repetido pelo movimento paratático da narrativa. O impacto desta dinâmica é intensificado pela técnica da criação de correlatos objetivos desenvolvida por Clarice, onde o drama interior da personagem encontra confluência imagética em referências do mundo externo. Um dos capítulos centrais do romance, intitulado “...O banho...”, expõe esse deslocamento. Dividido em quatro movimentos, o primeiro descreve o diálogo entre Joana e a tia após Joana ter roubado um livro. A cena é introduzida para mostrar que a noção de “roubo” é deslocada e desconstruída pelo romance. O roubo enquanto delito que detrata o caráter humano - um dos cernes dos mandamentos divinos é “Não roubar” - aparece como característica de desmoralização da personagem e de seu pertencimento ao reino do mal e à dimensão do noturno, do caótico. A origem do mal na obra clariciana é intencional e visa desconstruir a tradição de uma ordem construída racionalmente pela cultura e que conduz o homem à ordenação solar da existência. Ao 46 pronunciar o caótico e a desordem, Clarice vem “sublinhar a noite da personagem” (SOUSA, 2000:174), como aponta Carlos Mendes de Sousa em Clarice Lispector: Figurações da escrita, isto é, uma “experiência do andar no escuro”, que direciona o sujeito para o “encontro com a coisa” (idem). Esta experiência permite “o acesso à visão transfiguradora” (SOUSA, 2000: 175) e reafirma a potência do misterioso. O segundo movimento confirma o primeiro, na cena em que Joana conversa com o professor. O episódio gira em torno da diferença entre “o que é bom e o que é mau” (LISPECTOR, 1998c: 53) e vem a estabelecer uma distinção entre viver, não viver e morrer, instâncias completamente distanciadas. Para Joana os registros da tradição se invertem: o bom é associado à vida e o mal é associado a tudo aquilo que desautoriza a vida. Mas o que desautoriza a pulsão da vida também é pura construção. E na obra de Lispector essas construções são as interdições a tudo que pulsa. Também a morte vem assumir-se como vetor da ordem vital e não terminal porque “morrer é diferente do bom e do mau” (idem), diz Joana. O terceiro movimento vem justamente exemplificar, a partir da dinâmica de imagens, a reflexão proposta por Clarice em torno da personagem Joana. O terceiro movimento é a cena do banho de Joana e o quarto movimento direciona o leitor para o momento de Joana vivendo no internato e não mais na casa da tia. Em ambas as cenas a dimensão imagética elaborada por Lispector é profundamente complexa. Vejamos. A primeira cena se desenvolve sobre duas sensações opostas: a da alegria, descoberta ligada a imagens de contato com o corpo, e a da tristeza, ligada a imagens do universo do inteligível. A primeira frase da cena introduz, por adjetivação que apaga do corpo tudo que é indício de inteligibilização, o elemento do qual nasce o corpo e que transformará tudo que é sólido em líquido: “A água cega e surda mas alegremente não-muda brilhando e borbulhando de encontro ao esmalte claro da 47 banheira” (LISPECTOR, 1998c: 64). O que pertence ao universo sensível confere prazer e alegria a Joana, e a cena conduz à epifania do corpo. O efeito do corpo em contato com a água reflete o interior da personagem e o desejo de escape da subjetividade que estrangula a vida resultante deste apreço pelo sensível. “A moça ri mansamente de alegria de corpo” (idem). O corpo “se alonga”, “se espreguiça”, “refulge na meia escuridão” e nasce das águas. “Alisa a cintura, os quadris, sua vida”. A coordenação sintática dos termos equivale a uma gradação que apresenta a equação do mundo sensível na qual a vida se reduz à experiência do corpo. Mas esta é apenas uma das experiências da subjetividade enclausurada em si, em um dualismo que não permite o acontecimento da vida a partir da complementaridade, mas da divisão, e por isso à epifania do corpo se interpõe a contraposição sistemática de pares opositivos. Aquele quarto de banho, pleno de vida, torna-se “indeciso, quase morto” (LISPECTOR, 1998c: 66) e se dilui em fumaça. O quente e morno da água agora subitamente “esfriam” e fazem este mesmo corpo “estremece(r) de medo e desconforto” (idem). O mundo de riso, alegria e brilho converte-se em tristeza, frio e escuridão. O drama da impossibilidade de intecambiação entre os elementos constitutivos da vida por conta da subjetividade encarcerada leva ao autoreconhecimento do pertencimento à divisão entre dois mundos simetricamente opostos. Uma divisão que não é puramente pessoal, mas que encerra um complexo cultural revelado na narrativa pelo embate entre duas culturas, a que privilegia o antagonismo e a que entrona a reconciliação. “Fechada dentro de si, não querendo olhar (...) desliza pelo corredor”, “cerra as janela do quarto”, cerra as janelas do ser – “não ver, não ouvir, não sentir” (idem), mortificação humilhante da vida. O quarto movimento repete o mesmo drama. Dessa vez, o influxo não é pela queda no sensível, mas através do apelo do espírito. Joana está no dormitório do 48 internato e mira as “estrelas grossas, sérias e brilhantes” (LISPECTOR, 1998c: 67), e a tentativa de comunicação entre a menina e esse mundo distante do espírito se torna impossível. O desejo de beijar, de morder as estrelas, provoca um estranhamento e o desejo de rezar. “Estrelas, estrelas, rezo” (idem). A reza evoca o desejo de purificação do corpo em espírito porque, no código cultural, o sujeito deambula entre extremos sem se compreender, convulsionando a existência, dirimindo a possibilidade de afirmação do vivo. O estrangulamento da vida faz o sujeito desmoronar na sua máxima negação. O quarto do dormitório transforma-se numa cela onde jazem cadáveres de virgens. Que importa que em aparência eu continuasse nesse momento no dormitório, as outras moças mortas sobre as camas, o corpo imóvel? Que importa o que é realmente? Na verdade, estou ajoelhada, nua como um animal, junto à cama, minha alma se desesperando como só o corpo de uma virgem pode se desesperar. (LISPECTOR, 1998c: 67) De repente, em cena descontínua, dirige-se a narrativa para outra justaposição, agora de “corça(s) na planície”. E eis Joana “de volta ao corpo” (idem, 68), ao toque do cavalo que a faz sentir a vida “latejante e quente do animal” (idem, 71), a felicidade reafirmada pela água, pelo “céu de verão”, pela brisa. E a dura surpresa do reconhecimento de que o sujeito tem “limites”, é “recortado” e “definido” (idem) e de que é precisamente o drama de ter sido construído assim que impede a entrada em uma zona “além do conhecido”. Essa descoberta a faz relembrar-se de “outros segredos”, que a tornam então “ilimitada”. Finaliza o capítulo mais uma vez rezando, dessa vez, dentro da catedral. A contraposição das imagens do banho, na qual o corpo entra em epifania, e da igreja, que estrangula o sensível, aponta para a solidão do sujeito que não encontra nem “a lembrança de algum ser humano”, nem a de si mesmo, isto é, se vê impossibilitado de estabelecer relações intersubjetivas ou mesmo de contato com sua 49 identidade. Reconhece-se então na “solitude branca e ilimitada” da prisão “entre montanhas fechadas”, incapaz da liberdade, incapaz daquilo que é mais que o pouco da liberdade, “daquilo que ainda não tem nome” (LISPECTOR, 1998c:70). De profundis. Anunciação do novo tempo. Enterro do irremediavelmente perdido (SOUSA, 2000:174). Como aponta o pesquisador, a repetição do salmo penitencial “integrado no Ofício de Defuntos da Igreja Católica” (idem), no capítulo “Viagem”, anuncia a abertura para “o mundo e para a morte” (idem, 196). A chama em que se consome a antiga forma introduz na narrativa o diálogo com a memória de um dos filósofos pré-socráticos privilegiados por Nietzsche: Heráclito de Efeso. O entendimento do mundo e da vida humana como fluxo permanente encontra na imagem do fogo o símbolo do incessante devir da vida, da realidade como instância dinâmica e tensa e constantemente em formação, que favorece a coexistência de forças contrárias, que se sucedem umas às outras, e reformulam o ser e sua mundividência. O fogo é a presença e ausência contínuas do movimento que permite o devir permanente de tudo. Quando uma forma se desfaz, logo ela cede lugar à constituição de sua forma oposta que novamente será desfeita, e assim sucessivamente com todas as coisas. É o movimento da chama da vela, com suas exalações de claro e escuro, de vivacidade e esmorecimento. Esse movimento garante, ao mesmo tempo, as leis da permanência e da mudança. Às primeiras, associam-se as idéias de luz, vida, sol, beleza, conhecimento e às últimas, as trevas, a morte, a noite, a feiúra, a ignorância, o mal. Invoca-se o divino para a morte e não para a vida, para que se ultrapasse a “vontade de humanidade” (LISPECTOR, 1998c:201) e o indivíduo renasça “forte e belo como um cavalo novo” (idem, 202), sem a “terceira perna” anunciada em A Paixão..., com as pernas livres para correr e trotar feito a besta de caçada “do rei do sabá”, roubada com arrepio e alegria por uma adoradora. 50 1.2 SÓ VOA ALTO O QUE TEM PESO: A PERIGOSA LIÇÃO DOS ADORADORES As primeiras páginas de A Paixão... já não repetem a divisão interna de Joana, mas, ao contrário, introduzem uma narradora em movimento, já na travessia de desintegração da subjetividade. Quanto mais se distancia do humano, mais se aproxima do limiar que elimina o ser anterior e viabiliza a eclosão do ser posterior. Diz a narradora de A paixão segundo G.H.: Eu era a imagem do que eu não era, e essa imagem do não-ser me cumulava toda: um dos modos mais fortes é ser negativamente. Como eu não sabia o que era, então "não ser" era a minha maior aproximação da verdade (LISPECTOR, 1979:28). A personagem já se apresenta na sua fase de liminaridade, na primeira página da obra, na qual observamos o processo de desintegração de sua forma e imersão no Comentário: Ótimo!!! vazio, após já ter perdido a estrutura da subjetividade. O uso do gerúndio, combinado com o verbo auxiliar estar, marca o aspecto durativo do processo verbal, indicando que uma ação está em curso no momento da sua ocorrência: “------ estou procurando, estou procurando” (LISPECTOR, 1979:7). A narradora encontra-se no centro de um processo de busca; os dois sintagmas verbais que compõem a frase inicial, introduzida por travessões, sugerem que a ação já estava em progresso antes mesmo de ser expressa. Em seguida, a travessia, que distingue um estado anterior de idealidade e um estado posterior de realidade, é anunciada pelo par opositivo entender x viver. Já de início, a estrutura da narrativa, construída na dualidade de traços contrastantes que compõem uma modalidade de existência baseada no conflito de opostos antagônicos, é apresentada ao leitor. A primeira categoria é desenvolvida dentro do campo semântico 51 Comentário: E aqui não tem a questão do livro incabado do Mallarmé? Lispector sabe que pertence à história da literatura, das artes!!!!! de “organizar”, “confirmar”, “achar”, “encontrar”, todos os vocábulos em consonância com o termo “idéia”. A segunda categoria se estrutura dentro do campo semântico oposto em “desorganizar”, “perder”, “acontecer”, “desorientar”, que relata a experiência sensível do ser e aponta a construção de uma narrativa mergulhada no contraste, na dualidade e no movimento. G.H. diz não querer mais o acréscimo que antes acreditava fazer parte da sua forma humana, algo essencial, sustentação do ser. O que quer que tenha perdido gerou uma nova forma constantemente em movimentação e formação, em contraste com a forma anterior. Diz a narradora: Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um tripé estável (LISPECTOR, 1979:7-8). Ao narrar seu passado de maneira a elucidá-lo a si mesma, distanciando com verbos no pretérito o eu que apresentava uma forma formada e organizada do novo eu que se encontra em constante reatualização de si mesmo, como mostra o uso do presente e do gerúndio, entende-se que o presente está ligado ao caos, à desorganização do ser e o passado à sua forma fixa e pré-ordenada. Diz a narradora: “O que eu era antes, não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro” (LISPECTOR, 1979:9). O tripé sustentador gera um equívoco, e nada mais que a idéia de uma realidade, a ilusão de um sentido que o novo estado não garante, pois o sentido possível deixa de ser o de pertencimento a um “sistema” e passa a ser o do acontecimento. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas 52 duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar (LISPECTOR, 1979:8). Comentário: Cadê o Kafka? G.H. perde a “montagem humana” - estabilidade garantida pelo racional e pela ordem - para entrar na travessia do indistinto, do homem verdadeiro, dual como as duas pernas que o sustentam. “Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando. As duas pernas que andam, sem mais a terceira que prende” (LISPECTOR, 1979:9). Existir na travessia, “meio de entrada”, rumo à dissolução da cisão interna, consiste na grande tragédia humana, pois achar a si mesmo é na verdade entregar-se “à desorientação” e à “desorganização” que desmontam a “idéia de pessoa” adquirida com a “terceira perna”. Habituado a arrumar depressa “um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo” (idem, 8) o sujeito organiza e dá forma às coisas classificando-as e conferindo-lhes um desígnio. A “vida humanizada”, como é nomeada por G.H., classifica o real em fórmulas que possam ser substituídas, que se reproduzem “fácil como capim” em verdades compreensíveis, porque “sem dar uma forma, nada me existe” (LISPECTOR, 1979:10), até o ponto máximo do desígnio de uma missão humana que preencha a solidão e o constrangimento da falsa humanidade. Aceitar o desafio de ser ponte e não fim, de “passar” e “sucumbir” qual Zaratustra, que opõe o espaço da pré-liminaridade, na forma fixa, em relação ao espaço da pósliminaridade, na forma originária, é pisar o solo movente da terceira margem, dimensão do sem forma, vazio do sem rosto, para voltar a ser "uma pessoa que nunca fui" e voltar "a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas" (LISPECTOR, 1979:8). Ao tentar localizar no tempo o momento em que cria a terceira perna e perde a forma de criança, que é a mais parecida com a nova organização, G.H. revela a marca 53 que opõe um nível de existência a outro. A forma humana, infinitamente repetida pelo forjamento de “verdade”, que se figura como “perna protetora”, contrapõe-se ao rosto de criança que dá surgimento ao novo ser e se sustenta “nas duas pernas que andam”. A verdade tripé de que fala G.H. é a forma fixa instituída pelo racionalismo que fragmenta o ser e tenta garantir uma verdade absoluta. Já no fim do romance a narradora diz que deseja encontrar na sua forma adulta e humana o rosto de criança, liberta dos grilhões que aprisionam o ser na idealidade: “quero o adulto que é mais primitivo e feio e mais seco e mais difícil, e que se tornou uma criança-semente que não se quebra com os dentes” (LISPECTOR, 1979:152). As questões da idealidade e verdade absolutas, no pensamento platônico, estão intimamente associadas à problemática do bem e da moral, lembrando que o conceito platônico de verdade, revisto e rediscutido pelos filósofos medievais, mais precisamente por Santo Agostinho, apresenta-se como precursor da verdade do sujeito cartesiano, tema que tratarei em seguida. A idéia do bem conduz todas as verdades à verdade absoluta e, na tradição filosófica do medievalismo cristão, a fonte e essência da verdade repousam em Deus, ser infinito e eterno, pelo qual todo o bem é sempre bem. A relevância de se incluir o pensamento agostiniano na presente tese consiste em situar, sem amplos vôos, as idéias de Deus, bem e moralidade que marcaram o pensamento ocidental e, ainda, o germe da subjetividade do cogito cartesiano. Ora, Clarice questiona não apenas a idealidade platônica, mas o Deus cristão e suas leis. Lembremos do alerta de G.H.: a verdade pode aparecer sob diferentes ângulos. Ela é puramente expressiva e, ao contrário da lógica predicativa da identidade, em Clarice, a única lógica possível é a relacional, da diferença, que consiste na lógica do e, que guarda duas faces, portanto, duas verdades. “Não posso me resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maçãs. Eu sou uma cadeira e duas maçãs. E não me 54 somo” (LISPECTOR, 1978a: 75). O enigma suporta a obscuridade, mas a verdade, no conceito dessacralizado, não. A palavra clariciana é enigma, é intensidade mortal e sexual e depende exclusivamente da alteridade. Sua relação com o ouvinte como intérprete do indizível e do invisível é primordial e intensa. A palavra clariciana é luminosa e obscura ao mesmo tempo. Como visto pela tríptica desagregação a que a narrativa clariciana nos conduz, o abandono da forma humana pré-estabelecida, a partir da destruição do sujeito imperial, lança a personagem em viagem catabática pelo reino infernal do informe. A fase de liminaridade em que G.H. se encontra ao iniciar sua travessia consiste na fase de nadificação do sujeito e é seguida pela entrada no reino do neutro, que é também o domínio da complementaridade de opostos contraditórios. Esse movimento apresentase como condição primordial para a personagem alcançar a fase de pós-liminaridade quando, para fazer eclodir o novo ser, G.H. mergulha na transumanização de si mesma. E aqui, como apontam críticos como Schwarz, a desmontagem humana de G.H. se aproxima muito da metamorfose kafkiana no sentido de que se narra a perda de uma individualidade por meio do apagamento do sujeito, que passa a ingressar no espaço enigmático de um devir. O enclausuramento maquínico do ser o impele rumo a uma espécie de movimento libertador, de maneira a desmontar a estrutura rígida e estagnante. Enquanto a experiência kafkiana se constitui como uma transformação sem volta, o "entrave absoluto" (SCHWARZ, 1981:61) que aponta uma ausência de sentido e desarvora o homem, a metamorfose clariciana trata do encontro de uma interioridade mais legítima que confronta e substitui uma outra superficial e falsa. A narrativa clariciana, como muitas das grandes obras da literatura ocidental, atualiza a narrativa mitopoética do ser que, para ser iniciado nos mistérios da vida, precisa passar do mundo profano ao mundo sacralizado, trajetória que envolve a 55 Comentário: Posso incluir texto da Judith Ryan sobre Kafka travessia para o outro mundo, isto é, uma descida ao reino do indelimitado, onde os pólos contrários se complementam para dar nova forma ao ser. Carlos Mendes de Sousa caracteriza as figuras da escrita de Clarice por meio da força de imagens que irrompem no texto. Aponta o lúdico das cores e palavras presentes nas figuras animadas ao longo de seus textos. A origem do ato da escrita está nas imagens que se formam, mancham-se e devêm escrita, universo sinestésico preenchido de sensações, impressões e estados interiores. A obra completa de Clarice Lispector é um grande questionamento sobre a literatura, acompanhando sempre o processo de autoconhecimento que se desenvolve paralelamente ao ato de desvelamento da escrita. Questionar o literário é questionar a si mesmo e ao mundo, pois no texto está o mundo. Portanto, falar da criação do mundo é falar da criação da escrita, por meio da escrita, através de sua figuração. Algumas dessas figurações se apresentam sob a forma de paisagens fundadoras como a noite, os animais, o caos, o ovo e a terra (Gaia), a partir das quais se possa falar sobre o entendimento do eu e da escrita. O delinear de uma figura aponta sempre para o delinear de escrita. Do informe à figura, ou da figura para dizer o informe. Figurar o nãofigurável, a escrita como energeia, processo cujas implicações mais fundas envolvem um horizonte de violência no qual se percebem os movimentos desterritorializadores que imprimem vida à escrita: aí - na busca do nome neutralizam-se as hierarquias; a palavra enfrenta o mundo; o eu encontra-se com o não-eu, o que não pode ser nomeado; o interior invisível dialetiza-se com o visível nas zonas de fronteira cuja figura mais eloqüente em Lispector é o neutro, o insosso, o it, a coisa (SOUSA, 2000:55). No quinto capítulo de sua tese de doutoramento, Sousa se volta para o que chama de “quadros” de Clarice e sobre como a tópica do texto ganha diferentes metáforas. A primeira de suas interpretações é de que, a partir de recorrentes imagens 56 de letras sendo desenhadas ou gravadas em alguma superfície, ora no chão, ora na parede, algum elemento perturbador vem desarranjar o que se mostra em estado de harmoniosa ordenação. A forma como as letras se inscrevem na superfície se aproxima do que Sousa chama como sendo a “figuração da escrita” de Clarice Lispector. Esse ato pode ser lido como um ato de prefiguração à questão da assinatura do nome. O que se vê em quadros ou cenas de inscrição do nome é o desenrolar de uma assinatura seguida de uma rasura. A marca do erro no processo de escrita aparece como queda interior, ruptura com a ordem da personalização ou como estilhaçamento da letra. Como toda a obra de Lispector é uma ficcionalização do real, e a construção do mundo ocorre por meio de simulações, seja pela encenação de tradições, seja por referências autobiográficas que nada mais são do que ficcionalizações do sujeito, seja inclusive pela encenação da própria escrita, comecemos pelo tema da oikía 4 , por uma poética da habitação desenvolvida em A Paixão.... G.H. é uma mulher que mora em um apartamento em uma cidade grande. Um corpo que é a moradia de uma subjetividade; um apartamento que é símbolo de uma habitação. Lispector lança um corte vertical nessas duas construções culturais e conduz a dimensão da superfície à profundeza. Do apartamento e da estrutura ontológica. Até que a morada se converta no mundo. Corporalmente G.H. habita o apartamento. E o que esse corpo diz é que vive apenas na superfície, não conhece os fundos, apenas a frente – fachada. Mas o que este corpo não sabe é que sairá da crosta para o magma. Quero pensar agora que corpo e casa se tornam aos poucos elementos que abandonam um topos e adquirem certa atopia, possibilitando a interpretação dessas duas zonas como espaços de permanente abertura para um fora, em pleno movimento. No caso do corpo do sujeito, essa atopia tem a função de abrir para a vida, uma vida 4 οἰκία, οἶκος, ου, ὁ: do grego, casa, vivienda; habitación, cuarto; sala, comedor; templo; jaula, nido; residencia; bienes, propiedad, hacienda, fortuna; familia, linaje; servidumbre, criados; patria. Diccionario Manual Griego Clásico-Español. Barcelona: Ed. Vox, 2000. 57 entendida como zoé no sentido de uma vida intransitiva, sem limites, que não se opõe à morte, que não morre, em oposição a bios, entendida como a vida individual, com delimitações, que encontra seu limite na morte. Portanto, este corpo, que encontrará sua deriva na barata, experimentará o fim do fechamento sobre si, enquanto que a casa, continente do corpo, será o mundo enquanto estiver aberta. Nessa conjugação, a perda das fronteiras encontra equivalência na desterritorialização da linguagem. Porque a escrita abre espaços no mundo que o mundo não nos mostra. O topos da própria linguagem torna-se agora a configuração de um novo lugar para si: o não-lugar do lugar. G.H. dirige-se aos fundos, rumo ao quarto da empregada Janair. Para chegar até o aposento, passa por um “corredor escuro”, ponte que conecta o mundo dos vivos ao reino das trevas, prefiguração da nekya 5 realizada por G.H., que espera encontrar “escuridão” e “sujeira”, o caos, e depara-se com luz e ordenação: a ordem da alteridade. Como tela em que se projetam imagens, o quarto destoa da realidade de G.H. e instaura a sua própria. “O quarto parecia estar em nível incomparavelmente acima do próprio apartamento” (LISPECTOR, 1979:34), ainda que implique um deslocamento aos fundos daquela casa, uma descida simbólica. Entretanto, o quarto torna-se lugar sagrado, centro do mundo, templo em cujos domínios ocorrerá o ritual de metamorfose da personagem - a prece de todas as preces - decorrente do contato com o neutro centro pulsante e gerador da vida. Habitar a casa é habitar o centro dinâmico da existência. Se o centro atua como lugar que irradia sentido, essa imagem torna-se, portanto, metáfora da morada do corpo e da alma. Aquele que não habita sua morada é um exilado de si mesmo e, para G.H., o quarto, que é dos fundos e está em nível acima do apartamento, torna-se metáfora temporal e psíquica – é “deformado”, “erro de 5 νέκυια, ας, ἡ = do grego, evocación de los muertos. 58 visão”, “ilusão de ótica”, é “quarto-minarete”, o que significa dizer que o quarto não é apenas a “realidade material” exposta à sua frente e, tampouco, lugar homogêneo. Esse espaço está plantado no centro do mundo qual árvore no centro da terra, fuga e evocação do que está acima e abaixo ao mesmo tempo: “O quarto não tinha um ponto que se pudesse chamar de seu começo, nem um ponto que pudesse ser considerado o fim. Era de um igual que o tornava indelimitado” (LISPECTOR, 1979:41). Sendo assim, o real se manifesta a partir de duas formas: da realidade material e da existencial. É cortado em dois: um lado de sombras e outro de luz, um trevoso e outro nítido, um subterrâneo e outro visível, divisão esta que inicialmente compõe o ser bipartido, mas que posteriormente se tornará anunciação da dualidade integrada que rege o mundo neutral e que revelará o enigma da linguagem. “Da porta eu via o sol fixo cortando com uma nítida linha de sombra negra o teto pelo meio e o chão pelo terço” (LISPECTOR, 1979:34). O quarto descrito como “quarto-minarete” está “solto acima de uma extensão ilimitada”, como se “não estivesse incrustado no apartamento nem no edifício”, expandindo-se para um espaço já de desterritorialização, abertura para o mundo. Porque não era “um quadrilátero regular: dois de seus ângulos eram ligeiramente mais abertos” (LISPECTOR, 1979:34). O minarete, torre alta e fina que se estende no topo da mesquita de onde os fiéis são chamados para a oração, é também, segundo sua etimologia, o lugar de onde provém a luz, o farol que ilumina e direciona o caminho. Lembremos que, do corredor escuro, G.H. vai dar no quarto que “era um quadrilátero de branca luz” (LISPECTOR, 1979:33), “próprio lugar do sol, fixado e imóvel, numa dureza de luz como se nem de noite o quarto fechasse a pálpebra” (LISPECTOR, 1979:38). Além de ser o próprio lugar da luz, da consciência, o minarete é o ponto mais alto de uma mesquita e ponto fixo, centro do templo sagrado. É, portanto, espaço que 59 representa a vontade de fundação de um novo mundo e servirá como alegoria da construção de um espaço sagrado. A imagem de pilar proporcionada pela imagemminarete é porta que estabelece comunicação com o Céu, portanto, rotura na homogeneização do espaço, comunicação com o transcendente. A realidade material do quarto aparece como deformada pela visão, provocando a impressão de que o quarto não fazia parte do apartamento ou edifício, isto é, do restante do cosmo. Essa ruptura, na realidade, estabelece uma abertura através da qual mundo superior e mundo inferior se comunicam. Inicia-se a deriva dos continentes. O incômodo de G.H. com o quarto provém do fato de que, nesse espaço, há uma ordem subjacente do silêncio que violenta as “aspas” de sua cobertura e convoca a desorganização latente na personagem. “Como explicar, senão que estava acontecendo o que não entendo. O que queria essa mulher que sou? O que acontecia a um G.H. no couro da valise?” (LISPECTOR, 1979:40) O caos instalado causa terror, pois o espaço desconhecido que se impõe diante da personagem representa o espaço do não-ser. G.H. não sabe ainda que esse não-ser é parte integrante do ser. A dissolução no caos ameaça a extinção no vazio ôntico. Ao entrar no quarto, G.H. diz parecer ter entrado “em nada”. As camadas superficiais do ser iniciam seu lento desabamento, queda de cavernas seculares. O primeiro desabamento é o do estrato cultural ocidental, calcado no obsoleto e estagnante fundamento da subjetividade totalitária como ratificadora da verdade absoluta, legitimadora do real. Já estava havendo então, e eu ainda não sabia, os primeiros sinais em mim do desabamento de cavernas calcárias subterrâneas, que ruíam sob o peso de camadas arqueológicas estratificadas – e o peso do primeiro desabamento abaixava os cantos de minha boca, me deixava de braços caídos (LISPECTOR, 1979:40). 60 O sentimento de repulsa se acentua e desencadeia o impulso de destruir e matar, ao qual seguirá o “crime” praticado pela narradora. Esse desejo é, na verdade, vontade de dar forma pronta ao que ameaça os altos píncaros da sua subjetividade. Seguem as manifestações desse desejo: “tudo teria que ser modificado” (idem), “jogaria no quarto vazio baldes e baldes de água”, “jogaria água no guarda-roupa para ingurgitá-lo num afogamento até à boca” e, depois, “o enceraria para dar-lhe algum brilho”, “rasparia da parede a granulada secura do carvão”, desincrustaria à faca, apagaria e destruiria os desenhos na parede. O desejo de extirpar “à faca” tudo o que lhe causa pavor por trazer à tona suas entranhas e por desmoronar as aparências nas quais o sujeito está estruturado é manifestação de repúdio à transformação. O sujeito se contorce em suas raízes identitárias em jogo de forças contra a desorganização iminente no qual se repete o ato tão familiar do “talento de arrumar”, de querer dar forma por meio das próprias mãos. Nesse momento, dá-se o desdobramento do duplo da narradora, que é o próprio tu ao qual a narrativa se dirige: “O que me acontecia? Nunca saberei entender, mas há de haver quem entenda. E é em mim que tenho de criar esse alguém que entenderá” (LISPECTOR, 1979:40). O homem apresenta em sua “área interna” “um amontoado oblíquo de esquadrias, janelas, cordames e enegrecimentos de chuvas, janela arreganhada contra janela, bocas olhando bocas”. O homem real é aquele que mora abaixo das camadas superficiais desse edifício - símbolo da construção humana, “império” de “sentimentação”, “intoxicação de sentimentos” que irá “desmoronar”. A configuração da área interna do apartamento como um “amontoado” de angulações, que contribui mais para a confusão do quadro do que para a sua clareza, prefigura o amontoado humano que é G.H. “A miniatura da grandeza de um panorama de gargantas e canyons: ali fumando, como se estivesse no pico de uma montanha, eu olhava a vista”. Como em 61 tomada cinematográfica, a lente se fecha saindo da amplidão do olhar anterior para reter o olhar sobre a personagem: a vida humana, representada por G.H., é “edifício sólido” construído pelo “lento acúmulo de séculos automaticamente se empilhando” (LISPECTOR, 1979:64). Enquanto a mulher antes era engolida pela “garganta”, agora ela se encontra no “pico da montanha”. A mudança de perspectiva gera movimento e alternância de pontos de vista e da própria ordenação seqüencial. O mesmo acontece quando, logo após o desmoronamento do edifício, o que era apenas uma construção erguida se torna “uma grande cidade” e depois império, imagens que representam, em escala gradativa, G.H., o homem humano, a sociedade, o mundo, a civilização. Emergindo do fundo, a barata surge em cena como ameaça à estrutura da personagem por apresentar o perigo iminente do confronto com o “irremediável”. Emergir do fundo é subir das profundezas (psíquicas) para a superfície da consciência. Nesse capítulo, desenvolve-se uma das imagens de tensão dialética mais fortes em toda a obra clariciana: a da amplidão em oposição à restrição, que é também altitude em contraste com profundidade. “Anteriormente, quando eu me localizava, eu me ampliava. Agora, eu me localizava me restringindo” (LISPECTOR, 1979:46). A imagem de amplidão é a mesma de expansão e ascensão, todas freqüentemente usadas no texto e, no pólo oposto, restrição liga-se à imagem da contração e da profundidade. Vejamos a imagem descrita por G.H. no início de sua travessia, antes de entrar no quarto, quando no capítulo dois diz: “estava a um passo da descoberta de um império” (LISPECTOR, 1979:19), que se apresentará mais tarde como sendo o império da vida humanizada pelo sujeito coroado, que estabelece valores e modelos de vida baseados em sua própria arbitrariedade. A personagem lembra-se de uma frase antiga que lera em revista e anos depois vem à memória. Como é de costume em textos claricianos, o cotidiano lido em jornais e revistas, a vida costumeira e prosaica, aparece como 62 contraponto para o real oculto em suas entrelinhas. “Perdida no inferno abrasador de um canyon uma mulher luta desesperadamente pela vida” (LISPECTOR, 1979:19). Como se fosse uma sinopse do drama vivido por G.H., a frase destaca, em perspectiva panorâmica, o elemento reduzido no foco da câmera em meio à amplidão do vazio. A sensação de vastidão criada pelo contraste amplidão x restrição logo é realçada no plano da expressão não só por meio dos contrastes, mas pela inflexibilidade da língua para acompanhar o vôo das imagens. Em rápido movimento de angulação, a estratégia de contrastes é repetida no capítulo seguinte quando, já dentro da viagem catabática, G.H. lança o olhar sobre a área interna e externa do prédio em que mora, e revela ao leitor a imagem concreta do que será a pré-figuração de sua própria história. “Por fora meu prédio era branco, com lisura de mármore e lisura de superfície” (LISPECTOR, 1979:31). Ora, a “superestrutura” do sujeito aparente, que representa o falso homem e vive imerso em “supercamadas” e cuja configuração G.H. está prestes a desmontar, constitui-se como estrutura do homem que externamente se constrói sobre a retidão de um plano fragilmente elaborado, porém aparentemente “firme e compacto” (LISPECTOR, 1979:64). A imagem do ser como “superestrutura” ou “edifício” pode ser lida Comentário: !!!!! metonimicamente pela matéria de que é composto um edifício: o concreto. E, nesse caso, lembremos das acepções da palavra: concreto é a massa feita de cimento e água que se transforma em matéria resistente, inflexível e inerte para erguer do chão uma estrutura sólida - casa, morada. No entanto, a estrutura erguida mostra-se bastante instável, apesar do tripé, pois seus “alicerces vergam” e “num instante não anunciado pela tranqüilidade” verá suas vigas cederem. Há o “desmoronamento” – reivindicação do mundo à sua “própria realidade” - e o concreto é desfeito. A segunda acepção é a do 63 concreto como designando o real e verdadeiro, imagem revelada como falsa. O real não é apenas o visível e material, mas precisamente a sua conjunção com o ideal e o abstrato. Esse falso concreto passa a ser “dado histórico”, já que não se impõe mais como organização do humano. “... a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos” (LISPECTOR, 1979:65) - o humano está para além da matéria. A vida em si conjuga o real captado pelos sentidos ao ideal detectado pelo inteligível, pois somente na integração pode o ser retornar ao fluxo da vida através do constante realizar-se. Se a estrutura que rui é “construção sentimentária e utilitária”, que pauta o real apenas pelos sentidos, então o que surge exige um desapego. G.H. vê-se “na era primeira da vida”, que reivindica o “começo dos tempos”, primordialidade originária, para narrar o começo do eu integrado. Lembremos que esse eu, abandonado em algum ponto da existência, guardou as reminiscências do seu tempo em que era ainda unidade, pois o “inumano”, a “parte coisa da gente”, é que fará a reivindicação do ser verdadeiro, como que a convocar o ser larvar. Essa estrutura rebenta e a imagem da destruição é construída sobre o símbolo do dilúvio mítico, a partir do qual a origem do mundo e dos homens tem início. Se em mim tudo se quebrava à passagem da força, não é porque a função desta era a de quebrar: ela só precisava enfim passar pois já se tornara caudalosa demais para poder se conter ou contornar – ao passar ela cobria tudo. E depois, como após um dilúvio, sobrenadavam um armário, uma pessoa, uma janela solta, três maletas (LISPECTOR, 1979:66). Atente-se para o ritmo violento que a composição e repetição dos verbos “quebrar”, “passar”, “conter”, “contornar”, “cobrir”, “sobrenadar” compõem a fúria da “força” “caudalosa” das águas do dilúvio. Essa energia vital lança o ser ao inferno: 64 “destruição de camadas e camadas arqueológicas humanas.” O inferno revela-se como o próprio caos, o não-ordenável, uma vez que confere ausência de sentido ao mundo e ao homem. O capítulo fecha com a ruptura: o ato proibido de G.H. é tocar no imundo e a barata aparece como ser listado entre os impuros, não por ser animal imundo, apenas porque é “jóia”, é “a maçã”, chave para a compreensão e iniciação do ser. Muitas são as tradições do dilúvio, a do Gênesis bíblico é apenas uma delas. O que tais tradições carregam de fundamental e central é a idéia da instauração de uma nova época que traz uma nova humanidade. Evidenciam uma concepção cíclica da formação do mundo e do ser, na qual a catástrofe vem abolir um tempo esgotado e inerte de maneira que a nova era instaure o novo homem. Esse é também o tempo do primeiro silêncio, quando dentro das tradições religiosas, o criador se cala depois de originar o mundo e os seres. Porém, seguindo a imagem do dilúvio, os seres que surgem a partir de inundações são seres iniciados, pois o neófito precisa “morrer” a fim de “reviver”. Este é um tema mítico netuniano (ELIADE, 1998:171) que se manifesta na reintegração cíclica da criação nas águas primordiais do dilúvio com o propósito da regeneração. Se esta atualização não acontecesse, o ser esgotaria sua capacidade criadora e desapareceria para sempre. Mas, como ensina Eliade, “a imersão nas águas não equivale a uma extinção definitiva, mas somente a uma reintegração passageira no indistinto” (ELIADE, 1998:172). Na edição crítica do romance de 1964, coordenada por Benedito Nunes, a obra é interpretada sob o viés do simbolismo cristão referente à paixão de Cristo narrada nos evangelhos, o que nos leva a entender a paixão de G.H. como a narrativa que relata a via-crúcis do homem dentro da tradição da literatura ocidental. Ao longo do texto, Nunes chama atenção para expressões, citações e imagens do universo bíblico. No entanto, não é do interesse dessa tese refazer tal leitura, porém, não se pode deixar de 65 mencionar referências expressamente bíblicas encontradas no texto para fins de elucidação da narrativa. Entenda-se com isso que o texto clariciano parte de narrativas mítico-religiosas para tratar dos mistérios iniciáticos da vida, criando para isso um discurso único, singular e intertextual. As referências não são apenas bíblicas, porém míticas em geral e ecoam as vozes gregas e pré-gregas, que tratam da origem do ser e do mundo. A Bíblia é mais um dos textos com o qual a narrativa clariciana interage em diálogo explícito. O capítulo 10 inicia com referências explícitas ao Livro Sagrado da tradição cristã e uma citação, transcrita entre aspas, que indica ter sido retirada do Deuteronômio, onde se lê: “Mas não comereis das (criaturas) impuras: quais são a águia, e o grifo e o esmerilhão” (LISPECTOR, 1979:68). Em seguida, agora não mais como citação, a autora prossegue com a referência interferindo na criação do texto sagrado, reafirmando o seu papel de criadora do mundo textual e afetando a ordenação pré-definida, arrolando os nomes de outros animais que aparecem no Livro das Leis, porém fugindo da ordem listada na Bíblia e inventando a sua própria. Deseja com isso indicar o quê? O Deuteronômio é considerado o “Livro da Lei” por narrar a lei instituída por Moisés aos seus seguidores, pouco antes de sua morte, no Sinai. Essa narrativa é escrita em forma de discurso ao povo de Israel e, por meio dela, Moisés apresenta as leis a serem seguidas na Terra Prometida. O versículo encontrado em A paixão segundo G.H. se refere ao ato da devoração, quase que prefigurando a ação da personagem-narradora. Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo. (...) Eles dizem tudo, a Bíblia, eles dizem tudo – mas se eu entender o que eles dizem, eles mesmos me chamarão de enlouquecida. (...) "Mas não comereis das impuras: quais são a águia, e o grifo, e o esmerilhão." E nem a coruja, e nem o cisne, e nem o morcego, e nem a cegonha, e todo o gênero de corvos. Eu estava sabendo 66 que o animal imundo da Bíblia é proibido porque o imundo é a raiz (...) (LISPECTOR, 1979:68) A narradora deseja apresentar sua própria lei que rege a escrita autofágica e que consiste na lei do neutro. O inexpressivo precisa da devoração para se regenerar a cada nova representação, sem conservar formas fixas. A lei mencionada por G.H. refere-se às normas alimentares do povo escolhido, na qual estão selecionados, dentre o reino animal, os seres que podem e não podem ser comidos. Além daqueles mencionados pela narradora, incluem-se também os insetos. Diz a Bíblia: “Qualquer inseto é impuro para vós; não o deveis comer” 6 . G.H., porém, não menciona em sua lista justamente o inseto que será objeto da manducação. Contudo, a proibição segue uma lei explicitada pela própria narradora: “Eu estava sabendo que o animal imundo da Bíblia é proibido porque o imundo é a raiz” (LISPECTOR, 1979:68). Ser a raiz é manter-se inviolável desde o momento da criação, isto é, original, completo, indissociável: se o imundo é a raiz, significa que o proibido é a raiz. Isso implica as seguintes leituras. Se a imagem concreta da raiz remete à estrutura sólida, base que liga um elemento a outro e que, em sentido figurado, é também a parte oculta, fonte e origem das coisas primordiais, entende-se que o imundo (lugar fora do mundo) tocado através da barata, é exatamente a ponte que liga o real ao ser original, ofuscado pela estrutura cindida. Assim, garantese a existência e identidade do ser verdadeiro, fonte de vida. Igualmente, não podemos esquecer que a raiz é também o mínimo segmento lexical que forma a base de uma palavra e dá origem a formas posteriores de novas palavras, ou seja, palavras que formam textos que plasmam novos textos que se entrelaçam. Nesse sentido, entendemos que a raiz se destaca pelo elemento potencializador de reatualização que carrega em si, é “fruto do bem e do mal”, “matéria viva”, chave do conhecimento 6 A Bíblia Sagrada, Petrópolis: Vozes, 1981, Dt, 14, 19-20. 