DEVER DE LEALDADE DO ADMINISTRADOR DA EMPRESA E DIREITO PENAL
MIGUEL REALE JÚNIOR
A- Lealdade e conflito de interesses
Os deveres de lealdade e de informação estatuídos nos
artigos 155, 156 e 157 da Lei nº 6.404 de 1976, devem ter seu
significado
analisado
para
posteriormente
examinar
se
tem
cabença sua eleição como bens jurídicos a serem tutelados
também pela lei penal.
Segundo o art. 155 da Lei das Sociedades Anônimas o
administrador
deve
servir
com
lealdade
à
companhia.
Não
especifica a lei o que venha a ser lealdade, a não ser pela
forma
negativa,
ou
seja,
estabelecendo
o
que
é
vedado
realizar como ofensa ao dever de lealdade. A conduta vedada
no inciso I do art. 155 da referida lei, na verdade, já
contem o comportamento depois descrito no inciso III, porém,
a especificação indica o relevo que se pretende outorgar à
circunstância de aquisição de bem ou direito de interesse da
empresa para depois o revender a esta.
No
utilizar
inciso
de
I,
proíbe-se
oportunidades
que
o
administrador
comerciais
de
que
venha
a
tenha
1
conhecimento em razão do cargo em benefício próprio ou de
outrem. E como espécie de privilégio no uso do cargo em
benefício próprio, valendo-se de oportunidades surgidas de
interesse da empresa, apresenta-se a hipótese prevista no
inciso III, ou seja, a aquisição de bem ou direito que sabe
necessário
à
companhia
ou
que
pretenda
adquirir
para
a
revender com lucro.
Na dicção do inciso I, o legislador, no entanto, exclui
da
conduta
vedada
a
necessidade
de
que
haja
prejuízo
à
1
companhia, pois o ato será ilícito ocorra ou não prejuízo .
No
entanto,
na
figura
da
aquisição
de
bem
ou
direito
necessário à companhia para o revender exige-se o elemento
intencional de visar à obtenção de lucro.
Dessa
sobrepor
forma,
aos
os
interesses
interesses
da
2
pessoais ,
e
companhia
a
lealdade
devem
se
está
em
respeitar essa ordem de valores, pois há lealdade à empresa
que se dirige quando em hipótese de conflito de interesses
decide-se
prevalência
em
favor
ao
do
interesse
atendimento
desse
da
sociedade,
interesse
dando-se
em
face
de
de
usar
as
eventuais interesses próprios.
O
administrador
está,
portanto,
vedado
oportunidades que lhe surjam em vista do cargo de direção,
devendo, para ser leal com a empresa, sobrepor o interesse
1
BULGARELLI, Waldirio, Manual das sociedades anônimas. 10ª ed., São
Paulo, Atlas, 1.998, p. 182, considera que fez bem a lei por não
distinguir entre aquelas práticas que darão prejuízo e outras que não,
prevalecendo, então, a questão ética e não patrimonial.
2
CARVALHOSA, Modesto e LATORRACA, Nilton, Comentários à lei de sociedades
anônimas, vol. 3, São Paulo, Saraiva, 2ª ed., 1.998, p. 254.
2
desta ao seu próprio, não lhe sendo permitido, sob pena de
ilicitude, realizar negócio em seu benefício ou de outrem
quando a oportunidade surgida deveria ser prioritariamente
utilizada
em
favor
da
empresa,
pois
se
era
uma
boa
oportunidade a ponto de ser usada pelo administrador, que
decide
pelos
atos
da
empresa3,
deveria
ele
ter
agido
em
função dos interesses societários e não em função de seu
interesse particular4.
No que tange à aquisição de bens, inciso III do art. 155
da lei de sociedades anônimas, é evidente que na revenda à
empresa o valor superior ao de
compra pelo administrador
representa um prejuízo à empresa, pois o administrador, na
defesa dos interesses da empresa que dirige, poderia ter
viabilizado a compra pelo valor pelo qual adquirira. Não o
fazendo, ao revender por preço superior, de um lado aufere um
lucro, de outro causa um prejuízo à companhia.
Como anota MODESTO CARVALHOSA, a ilicitude se configura
mesmo se, pagando um sobrepreço, a companhia auferiu uma
vantagem ao ter adquirido o bem ou direito por valor inferior
àquele de mercado5.
3
CARVALHOSA, Modesto e LATORRACA, NILTON. idem, p. 259; CAMARGO VIDIGAL,
Geraldo e SILVA MARTINS, Ives Gandra, Comentários à lei das sociedades
anônimas, Rio de janeiro, Forense Universitária, 1.999.p. 482, que
pondera não poder o administrador ao estar ciente de determinado negócio
deixar de efetivá-lo em nome da companhia sob pena de violar o princípio
da lealdade ao preterir o interesse da sociedade.
4
TOLEDO, Paulo Fernades Campos Salles de, Conselho de Administração na
sociedade anônima: estrutura, funções e poderes, responsabilidade dos
administradores, São Paulo, Atlas, 1.997, p. 58, considera que “não basta
que o administrador deixe de aproveitar oportunidade de negócio. É
preciso, igualmente, que ele não deixe de aproveitá-las, quando possam
beneficiar a companhia”.