67 gnosiológico do ser e do mundo. E a lei dos homens, há muito seguida pela estrutura construída de G.H., “manda que só se fique com o que é disfarçadamente vivo”. Portanto, à narradora é proibido conhecer o imundo ou, diga-se, a vida em si. Outra lei instituída pelos homens é a da norma lingüística, que conserva inflexibilidades e ordenações em nome do bem escrever. Se entendermos a raiz como unidade mínima lexical, a unidade máxima discursiva é o próprio texto. Se a raiz, que é a base e origem das palavras, compõe unidades máximas de sentido, e é proibida e imunda, então a própria palavra poética carrega-se da atmosfera de proibição e, conseqüentemente, de sacralidade, pois é a única palavra a tocar o centro vivo do real que se revela em intervalos mudos e fulgurantes, para logo em seguida se ocultar. É a denúncia de que aquele que detém o conhecimento poético detém também a chave do conhecimento da vida e da morte, fruto do bem e do mal. Não é possível comer a raiz porque ela é a própria origem e, se a raiz dá origem a novas palavras, comê-la é descobrir que o texto pode devorar o próprio texto, criando novas linguagens, de maneira a se regenerar e refazer até que se encontre a linguagem original, decifração do enigma, que devora a si mesma, reinventando-se infinitamente. Esse conhecimento é imundo porque é proibido (e vice-versa) e só deve ser provado (em ambos os sentidos) por aqueles iniciados nos mistérios da vida (e da linguagem), “Pois quem comer do imundo sabendo que é imundo – também saberá que o imundo não é imundo” (LISPECTOR, 1979:69). A barata converte-se no fruto do pecado original, é a “maçã” que garantirá o conhecimento do bem e do mal. Portanto, a lei que a narrativa clariciana institui é a lei da dialética de contrários que se complementam no indiferenciado, na qual o imundo deixa de ser imundo e proibido e passa a ser não só permitido, mas também divino e sublime. Além disso, imundo é também estar fora do mundo (do prefixo negativo –i) e comer do de fora do mundo é comungar com o outro 68 lado, é mergulhar em outra lei, contrária à lei estabelecida, tanto da norma lingüística, como da estrutura do ser. É negar a lei que rege o eu atomizado em sua subjetividade. O quarto-minarete, agora já inferno, anuncia-se contrário à idéia cristã de reino da punição, do sofrimento e fogo eternos; o inferno compartilha dos mesmos atributos que o diabólico e o demoníaco. “Eis o inferno: não há punição” (LISPECTOR, 1979:117), este se transforma em “êxtase de riso com lágrimas” e “esperança de gozo”. Somente para além do humano, no “outro lado da humanização” (outro lado também da tradição cristã) é que o inferno pode existir como espaço agregador. Ao longo do romance, o inferno é designado como o “núcleo”, o “neutro”, a "tortura de uma alegria”, lugar do indiferenciado, espaço dos contrastes máximos, que recebe o ser desagregado e, pela força caótica contida em si, reintegra as partes dissociadas porque se converte em espaço do caos primordial. Já com sentido existencial e não mais espacial, “O inferno é a dor como gozo da matéria, e com o riso do gozo, as lágrimas escorrem de dor. E a lágrima que vem do riso de dor é o contrário da redenção” (LISPECTOR, 1979:116). Como se vê, nessa sucessão de paradoxos, Clarice interfere diretamente na semântica do texto ao criar o oxímoro inferno prazeroso, “horrível” e “bom” ao mesmo tempo, já que é zona do indistinto. No inferno de G.H., o homem é o espaço do duplo, refletido pela escrita. O texto do corpo já não delimita mais corpo e alma, que passam a refletir uma só forma inseparável, chama incessante. “No inferno, o corpo não me delimita, e a isso chamo de alma? Viver a vida que não é mais a de meu corpo – a isto eu chamo de alma impessoal?” (LISPECTOR, 1979:118). Se o corpo se desloca, flutuando sobre o magma, em sua deriva, da mesma forma, o corpo do texto também sofrerá suas comutações e abolições, rizoma. Em cena que lembra a metamorfose kafkiana de Gregor Samsa em 69 Comentário: Inferno – Blake, songs of experience, Dante? inseto, no capítulo 21 da obra, após adentrar o reino subterrâneo, o quarto-minarete agora se converte em outro espaço ainda, desta vez alquímico: o laboratório do inferno. O capítulo é a preparação para o ritual de morte e transmutação do sujeito em nova categoria de vida, e inicia com inversões paradoxais que prefiguram o ciclo de fechamento de uma forma de vida e a abertura de outra, revelando ainda a transformação abismal sofrida pela linguagem. A barata, com sua “máscara de ritual”, dá tom ao movimento e apresenta-se como etapa preparatória da conversão de G.H.: “amar mais o ritual de vida que a si próprio” (LISPECTOR, 1979:116), isto é, despojarse da vida que "é tão pouco cabível dentro de meu corpo” (LISPECTOR, 1979:118) para tocar a fronteira do que “já não é eu”. Esta fronteira que delimita o fim do eu, anuncia o início do outro. Trata-se do ritual pré-orgíaco, realizado no estado latente da noite, “orgia do inferno”, evocação das forças da coletividade, que culmina na “apoteose do neutro”. Mircea Eliade aponta que o ritual orgíaco é celebração da hierogamia divina, integração dos pares divinos Sol e Lua, Céu e Terra, etc., na qual a individualidade humana se perde em nome da unidade viva. Experimenta-se o estado da indiferenciação, estado primordial do caos que precede a criação. O ritual orgíaco simboliza a reintegração do homem na unidade, estado também noturno, de maneira a assegurar a continuidade da vida e quebrar as barreiras entre homem, sociedade, natureza e divino. "O que estava fragmentado reintegra-se na unidade" (ELIADE, 1998:289). A festividade noturna do “sabá” celebra a “alegria de perder-se no atonal” e tem como guia o Deus neutro criado pela narradora que se parece muito com o Satã dionisíaco, demolidor de diferenças e formas, ambos partes integrantes do ser, unidos no ritual orgíaco da noite. O atonal é também o limite final da palavra, quando sua 70 Comentário: A questão, então, passa pela metamorfose: torna-se um pecado quase capital não estar aqui o Kafka!!!!! possibilidade de existir termina e chega a voz do silêncio. No inferno neutralizante, a despersonalização do sujeito se acentua em direção à sua total desumanização - esse o destino a ser cumprido. “O mistério do destino humano”, diz G.H., é conhecer sua fatalidade e ter a “liberdade de cumprir ou não” (LISPECTOR, 1979:120). E mesmo tendo a liberdade de escolha, fatalmente escolhe-se realizar o “nosso destino fatal”, pois não cumpri-lo é ficar do lado de fora da “natureza especificamente viva” (idem). Encontrar a medida da humanidade dentro da espécie humana sem, contudo, “sufocar-se de acréscimos”, eis a tragédia de G.H. Para cumprir seu destino deve habitar o “núcleo neutro e vivo” dentro da própria espécie humana, e não pela manducação do inseto inumano, puro influxo da subjetividade na radicalização da matéria sensível. Essa a hybris do próprio herói grego, conhecedor de seu destino trágico, que se entrega ao combate e ao próprio erro de julgamento – conseqüência de sua natureza humana - e o cumpre até o fim, mesmo que isso lhe custe a vida, pois a queda evidencia as limitações de sua própria humanidade. G.H. precisa viver sua desmedida, mesmo que só venha a saber qual sua medida depois da queda; assim o trágico da obra clariciana. Sacrifício máximo. A barata, por outro lado, não escolhe, já nasce com seu destino inumano e por isso não vive o erro, a hamartia do herói. A marcha trágica da heroína deseroizada é cruzar a travessia do seu destino cometendo a hybris que lhe garante o poder de visão da verdade e da vida. “Mas de mim depende eu vir livremente a ser o que fatalmente sou. Sou dona de minha fatalidade e, se eu decidir não cumpri-la, ficarei fora de minha natureza especificamente viva” (LISPECTOR, 1979:120). A revelação da “missão secreta” da vida depende da escolha feita, porque “se eu cumprir meu núcleo neutro e vivo, então, dentro de minha espécie estarei sendo especificamente humana” (LISPECTOR, 1979:120). Esse o destino do homem: ser a vida em si como homem, sem ideais de 71 acréscimo, apenas subtração. “A despersonalização como a grande objetivação de si mesmo” (LISPECTOR, 1979:170). Por isso, ao fim de sua trajetória, G.H. entende que o caminho para cumprir esse destino é o da desistência da parte voluntariosa e encharcada de humanização; que o verdadeiro trabalho a ser feito é a “gradual deseroização de si mesmo”, pois é esta que “mina subterraneamente” o edifício. Até que o homem não seja nem mesmo designado pelo seu próprio nome, já que, com a destruição do sujeito totalitário, desaparece também a aspiração ao nome e a nova condição passa a ser a de uma aspiração à palavra sem nome, aquela que é coisa. A desistência, portanto, é “uma escolha”, “o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha condição” (LISPECTOR, 1979:172). É no inferno que o “primeiro esboço” do ser é revelado. A obra clariciana, como obra poética e cosmogônica que institui a si mesma e ao universo de que fala, constrói seus próprios significados, explicitados e autorizados pela narrativa. Um deles é o sentido de mal associado a inferno, diabólico, demoníaco, ao desejo de matar e, em última instância, ao pecado original. Essas idéias possuem um universo próprio de significados dentro do texto, como parte de uma teia que entrelaça cuidadosamente diferentes conceitos. Apesar de privilegiar o tema do mal no viés psicanalítico, por meio da manifestação de uma “linguagem do sadismo” que desconstrói a sintaxe tradicional e transgride a convencionalidade da narrativa para exprimir o sujeito “pulverizado e descentrado”, Yudith Rosembaum destaca o conceito de mal como força demolidora de um universo forjado no simulacro, que busca em sua afirmação a “potência destruidora das estruturas acomodadas e conservadoras” (ROSEMBAUM, 1999:19), rumo à transformação do ser e da linguagem. O mal aparece como força potencializadora por destruir e pulverizar as estruturas fixas e estáticas do ser, encaminhando-o à transformação. Thanatos é 72 Comentário: Meu Deus, CADÊ O KAFKA!!!!!! É gravíssima esta ausência!!!!!! Deus, Deus, o Kafka!!!!!! Deus!!!!! movimento vital e confrontação do mundo estagnado, que desorganiza o sujeito e a narrativa, através do seu princípio disjuntivo e propiciador da diferença, nos termos de Garcia-Roza (Garcia-Roza, apud ROSEMBAUM, p. 19). É através da manifestação do mal que a tensão da narrativa é exposta. A travessia pelo reino do diabólico dá ênfase à experiência do divino no humano, através da qual o ser caminha por uma metamorfose existencial, em viagem de autognose. A barata institui relação conflituosa com G.H., pois, nesse confronto, o mundo humano da personagem desmorona e oferece a visão de uma “nova e angustiosa realidade” (LISPECTOR, 1979:130). O homem começa a se abrir para a alteridade. O desmoronamento do sujeito permite que outra forma seja dada à sua existência dentro da realidade que se estrutura diante de si. Assim o é com a escrita. O conflito comporta a luta entre a experiência vivida, que beira o indizível, e a palavra, de maneira a encontrar a expressão que melhor defina o indefinido. Emerge uma das principais problematizações do texto clariciano: como dar forma ao núcleo vital de força propulsora da imaginação? A escrita, bem como o sujeito por meio do qual ela toma forma, encontra-se dentro de movimento de constante destruição e reconfiguração. Ao tentar dar forma àquilo que deseja nomear – o inominável - a palavra se aproxima daquilo que quer designar - o indizível. Essa palavra será por isso fragmentada, entrecortada, interrogativa, mas também repetida (note-se a repetição da última frase de cada capítulo na abertura do capítulo seguinte, além de verbos em diferentes tempos verbais e frases), numa busca incessante pela palavra que manifeste o ser e as coisas, ou o ser das coisas. Em outras palavras, manifestar o que foi nomeado é nomear a physis do que é verbalizado, ou seja, manifestar a totalidade da natureza na singularidade do individual. A linguagem leva a palavra às ultimas conseqüências matando a tradição da nomeação para que apenas o vigor do que está dado se repita, e 73 Comentário: Não te esqueças de que diabólico é desviante. Citar o “Inferno” , o Dante. Também o Campos, “Poema em linha reta” não o seu simulacro. Durante a travessia pelo inferno, a personagem de A paixão segundo G.H. sofre o impacto da força de duas emoções opostas que a envolvem e que serão o ponto de partida para o desenvolvimento de outros pares opositivos: a atração e a repulsão pela nova forma. G.H. perde-se e reconstrói-se em uma nova existência que visa a constante auto-formação. “Caminho em direção à destruição do que construí, caminho para a despersonalização” (LISPECTOR, 1979:169). O tema da busca da identidade introduz uma dialética que se quer constante e interminável. Para atingir o mais profundo do humano, há que se recorrer a um jogo de ocultamento e revelação da identidade pelo forjamento de máscaras. Seguindo esse princípio, a narrativa se forma através do jogo de contrastes lingüísticos e semânticos. Trata-se de um construir e destruir da narrativa que, a cada movimento, revela mais nitidamente o ser e o não-ser do humano, bem como a palavra e a não-palavra do texto. O jogo de fazer e refazer a si mesmo refletese, assim, na elaboração de uma escrita que reconstrói a si mesma, ao passo que abole suas formalizações, inventando uma linguagem própria. “Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar” (LISPECTOR, 1979:172). É no jogo de mascaramento da verdade e da palavra que o enigma da natureza dual do ser e das coisas se deixa entrever. O nomear a si e ao outro garante a existência das formas no mundo interpretado pelas categorias do sujeito, mas desistir de dar uma forma ou nome ao informe, e que por ser informe preserva sua força vital anônima, é reconhecer, ao mesmo tempo, a impotência e o fracasso do sujeito ao tentar aprisionar o que é indomesticável, além de reafirmar o caráter insubjugável da palavra poética. Por isso, a palavra poética se aproxima do inexpressivo, prece de todas as preces e que, além de não poder ser expressa, acima de tudo, é sagrada: “o mudo oratório inumano” 74 (LISPECTOR, 1979:156). Mais uma vez Dioniso. Destruidor do homem humano, Dioniso, que é máscara e deseja o homem verdadeiramente homem cuja vida implica morte, cuja força vital surge do contraste de forças opositivas e complementares, mais uma vez introduz o confronto, a presença da superfície e do aparente, no seu oposto, a ausência. O encontro, do qual não se pode retroceder, promove o contato do permanente e imutável com o transitório e movente, revelando que a natureza do real pertence ao domínio do duplo. Em outras palavras, o real é aquilo que está e não está ao mesmo tempo, o visível e o invisível que somente a arte consegue capturar, simultaneamente alcançável e inalcançável. Na mesma realidade, a presença esconde a ausência, e a ausência revela a presença. E este movimento é um assalto às sensações, impondo a urgência e o eterno enigma da dualidade. “Eu chamava ‘máscara’ de mentira, e não era: era a essencial máscara da solenidade”, porque a solenidade vem do fato de que “viver é sempre questão de vida e morte” (LISPECTOR, 1979:112). Os segredos do ser e do não-ser assolam o homem de maneira monstruosa e selvagem, trazendo fascinação e loucura. Para Carlos Mendes Sousa, o não-ser está próximo das referências ao que é “mole” e “úmido”, que equivale ao “neutro vivo da coisa”, e é nesse indeterminado que a identidade se perde, mantendo com a língua uma relação de intensa simbiose, pois “a identidade se constrói tropologicamente como um efeito de linguagem” (SOUSA, 2000:29). Sendo assim, a identidade se molda junto ao texto e à obra. O espaço, portanto, torna-se um espaço heterogêneo: se, ao entrar no quarto, este ainda é um quarto, ao passo que as digressões da protagonista aumentam, o aposento passa a ser "quarto-minarete", “deserto”, “laboratório do inferno” e, depois, “mudo oratório”. Se espaço e tempo assumem equivalência de valor dentro da obra, 75 também os dois sujeitos da narrativa (eu e tu) se aproximam (Mim és tu. (...) Mas eu não é tu.). As delimitações se confundem e o sujeito só pode existir no outro se abandonar a si e se direcionar ao interlocutor, como indicado pelo pronome oblíquo mim. Eu e tu são pronomes pessoais que designam sujeito, mas mim é o eu em função de objeto, é eu em direção ao outro, é eu-objeto. Só na interação de opostos complementares é que sujeito e objeto podem coexistir. O eu-narrante não é o mesmo eu-narrado. O último momento contém em si o tema principal de toda narrativa catabática: a metamorfose do ser em travessia que se revela como constante atualização e reorganização em um novo sujeito, por meio do qual a união de pólos opostos acontece, reconfiguração dos continentes. Se a fusão da relação entre sujeito e objeto se desenvolve promovendo a não distinção de pares opositivos, no nível temático, resultam conseqüências no nível da narrativa, com problematizações no encadeamento sintagmático e discursivo, para os quais a indistinção temática é transportada. Nesse sentido, o sujeito que constrói a narrativa é conseqüentemente por ela construído. Ao narrar as identificações de pares opositivos, a autora concebe uma forma discursiva que realça o caráter enigmático do texto e suscita novas associações. Uma das técnicas utilizadas para dar fluxo a essas indistinções é a repetição, donde se tem que uma enunciação repetida jamais terá o mesmo sentido que a anterior, será sempre variação. A repetição se dá a partir de nomes, verbos e advérbios (no plano lexical), de estruturas sintagmáticas (no plano sintático), estendendo-se na dimensão da frase, do parágrafo ou Comentário: Deveria entrar exemplo da repetição. do capítulo, até atingir o plano semântico. Ao tratar do tempo, Clarice é precisa: o tempo é o agora. Já em A paixão segundo G.H., presenciamos a ruptura com as definições tradicionais do romance prescritas pelo tempo cronológico e o avanço para além das minúcias do tempo 76 psicológico. A autora narra o tempo poético: “Era simplesmente agora” (LISPECTOR, 1979:76). O tempo é “superficial” e se propaga como em ondulações rítmicas no espaço aéreo, além de ser descrito como “maduro” e “inchado” de transitoriedade. No primeiro parágrafo do capítulo 12, a narradora não está a descrever ações ou contar histórias. A exemplo do tema de Lispector, o parágrafo está a falar do próprio tempo, questionando a noção eternamente mimetizada nos romances tradicionais. Quase não há períodos com verbos de ação, e a maioria é construída com verbos de ligação, no presente e passado, intensificando a criação de metáforas temporais. “Era assim: o país estava em onze horas da manhã. Superficialmente como um quintal que é verde, da mais delicada superficialidade. Verde, verde – verde é um quintal. Entre mim e o verde, a água do ar. A verde água do ar” (LISPECTOR, 1979:76). O quintal é verde porque há água, matéria fertilizadora. Porém se a água cessa e a aridez se impõe, o quintal deixa de ser verde e vivo e passa a ser seco e estéril, como Otávio em Perto do coração selvagem, como a vida anterior de G.H. O tempo da narrativa clariciana é o intervalo entre dois estados do ser, entre um momento e outro, resultando na transitoriedade. Não há “profundidade” no sentido cronológico, mas intermitência. Pausa na passagem do tempo e abertura para a travessia do ser. “O tempo freme como um balão parado” (LISPECTOR, 1979:76). O “ar fertilizado”, como que recipiente para o nascimento das transformações do ser, cede espaço para as transições da paisagem interior que, inevitavelmente, acontecem na escuridão da noite. Nas palavras do crítico: É o abrir-se para a dimensão figural que vai ganhando terreno, de tal forma que se produz um efeito de esbatimento – como que se desfocam ou se diluem os indicadores de transição e as noites se abrem ao que nelas é o noturno da noite ou o noturno do ser ou o noturno do não humano: sombra, cegueira, insônia, interior, fluxo, fadiga, sangue, desrazão, excesso (Sousa, 2000:212). 77 Nesse sentido, verifica-se que a ação do romance é conseqüentemente nula, o que permite a maior atenção do texto sobre as personagens. Como afirma Sousa, A Paixão... é um romance de personagens no sentido de que a narrativa gira em torno da vivência e experiência de transformação de cada um deles e não de ações desempenhadas ao longo do processo de efabulação. No romance de 1964, a única ação desempenhada pela personagem se dá no início do romance, quando esta se desloca de uma parte do apartamento para os seus fundos e quando ingere a barata. Além dessas, as ações são lentas e limitam-se ao ‘encostar-se na parede’, ‘sentar na cama’, ‘fechar a porta’. A narrativa é alimentada pelos rompantes epifânicos dos personagens e suas transformações interiores. O tempo é quase estático e sua superficialidade só vem acrescentar à imobilidade que marca a passagem do tempo, a mulher e a barata. “Onze horas não tem profundidade” (LISPECTOR, 1979:76); não há movimento assim como não há designações para o silêncio, e tampouco para descrever o movimento interno do eu. A linguagem é falha e superficial para relatar as revelações que acometem os personagens. O período de tempo em que se passa a narrativa de G.H. acontece dentro do espaço de uma manhã e que se torna o espaço do deserto, da vastidão, da linguagem. Daí ser a narrativa de A paixão segundo G.H. escrita “autofágica” que narra o processo do eu encontrando-se consigo mesmo e da palavra encontrando o silêncio. O deserto figurado é também representação do vazio interior da personagem que, sentada sobre a cama, desenrola seu monólogo no intervalo entre o estado de vigília em que se encontra e o sonambulismo – intervalo onírico. Tome-se como exemplo a imagem do fechar dos olhos. A primeira associação a ser feita é com a cegueira. Nos contos e romances da autora, a cegueira é sempre sinal de ruptura do ser, que resulta no aguçamento da visão do mundo e de si e, conseqüentemente, em autoconhecimento. “Mas ser cego é ter visão contínua” 78 (LISPECTOR, 1997:217), diz o personagem Martim de A maçã no escuro. Por isso, a cegueira também proporciona ângulos de visão que antes eram obscuros; oferece a abertura de frestas escondidas anteriormente. O ‘ver pouco’, portanto, e o ‘ouvir quase nada’ referem-se ao mergulho na escuridão (na penumbra) e no silêncio – espaços de contato com o invisível e o indizível. A visão proporcionada pela cegueira é para poucos, Édipos. Ritual iniciático. Uma vez mais, a tensão dialética se instaura: da escuridão total vem a iluminação do mundo e das coisas. “Do mundo enfim úmido de onde eu emergia, abri os olhos e reencontrei a grande e dura luz aberta” (LISPECTOR, 1979:50). Recupere-se aqui a figura da criança, aquela que se associa à noite, ambas representantes do indiferenciado. Se a criança é o ser em constante formação, para quem a segmentação ainda não se definiu e instalou, a noite é o espaço que dissolve as divisões e as formas (assim será a escrita) e torna os seres (seja do mundo animal ou vegetal) e as coisas, todos, semelhantes. Tornar a realidade distinta um espaço do indistinto é instaurar a lógica relacional, na qual cada pólo de pares opositivos mantém sua característica individual atuando, porém, em complementaridade com o seu oposto. A linguagem transposta para o papel é consciência da experiência do real, transmitida em símbolos, que não encontra articulação na língua por ser fugidia. O momento de rompimento do ser de um estado anterior para a nova forma acontece quando a consciência do eu atinge a existência do outro, ruindo com a estrutura subjetiva imperativa e absoluta. A existência passa a ser possível apenas com a condição de se incluir a existência do outro em via aberta de troca. “Mas se seus olhos não me viam, a existência dela me existia – no mundo primário onde eu entrara, os seres existem os outros como modo de se verem” (LISPECTOR, 1979:72). O olhar devolve o outro. Ao confrontar a barata, imediatamente verificam-se dois movimentos: o do 79 fechar os olhos, que indica movimento de escrita voltado para o sonho e para uma certa ignorância benfazeja, e a realização do ‘crime’ de G.H.: matar a barata. Se a narrativa clariciana gira em torno da temática do duplo, nesse capítulo, a barata é o outro que emerge do subterrâneo da personagem. Junto a Janair, a barata se torna o duplo de G.H. e ambas possibilitam o retorno daquilo que secreto deveria permanecer. Esse ‘outro’ é só olhos e boca e também aquele que por meio do impulso de morte trará a vida subterrânea à tona. Logo no início do sexto capítulo, o movimento de ‘abaixar ou esconder os olhos’, isto é, o desvio do olhar, antecipa o movimento do fechar dos olhos que seguirá à frente. Fechar os olhos para a realidade é também abrir as portas do imaginário para o devaneio, segundo Bachelard. O sentimento de potência latente que toma todo seu ser e sugere a ameaça iminente faz a personagem desviar o olhar. O medo se agiganta e aprofunda e, como um caracol, retrai a personagem para o centro de si. A retração a faz se concentrar no desejo embriagante do sujeito: o desejo de morte. Como a barata é o duplo da personagem, o desejo de matar o outro se reflete no desejo de matar em si para que a vida pulsante possa despertar. Portanto, o desejo de morte não é do outro, mas de si por si mesmo, para que possa brotar aquilo que está encoberto sob camadas arqueológicas profundas. A rapacidade é o primeiro sentimento de voracidade que emerge do sujeito. O desejo de matar, junto com o sentimento de rapacidade e a devoração, que mais tarde tomará forma, pertence ao que a própria personagem chama de “entrega ao mal”. Esse mal é, como já foi dito, potência destruidora que surge enquanto energia vital de transformação, assumindo papel de centro irradiador de força. No momento da concretização do golpe fatal, que não se realizará como tal, acontece o fechar dos olhos. Nesse instante, a personagem pergunta-se não o que fizera ao outro, mas o que fizera a si mesma. Se considerarmos que, precisamente nesse gesto, 80 Comentário: Meu Deus!!! Outro Kafka, agora O processo!!! a consciência do sujeito irrompe, podemos pensar que o golpe não matara, mas acordara o que estava latente, isto é, a própria vida. O ato de matar promove a vida, em vez da morte. Vida que é necessariamente ato de morte do estagnado, do rígido e do velho. A dialética é princípio que rege toda a obra, alertando para o fato de que nada é apenas o que aparenta. A palavra é plurissignificativa, polissêmica, transformadora e contém em si mundos ocultos. “Que fizera eu de mim? Com o coração batendo, as têmporas pulsando, eu fizera de mim isto: eu matara” (LISPECTOR, 1979:50). Esse ato rompe o invólucro do ser verdadeiro e, junto ao abrir dos olhos, torna-se ato de nascimento para um mundo reordenado e para o novo ser, no qual a esterilidade do que era vida seca brota na fertilidade do úmido. “Ter matado abria a secura das areias do quarto até a umidade, enfim, enfim, como se eu tivesse cavado e cavado com dedos duros e ávidos até encontrar em mim um fio bebível de vida que era o de uma morte” (LISPECTOR, 1979:50). Ainda nesse mesmo capítulo, inicia-se um diálogo textual entre o duplo barataG.H. Ao erguer o braço na segunda tentativa de matar a barata, agora já preparada para dar o golpe final e acabar com a vida do inseto, eis que se insere um movimento cadenciado de alternância entre parágrafos que falam ora da barata, ora de G.H., para no fim, incluir parágrafos que aproximam as duas, como que apresentando a interação dual dos dois seres. Logo após o momento em que G.H. vai desferir o golpe final, a mão que mata é suspensa em função da visão do rosto da barata. Em seqüência altamente dramática, a mão erguida no alto lentamente se desloca à altura do estômago da mulher. Segue uma breve descrição: o estômago recua, a boca seca, os lábios se tornam ásperos, quase uma transmutação. O parágrafo seguinte inicia com a descrição da barata. Instala-se a vertigem. “Era uma cara sem contorno” (LISPECTOR, 1979:51). Observe-se, no entanto, que a partir de então, o que é dito da barata vale para 81 Comentário: Por que não o Borges do El outro? G.H.: o rosto sem contorno era também o rosto da mulher, que agora perdia a forma em dissolução do eu. Segue a descrição da antigüidade da barata e de sua atualização mítica. O que mais chama atenção é a boca: ela se insinua ante os olhos da mulher. O parágrafo seguinte inicia com o olhar da narradora: “Eu nunca tinha visto a boca de Comentário: E isto é poético. uma barata” (LISPECTOR, 1979:51). A oração seguinte é bastante ambígua: ao dizer que sempre “tivera repugnância pela sua antiga e sempre presente existência – mas nunca a defrontara, nem mesmo em pensamento” (LISPECTOR, 1979:52), está G.H. se referindo à barata ou ao seu eu verdadeiro que só nesse momento é confrontado, ou a ambos? Os três últimos parágrafos mantêm a ambigüidade já vista. G.H. descobre que a barata é feita de camadas de cascas que comprimiam todo o seu ser entre essas “camadas finas de asas”. Não é ela também feita de cascas e mais cascas, as quais formam um invólucro que agora é quebrado com a dissolução do eu? A barata se torna então só olhos e boca. Olhos dentro de olhos dentro de olhos. Vale dizer que os olhos do inseto aparecem como espelhos a refletir os olhos da protagonista. Os olhos revelam, porém, o centro do segredo de si mesma e ultrapassam a máscara. A temática do espelho não é nova e se apresenta como a vontade de autoconhecimento. Porém, ver o eu verdadeiro é também confrontar a morte, pois a imagem refletida implica revelação do oculto mediante aniquilamento do exposto, do externo. Até que, metonimicamente, o olho represente toda a barata. E são olhos radiosos, isto é, olhos que irradiam luz, portanto, da escuridão surge a luz que permite a visão oculta dos iniciados. Além disso, abrem-se as portas para a metáfora da devoração e da visão contínua. A técnica da figuração confere movimento à progressão do romance que, com a imagem do fechar dos olhos, possibilita a externalização e projeção do oculto e invisível na forma de desenhos. Os motivos literários mantêm seus sentidos originais, sem deixar 82 de se misturarem, como na música, uns com os outros, em diferentes combinações em direção a um desenvolvimento maior ao longo do texto. Um deles é o do espelho representando o encontro do eu consigo mesmo, onde o herói vê a imagem universal de si mesmo. O espelho revela primeiramente a personalidade dual ou plural, em suas múltiplas facetas. O encontro com o eu verdadeiro, através do olhar dentro da alma do sujeito, despoja o indivíduo de todas as suas mascaras e papéis de maneira que esteja preparado para a transmutação final ou para a falha, o fracasso. Quer a alegoria do espelho dizer com isso que o ser não é apenas dual, mas infinitamente múltiplo, sendo cada uma de suas máscaras apenas fragmentos ou aspectos diferenciados de um único ser, não o ser eterno, mas o eterno Ser, o Homem em sua integridade e completude? Sendo assim, as personagens, constantemente intermediárias em conflito entre um mundo de bipartições representado pela máxima sensibilidade da matéria ou pelo máximo racionalismo do intelecto, viventes entre mundo real e mundo dos sonhos, internalização aprisionadora e externalização opressiva, encontram a comunhão apenas em si mesmas, na movimentação ininterrupta de despersonalização e despojamento do universo bipolar para integração no universo complementar. A presença do espelho mostra a natureza dual que pode sugerir a correspondência platônica entre sujeito e imagem, universal e particular, real e ideal. O reflexo do sujeito na água, no vidro ou em qualquer outra superfície que tenha as marcas de anteparo, traz imediatamente à tona a idéia da bipartição entre mundos opostos. Como ensina Freedman (FREEDMAN, 1971: 86), a alegoria do espelho pode se aprofundar e a sua superfície tornar-se um palco onde se desenrola o teatro mágico. O sujeito se torna a testemunha de sua própria vida fraturada em numerosas partes, espectador e ator da sua própria história. O sujeito que olha é diferente do sujeito refletido, que assiste à sua metamorfose em diferentes personas, até a máxima 83 despersonalização para o posterior ressurgimento em um ser único, uma única imagem que contém todas as outras. A divisão na estrutura da vida real é substituída pela integração na obra de arte. Se o espelho é recurso por meio do qual se refratam os contrastes e oposições internas, mostrando os cismas e cataclismos de um mundo dividido, com valores partidos e conceitos feridos, ele também reflete a imagem ideal do ser, com a qual o homem pode se integrar e se transfigurar a partir da visão exterior de si na imagem refletida no espelho. A jornada pelo mundo infernal do eu fragmentado é uma viagem por uma janela infinita de espelhos e somente pela progressão contínua de auto-retratos, máscaras desocultadas, até a desfiguração última é que o sujeito pode encontrar o seu eu original. É do contato com o inseto que surgem as núpcias negras entre o sujeito e o seu Comentário: Desdobrar o uso de “negras”. objeto, ou entre humano e inumano, arcaico e contemporâneo. Esse casamento, realizado pelo ritual de “missa negra”, é também matrimônio com o mal. Como foi visto, para Rosembaum, em toda obra clariciana, o mal atua como força propulsora e deflagradora do trânsito do mundo interno para o mundo externo das personagens, isto é, força que impulsiona o ser para a comunhão com a alteridade. É através da manifestação do mal que a tensão narrativa é exposta. O parto, que tem como fim último o nascimento do novo ser, advém do contato com o mal, que já não é visto com repulsa, porém como fonte geradora de vida: Sem nenhum pudor, comovida com minha entrega ao que é o mal, sem nenhum pudor, comovida, grata, pela primeira vez eu estava sendo a desconhecida que eu era – só que desconhecer-me não me impediria mais, a verdade já me ultrapassara... (LISPECTOR, 1979:49). Romper o invólucro da barata era romper o seu próprio. Para descobrir o eu real 84 Comentário: A idéia de verdadeiro eu pode soar demasiado platonista. Assim, talvez seja o caso de fazer comentários mais detidos acerca disto. teria que assassinar a si mesma, já que o eu de agora reconhece que, ao criar o simulacro, tivera que assassinar um dia seu eu verdadeiro. “Que fizera eu de mim? Com o coração batendo, as têmporas pulsando, eu fizera de mim isto: eu matara” (LISPECTOR, 1979:50). Para gerar vida seria preciso promover a morte. O assassinato é o antídoto para a recuperação da vida que um dia fora aniquilada. No entanto, para sua surpresa, G.H. defronta-se com a vida, em vez da morte que seu ato acabara de anunciar. O ato de assassinar o outro e a si mesmo antecipa o que se verá nos próximos capítulos: que o outro é reflexo de si mesmo. Ressurgem do caos a barata e G.H: “Ter matado” era “como se eu tivesse cavado e cavado com dedos duros e ávidos até encontrar em mim um fio bebível de vida que era o de uma morte” (LISPECTOR, 1979:50). E já então pode "abrir" "devagar os olhos", pois a visão lhe foi restituída. A equação da narrativa de G.H. se estabelece por meio de inversões, onde uma estrutura equivale ao seu oposto. Exemplo: “O que nela (a barata) é exposto é o que em mim eu escondo: de meu lado a ser exposto fiz o meu avesso ignorado” (LISPECTOR, 1979:73). Nessa frase, resume-se a travessia existencial e narrativa de A paixão segundo G.H.: o outro expõe o que há de subterrâneo no sujeito por refletir em si esse avesso que nele, no outro, configura-se como real e não como avesso. Portanto, o sujeito só passa a existir como sujeito verdadeiro quando incorpora o outro à sua existência, já que a alteridade se mostra parte dele mesmo, persona. A barata não era um rosto, “era uma máscara”. A barata expõe a máscara social de G.H. denunciando o eu subterrâneo da personagem. Os olhos da barata, que confrontam e reivindicam a verdade, como máscara dionisíaca, são dois “ovários” que “fertilizam” a esterilidade da mulher morta, isto é, reivindicam a capacidade produtiva de inventar a vida a partir da reinvenção de si mesmo e da linguagem. Os olhos que fertilizam são também “salgados” – mar – traço recorrente nos textos de Clarice, que transfere característica 85 de fecundidade e vitalidade à esterilidade do deserto e da aridez. O desejo de ‘tocar com a boca’ os ‘olhos salgados da barata’ não seria talvez uma variação do ato de Lóri em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres ao engolir a água do mar em busca de fecundidade com a vida, como se o mar fosse o sêmen que promove vida? Nesse deserto estéril, G.H. “descobria a vida e o seu sal” (LISPECTOR, 1979:73). Depois do sal, a noite. Lembramos que a noite é imagem precípua na escrita clariciana porque representa o espaço de eclosão da fundação da escrita e do novo ser. É também vivida como o meio de transporte na travessia do ser rumo às profundezas da experiência de perda da individualidade e apagamento do sujeito. “Somos criaturas que precisam mergulhar na profundidade para lá respirar, (...) só que minhas profundidades são no ar da noite” (LISPECTOR, 1979:110). Respirar é a condição principal para a existência da vida, e situação primeira do nascimento do ser, por isso a noite é entendida como “nosso estado latente”, vida que acontece na dimensão noturna do tempo. A noite habita o mesmo espaço que o inferno na trajetória de G.H., aparecendo inicialmente como anunciação da transformação e traduzindo-se como a iniciação do sujeito no reino do duplo domínio de opostos que se complementam. A entrada no reino infernal da noite é também o momento no qual se cria o interlocutor ‘tu’, a quem se pede auxílio durante toda a travessia. Para adentrar este reino, representado pelo outro lado, G.H. tem que “atravessar os portões que estão sempre abertos”, a partir de onde as distinções perdem seus contornos e “não haveria diferença entre mim e a barata”, assim como não haveria diferença entre “paraíso”e “inferno”. Esse espaço é caracterizado como o nada, o núcleo, o pneuma, no qual a vastidão, ao invés de separar, une e complementa. Nesse espaço não homogêneo, caracterizado pela noite e pelo quarto, o que antes era teto “se 86 arredondara e transformara-se no que me lembrava uma abóbada” (LISPECTOR, 1979:78). Oratório. É no espaço sagrado do oratório que se entoa o “cântico” “surdo” em “ação de graças” pelo “assassinato de um ser por outro ser”. O “cântico surdo” é também a escrita que tenta, em construções oximóricas e contrastantes, dar conta do inexpressivo que narra. E é, por isso, ato de aniquilamento, “modo de relação” que se estabelece em “ligação de ferocidade mútua”, tanto entre sujeito e objeto, como na narrativa que aniquila a si mesma para fazer surgir outra narrativa. Palimpsesto. A imagem da noite mescla-se com a imagem do dia, como se o caráter fundador da noite atingisse também a claridade do dia. A travessia ao reino subterrâneo acontece na luz diurna e não na escuridão noturna. Porém, se a noite originária do ser verdadeiro, encoberto pelo subterrâneo do homem, é espaço de fundação do mundo e do ser nos textos da autora, em A paixão segundo G.H. a vida acontece “à luz do sol”. A própria narradora reconhece que o mundo que “se revolvia lentamente” no escuro da noite era o mesmo que acontecia em suas “próprias entranhas”, sem diferenciação entre mundo externo e interno, ou dia e noite. “Mas agora a vida estava acontecendo de dia” porque a claridade da luz nada encoberta e a tudo ilumina. E na clareza do dia acontece o pacto fáustico que leva à danação a alma sedenta de curiosidade. A troca de um futuro com garantias, sob a construção tríplice do mundo externo, pelo conhecimento de si e do mundo, que acontece somente no ato fulminante do instante de lucidez onde se deve abandonar tudo, inclusive o futuro, para renascer em novo instante, é o pacto de G.H. A metamorfose de G.H. acontece no momento de choque com o ‘já’, o ‘instante’, isto é, com o agora que é ‘atualidade’ e reivindica toda a existência para reinaugurar uma nova forma de vida, na qual a “hora de morrer” e a “hora de viver” se equivalem em intraduzibilidade para o sistema lingüístico porque são fenômenos do real intocável. A exigência da morte em vida, que só acontece no instante da atualização, coloca o ser em 87 contato com ele mesmo, pois “entre a atualidade e eu não há intervalo: é agora, em mim” (LISPECTOR, 1979: 74). A atualidade, momento em que o ser se complementa com os seus opostos, é inexpressiva, e por isso denuncia a falência da língua para dizer o real, exigindo o nascimento de uma nova linguagem que expresse o nada, pois “a hora de viver” “é o nada”. O nada é também o eu que primeiro se despersonaliza para poder reassumir um rosto. “Aquilo que eu chamava de ‘nada’ era, no entanto, tão colado a mim que me era... eu?” (LISPECTOR, 1979:75). Ao sucumbir, o eu conhece a atualização. “Talvez eu soubesse que eu mesma jamais estaria à altura da vida, mas que minha vida estava à altura da vida. Eu não alcançaria jamais a minha raiz, mas minha raiz existia.” (LISPECTOR, 1979:75). O presente do hoje, para a narradora, será o mesmo que o presente do futuro e do passado porque se converte em espaço atemporal de atualização do ser. Para falar do tempo contínuo, Clarice utilizará nesse romance o recurso que simula a utilização de uma câmera cinematográfica ao abrir e fechar o foco de acordo com a cena e com o olhar da narradora 7 . “O presente abria gigantescas perspectivas para um novo presente” (LISPECTOR, 1979:103). A cartografia textual erguida por Clarice começa por referirse ao “último troglodita” “há cinco milhões de anos”, que habitava uma “montanha” e que, por sua vez, depois de muita erosão, virou “área vazia” onde se ergueram “cidades”, que foram povoadas por “diversas raças”. Do primeiro homem, “último troglodita”, constituem-se raça e vida humanas, para depois colapsarem e, sob as pedras desabadas, surgir aquele que, julgado morto, viria para reconstituir a nova vida e ser novamente o último dos homens. Se a narradora relata a passagem do tempo por milênios e civilizações até a 7 A escrita clariciana de parte da década de sessenta e toda a década de setenta deixa entrever características de uma escrita de caráter híbrido, que mescla diferentes linguagens como a poética, a filosófica, a jornalística, e variados recursos como o uso de cortes cinematográficos, reportagens, cartas, diários, crônicas. 88 formação do ser em sua constituição atual, então esse novo tempo no qual G.H. é “a primeira pessoa a pisar” é a “pré-história de um futuro”, isto é, o tempo do novo homem. E assim como o real passa a abrir perspectivas para um novo real, o texto abre perspectivas para o entendimento e a reescritura do próprio texto, pois o enigma explica-se a si mesmo para logo depois repetir-se. A busca de si mesma é também via de explicação do enigma e a resposta chega em “um cálice de ouro”. O cálice é o tesouro da cidade. Se considerarmos a cidade como o texto, o último dos trogloditas como o poeta, a área vazia e erosada como o papel e as diversas raças como os diversos estilos e linguagens poéticas, podemos entender que a busca pelo cálice de ouro é a busca pela palavra que é feita “de ouro e pedra” e também de “cascalho”. O texto é, portanto um laboratório alquímico, onde se mistura o elemento mais puro e nobre ao elemento mais impuro e adulterado. Para encontrar o tesouro, resposta do próprio enigma, é preciso elaborar uma cartografia do texto. “Aquela cidade estava precisando de um trabalho de cartografia” (LISPECTOR, 1979:104). Se a cidade for entendida como texto 8 , onde as palavras são seus “habitantes”, é necessário desenvolver a leitura da planta da cidade-texto para encontrar a chave de leitura do império clariciano. O estudo dos mapas textuais revela os continentes, mares e bacias da escrita clariciana. Imediatamente, com o distanciamento do olhar, erguem-se “blocos de edifício” que formam “um desenho pesado ainda não indicado num mapa” (LISPECTOR, 1979:104). Novamente, o olhar da câmera oferece ao leitor a chave: procurando o melhor ângulo que possa ver “os restos de alguma muralha fortificada”, do topo da colina imaginária, os olhos da narradora e do leitor, em vista panorâmica, ‘circunavegam’ pela paisagem. E é de um “círculo em torno de semi-ruínas” que temos notícia do segredo que esconde a resposta para o enigma: “ali poderia ter outrora vivido 8 Como sugere Sousa em relação ao texto de A Cidade Sitiada, por meio do jogo figurativo entre cidade e texto, instala-se o jogo de decifração e mascaramento, envolvendo a construção e conseqüente demolição da cidade-texto. 89 uma cidade”. Em outras palavras, o texto exposto oculta cifras que somente a “visão imparcial” pode enxergar. A geografia da escrita forma um desenho que revela ao olhar a linguagem hieroglífica constituidora de uma narrativa que comporta várias camadas textuais, como o desenho na parede do quarto de G.H. Essas várias camadas são feitas não só de imagens, mas de diálogos intertextuais com os grandes autores da literatura canônica e intratextuais, com ecos de outras narrativas claricianas. Para reerguer a nova cidade, isto é, o novo texto, é necessário derrubar os quinhões das construções antigas e saber que “quando se derruba uma cidade” “muitas vezes, no meu trabalho ao descampado, eu teria que partilhar meu leito com o gado”. Em outras palavras, no seu ofício de artesã da escrita, quando se ‘demole’ uma estrutura rígida, perde-se o abrigo do sistema organizado e inicia-se um trabalho órfão rumo à reconstrução de uma nova linguagem. Nessa tarefa, são necessários também “uma perfuratriz de doze metros, camelos, cabras e carneiros”, força motriz animal e maquinária, símbolo do impulso criativo na obra clariciana. A narradora requisita a força da criação para que no subsolo do deserto árido da língua, possa encontrar o “lago de água potável”, a vida submersa, isto é, o texto submerso, a “taça de ouro” pela qual se frui a vida. É na “umidade do deserto” que se encontrará a vida protozoária, puro neutro, necessário para o desenvolvimento do ser verdadeiro. A arqueologia da língua de “velhas colonizações”, antes mesmo da construção da tradição do pensamento ocidental, revela o desenvolvimento de uma “agricultura próspera”, a mesma que se encontra no subsolo interior do homem e fecunda a vida, na “região do medo”, aquela do enigma e não separação dos contrários. Entretanto, a consciência da narradora sabe que o trabalho de edificação da nova estrutura em meio ao deserto passa necessariamente pelo aprendizado através do erro, pois a “brecha” para o horizonte da liminaridade é a abertura para o erro se tornar 90 o caminho certo, “o caminho de uma verdade”. “O erro é um dos meus modos fatais de trabalho” (LISPECTOR, 1979:108), diz a narradora. Nessa aresta se revela o desconhecido e oculto, a “verdade” poética que não está sujeita às leis do entendimento porque é mistério e por isso se torna maior e real. As bipartições humanas enquadram as verdades (ou seria o contrário, as verdades bipartidas enquadram os homens?) e impedem que se perceba a amplidão e indelimitação do real. O erro propicia o encontro do homem com o real porque é lapso, desvio que os aproxima, oposto de justeza e exatidão. “A verdade tem que estar exatamente no que não poderei jamais compreender” (LISPECTOR, 1979:106), portanto, exatamente na falha. E a falha é precisamente um ato humano inconsciente e que afirma seu caráter de humanidade. Assim, o capítulo inicia-se com o desejo da amplidão, partindo do espaço restrito do quarto, e termina com a amplitude do deserto, espaço originário que garante a conexão com a fonte de vida e a memória do nada. O deserto se torna “terra além das regiões da pastagem”, isto é, terra mítica, símbolo da primordialidade. No capítulo seguinte, a narradora novamente restringe o olhar e volta-se para o interior do quarto. A técnica do contraste entre amplitude e restrição do olhar tem um sentido específico de uso, sentido esse que é exposto no capítulo dezenove e é revelado pela própria narradora como chave de leitura para a arqueologia de sua escrita. Diz G.H. que, mesmo em toda digressão anterior, “não estivera enlouquecida” ou fora de si. Tudo é apenas um exemplo de decodificação da escrita hieroglífica, a mesma da parede: uma “meditação visual” (LISPECTOR, 1979:108). Portanto, o que vem fazendo ao longo de toda sua narrativa é meditar visualmente, isto é, associar o que a meditação tem de mais perigoso – a reflexão e inteligibilização – e o que tem de menos perigoso – a visualização de imagens que não requer palavras, categoria do sensível: “o menos perigoso é, na meditação, “ver”, o que prescinde de palavras de pensamento” 91 (LISPECTOR, 1979:108). Desse modo, Clarice associa palavras a imagens na tentativa de construir o conhecimento de si e do mundo revelando uma escrita sinestésica que está para além do sistema lingüístico convencionado e que ganhará expressão máxima na estrutura de Água viva.. Outro exemplo: Sei que existe agora um microscópio eletrônico que apresenta a imagem de um objeto cento e sessenta mil vezes maior do que o seu tamanho natural mas não chamarei de alucinatória a visão que se tem através desse microscópio, mesmo que não se reconheça mais o pequeno objeto que ele monstruosamente engrandeceu (LISPECTOR, 1979:108). Ampliar a matéria microscópica é aprimorar o olhar sobre o que não é visível a olho nu, método da escrita metonímica de Clarice Lispector, revelando a geografia interna do texto. Clarice amplia o tema palimpsesticamente de modo que os diversos assuntos que o preenchem sejam desocultados através de imagens que desenrolam imagens que desenrolam temas e questões. Em que consiste essa técnica? Consiste em enxergar além de um só lado, além das “visões puramente óticas” que definem “uma cadeira” ou “um jarro”, que definem a realidade inteligível das coisas porque tal visão é limitadora. O engano causado pelo entendimento apresenta-se como um dos “modos fatais de trabalho” uma vez que a partir dele enxerga-se o lado oculto que se alimenta do lado exposto da verdade multifacetada. A inadequação da linguagem clariciana que causa estranheza e assombro no leitor mostra sua face oculta, onde a palavra foge às categorias normativas, interferindo nas regras lingüísticas e provocando contraste semântico. A inexatidão e o desvio são o solo onde a poesia mais se espraia. No exato momento em que fala sobre o erro como método de criação, surge a barata e, sem querer, o pensamento de que “a barata é comível como uma lagosta” – 92 prefiguração do erro que cometerá ao provar a massa branca do inseto. A esse pensamento segue-se a imagem da noite que cai abruptamente sobre a escrita. A noite é o meio de transporte do solilóquio que G.H. inicia. A ambigüidade da voz enunciadora deste monólogo gera dúvidas sobre sua natureza: é a narradora falando, é a humanidade, a barata? Diz a voz: “Há muito tempo fui desenhada contigo numa caverna, e contigo nadei de suas profundezas escuras até hoje” (LISPECTOR, 1979:110). A mesma ambigüidade é transferida para o interlocutor que pode ser a própria narradora, o leitor, o amante ou a mesma humanidade. Lê-se: Se tu puderes saber através de mim, sem antes precisar ser torturado, sem antes teres que ser bipartido pela porta de um guarda-roupa, sem antes ter quebrados os teus invólucros de medo que com o tempo foram secando em invólucros de pedra, assim como os meus tiveram que ser quebrados sob a força de um tenaz até que eu chegasse ao tenro neutro de mim (LISPECTOR, 1979:111). Mas a manducação da barata refaz-se ainda como ato expressamente humano, como aponta Souza, que violenta o ser ao tentar desumanizá-lo por meio da comunhão com o sujo, sem conseguir, porém, atingir o transumano. “Eu não precisava ter tido a coragem de comer a massa da barata. (...) Entendi que eu já havia feito o equivalente de viver a massa da barata – pois a lei é que eu viva com a matéria de uma pessoa e não de uma barata” (LISPECTOR, 1979:165). G.H., ainda dividida entre uma condição anterior de simulacro e outra posterior ao autêntico exprimir-se, incorre no equívoco de entender prematuramente que a única maneira de “ser além do humano” é desumanizar-se na violência e voluntarismo humano de ingerir o inumano da barata, ato de expresso fortalecimento da subjetividade. Como indica Souza, o sujeito “não reconhece outra alternativa para 93 humanitas, senão animalitas” (SOUZA, 1989, 138-9). Somente depois do erro é que entende que essa ação humana ainda repete o simulacro imposto pelo aprisionamento do homem às categorias da individuação. Conscientiza-se de que para atingir o “transumano” ou “inumano” dentro de si mesma, “núcleo neutro e vivo de força”, não deve sacrificar outro ser vivente, mas unicamente sua própria forma humana construída como simulacro. Somente depois da manducação, a personagem se liberta da consciência metafísica e se entrega ao despojamento e sacrifício de si mesma. O inumano é o humano fora da metafísica da subjetividade. A condição em que se encontra, no estado intermediário de consciência e onirismo, é a condição máxima para afastá-la do demasiado humano que atomiza o real e enclausura o sujeito. G.H. deseja demover-se da consciência plena que compreende a separação, as limitações e os segmentos da “carne cortada em pedaços” e distribuída de acordo com as necessidades. “Ser é ser além do humano. Ser homem não dá certo, ser homem tem sido um constrangimento” (LISPECTOR, 1979:168). Sua jornada está cifrada na tentativa de dar forma ao informe, adentrando o reino do duplo domínio. Entretanto, a forma humana que conhece não lhe permite ultrapassar as limitações, pois “Antes, sempre que eu havia tentado, meus limites me davam uma sensação física de incômodo, em mim qualquer começo de pensamento esbarra logo com a testa” (LISPECTOR, 1979:10). O sensível transforma-se na própria barreira para o pensamento, pois a “sentimentação” engrossa e intoxica. Diz G.H.: “A humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso, e essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade” (LISPECTOR, 1979:153). A denúncia do falso homem humano que limita seu próprio horizonte de humanidade é golpe mortal à subjetividade exacerbada. O impedimento para a humanidade do homem é a sua própria humanização. 94 Quando é lançada à desorganização, a personagem sabe que precisará dar contorno ao informe e debate-se entre não “substituir a perda”, reconhecendo que “fatalmente” sucumbirá “à necessidade de forma” originada do “pavor de ficar indelimitada”, e a consciência de que “pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha”, numa tentativa de não-voluntarismo do sujeito. Se este se mostra como o centro totalizador dos valores e decisões, então forjar uma forma específica, uma verdade, é novamente pré-estabelecer o real. O esforço e a coragem de G.H. de “resistir à tentação de inventar uma forma” (LISPECTOR, 1979:11) revelam a preocupação em não recriar a terceira perna, que assume também a figuração de um “alguém” para quem “fingisse escrever”. A coragem de G.H. consiste em manter o ato não-voluntarioso de “usar um coração desprotegido e de ir falando para o nada e para o ninguém”, sem forma pré-estabelecida. O transumano consiste em ir além dos limites possíveis do humano sem deixar de sê-lo, rompendo as margens demarcadoras da potência humana. Em outras palavras, só se atinge o núcleo neutro da vida através do despojamento do humano dentro do humano: sacrifício de si mesmo, alargamento máximo dos limites da visão e do contorno do horizonte. “Mas agora, eu era muito menos que humana – e só realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse, como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano” (LISPECTOR, 1979:174-5). Esse seria o ato máximo de divinização do homem. A manducação da barata não deve ser entendida como sacrifício, como ensina o crítico, mas como o ponto máximo de negação do humano. “Entendi que, botando na minha boca a massa da barata, eu não estava me despojando como os santos se despojam, mas estava de novo querendo o acréscimo” (LISPECTOR, 1979:165). O sacrifício de que fala a obra consiste em tornar sagrado aquilo que não é, em afirmar a humanidade no humano. 95 Desistir é o verdadeiro instante humano. (...) Desisto, e terei sido a pessoa humana. (...) Chego à altura de poder cair, escolho, estremeço e desisto, e, finalmente, me voltando à minha queda, despessoal, sem voz própria, finalmente sem mim – eis que tudo o que não tenho é que é meu (LISPECTOR, 1979:172-3). Fazer da complementaridade de opostos um projeto divino e gerador da vida, tornar a separação uma comunhão sagrada, eis a travessia de G.H. O neutro é o duplo integrado e a paixão de G.H. é o amor ao neutro, aquilo que liga o que está separado, aquilo que é indiferente às delimitações. E o que é indiferente às bipartições e fronteiras é o que devém, pois é sempre multiplicidade em fusão e movimento constante. O real se torna divino porque todas as coisas possuem um neutro. Segundo Benedito Nunes, há dois níveis diferentes de discurso no debate suscitado pela escrita clariciana: o que versa sobre a linguagem e a arte, que indica o caminho da narrativa rumo ao inexpressivo, e o que versa sobre a existência. Para o crítico, a ruptura com o sistema, que engloba o esvaziamento do sujeito e da linguagem, o contato com a identidade pura e a equivalência entre sujeito e objeto, constitui-se em sucessivos atos de transgressão. O sujeito passa a existir no outro que é mundo, e a vida reflete o sujeito a partir do seu desdobramento. Ensina o crítico: mim é o sujeito refletido no outro e vice-versa; é a primeira pessoa existindo enquanto terceira pessoa. “As asas mesmo do negror eu as uso e as suo, e as usava e suava para mim – que és Tu, tu, fulgor do silêncio. Eu não sou Tu, mas mim és Tu. Só por isso jamais poderei Te sentir direto: porque és mim” (LISPECTOR, 1979:126). Na ausência de sujeito, o narrador fala com o outro, que é ele mesmo, porque sofre processo de identificação. Na tentativa de exprimir essa identidade dupla, que seria a identidade pura, a narradora chega ao limite da linguagem (ao inexpressivo) onde não pode mais narrar porque 96 atingiu o inenarrável e daí em diante o domínio não é mais da palavra, porém do silêncio. “Só que ter descoberto súbita vida na nudez do quarto me assustara como se eu descobrisse que o quarto morto era na verdade potente” (LISPECTOR, 1979:46). Descobrir é retirar o véu que encobre, desvelar é desnudar o que antes era oculto. Nesse caso, deixar a vida brotar no que se considerava morto é apenas desocultar o que estava latente em potência, revelando que, na verdade, vida e morte fazem parte de um mesmo todo. A ausência de cobertura vinda de dentro do quarto urge em G.H. o desnudar da estrutura aprisionada em si mesma, e apresenta-se também como ato de retirar as aspas que impedem a originalidade do ser e da forma em formação, além de eliminar o movimento que encerra o ser em margens delimitadoras. O que mais chama atenção na barata é o fato dela ser um inseto cujas origens não se pode especificar (é “imemorial”) e, no entanto, exercer seu caráter de atualização: “elas se repetiam sem se transformarem”. A visão da barata remete à infância (no contato da personagem com o animal) e à memória de uma antigüidade mítica, tanto dos seres vivos como da escrita. “Era uma barata tão velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda” (LISPECTOR, 1979:51). A barata é a existência na nudez. “Quando o mundo era quase nu, elas já o cobriam vagarosas” (LISPECTOR, 1979:44). Despersonalizar e assassinar o humano para fazer surgir o verdadeiramente humano é ofício divino. É preciso matar a formação humana anterior (uma ilusão?) para tornar a ser o que nunca fora: ela mesma. “O divino para mim é o real” (LISPECTOR, 1979:164). No capítulo em que G.H. vê a barata “emergir do fundo”, imediatamente as palavras “fundo” e “armário” tornam-se imagens especiais, revelando o mundo psíquico, desconhecido e secreto do ser. O inseto que sai do armário torna-se 97 o duplo de G.H., “duas baratas incrustadas na barata”, ser original que emerge do subterrâneo da personagem. O ato de esmagar a barata entre a porta do guarda-roupa apresenta-se diante dos olhos do leitor como o parto do eu verdadeiro, já que a barata “ia se modificando à medida que ela engrossava para fora". A matéria branca do inseto pesa sobre seu corpo, tal qual carga (ou casa) que se carrega rumo à eliminação, e anuncia a morte do homem velho que é nascimento do novo homem: a gravidez e o parto da própria vida. O golpe de morte direcionado à barata não a mata e, por não matá-la, faz irromper a vida que confronta o eu estéril de G.H. Cariátide imobilizada, ela sustentava por cima do próprio flanco empoeirado “a carga do próprio corpo”. A barata é o ser parturiente e sua massa branca é o fruto recém-nascido e sem forma, visão denunciadora do nascimento de G.H., do novo homem. A barata se revela como o eu-objeto de G.H., a alteridade altamente fecunda lembremos que os olhos da barata são descritos como dois “ovários” e como “olhos de noiva”, além de denunciar o filho abortado de G.H., diga-se, a vida abortada pelo mesmo ato voluntário que constrói (e destrói) a si mesmo. “É que eu olhara a barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda” (LISPECTOR, 1979:53). Daí o medo do confronto com a morte e com o ato de matar em declaração explícita. Diz a narradora: “Eu me embriagava pela primeira vez de um ódio tão límpido como de uma fonte, eu me embriagava com o desejo, justificado ou não, de matar.” (LISPECTOR, 1979:49) O primeiro grito de vida desperta a nova existência, e “desencadeia uma vida”, ameaça contida na palavra poética que inaugura a poesia, suscita novas interpretações e sentidos de mundo e existência. “Se eu gritasse acordaria milhares de seres gritantes que iniciariam pelos telhados um coro de gritos e horror. Se eu gritasse desencadearia a existência – a existência de quê? A existência do mundo” (LISPECTOR, 1979:59). O ser, ao dar seus primeiros passos, não se reconhece mais 98 Comentário: Isto é uma idéia alquímica: mas será que cabe a alquimia em tua reflexão? Talvez não, talvez sim... como personagem passivo, cujo enredo é traçado por outros e do qual só restam os “escombros” de uma “civilização” fundamentada pelo subjetivismo exacerbado. O ser revela a experiência da morte em vida. “Era como se eu já tivesse morrido e desse sozinha os primeiros passos em outra vida” (LISPECTOR, 1979:59). Experiência de solidão que se apresenta como gloriosa, repetindo o momento em que sozinho o sujeito vivencia a descoberta do conhecimento e do autêntico exprimir-se. O silêncio é como um bálsamo que cobre o corpo e batiza o novo ser. A água sacia a sede do morto e o dissolve, abolindo sua condição humana. O ser não morre definitivamente, mas adquire nova existência a partir da regressão à condição larvar. Daí G.H. se descrever como um “protozoário”, representada pelos “cílios” que contornam seu ser. A sede é o sofrimento do corpo que agoniza, e a água, o bálsamo que prepara o corpo para a extinção da vida humana em favor de um novo nascimento. O ritual de libação pelo silêncio inaugura a existência no nada e garante a comunhão dos opostos. A metamorfose do eu antigo no eu novo causa confusão e desreferencialização, por meio da qual se perde e se ganha o ser. O abismo existente entre o nome e o que ele designa é o mesmo que separa as iniciais do nome da personagem, apenas abreviações do ser verdadeiro, do ser encoberto e latente. É a entrega ao Outro que viabiliza a indelimitação da nova forma no abrigo do ser já reconstituído que já não possui mais um contorno humano. O não-organizável – o novo ser em si que não permite a organização rígida – não pode ser traduzido “em termos humanos”, dentro de uma linguagem humana, porque o que se sucedeu não é representável no código lingüístico rígido do homem. Há a necessidade de se criar outra linguagem – a do inumano – que possa dar conta do inenarrável. Assim, o código lingüístico recriado pela escrita clariciana desenvolve uma 99 Comentário: A metamorfose também é alquímica. Ainda não estou certo se cabe ou não a alquimia em tua autora, talvez suspeite que não. estrutura dorsal única e inconfundível: inventa-se a linguagem do neutro, que em Água viva se desenvolverá como a linguagem do it, para se falar da indistinção de formas e do ser deveniente. Contudo, para se erguer a nova organização, é preciso que a “superestrutura” tombe, a mesma que é entendida como montagem humana ditada pela repetição de modelos idênticos vindos de fora e não pelo desenvolvimento do ser verdadeiro em sua potência máxima. Essa é uma condição não apenas da personagem, mas de toda uma estrutura humana que “havia séculos vinha acontecendo”, desmontada por G.H. e pelas grandes personagens claricianas, já que o drama existencial vivido por G.H., bem como por Joana, Lóri, Martim, entre outros personagens de contos e romances da autora, é o drama da existência humana enclausurada e fragmentada em compartimentalizações, afastadas do centro vital e do contato com a alteridade. Reconhecer a queda, aceitá-la e escolhê-la consiste no sacrifício de si mesmo, do próprio nome (que, mais uma vez, designa), enfim, do que é pessoal. A queda é o ato máximo de vida, a verdadeira “condição” humana possível e desejada, a “missão secreta” do ser de todos os seres. E isso “era quase um nada” (LISPECTOR, 1979:173). É a partir da queda interior que a personagem reconhecerá dentro de si o rosto de criança que revela o nascimento da nova existência, assim como só encontrará a linguagem primordial representativa do ser em formação ao abolir o expressivo e reivindicar o inexpressivo. Este, também silêncio, constitui o outro lado da palavra, necessário para fazer emergir o ser e a palavra originários. Por isso, a narradora inicia o último capítulo dizendo que “A desistência é uma revelação”. Desistir torna-se o “grande sacrifício” porque é abrir mão da força – qualidade daquele que subjuga - e permitir que o mundo caiba nas mãos dos fracos, dos adoradores. Desistir é o único ato voluntarioso que não é violento e segregador por natureza (“Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida”) é, na verdade, quase o seu oposto, renúncia, eliminação da 100 Comentário: Falar da queda. Portanto, do conhecimento, duma outra ciência. subjetividade - categoria esta que garante o direito de posse (“poder de construção”) e reitera a totalidade ditatorial e exclusivista do sujeito. Desistir é renunciar à pessoa humana forjada pelo falso e pelo nome, agente totalizante do sujeito pelo caráter classificatório, excludente e desagregador que carrega em si. “Eu tenho à medida que designo” (LISPECTOR, 1979:172) – ter é característica altamente subjetiva e cumulativa (o acréscimo). A característica de ter também pode transferir sua cumulação para a palavra: a linguagem do acréscimo é a linguagem do superficial, do convencional e do totalizante: “A linguagem é meu esforço humano”. “À medida que designo” revela a medida da representação, da denominação ou dominação daquilo que não se deixa aprisionar. Se com a designação busca-se a representação do real e, contudo, obtém-se o erro, podemos pensar que a constatação da realidade é tarefa quase impossível já que o real escapa e não se deixa encarcerar, cabendo ao homem apenas a tarefa de realizar ou viver o real. “A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho” (LISPECTOR, 1979:172). O fato de não achar o objeto de cobiça promove, mais uma vez, o ato de renúncia (agora talvez não dependa mais do sujeito) à tentativa de aprisionamento e classificação do que é estado bruto. Não encontrar é o golpe final no sujeito que, respaldado e inchado de suas certezas, crê encontrar uma vez mais aquilo que suprirá a necessidade de dominação e o gozo de subserviência tão íntimos à subjetividade. Desse ritmo do buscar e não encontrar nasce o desconhecido, característica do que ainda não caiu nas dependências e garras do sujeito racionalizador. “Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia”. O prêmio do homem verdadeiro, o seu “tesouro que está escondido onde menos se espera, que é só descobrir” (LISPECTOR, 1999:20) é o nada, desistência e abdicação da subjetividade totalizante. 101 O destino do homem verdadeiro é voltar “com as mãos vazias” do orgulho humano, porém cheias do “indizível”, do sagrado, do nada, da ausência de sujeito e de vontade. O fracasso da palavra, por meio do despojamento da linguagem, que acompanha o despojamento do sujeito, permite a rachadura que leva ao desmoronamento da construção, a abertura para o plurissignificativo, o outro lado da palavra que não se quer explicativa e delimitadora, porém libertária e revolucionária. “O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu” (LISPECTOR, 1979:172) e o que não conseguiu é o segredo escondido, a forma primária e original do ser e da palavra. Digase de passagem que a construção do sujeito é a mesma da linguagem. O que se ganha não é definível em palavras porque o que se ganha é a si mesmo e ao próprio texto. “A via-crúcis é a passagem única”, profundidade e verticalidade, instrumento e meio, provação que aflige o ser, mas que lhe garante “o gosto do vivo”. Somente na fase de pós-liminaridade G.H. entende, unindo o inteligível ao sensível, que o ato de botar a barata na boca foi “ato ínfimo”, isto é, ato inferior e baixo, “não o ato máximo” que é “heroísmo e santidade”. Apesar disso, esse ato é fundamental para o processo de desvelamento do ser, pois se o sujeito é lançado na mais rasa existência, no abismo do eu, é precisamente essa descida que promove a subida às alturas do ser sem limites. A idéia nietzschiana de abismo converte-se na descida ascensional: “subida horizontal” de G.H. O movimento de subida implica o seu oposto, bem como para ser era necessário, antes de tudo, permitir-se não-ser. “Tudo estará em mim se eu não for; pois “eu” é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo” (LISPECTOR, 1979:174). Outros espasmos podem se apresentar na forma do outro ou mesmo da natureza. Se a vida não tem somente o sentido humano e é entendida como além-horizonte, ela perde as medidas humanizadoras que asseguram 102 apenas a fragmentação do real e assume a dimensão de um todo “inumano”. Agregar-se na e à desagregação é a verdadeira entrega e reinserção em si mesmo e na roda primordial da vida porque o “ultrapassamento” jamais “exclui”. O ser reintegrado à vida e a si é visto agora como amplo e restrito ao mesmo tempo, movimento de sístole e diástole, pneuma humano: “Eu estava agora tão maior que já não me via mais. Tão grande como uma paisagem ao longe. Eu era ao longe. Mais perceptível nas minhas mais últimas montanhas e nos meus mais remotos rios” (LISPECTOR, 1979:175). 103 CAPÍTULO II 2.1 DA MEMÓRIA DE EROS COMO ENCENAÇÃO DE UMA TRADIÇÃO Na história das artes e da literatura, o mito sempre existiu como formador de imagens e na literatura do século XX, século apelidado de “era mítica” por Hermann Broch (WHITE, 1971), o retorno ao mito, seja pela recuperação de formas antigas, ou por referências, citações, diálogos, seja como produto da psicologia, atua na construção de uma memória e no contraste entre dois universos distintos. O paralelo mitológico realizado pelos romances do século XX aparece como um motivo na obra, descrevendo o mundo moderno a partir de modelos da Antiguidade. A diferença entre obras míticas e obras com motivos mitológicos consiste no fato de que as primeiras permanecem no mundo dos mitos e fazem dele o seu princípio estrutural e articulador e a obra se torna uma cosmogonia poética, na qual mito e poesia se fundem. Entretanto, incluir motivos mitológicos não significa necessariamente criar ou ressuscitar um mito, mas utilizá-lo como prefiguração literária para a crítica do mundo moderno e de seus valores estéticomorais e histórico-sociais, uma vez que tais prefigurações podem se apresentar como um sistema analógico de comentários simbólicos. Uma vez que o mito é formador de imagens e empresta plasticidade à linguagem, o romance moderno encontra na mitologia e tradição antiga a porta para o diálogo entre novos valores e novos símbolos erguidos por esse mesmo mundo moderno. O romance, depois de consolidar um novo estatuto para a linguagem por influência do Simbolismo e, pouco depois, pelas vanguardas do século XX, ganhou independência formal e estatutária, libertando-se das tradicionais normas literárias. Parte dessa transformação ocorre por conta do surgimento do sujeito evanescente, que 104 se apaga dentro de sua fragmentação e que recolhe, na linguagem, as estratégias mais distintas para dar conta desta nova condição. À parte o trabalho com a forma, o romance encontra-se livre para introduzir metáforas, referências explícitas a mitos, diálogos, que funcionam como motivos prefiguradores para a problematização da função estética da linguagem e para a criação de mensagens. O romancista introduz seus motivos por meio de referências ou analogias de modo que uma determinada situação moderna seja enfatizada e convide a leitura à interpretação de novas experiências sob a luz de fontes tradicionais. Portanto, o papel do mito dentro da ficção passa a importar mais do que o mito em si, uma vez que atua como um padrão gradualmente revelado pela referência a personagens, por títulos ou capítulos pontuais que introduzem um determinado motivo de forma a explicar outros possíveis capítulos ou eventos, ou por algum comentário inicial do narrador ou personagens, por citações, nomes alegóricos, com a função de realizar a crítica à tradição. Em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres Clarice Lispector transforma a herança mítica grega em nova mitologia, reinventando os próprios referentes e efetuando uma crítica ao legado cultural perpetuado por essa mesma tradição. Neste capítulo, buscarei mostrar como a autora manipula a tradição pedagógica da iniciação amorosa herdada do platonismo, a partir do casamento simbólico entre Lori e Ulisses, reencenando o mito do nascimento de Eros e propondo uma aprendizagem amorosa que inverte os termos dessa tradição. Para isso, mostrarei como a figura mítica de Eros nasce enquanto força teogônica nos versos de Hesíodo, adquire função filosófica e pedagógica por meio da maiêutica platônica e como é introduzida no cenário da narrativa clariciana como potência cosmogônica, desnarrando a função moral inculcada pela tradição. 105 A verdadeira “contribuição do pensamento” oferecida pelo escritor, de que fala Antonio Candido em “No raiar de Clarice Lispector”, que assegura a durabilidade da obra e realiza a síntese entre um movimento de pensar a linguagem associado à sensibilidade no tratamento dado a essa linguagem, estabelece-se na obra de Lispector a partir do que a autora chama de “pensar-sentir”. Na crônica “Sensibilidade inteligente”, publicada em 1968, Lispector explica o que entende ser a característica que diferencia sua forma de escrita. Diz a autora que em seu processo de escrita e relação com o mundo usa esta sensibilidade inteligente como uma sensibilidade que “não só se comove” como também “pensa sem ser com a cabeça” apenas (LISPECTOR, 1994:152). Na mesma página, talvez em crônica que dê continuidade ao pensamento desenvolvido na anterior, intitulada “Intelectual? Não”, ao pensar o que significa ser intelectual, Lispector diz não se considerar intelectual porque usa a intuição e o instinto e não apenas a inteligência racional, uma vez que a intelectualização é viver fora do corpo. A compreensão “atrás do atrás do pensamento” que a narradora de Água viva ensina e que toda a obra clariciana busca desenvolver consiste em fazer a experiência do pensa-sentir pelo corpo, absorvendo-a em cada célula. Longe da intelectualização e também do excesso de sentimentação de que a narradora de A paixão segundo G.H. vai tratar. Porque “ser intelectual é, sobretudo, usar a inteligência” (idem) e “ter cultura”. E conclui afirmando: “sou tão má leitora que, agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura” (LISPECTOR, 1994:152). Assim é que ao se considerar alguém que utiliza a sensibilidade inteligente para “pôr em palavras um mundo ininteligível” (idem, 153), entendo que a obra de Lispector busca desocultar não só a psiquê do homem, mas, sobretudo, pensar a cultura a que pertence e a tradição na qual está inserida. A poética elaborada pela narrativa clariciana, portanto, projeta em sua escritura a desorganização de um complexo cultural que estabelece as interdições e leis que regem 106 as relações do homem no mundo. Exercendo o papel de crítica definido por Machado de Assis em “Ideal do crítico”, Clarice conhece muito bem a matéria de que fala e a descarna a tal ponto que apresenta a ferida ao leitor, que não sabe o que fazer diante do assombro. Segundo Machado, a obrigação de todo crítico é “saber a matéria em que fala, procurar o espírito de um livro, descarná-lo, aprofundá-lo, até encontrar-lhe a alma, indagar constantemente as leis do belo” (ASSIS, 1959:17), com a diferença de que a crítica realizada por Lispector é a do Livro do Mundo, a da tradição do dualismo antagônico psicofísico presente na filosofia platônica, na tradição mítica da Grécia, na moral judaico-cristã e na tradição literária da escrita canônica. A exemplo do próprio Machado, a crítica a que se refere não é apenas a do profissional (ou intelectual, como queiram) – o crítico literário – mas fundamentalmente a do escritor envolvido com o pensar, com a cultura, com o fazer literário, com a tradição; com a invenção, as doutrinas, a história, as belezas e os senões. Só assim o gosto se apura e educa, e a literatura pode sair mais “forte e viçosa, e se encaminha(r) para os altos destinos que a esperam” (ASSIS, 1959:137), possibilitando, portanto a “criação superior do espírito” à qual Candido fará referência, em um texto crítico que aponta Clarice Lispector como um dos poucos autores de superior criação que seguiram as pistas deixadas por Machado. Portanto, a desconstrução realizada por Lispector institui o alargamento da língua e dos valores da cultura do Ocidente, fissura aberta que revela a instauração de um ato genesíaco, instituidor do novo e do genuíno. Este gesto não é mera repetição da origem ou a nostalgia de um passado originário que não pode ser mais recuperado e que veria na poesia a porta para a sua renovação. O gesto consiste em reatualizar o que é inaugural, não apenas pela recuperação e construção de um mito novo e próprio, de modo a repetir o gesto originário, mas pelo diálogo realizado entre passado e presente e 107 uma possível e desejada operação mútua de alteração. A cada nova reatualização do inaugural pela cultura, instaura-se um dado novo que provoca conseqüências e alterações no próprio mito. A desmontagem de que trata Lispector em Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres não diz respeito apenas à reformulação da subjetividade. Toda a obra clariciana é uma desmontagem da cultura teísta judaico-cristã que cultua o dualismo psicofísico, da noção de indivíduo burguês e da introjeção do sacrifício instituídos no pensamento ocidental e que levam ao esmagamento de tudo o que é vivo e natural. O estabelecimento do pensamento racional implica o aniquilamento do vínculo entre homem e natureza. Sexo, corpo, matéria são elementos desvalorizados dentro da vertente teísta mencionada, que funda a sociedade patriarcal, uma vez que a razão mata tudo aquilo que é sensível. A cultura cosmobiológica, herdada do mundo mediterrâneo, entende que transcendência e imanência são experiências equivalentes não dissociadas no mundo do vivo e que o universo não é uma criação de Deus, mas uma manifestação da matéria divina, que se transforma de acordo com o aspecto que este Deus assume em determinada cultura. Deus é entendido como ser cósmico e por isso encerra em si espírito e matéria como elementos constitutivos do homem. Assim, torna-se um aspecto do mundo que varia em cada cultura e, no caso das obras literárias que ressignificam o mítico, o universo poético fundado por cada autor pode aparecer sob o efeito de um determinado sortilégio. É o caso da obra fragmentária de Safo de Lesbos, na qual Afrodite se mostra como a potência que no mundo mediterrâneo aparece como divindade cosmobiológica. No universo poético sáfico, a divindade surge como força que provoca a erotização de tudo e reestabelece o vínculo entre homem e natureza, através do qual qualquer esfera humana é erotizada. Mas esta potência não se satisfaz com o imanente apenas e se apresenta como a divindade que sacraliza o corpo, o 108 Comentário: Desnarracao do mito do homem como centro, que aniquila o sensível pq transforma em conceito, transformar imagem em conceito para colocar o homem no centro de tudo, vontade de poder. espírito e o próprio Amor. Entretanto, no mundo grego e depois latino, formadores da civilização ocidental, Afrodite começa a se apresentar com uma divisão interna que segmenta toda a relação estabelecida com o corpo desde então. Já se vê a divindade em duas formas distintas: Uranos ou Celeste; Pandemos ou Vulgar. Clarice Lispector representa ficcionalmente o drama de uma polaridade vivida pelo indivíduo que o fragmenta e oprime sua subjetividade, desvendando a encenação do mito de Eros nas vertentes teísta e cosmobiológica e buscando a realização total da força erótica que rompe com a tradição do dualismo antagônico psicofísico na relação amorosa entre Lóri e Ulisses, em seu romance de 1969. Buscarei mostrar de que modo, em Uma aprendizagem..., a memória de Eros atua na construção do sujeito, do real e da linguagem, uma vez que esta obra se constitui em torno da cena central que recompõe o mito cosmogônico do nascimento de Afrodite em linguagem ecfrástica, iniciando portanto pelo primeiro dos textos arcaicos de que se tem notícia e que narra a gênese do mito e do universo dos deuses gregos: a Teogonia, de Hesíodo. Como diálogo intertextual, observarei de que modo Uma aprendizagem... recupera uma memória literária que recompõe o mito cosmogônico do nascimento de Afrodite 9 narrado por Hesíodo, reelabora a divisão entre finitude e infinitude humana e repensa a importância de Afrodite e Eros no desenrolar de uma literatura dos sentidos e do sensório, isto é, da experiência do corpo. Apesar da obra de Lispector pertencer a um período literário profundamente marcado por narrativas intimistas e romances psicológicos, a força com que nasce e instaura seu reino dual faz surgir um universo bastante complexo e delicado, que 9 Em artigo intitulado “Aprendizado de Clarice Lispector”, nos idos de 1975, em que realiza uma leitura de Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres, Lucia Helena já apontara que a personagem Loreley “guarda do símbolo elementos de sua vertente mítica” como, por exemplo, “o relacionamento com o mar”. (LUCIA HELENA, 1975: 102). 109 conjura os espectros do maravilhoso em seu conteúdo terrível e sublime, encantado e mágico, transportando mundo e ser do Não-Vivo para o Vivo. No estudo dos mitos e ritos dos deuses gregos realizado por Walter Otto em Dionysus, Myth and Cult (1981), verifica-se que a evolução das representações dos deuses, na verdade, não pode ser explicada pelas escolas da antropologia e da filologia, por exemplo, uma vez que para falar da existência de uma deidade grega o discurso evolucionista mostrar-se-á mais interessado no estudo de formas simples ou complexas, mas não na evolução que surge do Não-Vivo para o Vivo. Isso ocorre porque a crença é a fé em um Ser existente, como Dioniso, ou Hermes, ou Afrodite, e não em um conceito de deus. Portanto, a crença em um Ser Vivo era a crença em uma Substância, um Algo, uma coisa vivente, com existência verdadeira e, nesse caso, as características que davam personalidade aos deuses – que para as escolas mencionadas não passavam de idéias acrescidas e desenvolvidas a partir do modo de vida dos seus cultuadores – seriam sempre as mesmas, reveladas pelo mito, e não apenas estágios evolucionistas. Portanto, generalidades veiculadas por locuções adjetivas como “Dioniso – o deus da vegetação” ou “o deus da morte”, quando aplicadas às deidades vivas, dão origem a conceitos e não a uma existência gerada pelo Vivo, uma vez que somente essa condição poderia preencher as exigências da devoção e do espírito, erigindo as formas do culto e motivando o espírito criativo da genialidade grega. (OTTO, 1981: 7-11). Otto, portanto, estuda o mito de Dioniso sob um viés que pensa os deuses gregos como aspectos do mundo, de modo que o mundo não foi criado pelos deuses, mas cada um deles se transforma no próprio mundo, de acordo com uma determinada força, e por isso constitui-se como o próprio mundo. E o universo todo pode estar regido pelo efeito de um poder – para Afrodite é o poder de Eros, para Hermes o da morte, para Dioniso é o mundo revelado como complementaridade dos contrários. 110 Se o culto se tornou a testemunha da crença religiosa, o mito nada mais é que pura poesia (idem, 13). Otto deseja denunciar o pensamento corrente entre os mitólogos de que o propósito do culto, na Antiguidade, girava em torno da obtenção de benefícios, recompensas e favores dos deuses cultuados por interesse pessoal pelo homem religioso, o que revelaria um comportamento bem conhecido do mundo moderno e capitalista que retrata a relação patrão-empregado. Assim, os conceitos de utilidade e interesse estariam na base da prática religiosa e serviriam genuinamente como razão suficiente sob os olhos dos estudiosos modernos. Se assim fosse de fato, como explicar então o assombro, o êxtase e a devoção do homem diante da palavra “Deus” na Antiguidade? Assim é que a dimensão do assombroso, resultante do maravilhoso, perdeu-se no mundo secular virando apenas dogma. E, sendo o mito simplesmente poesia, e não um ato arbitrário da imaginação, pode-se dizer que o mito (o mito para Derrida é aquilo que se repete e será sempre repetido mesmo que o homem não saiba) era algo vivo por si mesmo, como a poesia, preenchido do espírito da verdade artística que, nesse momento, se confundia e fundia com a verdade religiosa. Poetas da Grécia antiga como Homero, Hesíodo e, mais tarde, da poesia mélica como Safo, Alceu, Anacreonte, tinham como premissa básica o mundo do mito. Os cultos, por sua vez, pressupondo a existência do mito, constituíam-se como uma realidade viva, contendo representações de acontecimentos míticos e não simples imitações. Assim é que Otto elenca o culto como uma criação humana que, junto à arquitetura, à poesia, à arte e à música, uma vez serviu à religião, constituindo uma das linguagens pela qual o homem fala ao divino, não por outra razão senão a de um impulso maior que ele, que o coloca em estado de entrega, de devoção e de assombro. O homem se curva diante do maravilhoso e enche seu peito, suas mãos, seu espírito do poder criativo que dirige seus atos. Catedrais, templos, poemas, esculturas, pinturas, 111 sinfonias, formas plásticas e sonoras engendradas pela mente e pelo espírito do homem embevecido pelo maravilhoso são tão somente expressões do homem tocado pelo divino (OTTO, 1981:18-19). A intertextualidade sutil que permeia o texto clariciano leva o leitor e o pesquisador um pouco mais além do reino do subjetivo psicologizante a que remetem os manuais de literatura. Como aponta Eduardo Prado Coelho, “não se trata de produzir uma gramática das substâncias psicológicas ou sociológicas que definem estas personagens, mas de inventar, a partir delas, dos seus movimentos e velocidades, das suas paralisias e precipitações, uma geometria dos afectos” (COELHO, 1984:203). Sem dúvida a obra de Lispector trata de sujeito, identidade, real e imaginário – categorias que certamente passam pelo filtro psicológico e pelas dimensões interna e externa do mundo, categorias dadas ou descobertas pela cultura e que dividem o mundo em segmentos bem definidos e opostos; essas mesmas dimensões que não são inerentes à natureza humana, mas que apreendemos pelo exercício da cultura. Esse universo dicotômico, no entanto, não é o mesmo presente no mundo arcaico e mais especificamente na obra de Hesíodo, o que coloca uma distância quase intransponível entre o contemporâneo e o arcaico. No entanto, a obra de Lispector evoca um deslumbramento, um fascínio que reencanta o mundo dentro de um profundo desencantamento do mundo. Com isso, desenvolve-se uma narrativa que reencena o tumulto que o mistério causa à razão, “acontecimentos que nenhuma narrativa pode contar” (COELHO, 1984:209), como diz Coelho, como se por um breve momento o mundo todo e a vida vivessem sua noite abissal. O mistério será também, na narrativa de Uma aprendizagem..., o mistério que revolve o mito. Eudoro de Sousa, em seu livro Origem da poesia e da mitologia, aponta que, a partir da impossibilidade de conciliação entre o racional e o apelo da fé, e dos 112 problemas em adequar um pensamento filosófico grego à crença cristã, conflito evidente na filosofia patrística medieval, revela-se o enfrentamento entre duas “concepções” opostas de “divindade” (SOUSA, 2000: 182). Essas atitudes ir-se-ão prolongar e alternar, de tempos em tempos, na história do pensamento e literatura ocidentais. Apesar de terem origens históricas que remetem a sociedades primitivas, a concepção teísta pressupõe o culto de um ser supremo e transcendente e a cosmobiológica entende a transcendência como etapa mediada pela imanência. O mistério da fé seria precisamente a convergência de ambas as atitudes, em relação de complementaridade e não de conflito. O drama de uma civilização dividida entre dois apelos – o do corpo e o do espírito – que nascem do dualismo antagônico entre essas duas forças é reencenado nas artes e na literatura ao longo da história e, especificamente, no que concerne a esta tese, na escrita clariciana. E, nesse registro, o mito cosmogônico de Afrodite interessa na medida em que origina uma longa tradição que envolve os domínios da deusa e a marca de Eros na história da literatura ocidental, ou seja, em suas representações textuais, iconográficas, ritualísticas e inclusive na rede de relações sociais reencenada pela literatura. Nesse sentido, Eros é entendido como uma força que opera em diferentes níveis enquanto agente ético e mítico. Quero apontar um fator fundamental para se ler a escrita de Lispector que consiste em entender a linguagem e as imagens com as quais elabora suas narrativas como campos de força que instauram e determinam seu espaço e tempo próprios, sua sintaxe e sua semântica, seu colorido e suas sombras. Um universo que passa a existir enquanto presença viva no primeiro segundo em que é instaurado porque se afirma pela força poética e não pela repetição mimética da realidade previamente dada. E desde o instante em que se forma esse universo, com suas noções específicas de Deus, de 113 Comentário: A literatura não é mimética, realidade previamente dada, é poética pq instaura novo sentido, diferença entre tradição mimética e poética. indivíduo, de tempo, de espaço, de real, as relações que dele advém, o que a ele concerne e o que nele se manifesta surgem dessa força originária de si mesma. Nesse sentido, iniciar pelo mito fundador do nascimento de Afrodite é também dizer que essa leitura é fundada pelo universo de Eros. Eros, enquanto memória viva, também será substância, assim como o Deus das narrativas claricianas, elemento fundador que originará e conduzirá o texto e a linguagem, instituindo-se como manifestação, como presença; o Deus que “é substantivo como substância”, como aponta Lóri (LISPECTOR, 1991a: 153). Um Deus já forjado em A paixão... e que se inscreve em Uma aprendizagem... como o Deus da coalescência, representado em tudo, vivo em todas as coisas e seres. É o Deus-neutro, concreto e não-concreto, humano e divino. No romance de 1969, a ruptura se realiza a partir do processo gnosiológico vivido por Lori e pela via da relação amorosa, espaço de reformulação da própria existência. A pergunta que conduz o romance – “Quem sou eu?” (LISPECTOR, 1991a: 26) – não se dissocia da pergunta “Quem são as pessoas” (idem), ou Quem é o outro? E inevitavelmente conduz à distância de apenas “um passo da morte da alma” (LISPECTOR, 1991a: 151). Essa simbólica dissolução do sujeito é vivida pela experiência de um “estado de graça” que anuncia o casamento do sujeito com o mundo e garante o “ganhar um corpo e uma alma”, “a terra e o céu” (LISPECTOR, 1991a: 156), algo que “parecia redimir a condição humana, embora ao mesmo tempo ficassem acentuados os estreitos limites dessa condição” (LISPECTOR, 1991a: 158). Mas a dissolução é também vivida pela experiência erótica que primeiro conduz à nudez “de corpo e alma” (idem, 177), para depois garantir o “prazer perigoso de ser” (idem, 169). Se a relação amorosa é a via, a linguagem se torna o ponto de chegada para a reconstrução da subjetividade, do sujeito e da própria literatura. Em Uma aprendizagem..., é Ulisses quem anuncia, ao fim do romance, o tema para o qual a 114 Comentário: Na verdade, o Deus de CL é o concreto + o nao concreto que vai dar no neutro. Quando começa a entrar na metafisica, CL foge pela imagem. O seu Deus é o da coalescencia, que está representado em tudo, que é a vida de tudo, o que está vivo em todos os seres e coisas. escrita de Lispector se abre na década de setenta: “Escreverei sem estilo” porque “escrever sem estilo é o máximo que, quem escreve, chega a desejar” (LISPECTOR, 1991a: 178). Esse desejo, ou tarefa, a que se dedica a autora e sua narrativa não significa apenas problematizar as noções de alta literatura e literatura menor, mas implica trazer para o centro do palco a simulação da escrita, anunciada já na década de sessenta. Além disso, o apagamento entre real e ficcional já se evidencia no momento em que a personagem apresenta o projeto da autora, isto é, a própria criatura encena o papel do seu autor. Esse apagamento ficará mais evidente na obra da década de setenta uma vez que, por meio da encenação de um novo realismo, a autora ficcionaliza a própria vida, introduzindo aspectos autobiográficos na narrativa, criando paratextos que apagam os limites entre o factual e o fictício. A ficção interfere na construção do real. Como aponta Nilze Reguera: “os pólos de produção e de recepção são abalados em sua própria dinamicidade: quem está falando é a “escritora canonizada”? uma personagem? Ou, até mesmo, nós, leitores, a partir de nossa interpretação?” (REGUERA, 2006: 76). Em A paixão..., a autora já havia revelado que a palavra introduz no real a dimensão da fratura, por meio da coexistência entre verdade e erro, abrindo espaço para o abismo. Como a linguagem é insuficiente para dar conta do ser e do real, ela encontra no erro, na falha, no fracasso, a forma de falar com mais vigor, o que permite a abertura para uma nova verdade. “Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem”, diz a narradora de A paixão... (LISPECTOR, 1979: 172), porque à medida que o indivíduo é índice, que representa e significa, ele pode nomear, classificar e fazer juízos. Mas o sujeito descobre que tem muito mais à medida que não consegue designar. “A realidade é a matéria-prima, e a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho” (idem). O nomear a si e ao outro garante a existência das formas no mundo interpretado pelas categorias do sujeito, mas desistir de dar forma ou nome ao 115 informe é reconhecer a força vital do anônimo, da impotência e do fracasso na palavra poética. Portanto, introduzir um corte por meio do fracasso é possibilitar o contato com a morte, com o abismo. Neste sentido, o ato de escrita é abertura para outra ordem: a da paixão, acontecimento poético que introduz o domínio do amor pelo duplo. Ainda nesse sentido, a literatura se abre para o acesso a outras linguagens que possam contribuir para a formação desse universo: a palavra busca amparo na imagem. E é a imagem que servirá de fio condutor para o retrato de Eros pintado no romance de 1969. Dessa forma, visando pensar os processos de criação literária elaborados pela autora, há três dimensões distintas do tratamento dado a Eros na obra clariciana. Os núcleos temáticos visam recuperar a relação homem-natureza a partir da dimensão sensória recobrada pelo contato com o desejo. Após anunciar que ambos conseguiram atingir a potencialidade divina enquanto seres humanos pela descoberta amorosa, Ulisses indica que: “devemos seguir a Natureza, não esquecendo os momentos baixos, pois que a Natureza é cíclica, é ritmo, é um coração pulsando” (LISPECTOR, 1991a: 177). Além disso, a obra desnuda o ponto de contato entre a morte e a paixão veiculado na figura ambivalente de Eros, que ensina que o amparo é não prescindir jamais do desamparo. Por fim, a tese busca avaliar de que modo esse mesmo aspecto do mundo (Eros) é introjetado pela cultura como agente pedagógico pelas questões desenvolvidas pelo pensamento platônico, uma vez que o amor que envolve o par Lóri-Ulisses provoca um questionamento sobre o valor social da liberdade a que Eros condiciona. Clarice conjuga os afetos, o fazer literário e o confronto do indivíduo com as interdições impostas por todos os tipos de poder e moral em um único romance. 116 Comentário: Condição de possibilidade, o neutro é condição de possibilidade do masc e fem, neutro em relação às especificações, gêneros, da vida em geral e não só puramente humamna, da vitalidade cósmica. Sexo e Eros é sexual e cósmico, integração sexual com o cosmos e não so hom e mul, so produz dor, culpa, etc e cl joga isso para o ar 2.2 DO ANÚNCIO DA ESCRITA: A DIVINA SOMBRA DE ULISSES A partir dessa anunciação, é de fundamental importância estabelecer neste momento um diálogo com as proposições explicitadas no Excurso I da Dialética do Esclarecimento, no que diz respeito à afirmação da consciência do eu sobre si, entendendo a viagem de Ulisses como uma viagem em direção à conservação de sua identidade. Ainda que o conhecimento adquirido pelo eu parta do mergulho em todas as experiências de dissolução e desvio, tirando sua essência delas, expondo-se ao abismo da morte, perdendo-se, o resultado disso é a conservação de si, e não o abandono ao desregramento e ao apagamento do eu. Horkheimer e Adorno (ADORNO/HORKHEIMER, 1985) apontam para o fato de que a divisão interna vivida pelo sujeito ao se entregar aos desvios só o impulsiona ao uso da violência contra a natureza do coração e do corpo. As vitórias de Ulisses serão sempre o reflexo da vitória da cultura sobre a natureza. A própria impotência do herói, cujo sentido mais valioso é a abertura para a potência, acaba levando o indivíduo à exploração do desconhecido até que ele se torne não só conhecido, mas decifrável. O Ulisses homérico que funda a cultura do sacrifício, condicionada sempre por uma “astúcia da dominação” (idem, 55), como apontam os filósofos, enfraquece o sujeito diante das forças da natureza e, para sobreviver, acaba tendo que reafirmar a consciência de si próprio, isto é, de sua subjetividade totalitária. O retorno à pátria e aos bens é o esforço de auto-conservação que o sujeito impõe a si. As aventuras que se apresentam diante do herói são tentativas de afastá-lo de sua trajetória lógica, mas que só fazem afirmar cada vez mais a sua subjetividade. O herói usa a máscara adquirida com as experiências, mas nunca mergulha por completo porque não pode seguir o curso do coração. Este herói afirma sua racionalidade e individualidade por trás das máscaras. 117 Vive as aventuras porque elas o colocam na experiência do limite, da iminência do abismo, mas, nessa posição, o conhecimento – marca identitária do herói – se acentua e garante sua sobrevivência. O eu precisa negar a dissolução que chega com este limite e com isso reafirma-se em sua forma fixa. Ele se abandona e se perde na natureza apenas para crescer nessa experiência como juiz e subjetividade imperial. O enfraquecimento da individualidade, quando ocorre, resvala para a narrativa da viagem, do deslocamento e é nesse espaço que nosso Ulisses clariciano transita: “ele próprio dizia de si mesmo que estava em plena aprendizagem” (LISPECTOR, 1991a: 49). Portanto, ambos os filósofos apontam que o protótipo do herói burguês já surge em Homero na figura do herói errante – caminhante solitário - e apontam a obra homérica como obra ordenadora e definidora de um cosmos que perdurará e formará toda a cultura ocidental, destruindo o mito ao lhe impor uma ordem racional. Tudo que é vivo, portanto, deverá ser oprimido (ADORNO/HORKHEIMER, 1985: 54). É claro que este é apenas um posicionamento entre tantos acerca do Ulisses homérico. O mais importante da leitura de Adorno e Horkheimer reside na diferenciação entre mito heróico e mito dionisíaco instituída na literatura ocidental a partir da figura do Ulisses homérico. Ora, essa é exatamente a posição oposta tomada pelo Ulisses clariciano. Ao afirmar a comunhão com a natureza, Ulisses se coloca como formador de uma outra tradição – a dos adoradores da vida. Na mesma trilha dessa diferenciação, Jeanne-Marie Gagnebin reconhece o valor da interpretação feita pelos filósofos, mas aponta para uma outra leitura de Ulisses que deve ser recuperada ao lado daquela feita por Adorno e Horkheimer. Nesta leitura, Gagnebin chama atenção para a associação da figura do herói à do poeta, ou aedo, ao ressaltar a importância do canto poético no exemplo do mito das Sereias. Afirma que, neste episódio, não é possível ler os gestos de Ulisses apenas como estratégia astuciosa 118 para ludibriar as Sereias. Para Adorno e Horkheimer, é preciso sobrevier às forças do canto das Sereias porque são elas que dissolvem a “identidade clara, delimitada e fixa que constitui o ideal egóico racional” (GAGNEBIN, 2006: 33). Mas esta mesma potência representa simultaneamente “as forças dissolventes e mortíferas da arte” (idem) que prometem, por sua vez, “superar os limites do eu” (ibidem). Gagnebin quer sublinhar, com isso, o fato de que Ulisses é, ao mesmo tempo, o “vencedor” e o “herdeiro” das Sereias (GAGNEBIN, 2006: 36). Assim, a vitória sobre as potências mortíferas é também uma garantia do canto, da capacidade de rememoração que o torna um aedo, o mais especial de toda poesia arcaica. Um poeta que busca manter “a lembrança gloriosa dos mortos” (GAGNEBIN, 2006: 27) como uma força viva e presente no mundo dos vivos. Nesse sentido, Ulisses se torna, tanto quanto Madalena, aquele que aproxima o mundo invisível do mundo visível no reino da literatura e garante uma definição de cultura apontada para o reconhecimento de “nossa condição mortal” que é “tão incontornável como a exigência que ela implica: cuidar da memória dos mortos para os vivos de hoje” (idem). O Ulisses clariciano aproxima-se deste papel de poeta identificado na leitura de Gagnebin, no sentido de que a ênfase na narração e na auto-narração conduz à constituição de um sujeito que não necessariamente renuncie ao próprio desejo e tampouco à rigidez da individualidade (GAGNEBIN, 2006, 37). Por isso, em Uma aprendizagem..., Ulisses será aquele a anunciar a Lori o seu nome batismal, vindo de uma lenda popular. “Loreley é o nome de um personagem lendário do folclore alemão, cantado num belíssimo poema por Heine. A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores com os seus cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar” (LISPECTOR, 1991a: 114). Ulisses é o personagem mítico que anuncia a inversão do próprio mito, uma vez que, segundo a lenda e o poema, a sereia, Musa inspiradora do 119 poeta na criação do Belo que virará poesia, tem potencial destrutivo porque conduz o marinheiro à morte. No caso de Uma aprendizagem..., é a própria sereia que morrerá pelo canto dos marinheiros. Simbolicamente, Clarice anuncia a morte de certa tradição literária para que ocorra o seu renascimento já como nova forma. Nessa imagem, tempo histórico se desprende da noção de espaço e isso constitui o esquema do tempo mítico. Tempo mítico é o tempo histórico desprendido da idéia de espaço e isso fica mais evidente na imagem da viagem. Já passou o tempo em que o tempo não contava. A era moderna vive a abreviação do tempo e de tudo, inclusive do eu, abreviação no sentido das experiências de troca e de autognose. A marca da abreviação do nome tem de certa forma esse sentido – abreviação da experiência. Busca-se entrar em outro tempo que não implicava abreviação. “Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo” (BENJAMIN, 1994: 205). Repetir o traço, o sulco na pedra, reescrever a palavra, é processo que reinventa e põe em circulação esse tempo não abreviado. A autoridade dos mortos chega pela possibilidade que a experiência de morte oferece ao inesquecível, à transmissão das histórias: no momento da morte é que se transmite o transmissível. Por isso, convidar a morte cada vez mais para o reino dos vivos, mostrando sua convivência, é permitir a entrada neste outro tempo que é mítico e que independe da noção de tempo histórico e que não é abreviado. Agora como porta-voz do criador, do poeta, Ulisses afirma que a nova forma, sem estilo, apresenta-se como “arrebatamento de um pensamento-sentimento” (LISPECTOR, 1991a: 108). Esta nova forma de escrita anunciada por Ulisses, agora já confundido com a própria autora, se afirma da seguinte maneira: “Meus poemas são não-poéticos, mas meus ensaios são longos poemas em prosa, onde exercito ao máximo minha capacidade de pensar e intuir. Nós, os que escrevemos, temos na palavra humana, 120 escrita ou falada, grande mistério que não quero desvendar com o meu raciocínio que é frio. Tenho que não indagar do mistério para não trair o milagre” (LISPECTOR, 1991a: 108-9) Segundo Piero Boitani, em A sombra de Ulisses (2005), a figura mítica de Ulisses é relida em suas distintas representações literárias enquanto discurso da civilização ocidental, origem do homem europeu e do logos cultural que permaneceu na História da tradição do pensamento no Ocidente. Os cortes paradigmáticos que este símbolo cultural sofreu dentro da literatura e da ciência, da história e da filosofia, são revistos e apresentados por Boitani a partir da idéia de maravilhoso, uma espécie de encantamento que cerca a imagem do herói e permite a união entre o Ulisses antigo e o moderno. Símbolo de uma episteme e civilização fundada no mar, Ulisses comporta sentidos que são preenchidos com as características de cada cultura ao longo do tempo, sob o viés filosófico, ético, político e literário. Paradigma de conhecimento do mundo e do indivíduo, herói da continuidade e da metamorfose enquanto viajante, representante da máxima sabedoria enquanto símbolo da retórica, e imagem da invenção e da técnica no campo da ciência, a presença de Ulisses na imaginação ocidental aponta para o fascínio e mistério que o constituem como uma sombra refletida sobre a cultura do Ocidente. O amor pelo mito, que une pensamento filosófico e palavra poética, nasce do encantamento proporcionado pelo maravilhoso como estupor que atordoa e se apresenta como elemento perturbador, o das Unheimiliche freudiano (BOITANI, 2005: xviii). Este elemento se configura, portanto, como força noturna que provoca horror e perplexidade, configurações da psiquê que introduzem a tensão trágica necessária para o processo de devir deste homem ocidental. Nesse sentido, a sombra de Ulisses que a tradição cultural do Ocidente carrega apresenta-se, enquanto travessia interna no 121 horizonte ontológico, sob a forma de uma viagem catabática e anabática, no horizonte histórico, enquanto viagem externa ao Novo Mundo. Duas das projeções desta sombra nasceram com a Odisséia homérica e permanecem como espaço simbólico revisitado, deslido e ressignificado recorrentemente na cultura e literatura ocidental contemporâneas. Uma delas é a viagem de Odisseu ao reino de Hades, jornada limítrofe que conduz ao fim do cosmos, uma vez que o Hades é o reino dos mortos, e a outra é a viagem ao princípio do cosmos, já que a única maneira de reordenar o cosmos para prosseguir sua viagem de retorno à casa é seguindo a profecia de Tirésias. Entretanto, a descida ao limiar da vida e a nekya – evocação dos mortos – apresentam-se como uma jornada pela morte e em direção à morte, que significa também cruzar os limites aos quais o homem jamais teve acesso, transpor a barreira que separa o ser do não-ser. Segundo Boitani, a viagem ao Hades revela a mesma mensagem encontrada no episódio das Sereias: “conhecer é perecer”. O homem, portanto, é um ser que caminha para a morte. A experiência literária encenada pelo poema homérico apresenta-se como experiência do extremo, sugerindo que o empreendimento da viagem e a exploração do desconhecido implicam um mergulho nos domínios de Hades e a conseqüente transposição dos umbrais da morte. Portanto, a interpretação mitopoética acerca da figura literária de Ulisses que interessa a esta tese é a do marinheiro errante, personagem descentrado porque introdutor da noção da viagem como experiência, na qual o processo de auto-formação da subjetividade e da coletividade se abre para a incessante dinâmica do devir, um Ulisses mais próximo ao personagem do Inferno de Dante. A travessia do marinheiro Ulisses, motivada desde o início pelo objetivo do retorno à pátria, será talvez, acima de tudo, uma viagem em direção aos mortos e à morte. Nesse aspecto, Ulisses se torna o arquétipo da liminaridade, símbolo que une os pólos da vida e da morte, único ser 122 mortal a ultrapassar os limites proibidos a qualquer ser humano, sem perecer, o que lhe confere o desígnio de visitante dos reinos das trevas e da luz e anuncia a morte como potência efetiva no percurso do homem. O elemento do maravilhoso apontado por Boitani conduz à fusão entre mito e logos e à força do arrebatamento diante da natureza. Como aponta o estudioso italiano, as figurações de Ulisses enquanto prefigurações do “verdadeiro poético” e do “real histórico” nascem das contradições, ambigüidades e excessos que o texto de Homero, na passagem em que narra a profecia de Tirésias, deixa em aberto para os séculos seguintes. A profecia revela o retorno de Ulisses já muito velho, em nau estrangeira, solitário, sem nenhum de seus companheiros de viagem, todos mortos, e aponta para outra previsão que não se concretiza nas páginas do poema homérico, mas deixa espaço para a reformulação feita pelas gerações posteriores. Além de prever que Ulisses retornará para casa antes de morrer, Tirésias revela como se dará a morte tardia de Ulisses, vinda de longe e não do mar. E uma última viagem a um país estrangeiro, depois de ter retornado a Ítaca, uma viagem “até onde um povo nada saiba do mar, nem coma sal, nem tenha visto nunca naves púrpuro-cavas, nem os remos-asas das naus” (BOITANI, 2005: 196). Nesta terra, ainda um último sacrifício deverá Ulisses realizar: “quando um outro viajor, contigo se cruzando, disser que sobre a espádua resplendente levas um joeirador de grãos, então finca na terra o remo bem-lavrado, sacrifica ao rei Posêidon um carneiro e um touro, e um javali garanhão de javardas” (idem). Além da viagem ao Hades, domínio dos mortos, tarefa vital para o retorno ao conhecido – a pátria - a viagem final de Ulisses apresenta-se no entanto como um sacrifício que conduz o herói a um espaço desconhecido, como sujeito desconhecido e anônimo, onde um remo ganha o significado de joio. Nada mais é dito por Homero sobre esta última viagem e sua morte, que não acontece porque o poema 123 termina com o retorno do herói a Ítaca. A tese de Boitani reside justamente na sombra que esta profecia proferida lança sobre uma última viagem que jamais acontece. Que viagem seria essa?, pergunta-se Boitani. E a sombra lhe acena apontando para toda a tradição que surge em torno da morte do herói. A derradeira viagem talvez seja a abertura legada à posteridade por Homero, para que a história continuasse a ser contada. A profecia, portanto, surge como uma passagem que marca uma abertura para o futuro, ao mesmo tempo já condenada a ter outro significado, condenada ao “outro”. A profecia, segundo Boitani, prevê um Odisseu apagado pela anonimidade, pelo anonimato, imagem do viajante desconhecido. A narrativa fala de uma figura de Odisseu como representante de uma civilização que se apagará, que se tornará anônima, unindo a máxima referência ao completo anonimato. E ao delinear essa teia, “o nãoreconhecimento (de Odisseu) funciona como sinal muito claro do reconhecimento” (BOITANI, 2005: 9), isto é, o reconhecimento de um signo que seguirá aberto a diferentes significados, que constituirá seu próprio sistema de valores segundo o reconhecimento de cada época e cultura. A anonimidade permite portanto a participação (a inclusão) maior dentro da história porque o sentido é dado de acordo com espaço e tempo históricos. “Ele apresenta um outro ao explodir sua própria episteme” (idem). Assim sendo, qual o sentido do personagem Ulisses construído por Lispector em Uma aprendizagem... e de que maneira dialoga com a sombra da tradição cultural que perpetuou sua viagem? Inicialmente, o personagem revela a Lóri que “não tinha a menor intenção de ensinar-lhe um modo de viver ‘filosófico’ ou ‘literário’” (LISPECTOR, 1991a: 49). Parece-me que o projeto anunciado pela narradora de Uma aprendizagem... afirma o desejo de se desvincular da tradição do pensamento ocidental que fixa Ulisses como símbolo do novo homem europeu de origem grega, transformado 124 Comentário: Será que isso tem a ver com a ideia do estrangeiro de que fala Bertha Waldman com relaçao ao judaísmo na obra de CL? em representante da razão totalizante e da técnica, para que ganhe contorno próprio dentro desta escrita, sem, contudo, abdicar do diálogo com esta mesma tradição. Há no mínimo duas hipóteses de leitura para este romance. A primeira é considerá-lo uma história de aprendizagem amorosa entre dois personagens que se apresentam como par ancestral, representado pelo “sábio Ulisses” (LISPECTOR, 1991a: 176) e Lóri, de “forte herança agrária vinda de longe no seu sangue” (idem, 49), uma “sacerdotisa”, “de uma linha de Loreleys para as quais o mar e os pescadores eram o cântico da vida e da morte” (idem, 117). O personagem Ulisses forjado pelo universo clariciano apresenta-se não como símbolo da racionalização, da lógica, da técnica, mas como “limite entre o passado e o que viesse” (LISPECTOR, 1991a: 49). Releitura do passado, ressiginificação no presente, abertura para o futuro. Desprende-se do significado que adquire com a tradição não só filosófica, mas inclusive literária, para nascer com novo significado criado dentro da obra lispectoriana. Este novo universo converte-se em espaço de reformulação da própria existência, pela via da relação amorosa, uma vez que no Outro – espaço da diferença – e na linguagem reflete-se o sintoma do eu. Se a relação amorosa é a via, a linguagem se torna o ponto de chegada no qual o sentido da existência pode ser alcançado, mesmo que parcialmente. Para Lacan, a palavra introduz no real a dimensão da verdade e do erro e, como a linguagem é insuficiente para dar conta do ser, ela pode encontrar no erro a forma de falar com mais vigor, o que permite a abertura para uma nova verdade. Assim, portanto, o tema de toda a vida literária da autora, desde Perto do coração selvagem, publicado em 1943, até A hora da estrela, última obra lançada em 1977, e mesmo nos textos inéditos publicados depois de sua morte, como Um sopro de vida e A bela e a fera, é um e o mesmo, do início ao fim, e fundamentalmente o tema da filosofia e da poesia em geral: a existência. A pergunta pelo ser é a pergunta pela subjetividade e inevitavelmente 125 esbarrará na subjetividade do outro, implicando um pensar a si no mundo. Mas tão importante quanto a busca ontológica, este questionar-se, transposto para a literatura, será também o questionar-se da própria escrita, o que nos leva à segunda hipótese de interpretação do romance. Ao fazer a pergunta “Quem eu sou?”, a pior pergunta que um ser humano pode fazer a si mesmo, segundo Ulisses (LISPECTOR, 1991a: 180) e que não se deve responder, não posso deixar de pensar que a pergunta se abre para a reflexão metacrítica sobre si mesma. Nessa segunda leitura, Ulisses parece surgir como voz que anuncia o projeto de transformação da escrita que a obra clariciana sofrerá, modificação esta apontada por vários críticos. 126 2.3 EROS COSMOGÔNICO: A HIEROFANIA DO SENSÍVEL O drama das narrativas claricianas vem de que as três dimensões de Eros a todo tempo cruzam a sua obra, alternando-se e sobrepondo-se uma à outra em diferentes momentos. A primeira delas é a dimensão em que as duas concepções de Eros – adquiridas pela cultura judaico-cristã e pela cosmobiológica - encontram-se em conflito no centro do coração do homem. Nesse ponto, a autora ainda admite que existe o mal e que o ser é bipartido. E o mal nesta leitura é interpretado pelo código teísta como força demoníaca. É o drama de Joana, que entende que a verdade é telúrica e vive a rebelião de um espírito cativo, saindo da prisão do sujeito esquizofrênico em direção à recuperação do sujeito sadio. Quando consegue, a linguagem assume a forma do monólogo narrado, uma vez que se apresenta como fluxo contínuo e reflete a vida já em livre movimento. E a cada nova publicação, Lispector vai modificando mais e mais a sua forma de escrita. Quanto mais liberta, mais a forma rompe com todas as normas e modelos estabelecidos, tornando-se mais fluida. A segunda dimensão é aquela em que o sujeito sai do extremo mal, do puro sensível e entra no seu oposto contrapolar, o puro espírito. Nesse ponto, Eros se torna agente moralizante no aprendizado amoroso, conduzindo a subjetividade para o caminho do puro racional. Ao declarar que não quer ser platônica em relação a si mesma e que, por isso, afastara-se do contato com as pessoas (LISPECTOR, 1991a: 160), Lóri revela que o mesmo temor se impõe na relação erótica com o outro, uma vez que ou vivia o puramente sensível, ou a extrema intelectualização amorosa. A única coisa em que dava certo antes de viver a experiência amorosa com Ulisses era no sexo. O perigo de viver uma relação platônica consigo mesma estende-se para o seu relacionamento com o mundo. A conseqüência da 127 Comentário: O mal só é mal pq interpretado pelo código teísta. A segunda dimensão é Tb a q sai do espírito para o sensivel separação metafísica produz um senso de derrota na relação do homem com o mundo e do homem consigo mesmo. Sou profundamente derrotada pelo mundo em que vivo. Separei-me só por uns tempos por causa de minha derrota e por sentir que os outros eram também derrotados. Então fechei-me numa individualização que se eu não tomasse cuidado poderia se transformar em solidão histérica ou contemplativa (LISPECTOR, 1991:160). A mesma individualização que já havia aparecido em 1964 em A paixão... sob a forma de sentimentação. Porque o corte metafísico provoca tanto a extrema individualização e racionalização da vida quanto a exacerbada sentimentalização das experiências vitais, que impedem a experiência de contato com a essência da identidade e impede a humanidade do homem. Em A paixão..., a narradora explica que sentir, de fato, o amor é tarefa extremamente difícil porque o indivíduo se acostuma com a grossa sentimentação e quando prova o “gosto da identidade real” (LISPECTOR 1979: 99) das coisas, inclusive do amor, experimenta apenas a profunda insipidez. E, ainda, que essa mesma sentimentação é hábito que nasce do “inicial e primordial” e que “fez com que certas coisas chegassem ao ponto de aspirar a serem humanas” (idem, 156), ou seja, ao “amor neutro” - “a parte humana mais difícil”. “Foi dessa fonte que começou a nascer aquilo que depois foi se distorcendo em sentimentações a tal ponto que o núcleo ficou sufocado pelo acréscimo de riqueza e esmagado em nós mesmos pela pata humana” (ibidem). A terceira dimensão é, portanto, aquela em que Lispector realiza a unidade polar de coexistência espírito-corpo, esquizofrênico-sadio, doente-xamânico, sensívelinteligível, dimensão em que o sexo e o amor já não são mais proibidos aos amantes, antes tornam-se uma ameaça à sociedade. Nessa dimensão da poética dionisíaca de Lispector, o escritor realiza o que Ulisses preconiza em seu discurso: o fazer literário é 128 Comentário: O reino de Deus é deste mundo PSGH p. 145 um exercício da alma, não apenas da linguagem, o que o torna “exercício mais profundo”. Enquanto ofício, essa tarefa revela prescindir de um tema, mas não das incongruências e, quando tornado prática, o ofício deixa de ser função apenas do poeta, e se torna cultivo do indivíduo. “Faço poesia não porque seja poeta, mas para exercitar minha alma, é o exercício mais profundo do homem. Em geral sai incongruente, e é raro que tenha um tema: é mais uma pesquisa de modo de pensar” (LISPECTOR, 1991:179). E isso é uma profunda ameaça aos interditos da tradição, uma vez que “provoca o desencadeamento de outras liberdades” (idem) e se trona um risco para a sociedade. A obra de Lispector, portanto, efetua o que Octavio Paz chama de princípio poético da analogia, que se constitui como um articulador central que aproxima elementos antagônicos em pares complementares, base do movimento encontrado no universo, ao aproximar mito e literatura. Neste sentido, a concepção do poeta como um tradutor do Livro do Mundo retira-o de sua posição de autor único de um texto único e desloca o foco para a linguagem. A linguagem, por sua vez, passa a ser entendida como uma tradução a serviço da interpretação do universo, plural e interminável, a única autora do Livro do Mundo. Nesse sentido é que o texto se torna um ato, como aponta Paz, que se autorecria, ao passo que conduz o poeta a uma própria reinvenção de si mesmo. Ao repetir o mesmo gesto, o leitor torna-se um continuador do ato produtivo, revelando que a tarefa oculta da poesia é escapar à conclusão finita, encarnando-se na história e constituindo o movimento próprio da poesia moderna. De todas as divindades da tradição grega, Eros é a que abarca a todas as esferas: a dos seres mortais e imortais, a de todas as coisas vivas, inclusive sobre o mundo das bestas e sobre as partes constitutivas do universo - o céu, a terra, as águas. Chamado de Phanes pelos órficos, nascido do ovo cósmico, é também associado à Physis, a Natureza, para os gregos. Ou Poesia, segundo a filosofia heideggeriana que se apóia no 129 Comentário: Aqui cabe algum Heidegger. pensamento pré-socrático. O domínio de Eros é o mesmo de Afrodite, também reconhecida como Cypris ou Cyprogenia, por se considerar Chipre a sua ilha natal. Claude Calame, em The poetics of Eros in Ancient Greece, realiza uma ampla pesquisa sobre o universo de Eros nas artes da Grécia arcaica e clássica, destacando suas representações, ações, simbologia, seus espaços e efeitos na literatura e apontando de que maneira este legado contribuiu para o desenvolvimento de uma prática erótica de conteúdo e atuação moralizante na sociedade pelos séculos seguintes até o mundo moderno. Inclui, entre suas fontes, os poetas mélicos, os hinos homéricos, os textos teogônicos, as tragédias gregas, a poesia helênica, as fórmulas mágicas dos Mistérios de Elêusis. Na dimensão destes textos arcaicos, Eros e Afrodite são compreendidos como duas entidades equivalentes, participantes do mesmo domínio, representadas na maior parte das vezes uma em companhia da outra e cuja atuação engendra forças semelhantes. E para esta pesquisa, ambas as entidades serão de extrema relevância, uma vez entendidas como forças que constituem visões de mundo formadoras do tecido mítico sobre o qual toda a cultura e literatura ocidentais se apóiam, enquanto fonte, referência, história, memória. Sob a herança de tais visões constituir-se-á o universo clariciano, preenchido de sereias, Penélopes, Ulisses, profetas cegos, viagens catabáticas, Cristos e Madalenas transfigurados. Os pontos fundamentais que aproximam a narrativa clariciana do texto hesiódico são dois e dizem respeito à fase cósmica das Origens, a partir da apresentação do domínio dos seus elementos constitutivos e do primeiro momento da partilha das honras, em que se assiste ao nascimento de Afrodite, das Erínias, das Ninfas Mélias e dos Gigantes. 130 Comentário: Definir a hipótese da tese. Iniciando pelo segundo momento, o texto hesiódico narra a primeira partilha de honras localizada no segmento que canta a história de Céu e Cronos e o nascimento de Afrodite. O ardil armado entre Terra e Cronos para pôr término à regência de Céu conduz ao início de uma nova fase, não mais de fecundação direta pelo sêmen celestial no ventre da Terra, ou seja, de linhagem direta dos seres primordiais, mas já por uma nova forma de união que gera Deuses e homens, ou seja, a partir da interferência de Afrodite enquanto força coercitiva de acasalamento entre Deuses e entre Deuses e homens. Diz o poeta: Assim falou. Exultou nas entranhas Terra prodigiosa, Colocou-o oculto em tocaia, pôs-lhe nas mãos A foice dentada e inculcou-lhe todo o ardil. 175 Veio com a noite o grande Céu, ao redor da Terra Desejando amor sobrepairou e estendeu-se A tudo. Da tocaia o filho alcançou com a mão Esquerda, com a destra pegou a prodigiosa foice 180 Longa e dentada. E do pai o pênis Ceifou com ímpeto e lançou-o a esmo Para trás. Mas nada inerte escapou da mão: Quantos salpicos respingaram sanguíneos A todos recebeu-os a Terra; com o girar do ano Gerou as Erínias duras, os grandes Gigantes 185 Rútilos nas armas, com longas lanças nas mãos, E Ninfas chamadas Freixos sobre a terra infinita. O pênis, tão logo cortando-o com o aço Atirou do continente no undoso mar, Aí muito boiou na planície, ao redor branca Espuma da imortal carne ejaculava-se, dela Uma virgem criou-se. Primeiro Citera divina Atingiu, depois foi à circunfluida Chipre E saiu veneranda Deusa, ao redor relva 131 190 Crescida sob esbeltos pés. A ela. Afrodite 195 Deusa nascida de espuma e bem-coroada Citeréia Apelidaram homens e Deuses, porque da espuma Criou-se e Citeréia porque tocou Citera, Cípria porque nasceu na undosa Chipre, E Amor-do-pênis porque saiu do pênis à luz. 200 Eros acompanhou-a, Desejo seguiu-a belo, Tão logo nasceu e foi para a grei dos Deuses. Esta honra tem dês o começo e na partilha Coube-lhe entre homens e Deuses imortais As conversas de moças, os sorrisos, os enganos, 205 O doce gozo, o amor e a meiguice. (HESÍODO, 2003:115-117). Elementos associados a Afrodite portanto são a espuma, que remete, ao mesmo tempo, ao mar e ao sêmen e o próprio mar, uma vez que de dentro das águas “undosas” da “circunfluida” ilha de Chipre e da costa de Creta ela surgiu, como apontam seus epítetos. E os epítetos de Afrodite tornam-se chaves de leitura para a compreensão dos domínios da Deusa. Kípris, crisocoroada Deusa, nasce com relva sob seus pés, o que lhe proporciona uma associação à vegetação e ainda ao amor sexual, carnal, por ter nascido diretamente do pênis cortado de Cronos. Além disso, na primeira partilha de honras coube-lhe atuar no reino da persuasão, dos enganos, do gozo, da beleza e doçura, do amor. Entretanto, se Afrodite nasce com qualificativos positivos, da esfera da vida, ela é irmã das forças mais destrutivas que existem na primeira linhagem de Cronos, compartilhando das forças de aniquilamento provindas das Erínias, que impõem a dike divina, Justiça mantenedora do equilíbrio por meio de ações compensatórias, e dos Gigantes e Ninfas Mélias, que são potências guerreiras e mortíferas. Como aponta Torrano, “toda descendência é uma explicitação do ser e natureza da Divindade 132 genitora” (TORRANO, 2003: 41). Dessa forma, contendo em si o germe dos seres dos quais descende, Afrodite compartilha a astúcia de Cronos, a justiça das Erínias 10 e a força destrutiva dos Gigantes e Ninfas11 , além de ter nascido de uma mutilação, cisão que gera os descendentes do sangue e a única descendente do esperma, secreções sagradas e fecundadoras, que impõem morte e vida desde a origem, ser e não-ser. Nesse ponto, Afrodite se aproxima do universo dionisíaco ao conter em si o germe da complementaridade de opostos antagônicos. O fato é que a linha de poetas, comentadores e pensadores que associam o nascimento de Afrodite ao mar passa por Hesíodo, Anacreonte, Pausânias, Ovídio, Sêneca, Nonnus, entre outros, descendência esta registrada desde cedo também pela iconografia e que prossegue pelos séculos até, por exemplo, os tempos modernos, com a Vênus de Eduard Manet. Entretanto, para esta pesquisa, interessa em um primeiro momento um único aspecto do mito cosmogônico de Afrodite, aquele que trata de seu nascimento realizado nas águas do mar. Porque parto da hipótese de que o mito de Afrodite é reencenado em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, de forma a instaurar um mundo cujas fronteiras tangem os domínios da Deusa e de Eros, seu companheiro, em sua tradição mais antiga. Neste universo, o texto clariciano põe no centro do debate a tradição de uma cultura, uma ética e uma estética de Eros nos tempos modernos. Em cosmogonias antigas, como na Teogonia de Hesíodo, Eros e Afrodite apresentam uma dimensão cósmica, constituindo-se como forças de teor mais construtivo do que destrutivo, apesar de Eros ser nomeado como “solta-membros”, aquele que subjuga e que derrete o coração de mortais e imortais segundo o Hino 10 Em Hipólito, Afrodite é aquela que pune aqueles que não lhe prestam homenagens ou a desrespeitam No culto a Afrodite em Esparta, a deusa aparece sentada em sua armadura e recebe o nome de Areia, aquela que gosta de guerrear, esposa de Ares, um de seus pares amorosos. Além da guerra, Afrodite é também a divindade que, nos Hinos Órficos, enfeitiça os monstros, as feras; para Pausânias provoca o incesto, o estupro, a luxúria e a loucura amorosa e para Sêneca, introduz o sexo excessivo, que conduz à morte 11 133 Homérico 5, característica também sutilmente trabalhada por Safo e outros poetas mélicos. Eros é aquele que, por força violenta, “doma” o coração, o espírito e a vontade, não apenas de mortais e imortais, mas inclusive do Céu e da Terra. Nas cosmogonias arcaicas, como em Hesíodo, assume-se como força construtiva, enquanto na lírica arcaica de Safo, por exemplo, assume caráter dual, colocando em circulação um aspecto de diligência e ambigüidade na relação direta com o corpo. Nas tragédias gregas, no entanto, como em Hipólito de Eurípides ou Antígona de Sófocles, costumeiramente, Eros/Afrodite assumem caráter destrutivo e, pouco tempo depois, vem se apresentar como força moralizante nos diálogos platônicos. Por fim, para poetas latinos como Ovídio, Eros volta a assumir um aspecto dual pela figura de Vênus Pandemos e Venus Celeste. Está instituída a metafísica e a literatura ocidental para sempre ficará atada à dualidade inerente a este pensamento. A escrita de Lispector alterna entre o rechaço a essa separação e a angústia de pertencer a esta tradição. É precisamente esse embate que é encenado em Uma aprendizagem..., como será visto mais adiante. Em Hesíodo, não sendo originário de nenhuma força geradora, Eros nasce ele mesmo como princípio gerador, junto ao Caos, à Terra e ao Tártaro e, com exceção da segunda linhagem de entidades físicas (Érebos e Noite), é pela força de Eros que as próximas cosmogonias se realizam, é ele que inspira os laços que fazem Uranos deitar com Gaia, dando início à primeira teogonia: Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, Dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, E Tártaro nevoento do fundo do chão de amplas vias, E Eros: o mais belo entre Deuses imortais, Solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos Ele doma no peito o espírito e a prudente vontade. 134 120 Comentário: Procurar fragmento de Safo que se refira a Eros solta-membros. Do Caos Érebos e Noite negra nasceram. Da noite aliás Éter e Dia nasceram, Gerou-os fecundada unida a Érebos em amor. Terra primeiro pariu igual a si mesma Céu constelado, para cercá-la toda ao redor E ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre. Pariu altas montanhas, belos abrigos das Deusas Ninfas que moram nas montanhas frondosas. 130 E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas O Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu Do coito com céu: Oceano de fundos remoinhos... (HESÍODO, 2003: 111-113) Observa-se, neste prólogo, que Eros comporta-se como força construtiva, responsável por novas gerações. No entanto, na passagem do período arcaico para o clássico, Eros tenderá a assumir dois aspectos qualificativos mais definidos: a de uma entidade primordial que une os elementos necessários para a geração do ser, apresentando com essa característica um aspecto simbólico, portanto, de ligação; e a de um princípio metafísico, que separa por meio da interferência de Neikos, a Discórdia, que sempre o acompanha, ou de Himeros, princípio de negação de Eros, muitas vezes identificado como Anteros. Assim, desde o início da literatura ocidental, Eros apresenta uma dupla, senão múltipla, genealogia, além de atuar em funções variadas. Apenas depois de seu nascimento, Afrodite, acompanhada por Eros, Himeros – o Desejo – e Philotes, assumirá seu trabalho e desígnio. No poema de Hesíodo, primeira elaboração formal de uma teogonia, ainda que Eros seja em si uma força geradora unindo as primeiras entidades originárias, a divindade permanece, no entanto, como força inativa no processo cosmogônico, se 135 Comentário: Será que a palavra metafisico aqui nao levaria a equivocos uma vez que esta intimamente associada a Platao? comparada aos outros três elementos (Caos, Terra e Tártaro). Apesar de Noite e Érebos nascerem de um processo de partenogênese, o que os une na geração do Éter e do Dia é uma relação que se estabelece pela força erótica, chamada de philotes, a mesma que une Terra e Céu originando os deuses primordiais. É, portanto, essa força que proporciona a “transição de uma cosmogonia para uma teogonia”, como aponta Claude Calame (CALAME, 1999:178). Eros teogônico provoca o mesmo efeito vigente na poesia lírica arcaica: é o Eros desmembrador, que atua não apenas no coração dos homens, mas também no coração dos deuses. O desejo gera o nascimento de novos seres a partir da união do diferenciado, do separado. E desta união surge novamente a divisão, as distinções proporcionadas pelo trabalho erótico, princípio unificador que engendra a pluralidade. Afrodite assume posteriormente a função iniciada por Eros que, como Philotes, nasce sem nenhuma união sexual e, igualmente, promove associações produtivas e férteis. (CALAME, 1999:178/9). Mas até este momento, Eros é uma entidade divina, que atua na formação teogônica e se constitui como uma força cósmica. Há ainda uma importante marca do caráter de Eros enquanto agente do processo de unificação e diferenciação dos seres: o Comentário: Aqui já pulou para a metaafisica seu poder demiúrgico. Nesse sentido, Eros apresenta-se como uma criatura entre a natureza divina e a humana e, por este aspecto, passará a atuar como disseminador das representações filosóficas do cosmos, ou seja, como força ordenadora equilibrando o tecido cívico e a ordem social, como aponta Calame (idem, 180). Fato é que, depois da concepção platônica de Eros apresentada no Fedro e em O Banquete, estes dois Comentário: Que 2 aspectos? aspectos complementares, porém garantidores da tensão dialética, perdem-se na crítica neoplatônica em nome do corte metafísico introduzido pelos diálogos. Antes das considerações feitas por Platão, Parmênides e Empédocles já viam em Eros o deus 136 responsável pelo processo de reprodução teogônica, eterno princípio que mescla os quatro elementos primordiais e sofre a separação posterior por intermédio de Neikos (idem, 180). Como entidade primordial, Eros une em complementaridade o que está separado e, como princípio metafísico, separa o que antes estava unido. O aspecto dual de Eros foi amplamente veiculado pela poesia mélica da Grécia arcaica. O Eros platônico que se estabelece no Fedro introduz noções distintas do tratamento a ele dado na poesia mélica arcaica. Uma dessas noções, aponta Calame (idem, 181), situa o Amor como a “fusão erótica” entre a “pluralidade limitada” e a “unidade efêmera”. As narrativas simpóticas servem como espaço para a revisão de uma tradição filosófica, poética e narrativa em curso antes do surgimento dos textos platônicos. Por isso em Fedro, Eros é apresentado no discurso ao mesmo tempo como princípio cosmogônico (divino e uno) e como força moral e ética que estabelece as relações sociais entre os pares amorosos (ibidem). A distinção entre corpo e alma é introduzida por meio da qualidade moralizante dada a Eros. Quando se transforma em força ética e moral é que se torna metafísico e ordenador. Quando é apenas princípio cosmogônico, apesar de ser também força estática e positiva, leva à união de opostos que atuam em alternância sem deixar de manter a força da discórdia, vigor tensitivo necessário à dinâmica e à abertura para o destrutivo, o dionisíaco. Em revisão da tradição literária e filosófica grega, Calame (CALAME, 1999:182) aponta a associação Afrodite-Eros Uranus x Pandemos desencadeada por Pausânias. Na Teogonia de Hesíodo, Eros é representado como um dos deuses primordiais, acompanhante de Afrodite, nascida posteriormente. Para Pausânias (Apud, CALAME, 1999:182), Afrodite ganha dupla genealogia posteriormente - uma genealogia associada a Eros: a de Afrodite Urania e a de Afrodite descendente de Zeus e que será depois associada à Afrodite Pandemos. Segundo Calame, Pausânias sugere 137 que, a partir da apropriação da dupla genealogia de Afrodite, Eros passava a ter duas designações distintas: a de Uranio e a de Pandemos. Trata-se de uma teoria moralizante, na avaliação do crítico, que se apropriou dos cultos atenienses a Afrodite para classificar Eros. Os cultos devotados à deusa a consideravam filha de Urano e, numa outra linhagem, descendente de Zeus, o que pela visão de Pausânias sugeria uma interpretação semântica de Cypris como tendo duas origens distintas: o amor celeste passa a ser atribuído à alma e o amor vulgar ao corpo. Afrodite Urania presidia as relações amorosas socialmente aceitas e ligadas à virtude e Afrodite Pandemos, nascida da união de um ser mortal com um ser imortal, presidia as relações ligadas à gratificação física. A dupla genealogia de Afrodite introduz, portanto, a metafísica de Eros e o seu caráter ético-moral-educativo ou, em outras palavras, a distinção entre amor físico ou terreno e amor espiritual ou celeste, distinção metafísica que não existia na poesia lírica arcaica. Cada Afrodite e cada Eros simbolizariam, assim, um dos mundos da teoria de Platão. O mais importante para esta tese, entretanto, é que todos os diálogos de O Banquete levam ao discurso em que Sócrates cita Diotima. Na conclusão de que o Amor é o guia criativo para a poesia e de que há uma equivalência entre os efeitos do amor e os efeitos da poesia (Agathon), introduz-se a fala de Diotima (CALAME, 1999:184). “A poesia é substituída pelo encantamento, pela adivinhação, pela iniciação. (...) A questão do Belo, do Bom e do Divino se torna a questão da Beleza” e do aprendizado da Beleza, este o problema filosófico apresentado pelo Eros platônico. A única mulher introduzida no diálogo é também estrangeira e prega “um retorno da dualidade e da pluralidade à unidade corporificada na beleza abstrata” (idem, 185). Eros, como guia na iniciação à Beleza, assume papel ético-moral. A função de Eros torna-se, portanto, pedagógica. Quando deixa de ser pedagógica, no sentido de iniciação do eromenos, torna-se moralizante porque vira iniciação na compreensão e apreensão da Beleza. “O amor é 138 Comentário: Voltar ao texto de Americo Pessanha, “As faces de Eros”. impulso ascensional do sentimento e da fala” (PESSANHA, 1987: 86) A questão da arte torna-se a questão do Logos. Calame aponta que, para a compreensão da obra platônica, é importante observar a profunda mudança realizada na passagem de O Banquete para Fedro, envolvendo os “procedimentos argumentativos” e as proposições acerca do Amor. Não mais voltado para a divindade do Amor, como em O Banquete, o foco no segundo diálogo concentrase na “função de enamoramento” (CALAME, 1999:186) proporcionada por Eros. A proposta é abandonar o aspecto pedagógico e moral de Eros e mergulhar na sua natureza divina. Em um primeiro momento do discurso, como mostra Calame, o tema se apresenta em torno do estado de enleio amoroso que se aproxima de um estado de loucura e toma conta do adivinho, introduzindo a arte do delírio. A loucura que se apossa do amante – a mania – por sua etimologia se aproxima da loucura que se apossa do adivinho – a mantike – arte da adivinhação. Arte da adivinhação (mantike) associa-se à arte do delírio (manike). Diotima é a sábia adivinha ao mesmo tempo possuída pelo delírio (nesse caso, amoroso) e pela adivinhação. É também apresentada como estrangeira introduzida por Sócrates, porque vem de fora, mediada pelo filósofo, mas é também a única que pode falar com propriedade porque viveu a loucura do amor. Aponto o dado de estrangeirização porque a concepção de Diotima como aquela que vem de outras terras, que está em travessia, introduz a característica do deslocamento, também encontrado nos efeitos da loucura, uma vez que implica um indivíduo em constante mover-se. A loucura amorosa provoca deslocamentos necessários para o processo de metamorfose do homem. “Em essência, apenas as mulheres podem lidar com a possessão divina. (...) A mania – loucura – inspirada pelos deuses e que dá acesso ao domínio dos deuses é superior ao tipo de sabedoria que depende do homem” 139 (CALAME, 1999:187). A loucura é de domínio superior porque dá acesso ao reino dos deuses. O trânsito necessário para o homem assumir sua natureza mutável e mutante. Nesse ponto, a natureza de Eros se cruza com a dimensão dionisíaca do pandemônio. E o pandemônio, segundo Otto, é o estado de êxtase religioso próximo à loucura; o rugido selvagem seguido do silêncio, som e intervalo, duplo movimento que revela apenas duas diferentes formas do Inominável, que despedaça o ser em violência calada. O domínio do homem é o reino do conhecimento, o domínio dos deuses é o reino da loucura, ao mesmo tempo transfiguração, adivinhação, encantamento. Tudo aponta que “a natureza da loucura erótica é divina” (CALAME, 1999:187). Mas a dimensão divina de Eros continua sendo moralizante no diálogo porque ainda assim a possessão divina age sobre o homem de forma que, tomado pela memória da verdade, ele “caminhe em direção à realidade” (idem, 188) e abandone o violento êxtase do pandemônio. Nessa busca platônica, a loucura amorosa é a porta para a visão da Beleza, uma vez que, em contato com os deuses, o homem pode vislumbrar o Belo e a reminiscência da verdade, participando dessa maneira da realidade transcendente (ibidem). É assim que o amor dá acesso à filosofia, segundo Calame. O Eros metafísico de Platão é, até o fim, pedagógico porque é um Eros intelectual, com objetivo e valores morais e sociais, sobrepondo a aspiração espiritual ao desejo físico (idem, 187/188), um Eros que abandona a humanidade e se torna divino. Um Eros que faz Ulisses, “o sábio Ulisses”, em Uma aprendizagem..., representante da civilização do Ocidente, do conhecimento racional, “perder a tranqüilidade ao encontrar pela primeira vez na vida o amor” (LISPECTOR, 1991:176). Após reconhecer que é preciso “não esquecer e respeitar a violência que temos” (idem, 115), no centro do selvagem coração da vida, Ulisses “perdera o tom de professor e sua voz agora era a de um homem apenas” (idem, 176). Ulisses se humaniza. 140 Comentário: Aqui pode entrar a análise deste Eros intelectual em Clarice, já que citei Diotima. Portanto, o aspecto iniciático de Eros ultrapassa o código platônico, que é metafísico e moral: ele passa da dualidade à unidade e depois novamente à multiplicidade, em processo de geração e diferenciação, distinto do que é proposto por Platão, que permanece na unidade, isto é, da pluralidade de corpos terrestres redescobrese a unidade na contemplação do que está além. Segundo a sugestão de Calame, este outro código de Eros será chamado de “místico” e seguirá a tradição dos Mistérios de Elêusis e do pensamento órfico, por meio das cosmogonias e teogonias que se desenvolvem a partir desta tradição, e que entendem a natureza de Eros como sendo dual, bissexual. Este ser que nasce do ovo colocado por Cronos é associado a Phanes, ou Pan, símbolo da criação de todas as coisas, organizador do cosmos e que é também Eros. “Esta bissexualidade é reminiscência da natureza paradoxal dos aspectos contrários creditados a Eros pela poesia arcaica” (CALAME, 1999:195). Eros condutor da relação amorosa em Uma aprendizagem... não tem “modos nem formas” (LISPECTOR, 1991:174) porque é “luz de ouro” (idem, 175) e beleza “funda e escura” (idem, 174), “alegria” e “angústia” (idem, 166), “amparo” e “desamparo” (idem, 164), pobreza e plenitude, o absoluto da morte e o abismo do prazer (idem, 141), o “óbvio” e o “extraordinário” (idem, 106). De acordo com os mistérios órficos (CALAME, 1999:195-197), a genealogia cosmo-teogônica remete ao início de tudo como vindo de um estado de indiferenciação (identificado à Noite e Urano), a partir do qual será criada a diferenciação que distinguirá todos os seres e coisas, mediado por Sol e Cronos. Zeus intervém, e, em gesto antropofágico engole o pênis de Sol – a deglutição aparecerá como modo de participação de um ser no outro – e a partir de então todas as coisas são forçadas a nascer em explosão. Para Calame, esse ato de Zeus é essencial para a compreensão do sistema místico porque aponta para uma dinâmica que parte de um estado primeiro de 141 Comentário: Isso é muito Calame. indiferenciação, seguido de uma diferenciação e da intervenção da sexualidade por meio de Eros, atingindo, por fim, o retorno ao estado de unidade por meio da interferência de Zeus. Zeus deixa de ser o rei que originará a diferenciação porque está sob a influência de Eros quando o engole. Mas este Zeus, apesar de restaurar todos os seres ao seu estado original de unidade, é concebido como um ser dual, que concentra em si a terra e o céu, princípio masculino e feminino, sendo por isso associado a Eros multifacetado. Só a possibilidade de retorno à unidade por meio de um ser que contivesse em si uma constituição dual poderia gerar os outros seres. Eros é visto como um “mediador entre a indiferenciação – de onde veio – e a diferenciação – para onde conduzirá as gerações Comentário: Mediador entre GH e Lori futuras” (CALAME, 1999:197). Eros deixa de ser apenas uma força iniciática das relações sociais e morais, dos papéis sexuais e passa a constituir uma ‘energia’, uma força de indiferenciação perseguida pelos místicos, em busca da unidade perdida. Ele passa a conter em si todos os contrário, tudo que existe. Nesse sentindo, as narrativas de Comentário: Aqui tem uma quebra. Está solto. Clarice Lispector põem em circulação a recuperação de uma identidade perdida a partir da reorganização do desejo pela participação do corpo na constituição do ser, por meio da força mística de Eros cosmogônico, dociamargo, dionisíaco; que desloca, desorganiza e movimenta. Note-se que em A paixão..., o ponto de partida é o desamparo da separação amorosa que leva o sujeito a um processo de autognose, enquanto que em Uma aprendizagem..., primeira obra publicada após o romance de 1964, depois de um intervalo de cinco anos sem publicações, a trajetória é inversa. No entanto, nas cosmogonias gregas, Eros e Afrodite assumem o papel de forjadores de relações sociais porque, através do casamento e da educação, os laços sociais são criados, o que constitui um viés construtivo e produtivo (e não destrutivo) da força erótica. Calame aponta como Eros deificado passou de uma função teogônica para outra filosófica muito por conseqüência do seu papel institucional, em práticas 142 Comentário: Nas cosmogonias é construtivo, na lirica arcaica é dual, exceçao de Safo para quem é Eros/Afrodite trazem o aspecto diligente, aproxima do corpo e é ambiguo. Nas tragedias gregas, aspecto destrutivo, Platao construtivo moral, para os latino Eros é duplo – Venus Pandemos e Celeste, intitui-se a metafisica e a literatura ocidental fica presa e atada à dualidade metafica. CL alterna. educacionais de iniciação e ritos de passagem para a maturidade e “na manutenção de uma malha social dentro da comunidade cívica”, ordenadora das coisas e dos valores (CALAME, 1999:177-178). Observa-se que, em Uma aprendizagem..., a força de Eros se torna uma ameaça à malha social constituída dentro da sociedade judaico-cristã uma vez que põe em circulação o novo. O reconhecimento de que o “sábio” Ulisses, representante-fundador da cultura racional do ocidente, “perdera a sua tranqüilidade ao encontrar pela primeira vez na vida o amor” (CLARICE, 1991a: 176), e é abalado em seu cerne pela força erótica, faz ecoar esta tradição e a ruptura dos laços sociais por ela delineados. Ulisses perde sua carga mítica e torna-se apenas um homem em Uma aprendizagem..., abandona o desejo de retorno para a casa e se lança imberbe à praia desconhecida. Porque Eros concede humildade à razão ou, em outras palavras, humaniza o inteligível. E porque Eros é filho de Penia (a Pobreza), neste ponto, encontra-se uma porta para que a linguagem esclareça a que veio. Em afirmação metatextual Ulisses – o Logos – aponta seu desempenho: “Escreverei sem estilo (...). Escrever sem estilo é o máximo que, quem escreve, chega a desejar”. O Logos, tocado por Eros, perde sua majestade e se torna humilde. Anônimo. Interessa observar como em Uma aprendizagem... a força erótica se torna uma ameaça a este condicionamento social ao instituir uma nova forma, não só de existência, mas de linguagem. A experiência erótica leva ao questionamento de toda a malha social construída durante séculos e culturas até a pergunta sobre o valor social não só do homem ou da mulher, mas do próprio sentido de Eros. É como se Lispector desse voz ao próprio demiurgo quando, da boca de Lori, soa a pergunta: “Você acha que eu ofendo a minha estrutura social com a minha enorme liberdade?” (LISPECTOR, 1991a: 179). Uma vez mais, Eros é o aspecto do mundo por meio do qual o divino se manifesta. Se na vertente judaico-cristã Eros se assume a partir da oposição entre Pandemos e Urano, na vertente 143 cosmobiológica, os dois aspectos fazem parte da mesma cosmovisão, como forças complementares. Assim como Dioniso se assume furioso, selvagem e intempestivo quando rejeitado por Penteu em As Bacantes, Afrodite acaba hiper-enfatizando a força total do sensível quando desprezada em Hipólito, gerando violência. Assim é que a liberdade de Eros é ameaçadora porque evoca a sacralização da vida a partir do corpóreo em união com o espiritual no indivíduo. “O sexo e o amor não te são proibidos”. Eros Pandemos e Eros Celeste, quando unidos, provocam o “desencadeamento de muitas outras liberdades” (LISPECTOR, 1991a: 179), o que se torna um risco para a sociedade. Parece-me que Clarice vem expor um problema cultural que escandaliza e choca a tradição judaico-cristã do dualismo psicofísico da qual todos fazemos parte. Um problema que esbarra na compreensão da existência de um descompasso próprio do indivíduo, herança para sempre irreparável e irreversível, que se apresenta como um desacerto filosófico-religioso recorrente nos tempos modernos. Este desajuste se apresenta na coexistência de duas formas de estar no mundo, de se relacionar e de pensar a existência humana. Uma forma que pressupõe a compreensão da direta conexão entre a divindade e o homem e outra que dessacraliza essa relação e introjeta no mito do viajante solitário a cultura do sacrifício, própria da sociedade patriarcal, no momento da formação de toda a tradição do pensamento ocidental herdada e reatualizada até os dias de hoje. No entanto, na década de sessenta, com a publicação do romance A paixão... e do livro de contos A legião estrangeira, em 1964 e, mais tarde, em 1969, com o romance Uma aprendizagem..., a autora inicia um novo processo de elaboração textual que culminará no romance-poema Água viva, na obra metaliterária Um sopro de vida, nos contos-iluminação de Onde estivestes de noite e A via crucis do corpo. As 144 Comentário: Talvez saber mais sobre esse desconcerto camoninano. alterações são de ordem microtextual, envolvendo, por exemplo, a invenção de vocábulos que expressem idéias próprias, como é o caso da referência ao “neutro”, também chamado de it em Água viva, a quase obsessão da repetição de palavras, sintagmas, frases, e de ordem macrotextual, como na estrutura de A paixão... em que cada capítulo fecha com uma sentença que se repete abrindo cada novo capítulo e servindo como mote ou glosa para o desenvolvimento do romance como um todo; ou na elaboração de Água viva, que rompe com todas as estruturas fechadas e sistematizadas da língua. Tais repetições, que enfatizam a preocupação com a forma do narrar, tomam grande proporção a partir do romance de 1964 e se desenvolvem em procedimento de colagem de textos que se justapõem e superpõem uns aos outros qual quadros imagéticos reescritos e reaproveitados a cada nova aparição. É o caso dos contos que aparecem em A legião estrangeira e Felicidade clandestina e das crônicas que Clarice passa a publicar no Jornal do Brasil. Em princípio, a autora apenas repete narrativas, alterando os títulos, como é o caso dos contos “A evolução de uma miopia” e “Viagem a Petrópolis”, entre tantos outros que aparecem novamente em Felicidade clandestina com os títulos “Miopia progressiva” e “O grande passeio”, consecutivamente; os contos “Tentação” e “Os desastres de Sofia”, recolhidos em A descoberta do mundo com os títulos “O intransponível” e “Travessuras de uma menina”. E, finalmente, o conto “As águas do mundo” (Felicidade clandestina - 1971) que se repete em Onde estivestes de noite (1974) sob o título “As águas do mar” e aparece como crônica, em1968, sob o título “Ritual”. Esta mesma passagem será desenvolvida como capítulo central no romance de 1969, com consideráveis alterações. Antes de entrar na avaliação destas mudanças, cabe apontar ainda que em A legião estrangeira aparecem criações como “O ovo e a galinha” que, como aponta o ensaio poético de Roberto Corrêa dos Santos, permite-se ler em forma vertical, já que se trata de poesia em estado bruto. Da mesma 145 forma Vilma Arêas interpreta a matéria poética no conto “A mensagem”, também de A legião estrangeira. As alterações realizadas na passagem da crônica para o romance são de três tipos, classificadas por ordem de importância estrutural, sendo que as primeiras interferem em escala mais superficial, sofrendo apenas adaptações de ordem verbal, uma vez que no romance fazem parte de estrutura mais ampla e interligada por capítulos que o precedem e sucedem. Como exemplo, note-se a frase de abertura do texto que, em A descoberta do mundo, apresenta-se como: “Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres humanos.” (LISPECTOR, 1994: 120) Em Uma aprendizagem..., alterações quase imperceptíveis são realizadas e, considerando a obra clariciana, diríamos que mudanças mínimas como a preferência por determinados pronomes e até por artigos definidos ou indefinidos em detrimento de outros são fundamentais para a construção de uma palavra que se inscreve magia, pela alteração de conceitos e expressões e pela interferência na mínima parte da língua. Assim é que da crônica para o romance, o excerto inicia-se da seguinte forma: “Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos.” (LISPECTOR, 1991a: 91) Pensando no conjunto de frases, nota-se que sua cadência foi alterada, passando de um ritmo quebrado e desagregado para um fluir mais compacto, coeso, como que a dar notícias do ritmo das águas do mar. Não fosse a importância que a musicalidade e a imagem passam a ter nas obras da década de setenta, poderíamos pensar que tais alterações não passariam de simples ajustes. Mas, como demonstrarei mais adiante, a associação da escrita com a pintura terá papel fundamental e fundacional nesta obra. 146 Se reduzíssemos o foco, saindo do amplo para o restrito, repetindo o gesto de escritura clariciana, e privilegiássemos não mais o conjunto das frases, mas seus componentes mínimos, como os dois dêiticos que introduzem o posicionamento da mulher diante do mar – aqui e ali – poderíamos apontar na mínima parte um dos processos que atingem a macroestrutura do texto: o da visualidade. Note-se que a escolha de aqui na primeira frase, para definir o posicionamento da mulher, objeto da narração, associa-se ao narrador deste fragmento de forma a interferir na situação de enunciação. A autora trabalha com a dimensão dêitica dos dois advérbios de forma que possa chamar atenção para a relação que se institui entre a expressão lingüística e o elemento externo ao enunciado, que é a noção de tempo e espaço. O dêitico, enquanto sinal que tem função de designar e apontar, mostra a presença do emissor no enunciado, como se no texto da crônica o sujeito estivesse envolvido na cena, perto da mulher, integrando-se na escrita como dado de constituição da experiência, o que corrobora o tom mais informal e direto da crônica. No romance, o dêitico utilizado aponta para um afastamento do sujeito enunciador, que agora deixa de estar envolvido na cena para tornar-se seu pintor. Lispector, ao alterar ambos os advérbios, interfere na construção do tempo e do espaço narrativos uma vez que identifica o momento da enunciação. O advérbio aqui ganha conotação de tempo também e aponta para o momento presente, do instante da fala, acrescentando valor ao posicionamento do narrador, além de se referir ao espaço desta fala. Assim, o uso destes dêiticos como complementos circunstanciais define a orientação e o gesto do sujeito enunciador se associado ao tempo verbal utilizado na mesma frase: o presente indicando tempo, para a crônica, e o pretérito imperfeito para o quadro imagético, apontando mais para um estado da cena do que para um tempo. Esses dados se tornam relevantes uma vez que a intenção em Uma aprendizagem... é trabalhar no limite da imagem. 147 Mas uma imagem que se quer dinâmica e, portanto, por culpa desse desígnio, o verbo manter-se, de valor estático, é substituído pelo verbo tornar-se, além da contribuição do adjetivo delimitado no seguinte excerto: Seu corpo se consola de sua própria exigüidade em relação à vastidão do mar porque é a exigüidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areia. (LISPECTOR, 1991a: 91-92) Seu corpo se consola com sua própria exigüidade em relação à vastidão do mar porque é a exigüidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exigüidade que o torna pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areia. (LISPECTOR, 1994: 120) Aponto esta modificação porque ela é realizada justamente na passagem mais significativa de todo o romance. A importância recai sobre o fato do narrador elaborar neste capítulo o tema e arte poética da obra. Um pouco antes, Lóri afirma, em discurso direto livre, que sua busca consiste em conjugar a “impersonalidade soberba do mundo” (LISPECTOR, 1991a: 85) à sua “individualidade de pessoa” (idem) de forma que uma nova condição de existência pudesse surgir. Na cena diante do mar, o que se apresentou como conteúdo da expressão agora surge como modificação na forma. O corpo exíguo e delimitado é fragmento, fração, delimitação, obstáculo, se o tomarmos enquanto corpo que reencena a separação metafísica, da alteridade, do mar ou do mundo, representados pela infinitude, pela extensão, pela vastidão. O confronto do homem moderno e de sua identidade passa sempre pelo elemento da alteridade. Fato é que tal segmentação atinge a linguagem, recorta o olhar que tenta buscar seu foco, alternando entre amplidão e restrição. E o ritual que dá título à crônica congrega distintas camadas de sentido. A primeira delas é a do ritual de fecundidade por meio do nascimento de Eros. A segunda 148 a do nascimento do novo homem ou do super-homem (ou da supermulher, como aponta Ulisses no romance), a terceira é a da erotização da linguagem que entra em epifania. Essas três dimensões tomam a forma imagética de um quadro que evoca o mito de Afrodite Anadiômena, tema pintado por diversos artistas, entre eles Botticcelli. Nota-se que as repetições realizadas pela autora apontam quase sempre para quadros imagéticos que reiteram sentimentos ou idéias centrais na obra. A justaposição destas cenas (como nas páginas 37-39) é responsável, nesse processo, pela construção de um texto que pode ser lido como se fosse um quadro, com imagens centrais em torno das quais se desenvolve a narrativa. E a colagem de imagens permite a expansão de temas e a mudança de ritmos internos ao texto. Vista como expressão instantânea de um sentimento, a lírica, ao justapor detalhes e imagens elaboradas pelo poeta, pode propiciar a leitura de um texto literário como fosse um quadro. Nesse sentindo, a autora encara o poema ou texto narrativo como um todo que se desloca de imagem a imagem, seguindo sua própria progressão e atuando por meio da variação e expansão de temas, da mudança de ritmos e da elaboração de imagens, de maneira a alcançar um clímax onde se realiza a visão do poeta. Com esse recurso, pode-se facilmente simular o tempo e a ação das narrativas tradicionais, utilizando ambas as categorias como objetos de deformação, de modo a proporcionar uma modulação de imagens 12 . Na obra de Lispector, esta progressão existe ao passo que a narrativa é construída, eliminando gradativamente a relação temporal de causa e efeito – recurso que é espinha dorsal dos romances tradicionais e que vê sua hegemonia reduzida com o advento do romance moderno do século vinte. A seqüência de ações passa a ser cada vez mais simbólica e menos presente, o que resulta no aumento de um ambiente textual de extrema 12 A avaliação de lírica e romance tomada nessa dissertação segue as idéias de Ralph Freedman dedicadas ao estudo do romance lírico. Como observado pelo autor, o recurso de modulação de imagens é chamado por Wolfgang Kayser de “processo lírico”. 149 Comentário: Isto está igual à pagina 111. ambigüidade. Assim, interfere-se na ordem da casualidade, regente da narrativa tradicional, e institui-se a ordem da casualidade. A progressão no tempo dentro da narrativa lírica é entendida por Freedman como barreira que limita e dificulta a progressão lírica desviando a atenção do leitor. Entretanto, o que se apresenta como um possível impedimento do processo se revela como veículo de exploração da expectativa criada pela narrativa transformada em seu oposto: o próprio processo lírico. O leitor supõe que a progressão narrativa é determinada pela progressão temporal, o que é um erro, pois se existe progressão no tempo da narrativa lírica esta só se apresenta como construção de complexos esquemas de imagens sobrepostas ou justapostas que, subitamente, levam a um movimento de isolamento da progressão, pois não há desfecho e tampouco conclusão: a narrativa se torna uma irrupção em direção ao que não existe. A progressão da narrativa é na narrativa lírica a seqüência de imagens, que se torna simbólica e representa, ao fim, a busca do personagem. Para o autor, a consecutividade é simulada pela linguagem lírica e sua irrupção até uma intensidade maior só enfatiza os acontecimentos já existentes, gerando seqüência de repetições e intensificações de temas recorrentes: as ações se convertem em cenas. É a narradora de A paixão... que explicita, em 1964, a chave de leitura para decodificação da escrita hieroglífica que se inscreve como desenho na parede na obra de 1964 e como breves iluminuras que percorrem a narrativa de Uma aprendizagem.... Esta estratégia consiste em encarar o texto como uma “meditação visual” (LISPECTOR, 1979:108), que associa o que a meditação tem de mais perigoso: a fixidez do pensar e do inteligibilizar ao que possui de menos perigoso: a visualização de imagens sem o auxílio das palavras e do pensamento: “o menos perigoso é, na meditação, “ver”, o que prescinde de palavras de pensamento” (LISPECTOR, 1979: 150 108). Mas a imagem também pode atuar como uma narrativa na construção do conhecimento de si, do mundo e do real. A descrição do quarto de Janair, em A paixão..., revela sua arte poética. “Em alguns trechos o risco se tornava duplo como se um traço fosse o tremor do outro.” (LISPECTOR, 1979: 35). O risco, que pode ser traço de desenho ou desenho da letra, abre-se em dois, como se das imagens moldadas pudéssemos ler o oculto que a palavra poética revela: “O desenho não era um ornamento: era uma escrita.”: a imagem revela a escrita – o proscrito. A imaginação criadora assume o privilegiado papel de articulador central no texto, possibilitando a objetivação de diferentes realidades do sujeito e concedendo função literária à imagem como linguagem complementar no tratamento da matéria pura e inacessível da poesia. Em Uma aprendizagem..., observa-se à página 37 o desenvolvimento da confluência–conversão entre palavra e imagem a partir de alterações que apontam para a eliminação de marcas gramaticais de concretização e precisão do discurso, o que leva a uma maior abstração do cenário e da cena, que é também ritual de erotização e iniciação do corpo e da palavra na zona da imagem. Da página 37 a 39, desenvolvem-se capítulos que são quase iluminuras, antecipando a cena central do banho de mar de Lori. Pela imagem, a narradora introduz o tema sobre o qual falará, no qual se converterá todo o percurso da personagem e da linguagem: a “super-realidade do que é verdadeiramente real” conduzida pelo “prazer pré-sexual” do universo mediado pelas “terras desconhecidas de Vênus” (LISPECTOR, 1991a: 37). A função iluminativa do quadro se intercala no capítulo seguinte, composto de apenas uma única palavra – “Luminescência” (idem, 38) – auto-explicativa, que atua como uma espécie de legenda, inscrição da cena que narrará o nascimento da deusa, ato genesíaco e cosmogônico realizado pela obra. O cenário de nascimento será convertido também em cenário de morte, explicitado pela iluminação seguinte, à página 38, em que outra imagem se 151 instala: a da queda, associada à experiência de verticalidade vivida por G.H. na travessia do humano ao inumano (que é divino) na obra de 1964. Seguindo as pistas de Bachelard e, antes, de Nietzsche (a referência é extremamente relevante uma vez que a própria Clarice evoca o super-homem em Uma Aprendizagem...), não é possível separar o impulso para o alto da queda para baixo. A capacidade de ver a super-realidade do verdadeiro real só será realizada pelo super-homem (ou, como afirma Ulisses, pela supermulher) que se só se ergue em direção ao alto e à claridade ao passo que antes se realiza como árvore, pendendo para a terra e suas profundezas. A profecia de G.H. – só voa alto o que tem peso – é a mesma de Lóri – quereria, mesmo com medo, subir cada vez mais alto ou descer cada vez mais baixo. Esta imagem vem anunciar que “em pleno dia se morre” (p. 39) e que o nascimento da Vênus é também prefiguração da morte da montagem humana, em nome do surgimento do humano dentro do humano. A premissa que finaliza a iluminura da página 38 – “A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano” – se repete na cena do banho de mar, à pagina 87, e se afirma como a aprendizagem a que o título do romance faz referência, aprendizado conduzido pela via de Eros, mas que, antes, parte da proposição da solidão, em A paixão..., uma vez que esta estrutura desmorona no romance de 1964 e pela via da autognose. Um dos temas privilegiados por este sujeito transfinito é o do contraste entre a finitude do homem e a infinitude cósmica, veiculado por meio de um movimento constante de alternância entre a amplitude e a restrição de um olhar que se volta ora para a realidade externa, ora para o universo interno e revela o comportamento do sujeito na sua relação com o mundo. No texto de 1969, este tema toma a forma do contraste entre o que a narradora chama de impersonalidade soberba do mundo (a mesma do mar e que 152 Comentário: O sujeito está em extase com relaçao ao mundo todo figura como a infinitude do universo) e a extrema individualidade da pessoa, que marca a matéria e a finitude humana. Elaborando proposições em torno deste tema durante todo o texto, a narradora deseja apontar que aquilo que na verdade atua em pólos opostos de contraste deve, no entanto, unir seus extremos e atuar como um casamento entre partes complementares em beneficio da descoberta da essência e da possibilidade de liberdade. Nesse sentido, narrará a história de uma aprendizagem amorosa cujos subtítulos são “A origem da primavera” ou “A morte necessária em pleno dia”. Assim é que os subtítulos do romance esclarecem as duas imagens articuladoras da obra e referidas mais acima: a do nascimento de Vênus e a da catábase vivida por Lori e conduzida por Ulisses, universos que põem em circulação o diálogo entre mito e filosofia, entre duas culturas e pensamentos originários que compuseram, ao longo dos séculos e da história do pensamento ocidental, duas formas distintas de consciência e constituição da vida e da sociedade. Carlos Mendes de Sousa confirma a importância da relação entre palavra e imagem e aponta de que modo a referência ao mito coloca em contato o universo divino e o humano. Num enquadramento próximo dos cenários pré-rafaelitas, a apresentação da figura de Lori apóia-se em esquemas míticos, mais ou menos subliminarmente pressupostos em todo o texto. Essa configuração mítica conduz-nos até o domínio da atemporalidade – quando recorrentemente se vem falando de “mulher antiga” (na fala de Ulisses) ou em “rainha egípcia”, “mulher bíblica”, formulações amplificadoras – até à esfera da eternização próxima do divino. Tratar-se-á de uma forma de procurar resolver a tensão entre o tempo humano, que é finito, e a aspiração a um tempo divino que é infinito (SOUSA, 2000: 200). 153 Nestes dois subtítulos Lispector já assinala os domínios de Afrodite e o diálogo que manterá com a tradição literária ocidental, incluindo a sugestão a uma filiação que remete aos poetas arcaicos já mencionados. “A origem da primavera” refere-se não só ao mito de Afrodite, uma vez que a Deusa está intimamente ligada às flores, sendo chamada de deusa floral e mostrando afinidades com a vegetação, mas ao nascimento da própria personagem. Pela origem narrada por Hesíodo, o nome da deusa ganha duas outras marcas que lhe designam: o sexo e a forte relação que a deusa mantém com o mar. Um dos epítetos que aparecem na literatura grega anterior e posterior a Safo é poikilothron – de flóreo manto furta-cor – invenção exclusiva de Safo, segundo Giuliana Ragusa (2005), sem antecedentes na literatura pré ou pós-sáfica, mas que faz ecoar outros epítetos encontrados na épica homérica, principalmente pela noção de furta-cor, do brilho e das cores. Nos versos 437-41 da Ilíada, canto XXII, Andrômaca tece para Heitor um manto purpúreo com flores furta-cor, além do cinto da deusa descrito nos versos 215-16 do canto XIV da Ilíada também guardar a dimensão do furtacor e a referência aos encantos da sedução. Portanto, a esfera de Afrodite é a do encantamento amoroso, seja na forma de adornos ricamente elaborados ou do manto furta-cor. O argumento de Ragusa para a memória da deusa na literatura grega arcaica é poético e não histórico e, portanto, concentra-se no estudo de metáforas e descrições que possam destacar a deusa na literatura. A importância destes dados para a narrativa de Uma Aprendizagem.... reside na aproximação da personagem Lori à linhagem de personagens do universo feminino como Penélope e Andrômaca, por exemplo, que à espera de seus pares amorosos fiam os mantos representativos dos domínios da Deusa, tal qual Lori. Da mesma forma, Lori, cujo par amoroso é Ulisses – e a referência explícita ao personagem homérico convoca 154 o diálogo com a tradição estabelecida após Homero - “faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações” (LISPECTOR, 1991a: 20), imediatamente remetendo ao elemento áureo que qualifica a Deusa, e ao ato de fiar, que remete às personagens homéricas. Além disso, Lóri fia: “há uma semana que ela bordava uma toalha de mesa, e com as mãos ocupadas e destras conseguia passar os longos dias das férias escolares. Bordava, bordava” (LISPECTOR, 1991a: 73). Outro epíteto utilizado por Safo para descrever Afrodite é o termo dolóploke que significa “a tecelã de ardis”, referência que na lírica aparecerá três vezes na poesia de Safo. Este epíteto sugere o uso da sedução amorosa por meio do engano e do ardil como desígnios do reino de Afrodite. Dolo: artimanha, e ploke: arte de tecer e tramar fios. O disfarce como estratégia de sedução será transposto para o domínio da linguagem na escrita de Lispector, entendida como espaço de sedução e coerção (RAGUSA, 2005:163). Por sua vez, o capítulo que inicia à pagina 87, anterior à cena do banho de mar, evoca o cenário de Afrodite/Vênus e a técnica da escrita clariciana que comporta a extensão e restrição do olhar, para introduzir a dialética entre a amplidão cósmica e a solidão humana. Esta estratégia persuasiva resolve a divisão metafísica no homem por meio da mundividência complementar do todo. Segue-se dessa construção temática uma composição imagética elaborada pela cena central do banho de mar protagonizado pela personagem em aprendizado – Lori que se mostrará como a reencenação do mito cosmogônico do nascimento de Afrodite. A recuperação desse mito cosmogônico pelo texto clariciano tem a função de atuar como elemento de reconfiguração de uma subjetividade fragmentada de modo a reinventar a identidade do sujeito enquanto indivíduo e cultura. O sujeito reconstruído se torna ameaça à estrutura burguesa entendida como sistema fechado e opressor que define os valores e significações, desejos e sentimentos 155 que descaracterizam as diferenças mantenedoras das identidades. Assim, Lispector recupera a memória de uma tradição cultural pela recusa do individualizante em nome da instauração de um passado comum e originário ao homem. A autora funde a sensação de amplitude cósmica, que impõe o ilimitado, o infinito e o Uno, ao olhar restritivo da solidão humana, que intensifica a condição de mortalidade do homem diante do Todo. Com isso, o Novo Homem, de cuja linhagem Lori é representante, dá forma a um sujeito herdeiro de uma tradição mais antiga que confere a mesma legitimidade tanto ao racional – representado por Ulisses – e à tradição científicofilosófica, quanto ao sensível – representado por Lori – e à tradição mitopoética, que privilegia o corpo, o sensório, o sensível, a terra. Note-se a cena cosmogônica reencenada por Lori: “Aí estava o mar (...). E ali estava a mulher (...). Ela e o mar.” (p. 91) “O cão livre hesitava na praia, o cão negro”. (idem) “Vai entrando”. (p. 92) “Avançando, ela abre as águas do mundo pelo meio”. (p. 93) “Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem”. (idem) “Agora sabe o que quer: quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois”. (idem) “Depois caminha dentro da água de volta à praia, e as ondas empurram-na suavemente ajudando-a a sair”. (p. 94) (LISPECTOR, 1991a). Por meio de linguagem sintomaticamente plástica, pode-se notar que o espaço eleito pela autora remete ao topos clássico da natureza ordenada, marcado pela presença do mar, dos animais, da água, espaço esse sacralizado e que atua como veículo para a percepção do mundo pelos sentidos. O cenário é ao mesmo tempo natural, sinestésico e 156 sagrado, marcado pela força erótica que atua nos domínios da deusa. A cena de banho concede caráter ritualístico e iniciático à personagem e atua simultaneamente como batismo do novo ser e da nova identidade, e ainda como ritual pré-nupcial de fertilização, evocando a toilette de Afrodite antes do matrimônio com seus pares amorosos. Este ritual entroniza não só o casamento entre Lori e Ulisses, mas, ainda a união da tradição mitopoética com a filosófica, da poesia com o pensamento científicoracional. Pessanha aponta que a obra de Lispector mobiliza uma visão de mundo que reproduz “o itinerário do despertar da consciência filosófica dentro do mundo da cultura: a partir da mentalidade “primitiva”, “mitopoiética””, confirmando o casamento dos dois discursos na obra lispectoriana. (PESSANHA, 1989: 183) As representações poética e iconográfica de Eros e Afrodite, ao longo da tradição ocidental, permitem que se conheçam não só as suas práticas, mas seu valor histórico e social uma vez que os produtos simbólicos de toda a cultura ocidental gerarão as suas realidades sociais, valores e instituições. Assim, as representações sociais, poéticas, imaginárias, iconográficas e religiosas de Eros permitiram que ele se constituísse como um agente ético e mítico, operando na imaginação poética e no discurso como agente iniciático. Sua manifestação na escrita de Lispector aparece como a de Eros dociamargo, função corrente na poesia de Safo, Anacreonte, Píndaro, por exemplo, percebido pelos sentidos e que surge com sua força inexorável de doçura e prazer, mas principalmente de loucura e violência. A esse reino do duplo, do contraste e do contraditório pertence Afrodite. Após cumprir a coragem de abdicar da terrível máscara ficcionalizante do sujeito, no coração do desamparo, Lóri marcha ao encontro desse Outro que é memória e cultura, em busca de uma identidade própria, de um nome. A memória da ancestralidade leva à revisitação de mitos e figuras da tradição literária ocidental: a 157 esfinge, Ulisses, Penélope, as sereias. A revisitação, no entanto, tem um objetivo: inverter os mitos da tradição, criando o seu próprio. Nomeadamente e não por acaso, Clarice menciona que o “nome” de sua personagem origina-se de um lendário personagem do folclore alemão imortalizado por Heinrich Heine e, depois, celebrado em inúmeras composições musicais e referências artísticas. Trata-se do poema “Loreley” ou “Die Lorelei”, que evoca o mito das sereias, seres que seduzem os pescadores com sua formosura e seu canto, levando-os à morte. Se, na tradição, a Musa eternizada pela imagem da sereia tem caráter destrutivo e, ao mesmo tempo, encantatório, no mito clariciano é a sereia – símbolo da imortalidade e da harmonia celeste – que morre pelo cântico do mar e dos pescadores somente para renascer como Poesia e com nova identidade. Como afirma Lucia Helena, “Lori é idêntica a si própria”, ainda que tenha que traçar sua própria via-crucis de auto-descoberta. Por isso, a narrativa conduz a um “repúdio da diferença nome/pessoa, personagem/figura real, Lori/eu. Lori e Loreley não são uma e outra. São, ambas e unas, o Mesmo” (LUCIA HELENA, 1975: 103). Lóri deve ser abandonada para ressurgir Loreley. O nome introduz a identidade. Assim é que a memória cultural retorna em função do ressurgimento do novo homem, senhor de seu próprio destino, como forma de alteração do presente. O mito da sereia refaz-se como anúncio do encontro do divino dentro do humano; transcendência na imanência. Depois da investigação da alma humana, a autora deixa explícita a sua arte poética ou, em outras palavras, por que razão o texto (criatura) – palavra, nomeação - foi trazido ao mundo pelas mãos do escritor (criador). A palavra poética possibilita o exercício da alma e a investigação do pensar-sentir transportado pelo texto, que deve ser também música porque é arrebatamento. Somos deuses em potencial, mas somos homens antes de tudo. Em direção ao humano divinizado encontra-se o super-homem 158 ou, como aponta Ulisses, a supermulher. Mas a condição a que se deseja chegar só pode ser alcançada a partir da não separação corpo-alma e da aceitação do mal, do erro, do temporário como necessários à realização do ser. Só quando o humano atingisse os limites divinos, qual Zaratustra, é que poderia encontrar o novo homem. A abertura a outras liberdades que ameaçam, por exemplo, a estrutura da burguesia, os valores e morais ético-religiosas que vitimizam tanto Macabéa, quanto as personagens de A via crucis do corpo, bem como as empregadas, taxistas, e mesmo o escritor, que se submete à pressão do mercado e das editoras, à literatura de massa, ao consumo/produção acelerados de coisas e sentimentos. O fato das denúncias saírem da boca de personagens burgueses como Lóri, Ulisses, Joana, G.H., entre outros que ironizam sua própria condição, ou de oprimidos e vítimas de violência social, não diminui a potência da denúncia. Aproximar o estatuto do escritor do personagem criado por ele – e para fazer a mimese da realidade deve-se vestir por vezes a roupa de capataz ou de vítima - leva ao questionamento da própria ficção: é ela de fato pura invenção ou se torna o real? O escritor se torna vítima do seu personagem, da fúria de sua narrativa, do fragor de sua compulsão. Em Uma aprendizagem... ou em A paixão..., as personagens ironizam a classe burguesa à qual pertencem, buscando o abandono das máscaras sociais de forma a caminhar em direção à alteridade, ou ao outro de si mesmo. Quem tem fome vive o amor, ou só os privilegiados? Abandonar a estrutura humanizante não é tarefa agradável e, muitas vezes, requer ir ao encontro do subterrâneo de si mesmo, das maldades e sadismos, angústias e assassinatos diários. Dos nossos mortos. Não é só a vida do oprimido que afronta os olhos da sociedade, mas a vida de qualquer um porque a vida em si é um soco no estômago. As forças que esmagam Macabéa, despossuída, nordestina, retirante, são as mesmas que oprimem o indivíduo universalmente, seja ele 159 uma criança (Joana), uma dona de casa burguesa (G.H.), uma fazendeira (Lucrécia), um escritor (Rodrigo S. M.). Clarice impede que quaisquer de suas dramatica persona (autor, leitor, narrador, personagem) ocupem posição confortável porque sua tarefa, sua urgência, é escrever os irrespiráveis. O desamparo é de todos. A fome também. Não só o oprimido é massacrado, mas aquele cuja existência é um pouco menos bruta e insensível, um pouco mais suave e vulnerável. O homem, enquanto autor de suas próprias ficções e afecções, pode matar ou salvar o outro, uma vez que o poder de construção e destruição a ele delegado é o mesmo condicionado ao escritor. Mas a travessia deve ser universal e particular ao mesmo tempo ou, diríamos, social e individual - esse o posicionamento ético e político de Clarice. A revolução interna e subjetiva deve ser também revolução externa e coletiva. Nesse sentido, Clarice foi mal compreendida. Considerar que sua obra toca no tema social apenas em A hora da estrela é um erro. O social mostra-se, no desenvolvimento da obra, como o que revoluciona uma estrutura fechada, fazendo-a superar sua condição estática e limitada, seja ela de burguês ou desfavorecido, tornando-o livre das convenções e valores constituídos por essa mesma humanidade perdida. Clarice é, do início ao fim de sua obra, uma autora que trabalha o homem como animal político, uma vez que ofende a estrutura social com a enorme liberdade que faz nascer na alma de cada personagem, na busca incontida de cada um por libertar-se não só dos tabus sexuais, no caso de Uma aprendizagem..., mas dos condicionamentos e valores instituídos do belo, do bem, da verdade, da vida. Essas liberdades provocam o desencadeamento de muitas outras liberdades, como diz Ulisses, o que constitui um risco para a sociedade. Uma aprendizagem... não realiza apenas a desconstrução mítica de Eros e Afrodite, mas também realiza um desleitura de um dos Livros Sapienciais do Antigo 160 Comentário: Liberação da cultura secular e não do social e preconcetio momentano, liberação das intolerâncias etc Testamento, mais especificamente o “Cântico dos Cânticos”, ou, na tradução de Fiama Hasse Pais Brandão, “Cântico Maior atribuído a Salomão” 13 , reencenando o ritual prótalâmico e as bodas nupciais entre Salomão e Sulamita. O Livro dos Prazeres escrito por Lispector oferece-se como um Cântico dos Cânticos entre Lori e Ulisses, que se configura, ainda, como metáfora para a representação da figura do autor e de sua escrita, da tradição lógica e da tradição mitopoética. O Cântico dos Cânticos apresenta inúmeras exegeses e seu sentido está longe de ser óbvio. De acordo com diferentes interpretações, pode-se compreender este Livro como um poema amoroso, de origem oriental, que exalta a sacralidade do matrimônio; ou simplesmente como um texto que canta o amor conjugal ou mesmo como um livro pagão que narra a hierogamia entre um deus (o Céu) que morre ao procurar sua amada no reino dos mortos, e uma deusa (a Terra), que se apresenta como deusa do amor e da guerra (BÍBLIA, 1981:799). A encenação deste casamento ancestral tem representação cultual e implica a comemoração cíclica da fecundidade da terra. Ao explorar a manifestação amorosa dos noivos, o Cântico dos Cânticos revela que o comportamento dos namorados se estabelece a partir da iniciativa que o amado faz em procurar a amada, sem anunciar suas visitas ou justificar suas ausências (idem, 801), conduzindo o desenrolar da relação amorosa, frustrando as expectativas e os apelos da amada, que “entre vigílias e sobressaltos noturnos, sofre e se angustia” (ibidem). A experiência amorosa se torna assim um processo doloroso, mas ao mesmo tempo de êxtase supremo, que visa à união a partir de uma via de doação sem que isso implique o perecer, com a garantia da felicidade plena, uma vez que esta alegoria do amor humano é, simbolicamente, a expressão do amor divino de Deus por 13 Gostaria de chamar atenção para o comentário feito pela poetisa portuguesa sobre sua tradução do Canto Maior, ainda que tenha preferido manter a versão bíblica nesta tese. A admiração especial de Fiama pelo poema está na maneira como o texto “cabe na pupila”, isto é, na força poética de sua visualidade que, ao justapor imagem e palavra, põe em circulação o simultâneo. Somente a potência aí contida é que permite “a Visão multiforme do Conhecimento”. Penso que a obra de Lispector se direciona cada vez mais a esse ponto de contaminação - o simultâneo - que aproxima visível e invisível porque só a simultaneidade pode dar conta da visão. Esse movimento de escrita começa a se tornar mais forte, a meu ver, em Uma aprendizagem... por todas as referências imagéticas a que o mito se permite. 161 seu povo. Na busca pela transcendência, este amor torna o homem portanto imagem e semelhança de Deus. Vejamos a encenação realizada em Uma aprendizagem. Enquanto Livro que canta a iniciação da vida através do prazer, nota-se que a aprendizagem do romance é “pré-sexual”, rito de passagem para a preparação da cena nupcial e para a transformação de Lori em Loreley, isto é, batismo do indivíduo que renasce em nova forma. A angústia e a morte serão transformadas em vida pela via do prazer, que resolve e garante a experiência do mundo. O texto clariciano constrói a noção de prazer associado à dor. Neste Livro, no entanto, é a mulher que se ausenta do homem. Lori inicia o texto na dúvida se “continuaria ou não vendo Ulisses” (LISPECTOR, 1991a: 22), às vezes “faltava sem avisar-lhe nada” (idem, 26) e Ulisses é o amado que “estava habituado a vê-la faltar e não avisar sequer” (idem, 28). Com isso quero dizer que, se, aparentemente, Ulisses é apresentado como o guia da aprendizagem amorosa de Lori, a autora na verdade o conduz como mero disfarce, uma vez que é a própria Lori que conduz o desenrolar da relação. Sua vigília torna-se iniciação na noite, espaço em que angústia e dor são anuladas pelo prazer. A “via sacra” de Lori é uma travessia que implica o constante uso e abandono da persona, o que significa perder e recuperar o rosto próprio. No romance, a máscara exprime o papel que o homem assume no palco do teatro. Lori se fascina pela máscara porque acreditava que “a máscara era um dar-se tão importante quanto o dar-se pela dor do rosto” (idem, 100). O que fascina nas máscaras da persona não é apenas o fato de que a máscara era “representação” de um papel não genuíno. Mas de que há máscaras involuntárias, que se colam ao rosto do indivíduo amedrontado, e máscaras voluntárias, escolhidas pelo próprio indivíduo. Nesse sentido, a fascinação reside não na máscara, mas na troca delas, na mutabilidade inerente à persona. Porque “Lori sabia que uma das qualidades de um ator estava nas 162 mutações sensíveis do rosto” (ibidem). Mais uma vez o deslocamento do ser converte-se em deslocamento da linguagem. A linguagem que encena as tradições. Não e à toa que Lispector menciona o teatro grego em sua obra. Note-se que a linguagem começa a se mover para o centro do teatro alquímico clariciano, o que nos permitirá ler ainda Ulisses como metáfora que converte o técnico em artista – e todas as referências metanarrativas da obra são realizadas por Ulisses – e Lori como a criatura, o texto, a poesia. A compreensão se perturba, uma vez que os papéis agora já se despregam dos rostos originais e confundem a fronteira entre real e ficcional, mudando suas máscaras. As relações de sentido se forjam na malha textual e as convenções desde já começam a ser perturbadas. Ainda que Uma aprendizagem... encene “uma travessia direcionada para um encontro e serenizada como em nenhum outro lugar do universo clariciano”, como aponta o crítico português (SOUSA, 2000: 199), não há garantia plena de felicidade. Este Cântico revela que a felicidade é um espasmo – a felicidade pode se tornar um vício e, assim, um “perigo social” – por isso, precisa permanecer um mistério. A felicidade é portanto a felicidade do desconhecido, que não conduz à plenitude, mas à dor, ao espanto, ao dilaceramento. Caso contrário torna-se “a compreensão e o resumo da vida”. Por fim, este Cântico não conduz o indivíduo à experiência da transcendência do espírito, mas à transmanência do ser, que consiste na transfiguração do homem coletivo e social em homem humano, na potência divina dentro do homem, na experiência do sublime dentro do corpo. Ulisses inventa um sistema de iniciação de Lori no universo do prazer. “O que não soubesse ou não pudesse dizer, escreveria e lhe daria o papel mudamente” (LISPECTOR, 1991a: 21). E o Livro sapiencial de Lori começa a ser escrito como 163 acesso ao prazer: “escreveu num papel algumas palavras que lhe dessem prazer” (idem, 35). Dessa forma inicia-se a escrita do primeiro canto do Livro dos Prazeres: “Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso” (idem, 36). A narração principia pela divisão interna entre um ser livre e outro supostamente preso. O ser livre é identificado com um cavalo. Segundo Sousa, em Cidade sitiada, o tema da fundação da escrita pela imagem da cidade-texto (SOUSA, 2000: 151-165) e do escritor como aquele que reescreve o grande teatro do mundo e das tradições já se firma na obra da escritora desde a década de cinqüenta e aponta para o processo de busca e descoberta do nome possível para a possível construção de um mundo. A casa é uma metonímia da cidade, e se “os homens fazem e refazem cidades (textos) com a mesma matéria, a palavra, que aponta o nome das coisas” (SOUSA, 2000: 153), esta casa é também o texto. Dentro dela habita o cavalo. Os eqüinos, nas palavras do pesquisador, “reaparecerão sempre associados à origem da cidade” (idem, p. 85) e, portanto, da escrita, representando “o excessivo, a energia incontida”, o nascimento do texto. Só que a casa é também “corpo-casa” e sendo assim o corpo do texto conduz à fundação do texto que é “escrita-corpo que irrompe poderosa numa intensa concentração do limitado e do infinito” (idem, 407). Só esta escrita resolverá a solidão do homem que, “com a eternidade à sua frente e atrás”, vive a separação de sua própria humanidade e da “exigüidade do (seu próprio) corpo” (LISPECTOR, 1991: 91) em relação à “vastidão do mar”, isto é, a eterna divisão entre o ser humano limitado e finito e a infinitude do universo. Depois de escrever o primeiro texto de seu Livro, Lori consegue escrever algo mais: “Como se uma manada de gazelas transparentes se transladassem no ar do mundo ao crepúsculo – foi isso o que Lori conseguiu várias semanas depois” (LISPECTOR, 1991: 37). Em uma primeira referência aos cânticos salomônicos, o noivo é comparado 164 a uma gazela ágil durante a primavera, que vai preencher a nostalgia da amada com sua aparição inesperada. Atenção! É o meu amado: Eis que ele vem saltando pelos montes, Transpondo as colinas, O meu amado parece uma gazela, uma cria de gamo” (Cântico dos Cânticos, 2:8,9, p. 804) “O meu amado é todo meu, e eu sou dele. Ele é um pastor entre lírios. Antes que expire o dia e cresçam as sombras, Volta, meu amado, - imitando a gazela ou sua cria – Para os montes escarpados! (Cântico dos Cânticos, 2:16,17, apud, BÍBLIA, 1981:804) A semelhança do apelo feito pela noiva ao seu amado antes do cortejo nupcial realizado no casamento bíblico aponta para o casamento a se realizar no romance. O Livro dos Prazeres é um livro de aprendizagem amorosa, mas também de ritual prénupcial. “A vitória translúcida foi tão leve e promissora como o prazer pré-sexual” (LISPECTOR, 1991a: 37), diz a narradora de Uma aprendizagem.... A terceira incursão do Livro dos Prazeres, que se segue à referência ao ritual pré-nupcial, introduz o reino da noite, dimensão do caos informe, imagem fundadora na obra clariciana. E o vazio do silêncio. “O silêncio é a profunda noite secreta do mundo. E não se pode falar do silêncio como se fala da neve: sentiu o silêncio dessas noites? Quem ouviu não diz. Há uma maçonaria do silêncio que consiste em não falar dele e de adorá-lo sem palavras” (idem, 44). Em sua tese, Sousa aponta o caos como sendo uma 165 das figuras fundadoras erguidas na narrativa de Lispector, à qual pode ser associada a imagem da noite, que conduz à instituição de uma nova ordem do mundo e das coisas: a desordem criadora. Este seria o “programa de escrita” lispectoriano. “Depreende-se que é na desordem que se vai encontrar aquilo a que pode chamar-se a ordem natural das coisas” (SOUSA, 2000: 112). E o caos é o espaço de um não-programa, uma aparente ausência de forma, que então se revelará não como uma arbitrariedade, mas como uma sucessão contínua de estados de ordenação. Da ordem ao caos, da desordem à reformulação do real. Um jogo formulado na narrativa, uma encenação, desatinada pelo movimento do olhar, ora centrado na parte, ora no todo. Mas este primeiro silêncio [...] ainda não é o silêncio. [...] Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da Terra e da Lua. Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da gente (LISPECTOR, 1991: 45) Dois silêncios. O primeiro, desabitado, força estática, noite, o Nada. O segundo, habitado, dinâmico, vivo, preenchido de memórias, de fantasmas, de som. Este silêncio vem acompanhado de um diálogo com a tradição e delineará a forma de um Deus inventado pela narrativa. O Deus da tradição dualista judaico-cristã ensina ao homem que a queda é um pecado com o qual o indivíduo nasce e que o conduz à prisão do julgamento, à exigência do cumprimento da missão humana e à fatal culpa erguida do fracasso da missão. A ferida é a necessidade de uma justificativa para a existência quando nada explica a fratura. Como a ruína de Jó. E o homem forja existências e punições para explicar a queda. A culpa é uma delas. A necessidade de ser perdoado, outra. “Tão suave é para o ser humano mostrar sua indignidade e ser perdoado com a justificativa de que se é um ser humano humilhado de nascença” (LISPECTOR, 1991a: 45). O Silêncio dual que aparece no Livro dos Prazeres não exige o cumprimento de 166 nenhuma missão, não julga o indivíduo, e por isso não adota o perdão. O Silêncio torna-se então Inferno, espaço que coexiste com a Noite na “orla da morte”. Em A paixão..., o inferno é espaço simbólico no qual se desdobra o drama gnosiológico de GH. Para além da imagem cristã de reino de punição, sofrimento e fogo eterno, o inferno da narrativa clariciana compartilha dos mesmos atributos que o diabólico e o demoníaco reconfigurados: “Eis o inferno: não há punição” (LISPECTOR, 1979: 117). Transforma-se em “êxtase de riso com lágrimas” e “esperança de gozo”. Apenas no “outro lado da humanização” o inferno existe como espaço agregador. Designado como “núcleo”, “neutro”, "tortura de uma alegria”, lugar de ambivalência, o inferno recebe a desordem e desagregação do ser e do mundo porque se apresenta como espaço do caos fundador, paisagem “horrível”, “boa” e “prazerosa”; indistinta. “O inferno é a dor como gozo da matéria, e com o riso do gozo, as lágrimas escorrem de dor. E a lágrima que vem do riso de dor é o contrário da redenção” (LISPECTOR, 1979: 116). Na experiência de G.H., a subjetividade se reescreve pela letra e o corpo já não delimita o homem, aproximando-se da “alma impessoal” na própria imanência corpórea, mas se refaz em infinitas combinações e comutações, tal qual o corpo do texto. 167 CAPÍTULO III 3.1 DA DESCOBERTA DO MUNDO À ENCENAÇÃO DA ESCRITA A imaginação, nos termos de Bachelard em O Ar e os Sonhos (2001), é apresentada como faculdade deformadora da reunião de imagens, de maneira que a explosão criativa decorrente dessa união dê origem a uma ação imaginante. A mobilidade resultante desse fluxo garante o vôo poético para além do horizonte imaginado. Ao poema corresponde, portanto, a abertura e aspiração à novidade, traduzidas em horizonte possível para além da realidade, promovendo a viagem iniciadora de uma vida literária com suas próprias leis. A partir do fluxo, surge um movimento que tem como principal característica destacar a mobilidade gerada pelo curso de imagens construídas ao longo da obra, que se manifestam como a própria fecundidade, a própria vida. Este curso nutre-se da linguagem viva e, através dele, a literatura se torna imaginação criadora, dando novas formas ao pensamento, tornando-o o devir do próprio homem e acima de tudo da linguagem. Assim sendo, cada autor faz ao leitor o convite a uma viagem pelo seu mundo literário particular, onde se podem experimentar novas formas de existência e de Comentário: !!!!! sentido para o real. Assim o é com Clarice Lispector e sua poética dionisíaca. Os quadros imagéticos criados pelo texto clariciano promovem um ritmo vital com movimento próprio, instaurando um novo mundo condutor do olhar dinâmico do leitor e convidando-o a integrar-se como co-partícipe do processo criativo. Nessa composição, constitui-se o trajeto que vai do real ao imaginário e sua investigação revela as matérias que fundam as imagens e garantem o dinamismo através do qual se forma a composição orquestrada por cada autor. A estrutura arquitetônica que se ergue do texto clariciano produzido a partir de 168 A paixão... visa forjar um universo vibrante de imagens-conceito, em que ambos os termos deixam de ser pensados separadamente para reverberarem uma poética de blocos fulgurantes, na qual o pensamento lógico-conceitual, ao invés de se sobrepor, encontra-se em situação de igualdade e intercâmbio com o pensamento poético e imagético. Nesse ponto, a estranheza e o impacto causados pelas inversões e conversões engendradas pela narrativa clariciana se mostram sob um dos eixos de enlace da exegese feita por Lucia Helena: no eixo que se desenvolve entre o vazio/inominável e o real/figurativo. É neste ponto que se verifica o movimento da dobra do pensamento sobre si, promovendo a reflexão sobre o ato poético e a escavação do Eu sobre o Eu. A imaginação torna-se protagonista do movimento que proporciona a interação entre espírito e poesia e a principal arma associada à atividade mental da romancista, em busca de uma escritura que põe em circulação o que Lucia Helena chama de “vocação para o abismo”. Esta postura da linguagem clariciana condiz com a violência de uma escrita que implode qualquer tipo de distinção e faz emergir uma “experiência do limite”, por meio da qual os opostos são colocados em junção. Este movimento do pensamento é responsável ainda pelo papel de articulador central e difusor da mescla de linguagens e gêneros que se dá à imaginação. A tentativa de conceituar a obra da autora por critérios de classificação em gênero literário torna-se, no entanto, “inútil”, como já foi amplamente apontado por críticos de sua obra a partir da reivindicação da própria Lispector. O percurso hermenêutico a que a potência criadora de sua narrativa naturalmente conduz leva à compreensão de uma idéia central levantada pelo estudo de sua obra. Esta idéia está no fato de que sua força literária não reside tanto no tema de uma narrativa, já que o tema é um e o mesmo em todo o conjunto – a metamorfose existencial, confirmada por Lucia 169 Helena (2000), que se associa à busca pelo sentido da vida, nos termos de Gilda de Mello e Souza, (SOUZA, 1989: 171) – e à conseqüente desconstrução de um gênero, como a própria narrativa aponta. Reside, fundamentalmente, na capacidade que a obra tem de causar um impacto para além de si mesma, trespassando os limites da ficção e se instalando nas margens do próprio real, provocando o deslocamento da linguagem, da literatura, da tradição cultural, e dos participantes dessa tradição. Com isso quero dizer que sua obra aponta mais para o questionamento sobre um fazer literário, que conduz à investigação da razão de se efetuar este fazer. Para Lucia Helena este questionamento interno da obra se configura nos termos de um “por que narrar” e do “como narrar”, que se tornam mais importantes do que “o que narrar” ou “para que narrar”. Ou ainda, em outras palavras, o corte vertical vigente em sua obra surge de profundos questionamentos sobre a causa e não o fim da literatura, isto é, o que move um escritor em seu ofício e não o resultado a que este trabalho chega. Para esta reflexão a própria Clarice oferece respostas: a escrita nasce de uma urgência e uma incumbência, e o seu resultado deixa de importar a partir do momento em que a obra entra em circulação. Em carta a Lúcio Cardoso diz: “Estou tentando escrever qualquer coisa que me parece tão difícil para mim mesma que eu me contenho para não me desesperar. É alguma coisa que nunca será gostada por ninguém, mas não posso fazer nada” (LISPECTOR, 2002: 66). Um deslocamento que aponta ao mesmo tempo para a afirmação de quem somos e a estranheza de nossas diferenças. Um estranhamento que resulta, como proposto por Lúcia Helena, da “contempla(ção) da História como fragmento” ou “ruína”, nos termos benjaminianos, (HELENA, 2000), e de sua inscrição na narrativa como personagem. Buscando percorrer e depreender o trajeto de uma “história da experiência literária” na obra de Lispector, Carlos Mendes de Sousa 14 , em sua tese de 14 SOUSA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector. Figuras da Escrita. Braga, Universidade do Minho/Centro de Estudos Humanísticos, 2000. 170 Comentário: VAI PARA O SEGUNDO CAPÍTULO, JUNTO COM APONTAMENTOS DE Jaime Guinzburg doutoramento, recupera e desenvolve o diálogo que a obra estabelece com conceitos originários dos textos filosóficos de Gilles Deleuze, como o de devir, rizoma, linhas de fuga, entre outros. Não interessa a esta tese repetir o percurso já realizado pelo crítico, mas concentrar-se apenas em um destes conceitos: o de desterritorialização. Ainda que tais conceitos estejam intrinsecamente ligados uns aos outros, permiti-me um deslocamento para fins metodológicos uma vez que não pretendo ler a obra clariciana sob a ótica da filosofia deleuziana. Sousa inicia a análise do universo narrativo de Lispector assinalando a temática do não-lugar na obra da autora. Segundo o crítico, "O caminho para a apresentação absoluta do puro sentir e da imanência é simplesmente a fazenda, é o mar simplesmente, ou seja, um modo radical de apresentar o vasto espaço da escrita" (SOUSA, 2000:25). Este vasto espaço é composto de referências não-específicas, como o quarto da empregada em A paixão segundo G.H., o mar em que Lóri se banha, a fazenda com a casa e o celeiro de A maçã no escuro, o banheiro em Perto do coração selvagem, ou pequenos espaços habitáveis, sem serem expressamente urbanos, cenários estes que servirão de ponto de partida para o desvelar de metamorfoses existenciais. Trata-se do lugar da abstração, espaço em que as imagens-conceito se firmam para que o texto não se restrinja apenas a ser palco do devir do homem, mas se converta em solo do devir da escrita, a representar a encenação da linguagem. O não-lugar é mantido porque este território se torna mais propício ao deslizar e à convulsão das medidas e dos limites entre sujeito, objeto, real, imaginário, interno, externo. Confirma-se, assim, o que Lucia Helena chamou de “crise da representação figurativa”, responsável pelo “exame da auto-referencialidade literária” que desestabiliza os limites do real na obra clariciana. O trecho retirado do romance de 1964 exemplifica este cenário: 171 O quarto não era um quadrilátero regular: dois de seus ângulos eram ligeiramente mais abertos. E embora esta fosse a sua realidade material, ela me vinha como se fosse minha visão que o deformasse. Parecia a representação, num papel, de como eu poderia ver um quadrilátero: já deformado nas suas linhas de perspectivas. A solidificação de um erro de visão, a concretização de uma ilusão de ótica. Não ser inteiramente regular nos seus ângulos dava-lhe uma impressão de fragilidade de base como se o quarto-minarete não estivesse incrustado no apartamento nem no edifício. (LISPECTOR, 1979:34) O espaço em que se desenrola a narrativa começa inicialmente como um quarto dos fundos do apartamento de G.H.; porém, em sua descrição inicial, as proporções do ambiente se mostram irregulares, em movimento de desfiguração e em certa imprecisão e incertitude que aqui caracterizam o abstrato. Este território esfumaçado abre espaço para a ambigüidade textual, que é intensificada pelo uso que Clarice faz do pacto autobiográfico e da confluência entre espaço e tempo. Aos poucos, o leitor será introduzido a um movimento quase vertiginoso que, como o delírio de Brás Cubas, constitui-se como uma viagem que começa no quarto da casa e se dirige a tempos imemoriais, configurando-se primeiro como um quarto-minarete, passando a laboratório do inferno até definir-se em paisagem pré-histórica que remete aos primórdios da civilização. Até que a verdadeira conformação se desvele: o espaço privilegiado pela obra é o próprio sujeito e o seu curso de transformação até a transfiguração total, encenando um processo de metamorfose que se aproxima muito da busca e objetivo dos alquimistas em seus laboratórios à procura da pedra filosofal que garanta a imortalidade. O não-lugar inicialmente é expresso por meio de uma desconfiguração espacial, onde o quarto, espaço concreto, aos poucos vai se transformando até perder sua forma referencial e se projetar para um espaço inaugural, que se confunde e converte em tempo inaugural. A narrativa consegue com isso mover e mobilizar a linguagem, e 172 dirigir o foco para a potência de fazer e desfazer que a linguagem contém. A imagemconceito se torna movimento, música, e a visão deforma o real de acordo com a força da ação imaginante. O quarto “morto” torna-se uma potência indelimitada e ilimitada. A trasmutação do quarto aponta para a idéia de que este espaço se torna metáfora para a vastidão do mundo em oposição à finitude do homem, o que imediatamente remete para o contraste entre viver e perecer. Como bem demonstra Sousa, os espaços escolhidos estão em tensão com a língua e, sendo a língua móvel, o espaço também sofre a ação da mobilidade. O que poderia se apresentar como espaço de territorialização mostra-se como “trabalho de desterritorialização” e “abstração desreferencializadora” 15 , na escrita clariciana, já que não se define, e tampouco se apresenta como espaço concreto. O não-lugar é projetado no território da escrita. A desterritorialização se associa a linhas de fuga que saltam do texto provocando o surgimento de pequenos universos temáticos dentro da obra com o poder de desconfigurar o que antes se achava em forma fixa e estática. Nesse movimento de ruptura, deslizamento, ou alargamento, podem-se “conjugar fluxos desterriotializados” (20). Ambos os conceitos de desterritorialização e desreferencialização apontados pelo crítico nascem da estranheza e paradoxo do choque de personagens que revelam um descompasso entre indivíduo e mundo, que faz com que a condição do estar-no-mundo se confunda com um sentimento de ser o mundo. O cenário abstrato cresce em A paixão..., configurando-se na dimensão espacial, temporal e lingüística de uma escrita que dá ênfase ao drama da consciência mais do que à encenação dos fatos, numa narrativa em que tempo e espaço desprendem-se de formulações miméticas e devêm escrita. O exílio interior torna-se um tema e abre 15 Os conceitos de desterritorialização e desreferencialização, bem como as linhas de fuga e dobras que aparecem ao longo do texto, seguem terminologia definida por Gilles Deleuze e Félix Guatarri em Mil Platôs, apud Carlos Mendes Sousa. 173 Comentário: Aqui não é o caso de citar um Guattari e Deleuze? caminho para a perscrutação da interioridade e para a travessia da paixão. A obra se constrói a partir da narração de personagens, narradores, temas e tradições que também devêm escrita. O não-lugar, o sem território, está dentro de nós. Portanto, sua escrita será não somente sobre a incumbência de se buscar um lugar estabelecido no percurso da travessia que leve ao questionamento do sujeito no mundo, mas principalmente do escritor enquanto construtor de realidades e da escrita enquanto espaço de devir. Para Sousa, o universo literário de Clarice Lispector se dá na tensão entre o efeito do não-lugar e a instauração de um espaço nos limites da língua a que deseja pertencer. É na própria língua que se dá a travessia (SOUSA, 2000: 27). “O vazio é um meio de transporte” (LISPECTOR, 1979:110) que conduz a trajetória do sujeito aos limites em que a linguagem tangencia a voz, até que o percurso se realize ao mesmo tempo nos domínios do ser e da palavra. “Existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos” (LISPECTOR, 1979: 172). Neste sentido, o vazio condutor do percurso nasce como vazio positivo e vital - o vazio neutral - espaço da imagem da noite, e a desmontagem da cisão revela-se não como ponto final da narrativa clariciana, mas como grau zero de sua escrita. Como aponta Luciana Stegagno Picchio, “talvez tenha razão Haroldo de Campos quando afirma que a escritura de Clarice não é caracterizada pela ênfase ao significante [...], mas nasce ainda sob o signo do significado” (PICCHIO, 1989: 17). “Uma escrita grau zero” (idem). A narrativa de Lispector, principalmente da década de setenta, é na verdade uma narrativa que movimenta tanto o significante quanto o significado a partir da elaboração de suas imagens-conceito, usando não apenas alternada, mas simultaneamente “a palavra” e “o pincel”. Picchio afirma ainda que “o pólo de Clarice é sempre e só aquela fronteira indefinível de alma [...] em que vida e morte, Deus e eu, tudo e nada, mas também angústia e prazer, alma e corpo, espírito e carne, tocam-se, 174 fundem-se e são uno, indivisível” (idem). Eduardo Prado Coelho é o único a apontar que, na verdade, depois de A paixão...¸ o problema da subjetividade deixa de ser central uma vez que o indivíduo já não se enclausura mais em sua subjetividade monádica, mas, em livre trânsito com a alteridade, se realiza na multiplicidade. “Depois de A paixão..., a primeira pessoa dominante é o domínio da pessoa nenhuma [...], o extremo da consciência de si é o extremo da inconsciência de si, e o fechamento monádico é, acima de tudo, a afirmação da escrita como explosão, e destruição [...], de qualquer clausura” (COELHO, 1984: 211). O espaço de reversibilidade que a escrita clariciana encontra e adentra a partir da obra de 1964 institui a idéia de que o sujeito já não é mais único e totalitário, mas no mínimo dois, múltiplo, e esse tema será desenvolvido literariamente enquanto ficcionalização dos agentes presentes na obra. Portanto, “o um não é pensável sem a precedência do dois (e, portanto, qualquer monólogo é um falso monólogo¸ e qualquer primeira pessoa é uma falsa primeira pessoa)” (idem). Assim, Coelho aponta que a alteração entrevista na obra lispectoriana ocorre não “segundo G.H.”, mas “depois de G.H.” (idem). Portanto, uma mudança no estatuto da escrita clariciana começa a ter início no romance de 1964. Entretanto, ainda que Sonia Roncador (2002) aponte o projeto da nova escrita “sem estilo” como tendo início em A paixão..., ao mostrar que a experiência de desintegração vivida por G.H. conduz à reorganização de uma “forma” apresentada nos termos de uma narração desta mesma forma – das transformações ontológica e lingüística - esta obra ainda se inclui dentro do conjunto que trata do tema metafísico. Além disso, este romance separa autor e narrador e cria personagens bem definidas, ao contrário das obras da década de setenta, que precipitam cada vez mais o debate reflexivo sobre o fazer literário a partir da encenação da própria escrita e do apagamento 175 entre as fronteiras autor-narrador, e das silhuetas de personagem e enredo. Roncador afirma que a forma de escrita “do nada para ninguém” (RONCADOR, 2002: 29), que implica a negação de um sujeito narrativo e de um receptor, seja ele personagem ou interlocutor, já manifesta o desejo de uma escrita “sem a elaboração de um estilo e/ou a formulação de um tema” (idem). Como conseqüência, esta forma não poderia se submeter às normas da “boa forma narrativa”, uma vez que a libertação do imperialismo da subjetividade monádica, no universo literário clariciano, motiva a libertação não apenas da forma, mas do “medo do feio”, “da falta de bom gosto”, e da “falta de uma estética” (idem). O que já fora apresentado em termos de pesquisa de autognose passa a se direcionar à reflexão do próprio fazer literário mais do que ao problema da subjetividade, configurando-se nos limites de uma encenação da escrita. Clarice Lispector passa a se dedicar mais ao intercâmbio entre o abstrato de uma escrita metaficcional e o sensível de uma linguagem imagética, seja em referências míticas, como visto na interpretação de Uma aprendizagem..., seja em referências abstratas como em Água viva, abrindo espaço para o que se segue na década de setenta. A linguagem, a essa altura, mascara-se em distintos registros para dar conta então não mais da busca de autoconsciência de personagens em confronto com o mundo, mas dos limites em que as subjetividades, os sentidos e visões de mundo, as identidades se mostram como construções da linguagem. Com A via crucis do corpo, Onde estivestes de noite e A hora da estrela, a escrita clariciana “se traveste de uma linguagem realista” de modo que a nova escrita possa questionar “as relações entre realidade e ficção”, como aponta Reguera (REGUERA, 2006: 52). A escrita, nesta etapa, lança-se para além das fronteiras e margens definidas pela vertente da tradição dualista e inclui o intercâmbio entre as diferentes linguagens e 176 estilos, de modo que a classificação em gênero torna-se impossível e o assombro do leitor diante do texto exposto passa a se justificar pela dissolução dos modelos da construção cultural e literária. Emerge uma literatura cujo compromisso não é com a fruição ou o engajamento, mas com a reflexão crítica sobre as convenções que regem a construção das visões de mundo, de cultura, do Amor, as relações do indivíduo em sociedade, de seu intercâmbio com a natureza, e com o próprio conceito de literatura. Coelho apontará ainda (COELHO, 1989:148) uma aproximação entre as obras de Clarice Lispector e Marguerite Duras da ordem do "crime que desencaminha a linguagem da vocação institucional e de sua compostura literária". Lispector concebe uma escrita da destruição, da palavra capaz do assassínio, capaz de cumprir-se criminosa apenas para ultrapassar a destruição e as ruínas e conceber a criação de algo. É no ato deste crime que a escrita se concebe como artifício, em gesto de tamanha transgressão que apenas a encenação do drama da própria linguagem pode suceder este movimento. No terceiro capítulo desta tese, avalio de que modo as transformações encaminhadas na obra de 1964 se configuram no universo da imagem e das referências ao fazer literário em “Objeto Gritante” e Água viva para, finalmente, se apresentarem como encenações da linguagem, discutindo a linguagem como a grande protagonista do universo de A via crucis do corpo, em sua face realista, autobiográfica e grotesca. 177 Comentário: Passe.aqui, ainda que brevemente, pelo noveau roman 3.2 DO MUNDO DA IMAGEM À IMAGEM DA ESCRITA Os últimos quinze anos de vida de Clarice Lispector, que incluem parte das décadas de sessenta e setenta, até seu falecimento em 1977, presenciam a atuação da autora como cronista do Jornal do Brasil, no período de 1967 a 1973, e uma radical mudança estrutural e estilística em seus textos literários, entre contos e romances. Nesse período, que abrange algumas das obras mais representativas como A paixão segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), Água viva (1973), A hora da estrela (1977), e outras pouco agraciadas pela crítica, como Onde estivestes de noite e A via crucis do corpo (1974), e o póstumo Um sopro de vida (1978), sua produção literária revela uma alteração na estrutura e técnicas narrativas, culminando no desenvolvimento de uma forma de expressão que, além de visar o abstrato, dialogando com a pintura e a música, inclui as marcas da lírica, da crônica, do diário e da autobiografia. A mudança começa a ser notada em obras como Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, na qual surge em cena um dos novos processos de organização da narrativa – a colagem de textos de diferentes gêneros em processo de bricolagem ou justaposição paratática, como foi visto no capítulo anterior. Mas a mudança é registrada e marcada principalmente por um datiloscrito disponível no Arquivo Clarice Lispector, que se encontra na Fundação Casa de Rui Barbosa. O datiloscrito, intitulado “Objeto gritante”, produzido entre os anos de 1971 e 1972, foi considerado, por diversos críticos, como diário ou versão de Água viva e até mesmo como programa de escrita completamente distinto do texto de 1973. A nova escrita elaborada por Clarice revela uma ruptura definitiva com o modelo de escrita convencionado pelas normas estéticas, com o objetivo de rever as verdades impostas pela cultura ocidental, enquanto tema, e pela linguagem, enquanto 178 forma. Se, no plano compositivo e temático, os retratos das personagens desenhadas apontam para o desconcerto do mundo e a incomunicabilidade intersubjetiva, no plano estilístico-formal a linguagem também sofrerá o mesmo desconcerto e inadequação vigentes na obra. Entretanto, talvez o tema principal dos últimos quinze anos seja a reflexão sobre o próprio ato de escrita e sobre as noções e os limites do que seja literatura, envolvendo o diálogo com a pintura e a música, que se acentua em Água viva e Um sopro de vida e que revela transformação radical no datiloscrito de “Objeto gritante”. Tais obras deixam entrever uma crescente preocupação, por parte da autora, em questionar a literatura como repositório de gêneros e estilos pré-estabelecidos e em inventar uma linguagem que dê conta de tais questionamentos e mudanças. Assim, a poética clariciana deste período torna-se, mais do que na primeira fase, acentuadamente dialógica, convidando o leitor à elaboração dos sentidos fabricados pela obra, afirmando-o como participante da estrutura narrativa, seja pelos constantes paratextos que a ele se dirigem 16 , seja por sua participação exigida no corpo do texto, mas, em todos os casos, sempre pela exigência da construção de sentidos que o texto deixa em suspenso. Com isso, a narrativa problematiza o seu referente a partir do questionamento do narrador como ponto central de referência, uma vez que o olhar da literatura se volta para a alteridade, seja ela entendida como indivíduo, interlocutor literário, passado (ou presente) histórico-social ou tradição literária. Visa-se a inserção do outro no contexto narrativo pela aceitação das diferenças e o reconhecimento de que 16 O primeiro romance em que Clarice introduz uma Nota ao Leitor é A paixão segundo G.H., de 1964. Em seguida, as notas se repetem em Uma aprendizagem..., de 1969, A via crucis..., de 1974, e finalizam com a “Dedicatória” em A hora da estrela, de 1977. Ainda que não haja nenhuma nota ou dedicatória em Água viva, de 1973, a epígrafe é quase uma nota explicativa ao leitor, cujo efeito final é a sobreposição de vozes autorais. Verifica-se que em ambos os livros da década de sessenta a fronteira geográfica estabelecida pela referência autoral mantém seus limites entre o de dentro e o de fora da construção ficcional, inscrevendo-se no circuito de comunicação entre autor e leitor. Já nas obras da década de setenta, a crítica não cansa de apontar importantes modificações como a de uma capacidade performativa de ambos os textos, que acaba conferindo uma condição de abertura suficiente para levá-los à inclusão no corpo literário como criações ficcionais. A voz autoral passa a se confundir com a voz do personagem, ofuscando os limites entre real e ficcional. 179 a realidade vivida pelo homem moderno e suas experiências urbanas são estruturadas por múltiplos discursos. Nota-se a preocupação em construir uma narrativa que privilegie menos as experiências do narrador enquanto entidade centralizadora do conhecimento e mais a própria linguagem. A informação narrada é elaborada como ênfase do olhar sobre os indivíduos, fatos e incidentes cotidianos e pelo distanciamento do narrador tradicional. É essa consciência distanciada que permite o “conhecimento” da vida e experiências alheias e abre a via para o trabalho de construção da linguagem. Apresenta-se, nesse ponto, uma das questões mais privilegiadas da narrativa moderna: a da autenticidade. O ofício do ficcionista é construir o real a partir do exercício da linguagem, oscilando entre diferentes registros discursivos, como o da crônica, o da historiografia, o ficcional, o jornalístico, de forma que a fronteira entre vida e arte se obscureça e a autenticidade das ações romanescas se confunda. No exercício literário lispectoriano, o intercâmbio entre os fazeres permite que do gesto de pintar surja o desejo da escrita e vice-versa, sugerindo que para Lispector a arte é um ato de criação ininterrupto e inseparável da vida, e todas as expressões se tornam uma só experiência que conduz à explosão criativa. A narradora de Água viva revela a atitude de escrita que pauta todo o texto: Comecei estas páginas também com o fim de preparar-me para pintar. Mas agora estou tomada pelo gosto das palavras, e quase me liberto do domínio das tintas; sinto uma voluptuosidade em ir criando o que te dizer. Vivo a cerimônia da iniciação da palavra e meus gestos são hieráticos e triangulares (LISPECTOR, 1978a: 18-19). A iniciação à leitura da palavra literária lispectoriana requer que se compreenda o gesto de escrita instituído por seu universo, que implica o misterioso de uma escrita hieroglífica e hierofânica, portanto reservada tanto ao grafismo quanto ao 180 misterium tremendum. O signo lingüístico motiva o significante por meio da construção de imagens – que são a expressão do sensível – que se configuram como ideogramas, de forma a destacar a materialidade da palavra, para dar conta, não obstante, de um significado conceitual que não deixe de corresponder à densidade concreta da vida. Desse momento em diante, Clarice elabora textos inclassificáveis em gênero, estilo e forma, tornando-se inclassificável como seu próprio texto diz e como todos os grandes autores que criam um mundo próprio a partir de uma linguagem fundadora e genesíaca. Ainda que a obra de Clarice Lispector já tenha sido amplamente divulgada e pesquisada, há textos que só receberam tratamento editorial e publicação recentemente, e outros ainda de caráter inédito, distantes de um acesso direto do público leitor. Para compreender a atitude literária desenvolvida por Clarice nas décadas de sessenta e setenta, portanto, o pesquisador é convidado a investigar o datiloscrito encontrado no Arquivo Clarice Lispector, situado à Fundação Casa de Rui Barbosa, intitulado “Objeto gritante”. Além deste datiloscrito, a investigação conduz até textos recentemente publicados, como o único ensaio crítico que Clarice escreveu sobre literatura e vanguarda brasileira, intitulado “Literatura de vanguarda no Brasil” (LISPECTOR, 2005: 95-111). Guardado durante décadas em seu arquivo, o texto só recebeu publicação no ano de 2005, junto a outras peças raras do arquivo pessoal de Clarice, como o esboço da única peça teatral escrita pela autora e a entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som, conduzida por Affonso Romano de Sant’Anna, Marina Colasanti e João Salgueiro 17 . Parece-me de fundamental importância para a compreensão da escrita de Clarice, e do seu fazer literário, a leitura e interpretação 17 De 1940 a 1941, Clarice trabalha como jornalista para a Agência Nacional. Na antologia Outros escritos, além do ensaio e entrevista mencionados, encontram-se contos e artigos publicados antes de sua estréia como romancista em diversos periódicos, como nas revistas Vamos Ler|, Dom Casmurro, A Época, Senhor, Jóia no Diário do Povo, no periódico Pan, em O Comício. Dentre os artigos encontramse um sobre a tarefa de tradutora, exercida ao longo de sua vida, textos sobre Direito, de quando era estudante universitária, artigo sobre a obra de Virginia Woolf, além da única peça teatral escrita pela autora e publicada na primeira edição de A legião estrangeira, intitulada “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos”. 181 deste texto, uma vez que ao falar de literatura de vanguarda no Brasil e de escritores como Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Clarice está subliminarmente falando de sua própria escrita. Este texto, que ainda não obteve qualquer atenção mais detida da crítica além da análise de Carlos Mendes de Sousa e Nádia Battella Gotlib parece-me revelar a base de um pensamento crítico original, que não apenas discute uma teoria estética, mas realiza a adequação entre teoria e prática literária, entre conteúdo e expressão. Explico-me melhor. Neste ensaio, a autora expõe o modo de funcionamento de sua escrita e de sua compreensão do fazer literário, de como sua obra é ao mesmo tempo concebida para a crítica e para a cena literária. Clarice realiza o que Machado aponta como sendo fundamental para uma literatura nascente, em seu ensaio “Instinto de nacionalidade”: aquele certo “sentimento íntimo” que a torna sujeito de seu tempo e país, ao mesmo tempo em que trata de “assuntos remotos no tempo e no espaço” (ASSIS, 1959:135). Clarice é clariciana em seu ensaio e em seu modo de ler e compreender os pares literários eleitos, ainda que não fale especificamente de suas próprias obras, além de se mostrar profundamente envolvida com assuntos nacionais, sem o ser diretamente em sua escrita. Em 1963, Clarice é convidada a dar uma palestra no XI Congresso Bienal do Instituto Internacional de Literatura Ibero-americana, realizado na Universidade do Texas, sobre literatura brasileira. Para este evento, escreve seu único texto crítico, que foi reapresentado mais algumas vezes em conferências proferidas em Vitória, Belo Horizonte, Campos, Belém do Pará e Brasília, até 1974 (LISPECTOR, 2005: 93-4). O ensaio inicia com a afirmação de que a tarefa de escrever sobre literatura “cabe mais a um crítico do que a um ficcionista” (idem, p. 95) para logo estabelecer uma 182 diferenciação entre a ficção realizada por sua narrativa e aquela produzida por uma tradição. A autora usa seu próprio exemplo para afirmar a distinção entre uma linha de escrita ficcional não propriamente tradicional, e outra, não explicitada, mas evidentemente distinta daquela que pratica. Com isso depreende-se que Clarice está a tratar de pelo menos dois tipos de ficção: aquela realizada por sua obra, que não pode ser classificada, que se opõe a uma tradição de romance realista, regionalista e intimista, que mescla uma “aura filosófica”, como sugere Lucia Helena, a uma memória lírica, sem deixar de ser confessional, poética e narrativa; e uma outra linha, do romance tradicional e canônico, classificado como alta literatura. Essa diferenciação é apontada para justificar a distinção feita entre o papel do crítico e o papel do ficcionista. Clarice entende que só tem autoridade para falar criticamente de literatura aquele que está em uma posição distanciada da prática literária, uma vez que é necessário “ter boa formação cultural”, “objetividade”, “visão panorâmica dos diferentes setores da literatura” e capacidade de “estabelecer relações com outras artes” (LISPECTOR, 2005: 95). Tudo que Clarice fará, ao longo de sua exposição, contrariando suas próprias escusas. Ironia? Encenação? Ou um traço de escrita que se verifica permanente e constante inclusive neste texto crítico? Depois de afirmar uma idéia, passa a desmontá-la no próprio discurso contrariando aquilo que havia afirmado antes. Fato é que toda esta encenação conduz ao primeiro ponto de debate levantado por seu ensaio: o da prática literária como exercício de vida. Clarice afirma o que revelará mais tarde em uma de suas crônicas: que não é intelectual porque “para escrever” usa “mais a intuição do que a inteligência” (LISPECTOR, 2005: 96). E que por não se considerar intelectual então não teria o “hábito” ou “gosto” de “pensar sobre o fenômeno literário”. No entanto, toda a sua obra, que sucede à escrita deste ensaio (de 183 1963), afirma e confirma o contrário. O principal, creio, reside no fato de que Clarice deseja discutir o que seja literatura. Apresentar o modo de construção de seu fazer literário é etapa concomitante à apresentação de um pensamento teórico sobre “o fenômeno literário”. Ao afirmar que “literatura é o modo como os outros chamam o que nós, os escritores, fazemos” (LISPECTOR, 2005: 96) e que lhe faltava encará-la “de fora para dentro, como uma abstração” (idem), depreende-se que, para a autora, o fazer literário não está dissociado do fluxo de vida, além de ser entendido como uma experiência pessoal de total comprometimento e envolvimento do sujeito. Além de Nádia Battella Gotlib, em 1995, Sousa é o único dos críticos de projeção que realiza uma análise rigorosa e inaugural do ensaio escrito por Clarice. Em consulta ao arquivo da autora, o crítico faz apontamentos sobre as rasuras e modificações realizadas no datiloscrito, que até então ainda era inédito, tecendo finos comentários sobre as principais questões levantadas por Clarice. Entre elas a de que “a língua, entendida como campo de imanência [...] implica o trabalho do escritor enquanto pessoa”, exigindo uma “entrega incondicional” para que a literatura se torne “fonte de conhecimento” do sujeito e do mundo (SOUSA, 2000:92-95). É este fazer que tomará a forma de algo distinto da tradição “de fora” considera como “literatura”. Ela, escritora, que fala de dentro da experiência de criação, não está distanciada senão profundamente envolvida a ponto de, com sua prática, interferir nas estruturas da língua e nas bases do que seja literatura. Em “Objeto gritante” Clarice tentará encontrar uma forma que explicite esta prática e em Água viva encontrará a interação entre fundo e forma mais coerente com a sua compreensão de literatura para que possa declarar: “Este não é um livro porque não é assim que se escreve”. (LISPECTOR, 1978a:12) O segundo ponto central de seu ensaio inicia-se com a explicação do que para a autora seja “vanguarda” e “vanguarda literária”. E Sousa chama atenção: o termo 184 vanguarda “é utilizado como eqüipolente de modernidade estética” (SOUSA, 2000: 95) na exegese feita pela autora, no que tange a equivalência da experimentação artística com experiência de vida, uma vez que “tudo passa pelo vital trabalho na língua” (idem). “Vanguarda” é “experimentação” (LISPECTOR, 2005: 97). Porém somente isso não a diferencia de uma definição do que seja arte. Já que ambas se aproximam pela experimentação, o que as diferencia?, pergunta-se Clarice. Em resumo, a distinção reside na experimentação que é verdadeira, aquela que se baseia no “direito permanente de pesquisa estética”, nos termos marioandradinos, e outra que é simulacro e puro experimentalismo, seja de qualquer tipo de vanguarda. A vanguarda a que Clarice se refere é o “novo elemento estético” ou a “nova forma” que fosse “usada para rebentar a visão estratificada e forçar, pela arrebentação, a visão de uma realidade outra – ou, em suma, da realidade” (idem). A atenção se volta para a força do verbo rebentar (como sugere Sousa) que, repetido em forma substantivada, aponta para a violência, explosão e fragmentação de uma escrita que põe abaixo um sistema, um paradigma, um universo, para reconstruir-se como escrita inaugural. Escrita que desencadeia o novo, isto é, aquilo que, em diálogo com o passado, não existia e passa a interferir na forma antiga. Desagregação visível na análise feita do primeiro parágrafo de A paixão... no capítulo I desta tese. Ainda que a ênfase seja na força do assassínio, da destruição, do crime, como apontou Eduardo Prado Coelho, não se trata de uma força negativa, mas de afirmação e construção. Movimento. Deslocamento – sentido caro a Clarice. Tratase da força do magma que, em sua potência magnânima, rebenta sobre os costões continentais e provoca o deslocamento da superfície terrestre, dissolvendo o que antes era unido para aproximar territórios que um dia foram incomunicáveis. Deriva, aliança. Movimento que apresenta duas faces de uma mesma realidade e que constitui a estética de uma “tradição da ruptura”, nos termos Octavio Paz (PAZ, 1984). 185 Se “qualquer verdadeira experimentação” leva ao “maior autoconhecimento” (LISPECTOR, 2005: 97), vanguarda seria mais um instrumento para a criação de “novos conceitos” que se tornarão “clássicos” porque permanentes. Um novo conceito muito próximo à pesquisa estética elaborada por Mario de Andrade e que se aplica tanto à crítica quanto à criação literária. Como sugere Mario em ensaio intitulado “A raposa e o tostão”, “Que o assunto seja, principalmente em literatura, um elemento de beleza também, [...] apenas desejo que ele represente realmente uma mensagem [...]. Quero dizer: seja efetivamente um valor crítico, uma nova síntese que nos dê um sentido da vida, um aspecto do essencial” (ANDRADE, 2002: 110). Em outras palavras, o valor crítico a que se refere surge da síntese entre inovação na forma e novidade de fundo. O ponto central do texto de Lispector se configura, portanto, em torno do problema de fundo e forma. Neste ensaio pode-se testemunhar o depoimento da autora sobre a discussão central que sua obra movimenta. Mostrando desagrado na concepção tradicional da dicotomia entre os conceitos de fundo e forma, afirma: “Essa expressão ‘forma-fundo’ sempre me desagradou vitalmente – assim como me incomoda a divisão ‘corpo-alma’, ‘matéria-energia’, etc.” (LISPECTOR, 2005: 98). O desconforto nasce porque no pensamento estético-literário de Clarice não há dicotomias, senão núcleos de força que penetram uns nos outros. Nesse sentido, o ensaio é uma exposição teórica de sua própria atitude literária. O exemplo da vanguarda brasileira é claro: não é possível que vanguarda seja apenas inovação da forma, isto é, que apenas a forma seja nova e o conteúdo antigo. Vanguarda, para Clarice, constitui-se como inovação interativa entre forma e conteúdo. O exemplo de Drummond explica: a face verdadeira da literatura é composta não de uma face, mas de sete, de “certos rostos” (LISPECTOR, 2005: 101), mil e um, inomináveis, de passagens à alteridade. Deslocamentos. Vanguarda é o 186 inaugural. O exemplo de Graciliano Ramos me parece também bastante cristalino. A vanguarda de Graciliano e José Lins do Rego não é inovação por conta do tema do Nordeste, mas pela “apreensão de um modo de ser” (LISPECTOR, 2005: 105) que se instaura nos limites de um fundo-forma, uma apropriação, um “novo ponto de vista” que leva “a uma mudança formal” (idem). Portanto, Clarice inverte mais uma vez os termos da tradição literária dizendo que a vanguarda não é uma inovação da forma, mas do ponto de vista, do conteúdo, do interno que transforma o externo. E isso é inaugural. Em crônica intitulada “Forma e conteúdo”, de 1969, a autora afirma que “a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta por se formar” (LISPECTOR, 1994: 271). A reflexão sobre fundo e forma, portanto, é algo já bastante amadurecido na escrita clariciana. Em 20 de dezembro de 1969, data da crônica publicada, Clarice já havia publicado Uma Aprendizagem... e já havia escrito o texto sobre vanguarda. No entanto, se sua obra apenas invertesse os termos da tradição, estaríamos diante de uma denúncia e até mesmo de uma transgressão. Mas Clarice vai além disso e funda algo novo, para além de inversões e transgressões. Clarice é claricianamente vanguarda. Na mesma crônica, afirma que a forma só se configura se o pensamento já estiver pronto. “Não se pode pensar num conteúdo sem sua forma” porque a forma só aparece “quando o ser todo está com um conteúdo maduro” (LISPECTOR, 1994: 271). Mas não apenas depois que ele estiver pronto e sim ao mesmo tempo. Forma e conteúdo surgem juntos por meio do trabalho da intuição. A escrita de Lispector é a escrita da intuição porque por “tocar na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de forma” a intuição já começa o trabalho do informe “antes de subir à tona”. Quando sobe, já está pronta, sem divisões. “A dificuldade de forma está no próprio constituir-se do conteúdo, no próprio pensar ou sentir, que não saberiam 187 existir sem sua forma adequada e às vezes única” (idem). Vanguarda é, por fim, o autoconhecimento que vem do fundo; este “pensar” a língua que interfere na forma. Amplia o sentido de “pensar a língua” (LISPECTOR, 2005: 105-6) esgarçando os limites lingüísticos até as fronteiras do sociológico, do psicológico e do filosófico: “[...] numa linguagem real, numa linguagem que é fundo e forma, a palavra é na verdade um ideograma” (LISPECTOR, 2005: 106). O literário, portanto, não é só forma, é também pensamento, reflexão, descoberta – “linguagem de vida” (idem). E aqui Sousa esclarece que mesmo a linguagem utilizada no ensaio se apóia em “imagens ou símiles inusitados” (SOUSA, 2000: 93), corroborando a idéia de que, de fato, o “discurso” de Lispector se torna cada vez mais “invadido” por imagens. Estas “servem as questões de base e imprimem o dinamismo, o ritmo discursivo, ao anunciarem a idéia que passa a ser desenvolvida e confundida com as imagens” (idem). Este esclarecimento parece-me de fundamental importância para a compreensão da nova orientação na escrita de Lispector. Esse dinamismo pode ser ainda pendor desenvolvido a partir do contato com a crônica, como sugere Sonia Roncador em Poéticas do empobrecimento, comentado mais adiante. Vanguarda brasileira será então aquilo que se reconhece como sendo intimamente brasileiro, não apenas linguisticamente (ou seja, em sua forma), mas principalmente em uma consciência brasileira, aquilo que revela sua essência na superfície de sua aparência. Aquilo que torna Julio Cesar, Hamlet, Otelo e Romeu e Julieta essencialmente obras inglesas sem que seu estrato espacial e temporal remetam necessariamente ao território e sociedade inglesas, como aponta Machado de Assis (ASSIS, 1959: 135). Assim é que Clarice considera vanguarda a invenção de um ser e saber-se brasileiro, em fundo e forma. Universal e particular ao mesmo tempo. É esta a “coisa em si”, o substrato de que fala e não a “coisa já literalizada” que move o 188 exterior, que faz com que a forma se curve a essa experiência. Clarice não separa palavra de imagem. Outro texto que tem atraído a atenção de alguns pesquisadores, e que aprofunda a discussão e a compreensão da nova orientação de escrita, é “Objeto Gritante”, este de fato inédito. Julgado por Alexandrino Severino como uma das versões de Água viva, por Sonia Roncador como projeto literário abortado pela autora, e por Carlos Mendes de Sousa como o diário de uma artista, o datiloscrito é contemplado por todos os pontos de vista como importante chave de leitura para a compreensão do processo de criação literária de Clarice. Sobretudo por apontar dados de reflexão sobre a mudança estrutural no tocante à ruptura com o modelo tradicional de livro dentro do conjunto da obra clariciana. O datiloscrito consiste em um texto de 188 páginas (quase cem páginas a mais do que Água viva) com correções feitas à mão pela própria autora, originalmente escrito em forma de diário, como se a autora desejasse registrar reflexões sobre o seu ofício mescladas aos acontecimentos rotineiros do dia-a-dia de uma mulher. Sabe-se que o datiloscrito sofreu inúmeras alterações, chegando a ter pelo menos três versões diferentes, das quais a que se encontra no Arquivo é apenas uma. O crítico Alexandrino Severino, em artigo publicado na revista Remate de Males, revela que Clarice teria lhe encomendado, à época, a tradução para o inglês do que viria a ser mais tarde o texto de Água viva. "Guardo até hoje uma primeira versão de Água viva, que na ocasião se chamava "Atrás do Pensamento: Monólogo com a Vida" (SEVERINO, 1989: 115). Sendo assim, temos notícia de pelo menos duas versões anteriores à Água viva: a versão do Arquivo, intitulada “Objeto gritante”, porém com três outros subtítulos escritos à mão na primeira página e rasurados, a saber: “Monólogo com a vida”, “Uma pessoa falando” e “Carta ao mar[?]”, além da versão de Severino, com 151 páginas. No entanto a própria Clarice declara sobre o seu “Objeto 189 gritante”, em entrevista, que “Esse livrinho tinha 280 páginas; eu fui cortando – cortando e torturando – durante três anos. Eu não sabia o que fazer mais. Eu estava desesperada. Tinha outro nome. Era tudo diferente.”18 . Diante dessas informações acredita-se que houve mais uma versão, além das duas outras, de 280 páginas. Como aponta o crítico português, pode-se observar, com o texto de “Objeto gritante”, a transição de uma escrita confessional para uma narrativa, em Água viva, que visa a reflexão sobre a própria escrita, por meio da técnica da figuração envolvendo o diálogo com a pintura e a música, a partir de uma visível alternância entre a menção de fatos pessoais e a reflexão artística. Trata-se de uma escrita que se liberta da necessidade de uma estética – necessidade já sugerida em A paixão... - e inventa a si mesma, repetindo o gesto do homem transumano que reinventa a própria noção de humanidade ao efetuar o mergulho na vida em si mesma . Uma escrita, como dizia um dos títulos possíveis do manuscrito de “Objeto gritante”, atrás do pensamento. A partir da década de sessenta, os textos da autora passam a destacar o contraste entre estilo lírico e coloquial, poesia e fatos domésticos, abstracionismo e figurativismo, além de acentuar o diálogo com outras expressões artísticas como a pintura e a música, resultando em uma narrativa que visa explicitar o processo criativo de composição. Este método se baseia na colagem de textos de diferentes estilos e material heterogêneo: crônicas, diário, poesia, narrativa de caráter fragmentário, sem definição de tema ou forma, apenas em justaposição paratática. Com isso, produz-se uma escrita na qual o objetivo é escrever o que vem à mão, concedendo caráter fragmentário e a-literário, com efeito de improvisação sem, contudo, deixar de praticar a reflexão sobre a escrita. Para tal, as referências ao ato da criação literária são a tentativa de preservar os rastros do 18 RONCADOR, S. Poéticas do empobrecimento. A escrita derradeira de Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, 2002, p. 52, apud Gotlib, 1995:410. 190 drama 19 e das circunstâncias de produção decorrentes de um combate entre criador e criatura. Em obras como Água viva, Um sopro de vida e Onde estivestes de noite, a autora desestabiliza as noções clássicas da narrativa e questiona a tradição literária. Se, por um lado, em termos de estrutura formal, Clarice inicia a ruptura com a narrativa tradicional em A paixão segundo G.H., instituindo a transição para uma fase que acentuará a escrita heterogênea na fusão de textos de diferentes estilos, é somente a partir de Água viva que o texto clariciano radicaliza a nova composição, que não repete a estrutura diarística e em tom confessional de “Objeto gritante”, mas que também não se prende aos questionamentos de A paixão segundo G.H. É com Água viva que novos traços se firmam, pois o marco de mudança estrutural havia sido lançado com “Objeto gritante”. Clarice Lispector elabora projeto estético em “Objeto gritante”, abandona-o para dar espaço a outro projeto estético em Água viva, porém carregando as marcas deixadas pela criação do processo iniciado com A paixão segundo G.H. Alguns dos críticos que estudam a obra clariciana parecem concordar que sua escrita foi bastante influenciada pelo estilo da crônica, mudança decorrente de seu trabalho como cronista do Jornal do Brasil na segunda metade da década de sessenta. Essas transformações e influência ficam explícitas com a leitura do datiloscrito de "Objeto gritante" e marcam o tom de praticamente a maioria dos textos publicados a partir da década de setenta. Sonia Roncador divide a produção clariciana em dois momentos: o primeiro, marcado por textos que, mesmo em face à ruptura de Clarice com a tradição, mantêm certo conservadorismo da estrutura narrativa nos moldes tradicionais, cobrindo o período anterior à década de setenta. O segundo momento inclui textos que se inserem dentro de um projeto estético desenvolvido ao longo dos últimos 19 Sonia Roncador desenvolve sua análise nos termos de uma reflexão sobre o conceito de índice, elaborado por Charles Peirce, que não será abordado nesta tese. 191 dez anos de vida da autora. Segundo Roncador, as obras situadas antes da década de setenta, ainda apresentam características líricas e miméticas bastante típicas da narrativa “tradicional” como, por exemplo, a presença de personagens bem definidos e narradores que, apesar de carregarem traços do universo biográfico da autora, ainda assim se distanciam da figura do autor, mantendo clara a distinção entre construção ficcional e realidade. Isso incluiria as duas obras analisadas nos capítulos anteriores, dentro da linha de pesquisa da ensaísta brasileira. No entanto, na década de setenta, a partir da elaboração de "Objeto gritante", novas diretrizes estruturais, estilísticas e conteudísticas começam a aparecer para ganhar solo firme no conjunto da obra clariciana. Em sua tese, Roncador levanta duas questões importantes, a saber: primeiramente, a de que haveria dois projetos estéticos completamente diferentes entre a elaboração de "Objeto gritante" e a forma final de Água viva. Dentro dessa perspectiva, a segunda questão se impõe: o que, em "Objeto gritante", foi eliminado e o que foi incluído em Água viva, como e por que este segundo texto teria se transformado em outro projeto estético, já que, com a escrita de "Objeto gritante", a nova atitude toma rumo definitivo. E ainda, como a escrita de “Objeto gritante” influenciou a mudança verificada no modo de escrita clariciano. Roncador aponta que as alterações feitas no datiloscrito incluem acréscimos, eliminações, transformações de ordem estrutural, temática e estética permitindo a formação do que vem a chamar de "forma do nada para ninguém", isto é, um relato que não apresenta direção, objetivo ou unidade, e tampouco estilo definidos ou narrador imaginário. Quem narra é a própria Clarice, em narrativa de tom confessional, sem personagens e tampouco sem destinatário, se tomarmos o texto como uma carta, como 192 Comentário: Buscar exemplos do OG. sugere um de seus títulos 20 , distinguindo-se, por exemplo, de Água viva ou Um sopro de vida que se dirigem a um personagem quase inexistente porém onipresente, que é o par amoroso ausente. Deseja-se elaborar uma escrita que aconteça de acordo com "o pulsar da vida", sem que seja pré-concebida, organizada ou voluntariosa, para que não precipite um sentido. Uma escrita com algumas características sugestivas da estética surrealista 21 . Interessa neste momento unicamente a aproximação que se estabelece com o pensar o modo como o surrealismo consolida um novo estatuto para a linguagem ao operar no registro do acaso objetivo, do encontro fortuito que institui um pensamento analógico e estabelece uma correspondência entre elementos diversos em comunicação com o mundo. Nasce uma nova idéia de beleza estética, não mais aquela que reside na realidade imediata, mas na aproximação de registros de realidade opostos e distintos de modo que a surpresa do novo e do estranho, aquele mesmo Unheimilich freudiano apontando no primeiro capítulo, possibilite a formação de novos sentidos e a fusão dos limites que as distanciam. Assim como Picasso, em “Cuia com frutas, violino e taça de vinho” (1912) e “Violão” (1913) introduz elementos como recortes de jornal ou pedaços de outros materiais à tela de conteúdo fragmentário, em justaposição, Édouard Manet e Claude Monet, ao simplificarem a superfície do quadro com pinceladas pouco definidas, obliterando o foco da composição e tornando o ambiente impreciso, põem em circulação o contraste com as pinturas de traços clássicos, empregando artifícios que 20 Na capa do datiloscrito há três outros títulos (ou subtítulos), além de “Objeto gritante”, à maneira do que faz a autora em A hora da estrela, a saber: “Monólogo com a vida”, “Uma pessoa falando” e “Carta ao mar”. 21 Roncador verifica uma atitude literária na obra clariciana semelhante à atitude encontrada nos textos surrealistas de um “projeto de narrar o acaso” que provoca um efeito de casualidade na narrativa, além da articulação entre duas realidades: a romanesca e a não-ficcional. Acrescente-se a esse programa uma intenção de negar a forma do romance, a introdução de fatos autobriográficos com valor de documento, sem organização formal prévia, e o registro no texto das “circunstâncias de sua produção” de forma que o texto instaure uma “tauromaquia”, isto é, que o texto se torne uma ameaça ao autor, provocando um efeito real e físico. Um livro como um “ato”. O resultado desse programa estético é a aparência de uma “colagem” ou “fotomontagem”. (Cf. “Introdução”, pp. 11-45, e o capítulo II, “Um realismo positivo, ou estilo e ruptura na ficção tardia de Clarice Lispector”, pp. 101-145, em Poéticas do empobrecimento. A escrita derradeira de Clarice, São Paulo: Annablume, 2002). 193 revelam uma das características mais representativas da noção de modernidade: a diferença. O mais importante, entretanto é que a maneira de exercitar essa diferença recai no tratamento que o artista dá à sua obra, o que implica muito mais a preocupação com a técnica utilizada na composição do que o tema propriamente dito. É como se o tema de todos os diferentes movimentos fosse em si mesmo a técnica, o meio da representação. A diferença, sempre anunciada por cada nova técnica empregada, anunciava também aquilo que Baudelaire, por sua vez, acreditava expressar mais a idéia de modernidade: o movimento, a dinâmica, o mutável - identidade da experiência moderna. E que armava o cenário para o surgimento do Surrealismo, uma vez que a diferença e a experiência do distinto eram as marcas que mais destacavam a estética surrealista. No centro desse processo, cada experiência surrealista desenvolvia a construção de novos significados a partir da aproximação de elementos díspares, em técnica de justaposição paratática, e sempre por meio da sugestão, e não pela afirmação lógica e consciente. A intenção de fazer com que do encontro fortuito entre dois signos surgissem novos significados interessa uma vez que esses significados permanecem no limite entre o desconhecido e o possível. Deliberadamente enigmáticas, as relações que decorrem deste evento introduzem ao mesmo tempo a destruição do antigo, impondo a experiência da morte, e a reconfiguração de novos universos, proporcionando o contato com o nascimento do novo. Morte e vida. Assassinato e progenitura. Palavra e rasura. A impossibilidade de livrar-se dos duplos. A impotência de suspender os mortos, que insistem em não morrer. E o trabalho de fantasmagoria dos mortos tem o efeito de desorientar a ordem do real. Para os surrealistas, “não se tratava apenas de questionar a ‘realidade’, mas também de questionar a forma pela qual ela era normalmente representada”, como aponta Briony Fer (FER, 1998: 172). 194 Assim, portanto, esse questionamento se apresentava como uma recusa às normas e dogmas definidos por uma comunidade artística e uma tradição literária da “boa forma narrativa”, como apontam Roncador (RONCADOR, 2002: 25) e Reguera (REGUERA, 2006: 49). Parece-me que a intenção de Lispector ao escrever “Objeto Gritante” era, por meio da justaposição de trechos de diferentes estilos, como uma colagem de materiais lingüísticos distintos, primeiro criar uma obra que se destacasse pela técnica literária utilizada, pelo meio de representação deste objeto22 . Em seguida, o efeito decorrente deste ato – e o ato se impõe como posicionamento do artista – concretizava-se como ataque aos dogmatismos, criando um ambiente literário bastante ambíguo e esfumaçado, de modo que não se pudesse classificar a obra como livro. E esse desejo virá expresso em Água viva como mensagem da autora. Note-se que o gesto corrobora, de fato, uma atitude intencional diante da escrita, uma atuação direta sobre a construção de conceitos como o de alta literatura ou baixa literatura e na formação de um público, uma vez que a autora aponta na capa do datiloscrito que se trata de um “anti-livro”, contrariando a elaboração de um texto sem qualquer projeto de escrita. Esse desejo permanece, porém de forma reconfigurada, em Água viva. Nessa obra, a narradora, agora não mais retratada como a própria autora, mas, sugestivamente, uma pintora, afirma: “Este não é um livro porque não é assim que se escreve. O que escrevo é só um clímax? Meus dias são um só clímax: vivo à beira.” (LISPECTOR, 1978a: 12). O desejo de “criar uma anti-literatura” e “desmistificar a ficção” 22 Clarice parece pronta a experimentar o que já havia desejado fazer na década de quarenta, como revela uma de suas cartas a Lucio Cardoso: “Eu queria fazer uma história cheia de todos os instantes, mas isso sufocava o próprio personagem. Acho mesmo que meu mal é querer ter todos os instantes” (SABINO & LISPECTOR, 2002: 63). Clarice, em “Objeto Gritante”, sufoca o personagem e também o narrador, pulverizando as normas da narrativa tradicional. 195 Comentário: A mudança da escrita não está na presença do corpo, mas na referência à imagem. CL passa a criar seus textos mais sobre seqüências de imagens, com referencias explícitas à pintura, fotografia, a um grafismo, a uma imagética, do que em todos os romances anteriores que se apresentam como mais "tradicionais". Com isso, elabora uma escrita cada vez mais abstrata, apesar do grafismo. Ver Sousa. (RONCADOR, 2002: 113) veiculados em “Objeto Gritante” perturba a própria autora, que envia o datiloscrito ao amigo José Américo Pessanha para uma avaliação e leitura. A pesquisadora explica que, à época, Clarice pediu a ajuda do amigo José Américo Pessanha como leitor crítico do texto, uma vez que não conseguia decidir se o manuscrito deveria ser publicado ou não. As observações sobre “Objeto Gritante” encontram-se em carta inédita enviada por Pessanha como resposta ao pedido de Clarice. A carta data de 5 de março de 1972 e encontra-se no Arquivo Clarice Lispector. Em sua reflexão acerca do manuscrito (RONCADOR, 2002: 55), Pessanha explica que “desaprova” a publicação da obra por duas principais razões destacadas por Roncador. A primeira delas é a de que, por utilizar novas técnicas de composição literária – como a “bricolagem”, termo aplicado pelo próprio Pessanha, a autora “desapontaria a expectativa de seus críticos” e “leitores”, ainda que revelasse uma radical originalidade com a obra. Esta originalidade se aproximaria muito do esforço dos surrealistas na rejeição do que sejam os artifícios empregados pela arte que, no caso da autora, significaria um “repúdio ao trabalho da ficção” (RONCADOR, 2002: 56), de forma que o tema da obra fosse a vida cotidiana da autora. Assim a obra poderia ser classificada como sendo um diário ou carta pessoal (idem, p. 57). Clarice abandonaria a elaboração formal e temática, desobedecendo “certas regras da composição artística” (RONCADOR, 2002: 58), o que afrontaria a noção de livro proposta pela tradição literária. Neste sentido, a obra de Clarice se configuraria como “a-literária”, como um “anti-livro”, como aponta a própria autora na capa do manuscrito. Em segundo lugar, Pessanha compara “Objeto Gritante” a outras obras de Clarice e afirma que haveria um descompasso com a “unidade conceitual e estilística” das obras anteriores que havia marcado a escrita de Clarice. 196 Para Roncador, o projeto de escrita de Clarice em “Objeto gritante” continha marcas irrevogáveis de que o gênero da crônica havia influenciado a elaboração do datiloscrito, uma vez que Clarice tenta apagar as marcas da ficção em nome de uma escrita casual e heterogênea. O mais importante, parece-me, é que no processo de reescrita de “Objeto gritante” ao que se tornará Água viva, a escrita que antes se empenhara em repudiar o trabalho de ficção, desficcionalizando a linguagem e incluindo o tom informal e casual de uma conversa, passa a se reficcionalizar. Quero dizer com isso que a mudança na obra de Clarice implica uma ficcionalização de todas as marcas que antes eram “reais” ou pertenciam ao universo autobiográfico, como será avaliado mais adiante. Os comentários do amigo desnorteiam ainda mais Clarice que, sem justificativa, talvez desorientada pelas críticas feitas, resolve abandonar o projeto e modificá-lo por completo. Pergunto-me então o que fez Clarice desistir de tal desafio? Penso que mais do que o medo de perder um público leitor ou ser fulminada pela crítica, como aponta Pessanha, talvez o posicionamento literário da autora estivesse demasiadamente explícito. Reconfigurando seu projeto, poderia então abrir as portas para um posicionamento mais sutil e sugestivo, porém não menos violento. Talvez porque fundo e forma, em “Objeto gritante” ainda não estivessem em equivalência e a elaboração da forma se sobrepusesse ao trabalho do fundo, resultando em um produto final com marcas muito fortes de um experimentalismo literário mais do que de uma verdadeira experiência artística. Penso que, com a publicação de A via crucis do corpo, Onde estivestes de noite, A hora da estrela, a linguagem vai se tornar cada vez mais um artifício, em dois sentidos: o primeiro no sentido de farsa, encenação, fingimento, como uma máscara que ao mesmo tempo esconde o que é, apresentando um rosto falso, mas jamais abdicando deste rosto como parte constitutiva do que ela é. Em segundo lugar, 197 entendendo artifício na sua acepção mais primitiva possível: o artifício é também um processo do artefazer, nos termos marioandradinos, um meio único desenvolvido pelo artista na elaboração de seu objeto artístico. E a referência a Mario de Andrade não se apresenta sem propósito. Chamo atenção, no entanto, para o fato de que o convite feito a Mario de Andrade, nesta tese, serve ao propósito de discutir o sentido do fazer poético e não do compromisso moralizante e social envolvido no questionamento sobre a atitude estética, nos termos propostos por Mario em sua aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, ainda que a própria Clarice afirme em carta a Fernando Sabino que “trabalhar” (leia-se, escrever) “é a minha moralidade” (SABINO & LISPECTOR, 2002: 21). Interessa a esta tese pensar a proposição de que a atitude estética do artista é da mesma forma uma atitude diante da arte e diante da vida e está diretamente ligada à relação do fazer com a matéria que o artista utiliza para realizar este fazer. Neste ponto Mario recupera a aproximação que o artista tem com o artesão. A constatação de que não se pode ensinar arte, apenas uma técnica, que será desenvolvida por meio do talento de cada artista, desloca o foco de atenção do artista em si para o objeto, uma vez que a técnica a ser empregada está intimamente associada à matéria com a qual o artista trabalha. O ponto central desta idéia consiste em desviar o foco da ação individualista, que privilegia o gênio do artista moderno para a obra de arte em si, no sentido de que o que orienta a arte é a sua práxis, seu agir e fazer, e não um condicionamento subjetivo. A poiesis ou o fazer poético, portanto, é mais uma ação que se refere ao exercício de uma operação sobre um objeto do que a especulação sobre este fazer. Neste sentido, a tese da indistinção da arte e do artesanato se vincula não apenas ao artista moderno, mas a qualquer tempo histórico, centrando-se na relação mais genuína entre o artista e sua obra. Segundo Eduardo Jardim, o interesse de Mario de Andrade reside “no embate com 198 a matéria e no reconhecimento pelo artista e pelo artesão do poder de determinação que advém dela” e é aí que se encontra “a origem comum dos procedimentos artísticos e artesanais” (JARDIM, 1999: 73). Parece-me que se a marca da subjetividade e do artista ainda se encontra muito presente na elaboração do datiloscrito, a atitude desenvolvida a partir da escrita de “Objeto gritante” desloca o foco para a linguagem, para a matéria, para certo caráter performático da escrita que acaba por embotar as fronteiras entre ficcional e nãoficcional. Em "Objeto gritante", a realidade irrompe na linguagem por meio do relato de ações concretas do cotidiano da autora em tempo e espaço reais, introduzindo um relato autobiográfico ao modo dos diários, de maneira que se possam indicar as circunstâncias da produção do ato da escrita. Para Roncador, a elaboração de “Objeto gritante” consiste na tentativa estética de questionar a arte e a literatura enquanto instituições, na base de sua estrutura ordenada e fixa, construindo uma narrativa que explicite o processo criativo de composição e aponte marcas temporais e espaciais do momento da composição. Este método baseia-se no sistema de composição nomeado por José Américo Pessanha (PESSANHA, 1989) de "bricolagem" de textos e material heterogêneo de diferentes níveis de linguagem: crônicas, diário, poesia, narrativa de caráter fragmentário, sem definição de tema ou forma, utilizando-se da prática de justaposição paratática, que leva à produção de um texto heterogêneo e híbrido. Com isso, produz-se uma escrita na qual o objetivo é escrever o que vem à mão, isto é, sem elaboração precisa, concedendo caráter fragmentário e a-literário com efeito de improvisação. Para tal, as referências ao ato da escrita são a tentativa de preservar os rastros do drama e das circunstâncias de produção decorrentes de um combate entre autor e texto. (RONCADOR, 2002:52). A influência de tais procedimentos na escrita clariciana será abordada mais adiante. Neste momento interessa mostrar que o mesmo 199 caráter de improvisação que muitos críticos apontam como sendo parte constitutiva de Água viva, nesta obra, diferentemente de “Objeto gritante”, nada mais é do que um efeito estético criado propositalmente pela autora. Para Roncador, Clarice inicia uma fase após a produção de "Objeto gritante" de uma escrita menos “bela”, esteticamente falando, e cada vez mais “pobre”. É a escrita “deflacionária” ou “empobrecida”, segundo as definições barthesianas propostas por Roncador e que só aparecem de fato em 1974, com A via crucis.... Por outro lado, para Sousa, a mudança decorre do fato de que o corpo passa a ter um impacto maior na escrita, deixando marcas na identidade e, conseqüentemente, na própria literatura, já que esta devém de um constante jogo de afirmações e negações que influencia a construção de um eu que emerge da/na própria escrita 23 . De fato, os contos de A via crucis..., chamados de “contos pornográficos” porque tratam de “assunto perigoso” (LISPECTOR, 1991:19) problematizam a sexualidade e a relação do indivíduo com os outros corpos. Ambos os críticos reconhecem uma radical mudança na atitude da autora perante a escrita entre o fim dos anos sessenta e a década seguinte, porém com justificativas opostas. Enquanto Roncador enxerga uma “deflação” na prosa clariciana, Sousa aponta a acentuação do jogo de ocultamento e revelação do biográfico que devém escrita, sem que isso se constitua uma "deflação estética" (RONCADOR, 2002:15) (rebaixamento da potencialização do nível retórico). Dessa forma, enquanto A paixão segundo G.H. é a escrita da desorganização, Água viva é a escrita da regeneração em 23 Em relação à imagem do corpo na literatura, Santos afirma que os romances do século XIX deixam perceber a proliferação de doenças e casos de morte em personagens afetados por frustrações afetivas que enfraquecem o corpo até a sua total degeneração. A dor do sofrimento é colocada de lado enquanto que a dor do corpo se apresenta como mecanismo de defesa, pois a doença e a morte são "um desprazer menor a substituir o desprazer maior" (SANTOS, 1999: 20). Nota-se que a escrita de Clarice rebate a dor da solidão, do medo, da incomunicabilidade e do obscurecimento da expressão de afeto, por meio da regeneração na escrita e "do exercício do viver as forças demoníacas em suas tonalidades particulares, assustadoras, inebriantes, díspares" (SANTOS, 1999: 27). 200 Comentário: Entra nota sobre a escrita. termos da construção de uma identidade que devém escrita a partir da doação de si para si mesma. A identidade é construção textual. Entretanto, se Lispector decide não publicar “Objeto gritante”, por razões desconhecidas, e transformá-lo em um programa de escrita completamente distinto, cujo resultado final foi Água viva, nesta obra Clarice se liberta da dependência da norma, elaborando uma escrita em que interligará os sistemas da literatura, pintura e música, em direção à recuperação de uma linguagem mais abstrata, porém extremamente sensível, para tratar do que chama de “neutro” ou it, isto é, o estado de ser deveniente, instaurando um diálogo entre silêncio e palavra, imagem e conceito, concreto e abstrato, fundo e forma. Ao convocar o ato de olhar para a leitura do texto, a narradora de Água viva indica o caminho sinestésico que mobiliza o leitor em sua tarefa: “O que te digo deve ser lido rapidamente como quando se olha” (LISPECTOR, 1978a: 17). Depreendese de tal gesto que o texto é construído não apenas para ser lido, mas para ser visto, como se fosse um quadro. A partir de Água viva, novos traços se firmam, pois o marco de mudança estrutural havia sido lançado com "Objeto gritante". Clarice Lispector elabora projeto estético em "Objeto gritante", abandona-o para dar espaço a outro projeto estético em Água viva, porém carregando as marcas deixadas pela criação do projeto anterior. A ruptura dos anos setenta não está desvinculada das incursões literárias anteriores. Se, para a pesquisadora, a primeira fase da escrita de Clarice Lispector chega ao seu ponto máximo e, ao mesmo tempo, ao término de um projeto estético com A paixão segundo G.H., é a partir daí que se inicia, ou que se intensifica, outro programa de escrita. Um aspecto bastante curioso que diferencia "Objeto gritante" de Água viva, aproximando-os e, da mesma forma, afastando-os reside, por exemplo, no modo como Lispector elabora referências sobre o universo da pintura. Sousa chama atenção para 201 algumas rasuras que começam a aparecer no meio do datiloscrito. Verifica que tais rasuras se referem a termos ligados ao campo semântico da escrita, como 'escrever', 'escrita', 'texto', que, em uma fase de reescritura e tornando visível uma direção definida, são alterados para seus equivalentes no campo semântico da pintura. Escritas à mão estão as palavras 'pintar', 'pintura', 'tela'. "Não se trata do tipo de rasura que acompanhe um processo, mas de um acrescento que releva de uma forte intencionalidade programada" (SOUSA, 2000:306). Como exemplo do datilostcrito de "Objeto gritante" cita: Quanto a certo [romance] {pintura}, não me lembro mais onde foi o começo, sei que não comecei pelo começo: foi por assim dizer [escrito] {pintado} ao mesmo tempo. Tudo estava ali, ou parecia estar, como no espaço-temporal de um piano aberto, nas teclas simultâneas de um piano. [Escrever] {pintar} procurando com muita atenção o que se estava organizando em mim, e que só depois [da quinta cópia paciente] é que passei a perceber. Passei a entender melhor a coisa que queria ser dita. Meu receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em me compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido. Tinha a impressão, ou melhor, certeza de que, mais tempo que eu me desse, e [a história] {os meus quadros} diria{m} sem convulsão o que [ela] precisava{m} me dizer (Lispector, fl. 146, apud SOUSA 2000: 308) O pesquisador aponta a proximidade: se em um primeiro momento, a 'escrita' é substituída pela 'pintura', em um segundo, ambas as linguagens aparecem em coexistência, interpenetração e intercâmbio entre palavra e imagem, característica que é a tônica de Água viva. Como aponta, à página 167 de "Objeto gritante" lê-se "De qualquer modo, escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu". Tal passagem é, entretanto, reparada com um acréscimo onde se passa a ler: "De qualquer modo escrever e pintar..." (Lispector, apud SOUSA, 2000: 308). O que se verifica é a 202 substituição de termos inicialmente integrados sem qualquer pré-determinação que, no desvelar da escrita, vão demonstrando um processo programado de "duplicidade polissêmica" (SOUSA, 2000: 307). Portanto, o que para Roncador aparece como texto não voluntarioso, revela, por meio do seu processo de reescrita, a metamorfose de um projeto estético em outro. Se o efeito de improvisação provocado por "Objeto gritante" se deve ao fato deste se apresentar em forma de diário, a escrita de Água viva mantém aparentemente esse mesmo caráter de improvisação, revelando-se, contudo, após olhar mais atento, como texto programadamente fragmentário e fortemente estruturado como se os "pedaços de vida" descritos em "Objeto gritante" fossem agora expostos plasticamente em Água viva. Ao contrário do que afirmam alguns críticos, só "aparentemente" Água viva mantém caráter de improvisação, pois atrás do pensamento existe um ritmo, que organiza e direciona toda a obra. Segundo Octavio Paz: En el fondo de todo fenómeno verbal hay um ritmo. Las palabras se juntan y separan atendiendo a ciertos principios rítmicos. Si el lenguaje es un continuo vaivén de frases y asociaciones verbales regido por un ritmo secreto, la reproducción de ese ritmo nos dará poder sobre las palabras. El dinamismo del lenguaje lleva al poeta a crear su universo verbal utilizando las mismas fuerzas de atracción y repulsión (PAZ, 2003: 53). Sousa não é o primeiro a demarcar o estilo clariciano de expressar o sensível por meio de técnicas visuais e plásticas. Olga de Sá 24 e Guilherme Figueiredo já haviam chamado atenção para esse procedimento. Aponta para as linhas como expressões do próprio pensamento e os círculos (ou espirais) como expressão da força expansiva, do ato criador. Ao fazer bolinhas com o miolo do pão, enquanto se 24 Para Olga de Sá (SÁ, 1979) é o caráter limitador da discursividade que faz a pintora-narradora de Água viva introduzir na linguagem os processos da pintura e da fotografia. 203 questiona sobre quem é, G.H. está a modelar sua própria forma, metáfora do autor e da criação. E descreve, com isso, o processo de sua escrita: modelar o texto como se modela a massa disforme e circular que é também o ser em busca de sua própria expressividade, e a palavra que compõe o texto da vida ou o texto que é composto pela palavra vital. Se, desde seu primeiro livro, encontramos referências explícitas a um grafismo que começa a tornar-se mais expressivo, é ao longo de sua obra que podemos notar mais claramente a presença e importância da imagem em sua forma artística. À medida em que as imagens vão sendo desenhadas, esculpidas e pintadas, a compreensão acerca do ser vai se estampando no papel. Modelar figuras em movimento como estátuas vivas é refletir o interior no exterior. Por que arrumar a forma? Para quê? Modelar uma forma é também relatar. Busca-se relatar o inexpressivo na forma expressiva, gesto que refaz o ato criador e instituidor do novo mundo e do novo ser. Para isso, antes, a palavra desarruma a construção erguida pela cultura. Se em A Paixão... a busca é pela reconciliação do homem com o ser pleno, em Água viva, a alusão à fundação do mundo e plenitude do ser é constante. Passar "para o outro lado da vida" (LISPCETOR, 1978a: 19) é iniciar outra vida, espaço onde ocorre o parto do novo ser. A imagem do nascimento é dominante em Água viva, nascimento do ser que surge já sem o amparo da terceira perna, abolida em A paixão segundo G.H. e que remeterá ao devir da escrita. Diz a narradora: "Ergo-me devagar, tento dar os primeiros passos de uma convalescença fraca. Estou conseguindo me equilibrar" (LISPECTOR, 1978a: 20). O momento em que o descortínio da vida se realiza virá expresso no que Clarice chamará de “estado de graça” (idem, p. 88). Através dele descobre-se que “realmente se existe e existe o mundo” (idem). Portanto, o estado de graça manifesta a plenitude da existência - porque nesse momento experimenta-se “ganhar um corpo e uma alma” (LISPECTOR, 1978a: 89) - e engendra 204 “a anunciação do mundo”. Em Água viva, este momento é seguido de uma reflexão sobre a linguagem, uma vez que a narradora tentará “tornar eterna” a “felicidade” “por intermédio da objetivação da palavra” (LISPECTOR, 1978a: 90), de forma que possa “prender” o que lhe aconteceu “usando palavras” (idem). Portanto, a reflexão sobre a vida está associada à reflexão do próprio fazer literário. Para explicar o estado de graça, a autora começa a tratar do que seja a forma em que ele se apresenta e de como expressar essa forma. A única maneira, diz, é através do “pensar-sentir” já que “o verdadeiro pensamento se pensa a si mesmo” (ibidem), e por isso é livre de forma e inclusive livre da figura pessoal de um autor. “O verdadeiro pensamento parece sem autor” (LISPECTOR, 1978a: 91). E o estado de graça ou “beatitude” carrega “essa mesma marca”. Portanto, ao falar de nascimento, a autora fala também de dissolução, porque “a beatitude começa no momento em que o pensar-sentir ultrapassou a necessidade de pensar do autor” (idem) e atingiu “o nada”. A integridade pessoal do autor está ameaçada. E com ela vem a ameaça à desintegração dos limites entre real e ficcional, e daqueles que classificam alta e baixa literatura 25 . Este é o ponto em que a incomunicabilidade toca a comunicabilidade. E imediatamente a narradora passa a falar de música e de voz, construindo “cenas” que retratem o abstrato daquilo que está dentro de sua fala, quase que em aforismos. Se no romance de 1964 o tom é de dissolução da subjetividade, em Água viva Clarice coloca a arte e não a subjetividade no centro da reflexão, pois a narradora diz que o nascimento do ser e do mundo "não acontece em fatos reais, mas sim no domínio de – de uma arte?" (Idem) "Sim", responde a narradora, o texto que surge narra o nascimento da arte. 25 Para Olga de Sá, o instrumental da escritura epifânica na obra de Lispector se coloca nos termos da utilização de dois recursos complementares que se constituem como pólos de criação: o modo de iluminação – glorioso e sublime – e o estilo humilde da anti-epifania ou da epifania crítica, resultando em uma alternância entre estilo luminoso e estilo pobre, no qual surgem referências ao mole, ao demoníaco, à violência e ao gosto pelo mal (SÁ, 1991: 205). 205 Na crônica intitulada “Temas que morrem”, de 24 de maio de 1969, a autora explica o que mais tarde será apresentado ficcionalmente na elaboração de Água viva. A crônica propõe que há tantos temas a serem tratados na literatura quanto os há na vida porque todos são sempre experiência viva, isto é, nascem de uma experiência vital e, portanto, jamais se esgotarão. Diz: “estou cheia de temas que jamais abordarei. Vivo deles, no entanto”. No entanto. No entanto, tais temas se configuram como temas que morrem porque “morrer” é “parte essencial da natureza humana, animal e vegetal” (LISPECTOR, 1994: 207) e as “coisas morrem”. Assim como viver é parte essencial dessa mesma natureza porque, como diz a narradora de Água viva, “antes da morte” há o “delicado da vida” (LISPECTOR, 1978: 57). A reflexão se desenvolve, não obstante, em direção à dificuldade de escrever sobre esses temas porque são todos “exíguos”, quase abstrações. E pela sua exigüidade o que mais importa é o impulso que obriga o autor a escrever, a força de criação. E é assim que rapidamente este impulso se torna o tema central, e “a experiência de ser desorganizada”, a sensação de “estar gripada”, o “beber mal”, o “comer”, o falar sobre “frutos e frutas” (LISPECTOR, 1994: 207-8), se constituem apenas como temas periféricos. Entre fatos corriqueiros e assuntos de densidade como a dor, a morte, o paraíso, a crônica tratará do processo de criação. Os temas são temas que morrem porque o momento de criação é tão fulminante quanto a morte. Toda obra de Clarice tenta dar conta deste “instante mínimo” (LISPECTOR, 1994: 207) em que simplesmente se sabe “como é a vida”, “como a arte deveria ser” (idem). Executa-se um pacto entre escritor e escrita: o de “ver e esquecer para não ser fulminada pelo saber” (ibidem). A escrita de Lispector é, portanto, uma escrita da visão e da cegueira, do tudo e do nada, por isso forma-se uma escrita do estertor. A vida mais corriqueira pode conviver, enquanto tema de escrita e exercício de vida, lado a lado da vida mais profunda, assim como a miséria convive lado a lado da opulência, o abjeto do 206 puro, o baixo do elevado, e assim por diante. Creio que essa escrita quer dar conta de um real que se mostra aos olhos do escritor por meio da apreensão de um universo que é da ordem do haver, isto é, um real que simplesmente é. E junto ao é há o não-ser, junto ao existir há o inexistir. Como a morte. Morrer, em sua acepção intransitiva, mais direta, é simplesmente “deixar de ser”. Nesse sentido, existir e inexistir, morrer e viver, haver e não-haver tornam-se condições intercambiantes e entremeantes porque são partes essenciais de uma dada natureza. “E vem a idéia de que, depois de morrer, não se vai ao paraíso, morrer é que é o paraíso” (LISPECTOR, 1994: 208). Assim como o paraíso não sucede à morte, mas é contínuo ao próprio morrer, a autora deseja dizer que “pintar” e “escrever” são partes constitutivas e intercambiantes de sua escrita, desdobramentos de uma coisa só que é a criação literária, de um continuum inexaurível. “Escrever não é quase sempre pintar com palavras?” (idem). Porque a realização do ser e da arte não é a plenitude da vida ou da verdade, mas a sua contínua inesgotabilidade. Em Água viva é no primeiro parágrafo que o leitor toma conhecimento do tema a ser tratado na obra: o instante mínimo em que se constitui a criação, momento de formação da escrita. A pergunta direcionada ao leitor: “O próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho?” (LISPECTOR, 1978a:9) é imediatamente respondida pela narradora: “Fazemo-lo juntos com a respiração” (Idem). O universo literário construído por Clarice Lispector envolve todas as faculdades do sensível e todos os participantes desse acontecimento. Para além de sons, signos ou imagens, Clarice instaura uma nova expressão que envolve inclusive o silêncio, ponto de encontro onde todas as expressões se fundem para exprimir o inexprimível, o impronunciável, o desconhecido: o núcleo vivo da vida. É na própria epígrafe de Água viva que está contido o sentido da escrita clariciana: 207 Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência 26 Uma pintura livre da dependência da figura é o abstrato? Uma pintura que não ilustre, conte história ou lance mito, mas na qual sonho é o mesmo que pensamento, e traço o mesmo que existência, é uma pintura cujo significado maior é o da experiência em si. Trata-se da captura do movimento contido na experiência. As tentativas da narradora de Água viva de capturar o instante-já, o segundo e todos os seus segmentos, consistem em experimentar o instante que cabe em qualquer tempo - presente, passado e futuro - pois não está contido em nenhuma medida de tempo ou espaço, é apenas vivido, isto é, tem a dimensão da experiência. A inscrição por meio de traços, palavras e letras busca capturar o momento de queda que se torna rasura. Portanto a inscrição do ser sobre a parede no romance de 1964 pode ser também entendida como a escritura da vida no papel ou na tela. E a existência gravada pelo traço sobre o fundo branco é corpo rasurado que revela o corpo da escrita, também rasurada e desalinhada. Ao buscar a união de sistemas de criação para dar conta de narrar a vida em si, a autora une intelecto e sensibilidade, já que para si uma categoria não se dissocia da outra, assim como o homem precisa das duas pernas para caminhar. As duas pernas que “caminham juntas” em A paixão segundo G.H. referem-se às duas formas de existência necessárias e indissociáveis para a integridade do ser. Ao dizer ao leitor que: “Não se compreende música: ouve-se” (LISPECTOR, 1978a:10), a narradora está dizendo que a 26 Trecho de Michel Seuphor utilizado por Clarice como epígrafe de Água viva. 208 experiência musical é, acima de tudo, uma experiência sensível e que, tanto quanto a audição, o ato da leitura convoca mais do que lógica e raciocínio: convoca o corpo . Para tal, a composição que busca todo tipo de expressão em conjunto, como um todo, fazendo uso da palavra, do traço e do som, ao mesmo tempo, é a composição que tenta dar conta de algo inexprimível, impronunciável dentro de uma tradição ocidental limitadora. A palavra intocada, aquela que é da quarta dimensão, só se realiza enquanto traço ou som. A escrita de Lispector busca a expressão sinestésica para que as formas de expressar o que é matéria vertente se ampliem e emprestem umas às outras os traços necessários para a expansão delas mesmas. Ao narrar o tempo presente do "instante-já", o próprio tempo discursivo acaba sendo alterado. Não há fábula porque há poesia. É, por exemplo, na intercambiação entre pintura, escrita e música que se mostra o abstracionismo da autora. Já que a palavra não é suficiente para expressar o que deseja, para tocar o intocável, ver o invisível e dizer o indizível, a autora sinestesicamente apropria-se da música e da pintura para narrar a vida, que é o neutro vivo. Estou te falando em abstrato e pergunto-me: sou uma ária cantabile? Não, não se pode cantar o que te escrevo. Por que não abordo um tema que facilmente poderia descobrir? (...) Minha história é a de uma escuridão tranqüila, de raiz adormecida na sua força, de odor que não tem perfume. E em nada disso existe o abstrato. É o figurativo inominável (LISPECTOR, 1978a: 82). É preciso reinventar uma nova forma de escrever e de dar significado à realidade. O signo lingüístico motiva o significante pela construção de imagens – expressão do sensível – de forma que, na narrativa, a materialidade da palavra seja destacada. Por meio dessa estratégia literária, a autora recupera o sensível abolido pela tradição do dualismo psicofísico, agora já na dimensão da linguagem, e o faz interagir 209 com um conteúdo que se quer abstrato e conceitual, de sua própria estrutura literária. O abstrato aponta para o aspecto conceitual da obra, e a autora realiza mais uma vez a união entre o pensar-sentir. Em crônica intitulada “Abstrato é o figurativo”, Clarice revela o funcionamento da escrita desenvolvida em Água viva: “Tanto em pintura como em música e literatura, tantas vezes o que chamam de abstrato me parece apenas o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difícil, menos visível a olho nu” (LISPECTOR, 1994: 340). Clarice busca nas artes plásticas uma maneira de explicar o funcionamento da sua escrita. A escrita se dirige então para o entrelaçamento conceitual e imagético na linguagem poética. Sousa chama atenção para a atmosfera pictórica que invade a obra lispectoriana, como nos jogos de luz e sombra, nas descrições, etc. É, no entanto, em Água viva que essa referência mais se manifesta, quase que a cada período, apesar de aparecer em muitos de seus contos e romances anteriores. O autor nos mostra que Clarice, na maioria das vezes, utiliza-se de metáforas para se referir ao ato da escrita. O que são as referências à noite, aos animais, ou à cidade senão modos de capturar ou figurar o ato de escrever? Partindo da técnica pictórica usada por Clarice em seus textos, o pesquisador (SOUSA, 2000: 290) concentra sua análise na relação imagem/texto que se faz presente in absentia, ou seja, a imagem que é apenas evocada no texto. Como podem ser “evocadas” sem serem “nomeadas”? A resposta só pode ser: por meio de termos que abrangem o campo semântico da pintura, como as inúmeras referências ao quadro, tela, pintor, paisagem, artista, etc., ou por meio das descrições, das adjetivações, sendo esse precisamente o gesto elaborado na construção da narrativa clariciana. Para me interpretar e formular-me preciso de novos sinais e articulações novas em formas que se localizem aquém e além de minha história humana. 210 Transfiguro a realidade e então outra realidade sonhadora e sonâmbula, me cria (LISPECTOR, 1978a: 22). Sendo constante a verificação de termos como "abstrato" e "figurativo" na obra clariciana e na crítica literária sobre a autora, Sousa lembra que é nessa polaridade que se forma uma das decifrações do enigma lispectoriano e que sua escrita se aproxima mais de uma escrita abstracionista ou de um abstracionismo lírico. Explica-se: o abstrato se concretiza na tentativa, mais explícita em Água viva, de fixar no papel o que é incorpóreo e invisível, principalmente quando a autora usa expressões como “pinto idéias”, “pinto o indizível”, “pinto pintura” (Lispector, 1978a: 16, apud SOUSA, 2000: 292). É, por exemplo, na intercambiação entre pintura, escrita e música que se mostra o abstracionismo da autora. Já que a palavra não é suficiente para expressar o que deseja, para tocar o intocável, ver o invisível e dizer o indizível (tudo que é abstrato), a autora sinestesicamente apropria-se da música e da pintura para narrar a vida, que é o neutro vivo. “Estou te falando em abstrato e pergunto-me: sou uma ária cantabile? Não, não se pode cantar o que te escrevo” (LISPECTOR, 1978a: 82). Não se pode cantar apenas, ou escrever ou pintar, pois só é possível tentar captar aquilo sobre o que deseja escrever com a ajuda de todas essas vias de expressão. É preciso reinventar uma nova forma de escrever, de dar significado à realidade. Ao mesmo tempo coexistem o abstrato e o figurativo, pois somente em conjunto é que podem expressar o inexpressivo. Como mostra o crítico português, Clarice busca nas artes plásticas uma maneira de explicar o funcionamento da sua escrita. Ao falar de Água viva, enfatiza a importância do termo gesto, como já havia feito anteriormente Helene Cixous, “é no gesto que melhor se traduz a figuração”, diz o pesquisador (SOUSA, 2000: 294), pois o gesto é visual e sugestivo. E aponta ainda para o fato de o gesto se alternar ora em gesto de escrita, ora de pintura, exatamente como sugestão para a narração do indizível. É nessa obra que 211 primeiro se faz presente a dualidade escrever/pintar, referência que voltará a aparecer em Um sopro de vida. Diz a narradora de Água viva: É tão curioso ter substituído as tintas por essa coisa estranha que é a palavra. Palavras – movo-me com cuidado entre elas que podem se tornar ameaçadoras; posso ter a liberdade de escrever o seguinte: "peregrinos, mercadores e pastores guiavam suas caravanas rumo ao Tibet e os caminhos eram difíceis e primitivos". Com esta frase fiz uma cena nascer, como num flash fotográfico (LISPECTOR, 1978a: 23). Ao falar do processo da escrita clariciana, que substitui as tintas pelas palavras nessa dualidade, Sousa afirma que o convite feito por Clarice para que o leitor participe daquilo prestes a ser narrado, rendendo-se de corpo inteiro a esse movimento, pretendese equivalente ao estado de entrega com que é escrito o livro. Se a narradora pinta seus quadros com o corpo, e esta atividade passa necessariamente pelo contato, pela integração corpo/tinta, é também por meio desse contato que se faz a escrita e, conseqüentemente, a leitura. Como fabricar cores com as palavras? Como reinventar a tinta? Como envolver o corpo na escrita? A resposta é: convidando o leitor a participar dessa fabricação através de experiências com a palavra. Tornar as palavras úmidas e secas como a tinta por meio do som e imagem que evocam. “Quero como poder pegar com a mão a palavra. A palavra é objeto? E aos instantes eu lhes tiro o sumo da fruta. Tenho que me destituir para alcançar cerne e semente de vida. O instante é semente viva” (LISPECTOR, 1978a: 12). Tentar agarrar com a mão a palavra intocável, o abstrato, aquilo que escapa, é tentar tocar o inatingível, processo iniciado e reiniciado constantemente pelos textos claricianos. Atinge-se esse ponto por meio de um texto que se elabora no momento em que se faz, no processo de fabricação da malha textual, na tentativa de se aproximar do 212 estado bruto da palavra, a “matéria-prima” com que se constrói o texto. "Não é um recado de idéias que te transmito e sim uma instintiva volúpia daquilo que está escondido na natureza e que adivinho" (LISPECTOR, 1978a: 24). Os fios se desdobrarão, ao passo que a malha for tecida, em um jogo de desvelamento e ocultamento, tal qual jogo de alternância entre som e silêncio, lembrando que a experiência do encontro com a música evoca um estado de intervenção do ouvinte por meio do corpo, pois o ato de ouvir passa necessariamente por essa instância, por isso ouve-se e lê-se com o corpo. Talvez Clarice seja uma beduína das palavras. Talvez sua escrita lembre a escrita dos textos árabes da antiga Pérsia, no que diz respeito à busca pelo nome, pelo Deus, pela palavra que contém palavras. Talvez seus contos e romances tenham contornos de animais e rostos, que as letras árabes formam em pura consonância imagética. E, se não existem letras, como ensinam os místicos, apenas a tinta que se auto-modifica, então a realidade e o ser repetem esse gesto auto-formativo, e os quadros pintados por Clarice se tornam transmutações, que se formam figuras e depois desmancham para que novas formas possam surgir. Se os traços desenhados por Clarice flutuam na tinta original, escrevendo rostos, vôos, ocasos, amores, que preenchem páginas divinas e infernais, então o mundo reinventado pela autora é ao mesmo tempo abstração – fundo – e certamente concretude – forma - celebração do Todo, do dois que se transforma em um e em dois novamente, no movimento infinito da espiral e da vida. Sua escrita é um tapete com fios de seda, que desenham estrelas de fogo, lâminas cortantes, corpos embriagados e nus, que se agregam e formam um só sistema rumo à própria decifração. Desse tapete origina-se o mundo. Do mundo, o homem. Do homem, a vida. Da vida: a palavra. 213 3.3 DA VIA-CRUCIS DO CORPO À NOITE DA IMAGEM Verificou-se que o romance de 1973 é elaborado como texto que realiza a não dissociação das linguagens expressivas em sua totalidade, inclusive entre os participantes dessas linguagens: aquele que escreve e aquele que lê. Como aponta Reguera, o texto se transformará em palco onde se “dramatizam, de maneira perturbadora, o choque, a oposição das noções vigentes no sistema literário e das suas próprias negações: o literário e não-literário; criação e reprodução, mesmo e outro” (REGUERA, 2006: 111). O entre-lugar em que a obra se situa surge por conta do deslocamento dos perfis de gênero e do tipo de discurso construído e veiculado pela literatura e por questionar a própria literatura como instância detentora de uma “autoridade” artística pautada em uma superioridade moral ou epistemológica (RONCADOR, 2002: 17), em oposição a um conhecimento provindo das experiências vitais. Desestabiliza a noção tradicional de romance uma vez que o transforma não em um gênero literário, mas em um meio onde se combinam os gêneros. Perpetua-se, assim, a idéia de que o conhecimento e apreensão da “natureza verdadeira do mundo, do sujeito, ou da própria linguagem” (idem), condicionado pelo texto, viriam de um distanciamento das experiências imediatas. O problema da autoridade se complexifica quando associado à questão da autoria, uma vez que o texto que confunde os limites entre autor-personagem-obra, interferindo nos sentidos do ficcional e do real, propõe-se na verdade à problematização do ato de narrar a partir da sua representação. Assim desloca-se o poder de construção de sentidos do autor-leitor para a própria linguagem. Colocando a linguagem como personagem central das narrativas, isto é, pelos tratamentos possíveis que recebe, Lispector desestabiliza os limites entre o ficcional e o real, uma vez que abre as portas 214 para a “encenação e ambigüidade” (ARÊAS, 2005: 54). É nesse sentido que Nilson Dinis aponta o efeito da desterritorialização dentro da obra clariciana. Em diálogo com o pensamento deleuziano, Dinis lê a obra de Lispector como obra que encena “os devires que atravessam o escritor” (DINIS, 2004: 16) não como metáforas ou imitações - o que nos permitiria ler um tom realista mais rigoroso na obra tardia de Lispector – mas no sentido da dupla captura de que trata Deleuze, daquela “núpcia entre dois reinos” (apud DINIS, 2004: 16). Penso que os estilos ou tons – maiores e menores – utilizados por Clarice, principalmente em A via crucis... são na verdade desterritorializações da língua que permitem a aparição de devires, afastando o universo construído pelo texto dos padrões consagrados pela tradição. Curioso é que a leitura das crônicas escritas por Clarice revela grande parte do processo de escrita da autora, do seu modo de composição por meio de linguagem metaficcional e dos temas privilegiados por sua obra. É como se Clarice fosse comentarista de sua própria obra no conjunto de suas crônicas. Um romance sem personagens é romance? A ficção pressupõe a criação de personagens e fatos que de fato não existem? Ou poderiam existir uma vez que se tornam vivos pela palavra? O que é ficção? Em crônica intitulada “Ficção ou não” (LISPECTOR, 1994: 286), a autora revela o desejo de se libertar de uma “moldura” que apenas serve para “tornar um livro atraente”, um truque, pura técnica. Despir a narrativa dos “truques” e permanecer apenas com o atraente é a intenção literária clariciana. Em seu fazer prefere “prescindir de tudo o que puder prescindir” (idem, 287). Assim, a própria autora reconhece que sua escrita é farsa, uma vez que autobiográfico e biográfico, enredo, personagens, registro de pensamentos e sensações, tudo se torna pura construção literária, manipulada segundo a intenção do autor. Se o atraente em A paixão... é justamente prescindir dos acréscimos, já em A via crucis... são os excessos – 215 encenações da linguagem - acréscimos dos quais a obra não pode prescindir. Esses excessos, segundo Vilma Arêas, constituem-se como atitudes da linguagem que vão do “burlesco deslocado do tom altissonante” ao “exagero coloquial” (ARÊAS, 2005: 54), passando pela referência a “ideologias românticas”, “o pathos e o ridículo”, as “crendices populares”, “folclore”, “narrativas baratas sobre misticismo”, “ficção científica”, etc (idem, p. 55). Nessas encenações da linguagem, Arêas vê uma aproximação da obra “aos gêneros dramáticos ligados à comédia popular” (idem, p. 58). Desta relação farsesca engendrada na narrativa, nasce uma das imagens mais comuns criadas pela escrita lispectoriana, apontada por Sousa, que se caracteriza pelo desejo que as protagonistas apresentam de serem a mãe do mundo, metáfora para a criação do universo e de seu criador, vinculando a esta alegoria a condição do artista enquanto criador do universo textual. 27 Este sentimento é problematizado em alguns dos contos de A via crucis do corpo como, por exemplo, em “O homem que apareceu”, “Por enquanto” e “Dia após dia” que, junto à “Explicação” da autora, esfumaçam os contornos entre real e ficcional ao incluírem a autora como personagem da ficção, transformando-a em personagem ficcionalizado, portanto, criatura, e invertendo os termos dessa narrativa. O ato de narrar perpetuado pelas narrativas neo-realistas da época de Lispector já não é suficiente para dar conta do problema lançado por sua escrita. A preocupação com a criação do texto escrito se sobrepõe ao tema narrado, e concede espaço a uma nova maneira de representação do real, não mais através de sua imitação, mas de sua invenção. O realismo de A via crucis... é um artifício para colocar em cena o “embate entre o dizer e o fazer,” como aponta Reguera (REGUERA, 2006: 88). A pesquisadora mostra como Clarice aproveita um pedido do editor para escrever “histórias que 27 A referência a esta imagem percorre quase toda a obra lispectoriana, incluindo contos e romances como “Os desastres de Sofia”, “Perdoando Deus”, alguns contos de A via- crúcis..., Uma aprendizagem..., Água viva e A paixão segundo G.H. 216 realmente aconteceram” (LISPECTOR 19), em forma de “livro de contos eróticos”, escrito “no dia 12 de maio de 1974”, a partir do pedido de seu editor, Álvaro Pacheco, e o transforma em A via crucis..., em resposta a uma tradição composta por editores, críticos literários e leitores, que julga e define os padrões de uma tradição dos discursos da alta e nobre literatura e da escrita menor. Essa preocupação já havia aparecido em Cidade sitiada, como aponta Sousa em sua interpretação sobre o romance, em um de seus grandes projetos literários – o datiloscrito de “Objeto gritante” – e retorna à cena a partir de A via crucis.... Apenas dessa vez Lispector abandona o pudor e a linguagem alegórica, a preocupação com seu público leitor e despoja a linguagem. Em sua tese, interpreta A cidade sitiada como uma alegoria sobre a formação e afirmação da cidade como texto. Em abertura polissêmica, lê o romance como apresentação de uma “poética implícita da escrita intencional que é a que preside à elaboração deste romance – talvez não da escrita clariciana, mas do modo intencional de erguer este texto concreto” (SOUSA, 2000: 86). A cidade é metáfora do texto e todos os semas aí empregados remeterão ao universo literário. O “trabalho do criador” converte-se em “paródia” do escrever dentro de uma tradição. Sousa deseja com isso apontar que a escrita de Clarice trabalha com referências culturais precisas, seguindo um impulso de escrita intencional, profunda e amplamente dialógica com a tradição. Porque, de facto, a obra de Clarice não se constrói por cima de uma saturação de referências culturais de qualquer espécie. Ver-se-á mais tarde a componente mítica que aflora também num livro diferente dentro do conjunto da sua produção: Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres; dá, pois, a impressão de que, quando ela resolve parar e escrever diferentemente, para dar uma resposta ou para visar um qualquer público ou situação, é que afloram essas alusões de teor cultural mais explícito (SOUSA, 2000: 87). 217 Comentário: Comentário de Sousa sobre Cidade Sitiada Seguindo essa mesma trilha crítica, Sonia Roncador apontará que, após a tentativa de desenvolvimento de um projeto anti-literário com “Objeto Gritante”, a obra de Lispector sofre uma espécie de deflação que deixa evidente uma “aversão à boa forma narrativa” e um “descontentamento” com uma “prosa enfática, ou ‘inflada’, de uma literatura de bom gosto” (RONCADOR, 2002: 88). A pesquisadora aponta ainda que “Na crônica “Charlatães”, a autora menciona a vontade de produzir efeitos de ‘mau gosto’ na sua escrita e comenta o ‘tipo horrível de bom gosto’ de uma certa tradição” (idem). O método de “colagem” ou “justaposição paratática” de fragmentos que compunha “Objeto gritante” criava uma “dissonância interna” engendrada pela prosa diarística que paulatinamente abalava o ambiente poético e sublime característico da escrita lispectoriana. Com isso o efeito de “deflação estética” atuava sobre um “rebaixamento do nível retórico” (idem). A desreferencialização de mundo e de escrita provoca o surgimento de uma narrativa híbrida e heterogênea na qual predomina a ordem realizada pelo texto a partir da estranheza do paradoxo, interferindo nos conceitos de alta literatura e na função da literatura. Reguera chama atenção para a noção de “hibridismo” atribuída à narrativa clariciana não como “mau momento” ou “desvio” na trajetória da escritora, mas como um “processo de (re)escritura de textos” (REGUERA, 2006: 110) que coloca em circulação e contato o “mesmo” de textos já publicados e o “novo” de textos inéditos. Assim, a singularidade do hibridismo lispectoriano reside na manipulação das noções de “criação”, produção” e “reprodução”, e nos sentidos de boa e má literatura a que tais termos remetem (idem). A escrita, na década de setenta, torna-se a personagem central da narrativa. Assim, a encenação da escrita na obra lispectoriana da década de setenta se realiza a partir de dois vetores: o da complexificação da equação autor-narradorpersonagem, provocando um conseqüente apagamento entre as fronteiras do real e do 218 imaginário, e o da desmontagem da conceituação de “alta” ou “baixa” literatura. Com relação ao primeiro vetor, o texto clariciano passa a ser preenchido de referências autobiográficas que confundem os traços ficcionais dos narradores, que muitas vezes vêm expressamente se afirmar como sendo a própria narradora, como é o caso de contos de A via crucis..., da narradora de Um sopro de vida e do narrador de A hora da estrela. Além disso, registros temporais e espaciais do momento da criação do texto mostram-se como marcas do rastro da escrita e, principalmente, as referências ao ato da escrita e às marcas ficcionais dessa escrita. Até mesmo o delinear de uma abordagem neo-realista da narrativa aponta para a encenação da farsa clariciana. O segundo vetor interpreta o hibridismo, a abordagem realista de cunho “erótico” e a referência ao abjeto como fatores desencadeadores de uma perda de qualidade no valor estético-literário da obra, que se tornaria, portanto, “inferior” se comparada com a obra de cunho “metafísico” das décadas anteriores. Fato é que existem certas alterações formais e conteudísticas de fundamental importância para a compreensão do novo estatuto da narrativa clariciana que a passagem da década de sessenta para a década de setenta apresenta. Em que consistem essas alterações? Qual a intenção da autora com essa “nova” estrutura de escrita? Para Roncador, a grande modificação sofrida na escrita de Lispector ocorre no projeto estético elaborado em “Objeto gritante”, um programa de escrita que ainda que não tenha sido publicado, gerou alterações de ordem de uma desintegração. Se esta desmontagem inicialmente converge para a desintegração de uma identidade individualizante com a exposição que a escrita diarística de “Objeto gritante” traria à integridade pessoal da autora, em seguida ela se torna uma ameaça à integridade do real e depois da própria literatura. O constante interesse de Clarice pelo “estado de graça” ou “epifania” a que os encontros fortuitos narrados em seu texto conduzem é 219 imediatamente seguido do instante da morte – claramente uma ameaça à integridade do ser. Por isso de dentro do sublime nasce o seu oposto abjeto, criando uma beleza convulsa e mortal. Não à toa, a morte, a mortificação, a decrepitude do corpo ou da mente rondam todos os contos de A via crucis... assombrando os vivos. Mas a que a encenação da morte se refere? À “expiação das personagens que vivenciam o suplício de sua carne/corpo” (LUCCHESI, 1991: 8) repetindo a paixão de Cristo, como aponta Ivo Lucchesi? À morte do demasiadamente humano, como em A paixão... refletido na subjetividade esmagadora do que é vivo e da diferença? Parece-me que a morte a que às narrativas de A via crucis... fazem referência estão mais direcionadas para a morte de noções tradicionais de literariedade e do que Reguera chama de uma “concepção binária, típica do pensamento estruturalista” (REGUERA, 2006: 109) que qualifica as obras da autora dentro de um parâmetro classificatório e redutor do “todo” literário forjado pela obra de Lispector. Tal concepção conduz, por exemplo, à classificação de A via crucis... como desvio da norma da boa narrativa. Em Água viva, as referências ao estado de graça se justapõem aos índices explicativos do funcionamento do processo de escrita em passagens que alternam entre o abstrato e a exemplificação por meio de imagens. Nos momentos em que fala de sua escrita e dos estados de graça revela-se que o conhecimento intuitivo da vida e da morte chega junto com o conhecimento sobre o processo artístico. Mas em A via crucis... tais índices se transformam em ficcionalizações e a fronteira entre o que é ficção e o que não é ficção se confunde. Nesse ponto a desintegração da pessoalidade se associa a situações de deslocamentos das fronteiras da linguagem e das identidades que definem e distinguem narrador, autor e personagem. O autor é introduzido no corpo do texto como personagem, ou seja, como ficcionalização, contribuindo para a desconstrução da noção de boa e má literatura, uma vez que ensina 220 a estranheza e o deslocamento, desestabilizando a idéia de aprendizagem veiculada pela literatura. A persona narrativa de Clarice aparece nos quatro contos que se mesclam com um outro narrador condutor dos contos chamados “eróticos”. Essa dissociação entre dois narradores distintos interfere também na construção do tipo de narrativa por eles narrada. Em “Explicação”, Clarice aparece como autora e narra as circunstâncias em que foram escritas o livro, desde a “encomenda” feita por telefone por seu editor para a escrita de “histórias que realmente aconteceram” (LISPECTOR, 1991b: 19), até o dia em que a autora começou (11 de maio) e terminou (13 de maio) de escrevê-las. Em “O homem que apareceu” as referências são mais domésticas do que das circunstâncias de criação, como a menção de sua preferência por beber coca-cola e café, a referência ao nome do filho de Clarice, o livro de história infantil escrito por Clarice. Em “Por enquanto”, Clarice faz uso de ambos os recursos. Indicações de acontecimentos de seu cotidiano como telefonemas recebidos, o almoço com o filho, lado a lado do comentário feito sobre a carne dura do almoço, a menção aos compromissos sociais, como ir a uma festa ou a um jantar com amigos, ou ao enterro de um amigo, além do momento em que se senta para escrever, dão notícias de uma escrita diarística e confessional exercitada em “Objeto gritante”. Estas referências diminuem o ambiente sublime ou metafísico das narrativas anteriores e aumentam o caráter “fluido” da narrativa. Neste conto, Clarice deixa claro que o assunto “perigoso” manipulado pela escrita e denunciado na “Explicação” não se referia tanto ao conteúdo erótico e realista dos contos, mas ao ataque à boa narrativa, ao mercantilismo da literatura, aos mitos criados pela indústria cultural de massa e aos formadores dessa mesma indústria. Como aponta Reguera, a encenação da escrita clariciana ocorre pela maneira como Clarice faz seu livro parecer 221 ser a escrita de contos eróticos, quando na verdade se revela como obra “metalingüística e metaficcional” (REGUERA, 2006: 114). Por fim, em “Dia após dia”, o perigo se explicita ao declarar abertamente que sua obra não compactua com o mercado, com o sistema literário tradicional, com a necessidade de alcançar um dado resultado estético que se sujeite às normas de gosto da crítica e do público. O pacto autobiográfico e realista transforma-se em narrativa paródica. O mesmo propósito é realizado com as narrativas de estrutura neo-realista e conteúdo “erótico”. Ao construir narrativas que veiculam um ar de mau gosto por meio de temas abjetos e grotescos como em “O corpo”, “Ruído de passos” e “Mas vai chover”, a narrativa de Clarice deseja apontar que tanto a referência autobiográfica, quanto a construção literária que esbarra no mau gosto, no kitsch e no abjeto são manipulações da linguagem, maneiras que o discurso encontra de se travestir e denunciar as “molduras” classificatórias. Encenação. Como aponta Roncador, Clarice questiona, em atitude crítica, o falso valor atribuído à literatura, à imagem do autor em torno da obra (RONCADOR, 2002: 117), “mitos e pressupostos literários” (idem, 135), o decoro de tom solene, sublime e sério em oposição ao banal, prosaico e grotesco. É Roncador que aponta também uma certa ironia por parte de Clarice à sua própria obra, uma vez que “parodia o modelo narrativo que havia gerado grande parte de seus primeiros contos” (RONCADOR, 2002: 141). A marca do autobiográfico presente em A via crucis..., A hora da estrela e Um sopro de vida é tão somente a criação de mais uma ficcionalização que preenche as páginas da narrativa com a intenção de confundir o leitor e confundir os limites entre ficção e arte. A “personagem” Clarice, autora, participa como “narradora” em quatro contos de A via crucis... nos quais se intromete apenas para dizer que a vida é uma 222 ficção tanto quanto a literatura. O realismo construído por meio do tema do “erotismo” ou do “pornográfico” tão apontado por críticos de a via crucis... é apenas um jogo, uma manipulação feita pela autora para poder dar conta daquilo que não é considerado alta literatura, para desconstruir a tradição literária e a tradição dos participantes dessa comunidade: leitores, críticos, editores, mercado consumidor, mídia. Para isso envolve o leitor na construção dos sentidos. De fato, esta é uma das características adquiridas com a escrita para o jornal. Em crônica intitulada “Escrever para jornal e escrever livro”, diz que “num jornal nunca se pode esquecer o leitor” (LISPECTOR, 1994: 456). Clarice faz disso uma estratégia para ficcionalizar a si mesma na construção das obras seguintes, enganando e manipulando o leitor ao construir uma verdade, para depois desconstruí-la. Nota-se que tanto em “Explicação”, quanto nos contos em que a figura da autora reaparece, as construções ficcionais criadas por Clarice apenas aumentam o grau de dúvida no leitor, com a intenção de gerar confusão quanto à veracidade e à neutralidade do que é dito. A noção de autor implícito, proposta por Wayne Booth, serve, neste momento, para nos fazer entender que, “enquanto escreve, o autor não cria simplesmente um “homem em geral”, impessoal, ideal, mas sim uma versão implícita de si próprio” (Booth, 1980: 88), podendo variar seu pontos de vista em quantas posições lhe convier. Com isso, confuso e em dúvida, o leitor começa a se perguntar o que é fato e o que é ficção. Compreende-se então que a imparcialidade e neutralidade do autor já não se sustentam e a ficção já não é uma criação unilateral e tampouco representa uma verdade única, apesar de aparecer sob o signo de uma única identidade autoral. Assim, a tarefa da construção da narrativa não é realizada por um único autor, mas se divide entre o autor e seu duplo (que é ele próprio) e, ainda, entre estes e o leitor. Pode-se afirmar com isso que a ficção pode até mesmo mascarar o real, mas o real por sua vez oculta a ficção. Porque para a autora a vida humana comporta suas faces de 223 “esplendor, miséria e morte” (LISPECTOR, 1994: 145), faces também encontradas em seu “estilo” de escrita sem estilo. Parece-me que a crônica intitulada “Estilo” é uma verdadeira síntese crítica do que sejam a obra, a matéria e a composição da escrita lispectoriana. Nela, afirma que o estilo de um autor é um “obstáculo a ser ultrapassado” porque é ele que confere uma marca personalizada e pessoal a algo muito mais “depurado”, que consiste em retirar da escrita a marca “natural” do autor para poder “apenas dizer” um dizer anônimo, voz, que pudesse dar conta do “destino humano” em sua “pungência total” (LISPECTOR, 1994: 145). Criar uma escrita que ao mesmo tempo exponha sua face grotesca, casual e deflacionária, como apontam alguns críticos, e sua face sublime, bem composta e poética é fazer com que a escrita encene “o prazer dentro da miséria” porque “o mundo não me é fácil”; a “carne fatal do homem” faz com que realize “seu modo errado na terra” somente para que depois exerça o perdão de sua “humilhação e podridão” inerentes à sua condição humana. A podridão e miséria só surgem na escrita porque nascem de dentro da morte e o esplendor de se ser homem é também pungência de se saber vivo. Em “O homem que apareceu”, a autora ficcionaliza a si mesmo e a dados de sua própria vida criando a história de um encontro entre a autora e Claudio Brito, “personagem-poeta” que se apresenta como uma espécie de disfarce da própria Clarice, segundo Arêas (ARÊAS, 2005: 61). O elo de união entre ambos seria apontado pela idéia de fracasso da literatura por conta de um estilo que define a poesia de Claudio Brito, mas que, em tom ambíguo, poderia se referir à própria obra escrita por Clarice: uma mistura de “palavrões com as maiores delicadeza” (idem, p. 55). Nesse mesmo parágrafo, a narradora apresenta também um dos outros temas que A via crucis... vem 224 abordar: o questionamento de mitos criados “em torno da fama e do sucesso” como aponta Roncador (RONCADOR, 2002: 117). Esses mitos estão relacionados aos valores atribuídos à literatura, ao mercado cultural e à comunidade literária que distingue os famosos dos fracassados, como Claudio Brito e Clarice Lispector, no que tange a publicação de A via crucis.... A voz da autora que sente vontade de gritar que “nós todos somos fracassados” (LISPECTOR, 1991b: 55) aponta para a polissemia criada na narrativa. “O sucesso é uma mentira” (idem), denuncia a voz, assim como a fama em torno do nome criada pelo culto à individualidade. A pergunta “O que importa um nome?” (LISPECTOR, 1991b: 51) que aparece no início do conto, é refeita mais uma vez pela mesma voz no conto “Por enquanto”, que ataca e denuncia não apenas o culto em torno do indivíduo, mas a própria noção de uma literatura “maior” como espaço de autoridade ou superioridade à vida. Diz a narradora: “Sei lá se este livro vai acrescentar alguma coisa à minha obra. Minha obra que se dane. Não sei por que as pessoas dão tanta importância à literatura. E quanto ao meu nome? Que se dane, tenho mais em que pensar” (LISPECTOR, 1991b: 71). O desdém e ataque a uma comunidade literária que cria e reforça as classificações de autores maiores e menores e que caracterizará A via crucis... como um “desvio” na trajetória literária da autora, é corroborado pela descompostura da linguagem violenta e direta presente na obra. Em “O homem que apareceu”, no entanto, a constatação do fracasso leva ao sentimento de impotência por parte do artista que é também o criador de personagens, narradores, tramas e estilos. Não à toa, o conto termina com a referência à figura materna. A autora diz que este conto – criatura - e os acontecimentos que narra aconteceram na véspera do Dia das Mães. E a pergunta “Como é que posso ser mãe para este homem?” seguida da constatação de que “não há resposta para nada” (LISPECTOR, 1991b: 57) parece-me revestir-se de um tom metaficcional. A pergunta 225 esconde um questionamento da escritora Clarice Lispector diante de sua escrita. Como fazer nascer uma obra que se ergue do fracasso da linguagem, da sua impotência e descompostura? Os “procedimentos cômicos” baseados na “paródia” e no “rebaixamento farsesco” (ARÊAS, 2005: 65) apontados pelo ensaio de Vilma Arêas, justapostos ao “tom comovedor” e angustiado de contos como “O homem que apareceu” inserem a obra em um universo tragicômico que revela o espetáculo do drama humano. Parece-me que o estatuto do narrador nesta obra de Lispector encontra uma liberdade que até então não havia sido explorada. A mesma ambigüidade encontrada na suposta voz autoral de “Explicação” reaparece, por exemplo, na voz narrativa de “O homem que apareceu” por conseqüência do fingimento da narradora que acaba atuando mais como atriz que dramatiza as várias vozes da literatura. É Clarice que revela ao leitor a chave de interpretação de sua “escrita derradeira”, nas palavras de Roncador. Em artigo intitulado “Traduzir procurando não trair” (LISPECTOR, 2005: 115-118), onde fala sobre sua atuação como tradutora de várias obras literárias, afirma que: “todo escritor é um ator inato” (idem, p. 116) porque “representa profundamente o papel de si mesmo” (ibidem) e sua obra apenas reflete, “como num espelho”, sua “própria fisionomia” (idem). Como aponta Souza, é característica do romance já nascer dotado da “capacidade revolucionária de contestar os discursos canônicos da tradição literária” (SOUZA, 2006: 25), capacidade esta que se reafirma vigorosamente no romance moderno, desde Dom Quixote, até os contemporâneos. Aponta que: (...) o romance grego, conforme demonstra Erwin Rhode, só se impõe como forma com a desintegração dos gêneros clássicos da epopéia, da tragédia e da comédia (Rhode, 1974). Reagindo ao princípio desintegrador que preside à sua gênese, o romance grego não possui uma, mas, sim, duas formas simétricas e opostas: uma empenhada na estilização e autocanonização, e a outra devotada à paródia e descanonização. (SOUZA, 2006: 25) 226 A obra de Lispector parece atuar em um movimento que, mesmo já surgindo dentro de um contexto de deslocamento do cânone, acaba criando certa aura de canonização em torno de si mesma e que, a partir do projeto “Objeto gritante”, efetua o movimento inverso, de destruição de si mesma, parodiando não apenas obras de “gêneros ou narrações célebres”, como mostra o ensaio de Vilma Arêas, mas, sobretudo a sua própria obra. A afirmação de G.H.: “caminho em direção à destruição do que construí”, ainda que se refira no romance ao processo de despersonalização da personagem, não deixa de ecoar crescentemente nas obras da década de setenta. E se A paixão... é obra canonizada pela crítica, que tende à busca de fidelidade a um registro nobre ou “alto”, na verdade, o romance configurar-se-á, dentro do espectro do conjunto da obra lispectoriana, como uma de suas máscaras ficcionais. O leitor também é contaminado pelas inversões, uma vez que precisa agora participar da decisão sobre a autoria e construção ficcional, tornando-se ele mesmo um dos participantes dessa criação. A experiência de impotência e incapacidade face o fracasso e a falha na criação de um universo ficcional que mistura ficção e realidade, confundindo esses termos, e de um conteúdo agora de cunho “erótico” e não “metafísico”, “realista” e não “conceitual”, provoca, de início, um sentimento de culpa. Em uma inspirada “nota ao leitor” que se intitula “Explicação” e que, ao contrário dos paratextos encontrados nas obras anteriores de Lispector, inclui-se no corpo da narrativa, constituindo-se como o décimo quarto conto de uma antologia de treze narrativas, a autora se justifica pelas alterações na fundação de sua escrita, tentando desculpar-se. Tudo simulação e mascaramento 28 . O sujeito, no centro do desamparo, aponta para a insuficiência de uma 28 Se a idéia de paratextualidade vem complementar o estudo da obra ficcional por se constituir como uma forma de texto fora do corpus ficcional e que remete, ao mesmo tempo, ao texto e aos outros paratextos, acrescentando para o seu sentido e conteúdo, é também ela que contribui para o efeito de ambigüidade entre real e ficcional, já que o paratexto não é, na maior parte dos casos, uma criação ficcional. 227 subjetividade (e da linguagem por ela expressa) refém de uma falsa garantia de organização amalgamada pelo saber absoluto. A linguagem vive e manifesta a inadequação ao sistema definido por códigos que já não dão mais conta da condição a que chegou o sujeito. A condição a que anseia e se dirige G.H., por exemplo, consiste em encontrar a forma da vida em si mesma, longe da forma demasiadamente humana, introjetada pela civilização ocidental e que esmaga o centro mole e pulsante de vida. A linguagem entra em crise e, como aponta Sousa, impõe a cena em que se passa o drama das obras claricianas. A culpa toma a forma de uma grande e intransponível ferida, que nem mesmo a liberdade buscada pelo sujeito resolve, apenas talvez a dinâmica desempenhada por uma consciência que se abre no horizonte da ruína e da morte, do erotismo e do desejo, na constituição da realidade. A culpa é apenas mais um mecanismo introjetado pela cultura que se interpõe diante da relação homem-mundo e impede a sua realização enquanto ser. No entanto, a literatura pode transformar esta ferida em imagem e potência criadora. A ferida torna-se fronteira entre o ser, o não-ser e a poesia, a via de acesso do eu descarnado a uma forma em permanente movimento de recomposição do dualismo antagônico em dualidade complementar. A única possibilidade de atingir a fusão entre eu e mundo ou entre o limitado e o infinito, como se configura a equação clariciana, é pela abertura à alteridade, pelo abandono dos suportes introjetados pela cultura ocidental, e entrega à desfiguração da ferida por meio da escrita. Mas, antes, a máscara - Dioniso. O símbolo mais representativo de Dioniso, para a arte, é a máscara, não por introduzir o disfarce, mas por representar a natureza dual, ambivalente, constitutiva do deus. E é esta condição dual que faz reconhecer em Dioniso, único dos deuses de linhagem olímpica a não ser incluído no Olimpo, uma vez que nasceu da relação entre 228 um deus e um ser humano, o aspecto divino e o humano, apontando para uma dualidade que é também e, sobretudo do homem. Nesse ponto, a máscara é o elemento que possibilita o afastamento de Dioniso da totalidade dos deuses olímpicos e da aura sobre-humana, aproximando-o do homem. A máscara não é mero disfarce exterior; serve para receber o próprio deus e não apenas representá-lo no rosto de um indivíduo que a usa. Apenas deuses ctônicos apresentam-se na máscara, uma vez que pertencem à terra. Assim, portanto, este deus está de tal maneira próximo ao homem que a ele se apresenta nos termos de uma imediatez, que domina e arrouba. Que confronta. Que revela porque devolve o olhar do homem ao homem. E com este retorno, o sujeito se descobre dual, e o deus se confunde com o homem, já não sabemos se a máscara é disfarce ou se, por fim, colou-se ao rosto. Também para as personagens claricianas, a máscara é um elemento que revela os pontos de contato entre simulacro e real e por meio deste elemento Lispector pode discutir os limites não somente de sua própria arte, mas da arte em geral. Para Lori, em Uma Aprendizagem..., a “máscara” introduz um gesto e um processo que aproxima o verdadeiro do falso, elevando o simulacro a uma mesma condição e situação daquilo que é verdadeiro. O mascarar-se é “um dar-se”, uma entrega “tão importante” e legítima, tão fundadora de possibilidades reais “quanto o dar-se pela dor do rosto”, gesto verdadeiro formado a partir de elementos reais (LISPECTOR, 1991: 63). Esse mascarar-se completamente ganha complexidade em A via crucis... e Um sopro de vida por meio do apagamento entre os limites entre persona e autor; narrador e personagem se confundem e mesclam, e se tornam criações de uma mesma entidade: a linguagem. A criatura devolve o olhar ao criador e o confronta. Dá-se um encontro, da ordem do acontecimento, do evento. Mas não do tipo que a cultura contemporânea compreende e empreende. Não algo que impressione do ponto de vista subjetivo, produzido pelas 229 relações humanas, mas um evento que capacite a imaginação a operar em outro nível. Neste ponto, a narrativa adota a recusa da forma e do nome, como aponta Eduardo Prado Coelho (COELHO, 1984:207), abandona a “ordem da vontade” e encena a “ordem do encontro”. Essa máscara pode se assumir em suas formas “antropomórfica” ou “teriomórfica”, como aponta Otto (OTTO, 1981:90). A pantera, o cavalo, a barata confrontam o indivíduo, desnudam o sujeito, rondando-o, mostrando que ele é tão ele mesmo quanto a sua diferença. No capítulo em que trata da presença dos animais na escrita de Lispector, Sousa acredita que a figura animal está identificada com o próprio processo de formação, tanto da escrita como do ser, constituindo-se como força criadora, sendo a barata, a galinha e o cavalo os principais representantes desse reino. Esses três seres introduzem uma série de traços que confluem para a mesma direção: a da construção da escrita - a irrupção dos cavalos constitui a energia do processo criativo; as galinhas concebem, elaboram e expõem o ovo, assim como o poeta expõe o texto; e a barata, como representante da ancestralidade dos seres existentes na terra, remete a um tempo de formação da linguagem por meio dos sinais (SOUSA, 2000:235-6). Vale lembrar que essa mesma força está presente na imagem da criança, ser de fundamental valor na narrativa clariciana, e na imagem da noite. O homem devém em sua multiplicidade. Se em todas as obras anteriores o homem se confrontava com uma alteridade que vinha do mundo externo, em A via crucis... e Um sopro de vida o homem é a própria multiplicidade dentro de si mesmo, e a alteridade vem agora representada pelo seu próprio mundo interno, com os desdobramentos de suas múltiplas faces, inclusive de uma persona autoral. No entanto, a “ordem do encontro” é também dual porque não revela apenas a presença manifesta; ela é a própria presença na ausência e vice-versa. Por isso fulmina. 230 A revelação é ao mesmo tempo o saber e o esquecer. O pacto com o Deus na escrita lispectoriana é: “ver e esquecer”, porque tentar entender é um processo que depende “da validação humana”, de um mecanismo lógico. Ver e esquecer tem a dinâmica sagrada do manifesto e do ausente, do excruciantemente perto e absolutamente distante em uma mesma realidade. Esta a orgia sabática de Clarice Lispector. A revelação, a epifania, o acontecimento, o encontro – nomeiem como queiram – será sempre a grande e terrível delícia secreta cultuada no ritual lispectoriano de magia negra, o segredo da existência e da não-existência. Por isso a escrita é da ordem da urgência, do assalto e da necessidade, não da vontade. Em sua nova configuração, a palavra se torna, por fim, um artifício, fingimento e encenação que o sujeito adquire face à ferida. As encenações percorrem a tradição do pensamento ocidental que entroniza o dualismo antagônico entre matéria e espírito na memória mítica grega, na tradição judaico-cristã e na própria tradição literária e são expostas pelo universo literário de Lispector. O sujeito, em sua condição de estar no mundo, ao perscrutar sua identidade expõe uma dialética entre aparência e essência, que conduz à dinâmica do desvelar e ocultar a essência, esmagada pela forma humana de vida, por meio das máscaras. “Falar é mascarar-se” (SOUSA, 2000:408) aponta o crítico. O estar no mundo se apresenta na escrita clariciana dos anos setenta por meio de uma poética do mascaramento. A escrita se mostra como palco, teatro, cujos atores encenam o drama da vida esmagada pelo dualismo antagônico, sobre o qual se funda a civilização ocidental. Se as grandes narrativas de Lispector, como Perto do coração selvagem, A paixão segundo G.H., A maçã no escuro, Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres ganham força nas décadas de 40, 50 e 60 porque elaboram tramas com personagens que protagonizam papéis, na década de setenta é a linguagem que se torna personagem principal do drama, no datiloscrito intitulado “Objeto Gritante”, em Água 231 viva, Onde estivestes de noite, A via crucis do corpo, Um sopro de vida. 232 O RUMOR DA FERA ENTRE AS FOLHAGENS Ao longo desta tese observou-se que o informe apresenta-se como sintoma de um trabalho de escavação que vai mais além do que o contato com o vazio e o indizível da linguagem. Na prática da palavra poética, a experiência da falha, proporcionada no instante em que o nome falta, abre as portas não apenas para o silêncio, mas para uma experiência que se possa fazer na linguagem e que se configure como a busca de uma Comentário: Aqui netra Agambem – Infância e historia voz. Constatou-se que a obra de Clarice Lispector se configura não apenas pela aproximação do inominável, mas justamente pelo abeiramento de um rumor, um barulho que só se ouve quando se encosta o ouvido à terra - o esquivo da fera entre as folhagens. Por isso o cenário literário lispectoriano se compõe de espaços nãoespecíficos que se deixam existir como um modo de veicular o espaço da escrita. Com isso, o ser se afigura como o espaço, a paisagem, o abismo em que as narrativas se Comentário: (substitui a teologia do inefável, nela não existe essa tradição do inefável mas na do inexaurível e o silencio não é negativo ou negação da palavra mas a condiçao da possibilidade da palavra, dialogo do som e do silencio subistiui o sentido) descerram, e o não-lugar é projetado no território da escrita e do Outro, de forma a construir uma narrativa poética com ênfase na narração, mais do que no narrado, e nas impressões e digressões, mais do que nos fatos ocorridos, na qual tempo e espaço devêm escrita. Constatou-se que o exílio interior torna-se um tema que também a experiência erótica proporciona e que abre caminho para a perscrutação da interioridade e para a travessia da paixão. Esta travessia representa o percurso da liminaridade no Comentário: Mas Joyce pode entrar aqui Tb. qual o indivíduo se configura como um viajante, em princípio solitário, mas sempre rumo ao encontro da alteridade, muitas vezes estrangeiro e, portanto, habitante do deslocamento contínuo gerado pela busca. Berta Waldman (WALDMAN, 2004) chama atenção para aspectos da origem judaica herdada por Clarice que contribuem para o tema da busca identitária presente em suas narrativas, busca que nasce da própria biografia. A condição de imigrante 233 Comentário: Viagem como liminaridade continua poque ai a eistencia vive o crescikento incessante. A realização não é a plenitude, mas a continuidade, travessia não tem termo, ai se aproxima de rosa Comentário: Multiplicidade do sujeito vai de acordo com a da expressao estrangeira apontada pela pesquisadora acaba colocando a autora em uma posição de transitoriedade definidora de alguns aspectos importantes de sua obra, como por exemplo, dos questionamentos e posicionamentos que surgem a partir da noção de “imigrante” e “viajante” no que concerne a noção de identidade e cultura. Estes temas são também debatidos na obra de James Joyce, autor cuja escrita é recorrentemente associada à narrativa clariciana. No conto intitulado “Os mortos”, último da coletânea de Dublinenses, alguns pontos de discussão que interessam a esta tese são apresentados no seguinte excerto: His soul had approached that region where dwell the vast hosts of the dead. He was conscious of, but could not apprehend, their wayward and flickering existence. His own identity was fading out into a grey impalpable world: the solid world itself, which these dead had one time reared and lived in, was dissolving and dwindling (JOYCE, pp 197-8). 29 Percorrer uma Dublin imaginária, em busca do reconhecimento identitário, em um período em que história e cultura sofriam graves impactos, aponta para o sentimento de amor e ódio pela terra natal que a condição de exilado proporcionou a Joyce e que o projetou em um espaço de constante redefinição deste senso de identidade intensificada pelo sentimento de não-lugar e desterritorialidade. A travessia por espaços, personagens e história de Dublin apresenta-se como uma jornada pelo território emocional e moral do indivíduo e o último conto, “Os mortos”, reflete um dos temas da Modernidade: o confronto do presente com o passado, por meio do contato com os mortos, e a fragmentação do sujeito, desarticulação da identidade subjetiva, acentuada pelo Surrealismo e pelo horror vivido no cenário das duas Grandes Guerras. A recusa da 29 “Sua alma havia se aproximado daquele território habitado pela vasta legião dos mortos. Ciente, mas sem compreender suas existências vacilantes e instáveis. Sua própria identidade começava a desaparecer em um mundo cinzento e impalpável: o mundo concreto, que estes mortos um dia criaram e onde um dia moraram, agora se desfazia e encolhia”. (Tradução minha) 234 unidade do corpo resulta no esfacelamento da identidade, perseguida apenas como ilusão, impulsionando as estéticas e poéticas da fragmentação que se desenvolvem com grande força a partir do Surrealismo. A região de difícil apreensão e visibilidade, na qual estão os anfitriões deste reino, põe em contato a dimensão da história e da cultura. Nela insere-se o homem, junto ao reino dos mortos, dos antepassados, da mitologia, sempre atemporal, introduzindo o contraste entre tempo cíclico e tempo linear, sempre a partir de uma ruptura, de um deslocamento. Ao mesmo tempo em que a aproximação da morte vem trazer notícias da dura certeza da mortalidade, ela também pode se apresentar como a própria sugestão de mergulho nessa zona indefinida – aproximação e afastamento: paradoxo moderno; a verdade de que o significado da existência humana está escrito por seus mortos. Este contato busca introduzir uma dimensão de reatualização do passado no presente, reintroduzindo um tempo cíclico incompatível com o tempo linear. A história vê o seu próprio reflexo; é ela a zona trêmula da indefinição que faz circular o tempo irreversível. O sólido mundo que desaba e encolhe é a própria realidade do fenômeno, uma vez habitada por aqueles mortos, mas seu reino é, na literatura, invadido pelo rito, pela festa, pela atualização, seguida também da contradição. No mesmo instante em que se dissolve o tempo sólido, desaloja-se a identidade e o real vive a partir de uma mescla de tempo finito e pessoal associado ao tempo infinito e impessoal. O tempo irreversível que introduz a mortalidade, acentuando seu caráter de finitude, acrescenta à narrativa a noção de heterogeneidade, uma vez que se não se reatualiza, o objeto será sempre outro, sempre diferença. É assim que a condição de imigrante coloca a identidade em trânsito, a partir da vivência dos limites de pertencimento e não-pertencimento e da transformação desses horizontes. No limiar da violência da desidentificação, a linguagem também imigra para regiões sem fronteiras, assumindo o próprio lugar de território estrangeiro, zona de 235 mutação que interessa à literatura, pelos desenhos formados do encontro de extremos contraditórios, e à escrita de Lispector, como foi visto ao longo da elaboração desta tese. O jogo que se estabelece entre a expansão e retração das marcas da tradição para uma subjetividade em trânsito, e do abandono de si para a mescla com a diferença, cria zonas de interseção e entre-lugares. Em um primeiro movimento, atingir essa mescla é atingir o domínio do desconhecido, do enigma, e, nesse ponto, o poeta torna-se um tradutor, Comentário: Nessa transição ocorre a tensão do antes e depois e do entre, ai a dramaticidade, encena não a resolução do drama mas o drama em acao como aponta Paz. Na sua dupla posição de receptor e condutor, atua na própria esfera da analogia, sem suprimir a distância entre a cifra e a chave, a “cadeira” e as “duas maçãs”, mas estabelecendo uma relação, puro tanger de cordas. Em texto sobre o ato de traduzir, Lispector afirma que, nesta tarefa, o tradutor “pode correr o risco de não parar nunca” (LISPECTOR, 2005: 115). Este é o risco que a própria autora vive enquanto escritora, uma vez que o questionamento lançado por sua obra, do início ao fim, é um e o mesmo, ainda que sob aparências distintas. Lispector, tradutora de uma cultura tão antiga quanto a própria existência, instala este novo vir-a-ser no universo da Modernidade. O que poderia ser lido como silêncio inalcançável, inscrição da ausência, culmina no segundo movimento, o do disparo, flecha que estilhaça o alvo em mil pedaços, abandono do fixo – o ego, a emocionalização, a humanização encharcada - e se estabelece na zona do deslocamento, da dissonância, do movimento dos sentidos. O fracasso e a falência, o desamparo e a falha, deslocam o foco para a própria busca, o próprio marchar, e não para a plenitude – impossível em sua totalidade. Mas é também nesse ponto em que a experiência com a linguagem possível acontece. A obra não escrita de Agambem. O que se pode escrever daquilo que é impossível escrever. Molde, experimento da voz. Nesse sentido, o retorno à origem, nomeadamente a infância, nos termos de Agambem, apresenta-se como movimento que se dirige não ao inefável da linguagem, uma vez que ele já é seu 236 Comentário: A obra não tem nada a ver com teologia do inefável mas com a ontologia do inexaurível, que jamais se dix mas permite o todo dizer, forma do neutro. Neutro é o silencio que antece ou sucede ou intervalo mas como condição de possibilidade da fala pressuposto, mas ao dizível, o novo que acompanha a experiência. O acontecimento da falha propicia não apenas conhecimento, mas o próprio gesto de constituição, formação do ser que se basta em si mesma. A infância seria, portanto, algo acessível somente a um pensamento que tenha eliminado o indizível na linguagem transformando-se naquilo que se pode dizer, a coisa da linguagem, recuperando a relação entre experiência e linguagem. O it clariciano. A palavra poética, assim, não visa ao silêncio, mas às rasuras e atritos proporcionados pela experiência da falência. A zona originária é espaço que introduz a linguagem enquanto experimento e enquanto iminência de um acontecimento, cujos limites são buscados na própria experiência, e não fora dela. Em outras palavras, a experiência não é de um objeto, mas da própria linguagem, de sua existência. Trata-se, portanto, do espaço em que se busca não o encontro da palavra com o silêncio, com a insuficiência do nome, mas exatamente daquilo que se possa fazer na e com a linguagem. Com a falência desse ato, instala-se a construção. O homem se situa no espaço da escolha, podendo optar por falar ou não, uma vez dotado da faculdade ou da potência de falar. Ainda que haja a impossibilidade da fala a partir de uma dada língua, a sua ética consiste em encontrar a própria língua a partir da faculdade que possui. A experiência com a linguagem em si e a partir da revisão de conceitos é a própria maneira de mostrar que existe uma linguagem, mas somente o revelar-se dela na sua ilatência, na qual se habita desde sempre, é que pode mostrar isso. Existir no mundo é existir na linguagem. E a existência da linguagem é a própria existência a partir de um ethos. Na experiência clariciana, encontrar esse ethos implica entregar-se “à desorientação” e à “desorganização” (ao desregramento de que falava Rimbaud!) que desmontam a “idéia de pessoa” adquirida com a “terceira perna”. “Todo momento de 237 Comentário: Transito do silencia à palavra q singulariza a poética de cl, tema orfico, sucitacao orfica do silencio excessivo – rilke, Orfeu, canto sem cérebro, canto do sensível e não da cabeça achar é um perder-se a si próprio” (LISPECTOR, 1979: 12), resume a narradora de A paixão.... O sujeito só realiza sua despersonalização porque se encontra em fase de liminaridade, distanciado temporalmente de sua organização subjetiva anterior e desdobrando-se em diferentes objetos para que o processo de constante devir floresça. Quando Rimbaud escreve suas famosas Cartas do Vidente, o poeta comenta a própria escrita e aponta a tarefa do poeta vidente: “chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos”. A criação poética implica, desde seu início, a ação do caótico, do indeterminado e do obscuro, suspendendo o sujeito de sua consciência e permitindo que o trabalho interno das tripas se realize. Em poucas linhas, Rimbaud reafirma aquilo que se constituirá como imperativo do sujeito moderno: deslocar o eu pensante para o eu pensado e permitir que a imaginação atue como articulador central do heterogêneo. As Cartas do Vidente convocam a vidência como tarefa de abertura ao “monstruoso” da alma uma vez que “fazer-se vidente” é, ao mesmo tempo, perscrutar a alma, investigando-a, aprendendo-a, cultivando-a a tal ponto que o vidente chegue deliberadamente ao excesso no próprio desregramento, para que se cruze o limiar das semelhanças em direção ao heterogêneo. O vidente deseja e aceita o máximo do desregramento tornando-se o doente, o criminoso, o maldito, o fora de si, tudo que se configura como um sintoma. Nesse ponto, despertam-se as forças noturnas do inconsciente por meio das visões oníricas, convocando à cena o trabalho do informe. Quando aí chega, o poeta vê as suas próprias visões, fantasmáticas, e, mais que isso, deixa-se ser visto pelo grande inominável, decorrente do próprio excesso. O excesso, por sua vez, desconcerta a subjetividade e permite que esse outro (o heterogêneo) devolva-lhe o olhar. Nessa proximidade, o feio, o baixo, o impuro tornam-se não apenas coexistentes, mas desejados. Entretanto, a distância não desaparece quando o 238 desconhecido se apresenta diante do olhar porque o inominável se torna visão, de forma a garantir a presença constante de seu afastamento. O objeto olhado torna-se assim “o índice de uma perda”, uma vez que nele convive ao mesmo tempo o que está “sob nossos olhos”, mas “fora de nossa visão” (DIDI-HUBERMAN, 1998: 148). O sintoma aparece para provocar tudo o que é resíduo e fragmento, resultando em uma fissura. Essa ínfima cissura é a ruptura necessária para que a abertura da obra aconteça. Nesse universo em que o sujeito esvazia a si mesmo e se despersonaliza, a única saída para reconfigurá-lo é em parte a inclusão dos objetos e do mundo no reino do imaginário e do desejo. Neste ponto, a herança modernista na obra de Lispector se mostra presente, uma vez que, nas estéticas da vanguarda surrealista, a arte vive um período de transição no qual os valores humanos começam a mudar e o objeto começa a ser deslocado até ganhar sua dimensão fantasmática, recuperando a potência imaginária Comentário: Falar mais do surrealismo, O corpo impossível, até chegar na cultura cosmobiologica e em UALP e garantindo a ação do desejo sobre ele, de modo que o real e a identidade sejam reinventados. Entretanto, a desmontagem de que trata Lispector não diz respeito apenas à reformulação da subjetividade. Toda a obra clariciana é uma desmontagem do dualismo psicofísico perpetuado pela cultura judaico-cristã, da noção de indivíduo burguês e da introjeção do sacrifício instituídas no pensamento ocidental, que levam ao esmagamento de tudo o que é vivo e natural. No entanto, o drama que a obra clariciana encena passa menos pela resolução da tensão desta herança do que por sua ação. O estabelecimento da lógica racional implica o aniquilamento do vínculo entre homem e natureza. Sexo, corpo, matéria são elementos desvalorizados dentro da cultura teísta, que funda a sociedade patriarcal, uma vez que abre espaço para o assassinato da sensibilidade e o culto do racional. A cultura cosmobiológica, por sua vez, herdada do mundo mediterrâneo, entende que transcendência e imanência são experiências 239 Comentário: Desnarracao do mito do homem como centro, que aniquila o sensível pq transforma em conceito, transformar imagem em conceito para colocar o homem no centro de tudo, vontade de poder. equivalentes, não dissociadas no mundo do vivo, e que o universo não é uma criação de Deus, mas uma manifestação da matéria divina, que se transforma de acordo com o aspecto que este Deus assume em determinada cultura. Assim, Deus é relido pela obra clariciana como um ser cósmico que, por isso, encerra em si espírito e matéria como elementos constitutivos do homem. Deus se torna um aspecto do mundo que varia em cada cultura e o universo poético fundado pela literatura concebe suas regras internas segundo cada autor. Na obra de Lispector, Afrodite é a divindade que provoca a erotização de tudo e reestabelece o vínculo entre homem e natureza, através do qual qualquer esfera humana é erotizada. Mas esta potência não se satisfaz com o imanente apenas e se apresenta como a divindade de Eros que sacraliza o corpo, o espírito e o próprio Amor. Dioniso, por sua vez, é a divindade que se manifesta como metáfora da máscara, representando a natureza dual de todas as coisas em complementaridade. A máscara, portanto, configura-se como símbolo que estabelece os pontos de contato entre o simulacro e o real e, na obra de Clarice Lispector, possibilita o apagamento dos limites entre autor-personagem-narrador, e entre real e ficcional. A descoberta deste apagamento por meio da encenação da escrita denuncia a multiplicidade do real e a impossibilidade de definição da verdade por meio de um discurso único. Defrontar-se com a verdade de si e do real requer o encontro com o outro, assim como a escrita de um texto passa pela escrita de uma tradição. A literatura, a partir da manipulação e do trabalho com a linguagem, pode assim desfazer e alterar paradigmas ao trabalhar com representações e valores construídos pela cultura de uma sociedade e pela própria tradição literária. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 240 DA AUTORA LISPECTOR, Clarice. Outros escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. ______ Cadernos de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Sales, 2004. ______ Correspondências – Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. ______ A bela e a fera. Rio de Janeiro: Rocco, 1999a. ______ De corpo inteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999b. ______ A hora da estrela. 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