5
CARVALHOSA, Modesto, op. cit., p. 261.
3
Mas, inclusive na hipótese de não haver lucro por parte
do administrador e, em contrapartida, prejuízo à empresa, o
ato não deixa de ser ilícito, pois se enquadra na proibição
constante
do
inciso
I,
ou
seja,
na
utilização
de
oportunidade, sobrepondo-se o interesse particular do diretor
ao societário6.
Por outro lado, se houver conflito de interesses, o que
se verifica, por exemplo, na hipótese de compra por parte do
administrador para revenda à companhia, cabe ao administrador
cientificar aos demais administradores7, bem como ao Conselho
de
Administração
da
situação
de
conflito,
tornando-se
impedido de intervir na operação, conforme determina o art.
156
da
lei
de
sociedades
anônimas,
cientificando
o
impedimento existente e fazendo consignar em ata do Conselho
de Administração a natureza e extensão do seu interesse.
Os negócios entre a empresa e o seu administrador são
sempre
relevantes
exatamente
por
envolverem
em
geral
situações de conflito de interesses, nas quais se realça o
respeito ou desrespeito ao dever de lealdade, cuja afronta
pode redundar em nulidade do negócio. E essa relevância, seja
em companhias abertas ou fechadas8, revela que os negócios
6
CAMARGO VIDIGAL, Geraldo e SILVA MARTINS, Ives Gandra, Comentários à lei
das sociedades anônimas, op. cit., p. 483, entende que a desnecessidade
de prejuízo aplica-se a todas as situações previstas nos incisos do art.
155, pois o evidente escopo do legislador foi o de traçar princípios de
ordem ética cuja desobediência leva à deslealdade. Igualmente, ROMANO,
Cristiano. Órgãos da sociedade anônima, São Paulo, RT, 1.982, p. 119, ao
considerar que a ausência de prejuízo não descaracteriza o ilícito, pois,
em qualquer hipótese, cria uma situação de perigo.
7
PINHEIRO TORRES, Carlos Maria, O direito à informação nas sociedades
comerciais, Coimbra, Almedina, 1.998, p. 45.
8
CARVALHOSA, Modesto e LATORRACA, Nilton, op. cit., p. 277.
4
entre administradores devem ser objeto sempre de informação
aos sócios e aos órgãos societários9.
B- Suborno
Constitui, de outro lado, desvio de poder, segundo o § 2º
do art. 154 da Lei nº 6.404/76, o administrador que, sem
autorização
estatutária
ou
da
Assembléia
Geral,
venha
a
receber de terceiros qualquer modalidade de vantagem pessoal
em razão do exercício do cargo. Comprovado o recebimento da
vantagem
é
a
mesma
de
propriedade
da
sociedade.
Esse
recebimento assemelha-se à corrupção, cada vez mais presente
no setor privado, que no último item será examinada10, em face
das
recentes
recomendações
da
Comunidade
Européia
e
das
atuais alterações ocorridas na legislação penal de vários
países europeus.
O
conflito
de
interesses
e
a
atuação
desleal
do
administrador em face da empresa, no entanto, é conduta cuja
ilicitude
é
restrita,
no
Brasil,
ao
campo
do
direito
societário, sem haver obtido dignidade penal, o que será
9
CAMARGO VIDIGAL, Geraldo e SILVA MARTINS, Ives Gandra, Comentários à
lei das sociedades anônimas, op. cit., p. 484, consideram que em havendo
um conflito de interesses, o administrador está por um lado proibido de
intervir e de outro não pode ficar silente acerca de seu interesse.
10
REQUIÃO, Rubens, Curso de Direito Comercial, São Paulo, Saraiva, 1.998,
2ªed., p. 168, que anota ser um dos problemas mais agudos na
administração a peita ou suborno, sendo comum o amaciamento de diretores
através de presentes ou mesmo de propinas secretas. Igualmente, TOSCANO,
Augusto, Lei da sociedade anônima atualizada: comentada, Campinas, Coploa
Livros, 1.998, p. 118; PAES, Paulo Roberto Tavares, Responsabilidade dos
administradores de sociedades, 2ª. ed., São Paulo, RT, 1.997, p. 37, para
o qual o administrador deve ser diligente, honesto e competente, sendo
que a lei, no caso, combate a propina e supremacia do interesse pessoal.
5
objeto
a
seguir
de
apreciação,
não
sem
antes
referir
à
disciplina penal da deslealdade patrimonial na Itália.
C- A lei italiana
No Direito Italiano, o novo art. 2.634 do Código Civil,
em vigor desde 16 de abril de 2.00211, revogando o art. 2.631
do
mesmo
crime
de
código12,
introduz
infidelidade
alterações
patrimonial,
na
que
configuração
vem
agora
do
assim
redigido:
11
A reforma da legislação atende a recomendações da União Européia no
sentido de reforçar métodos preventivos e repressivos com relação aos
ilícitos
societários.
A
respeito,
PIVETTI,
Michele,
L’infedeltá
patrimoniale, no site www.diritto.it/articoli/penale/pivetti, que indica
a adoção de figura semelhante no Código Penal alemão, §266 StGB, e no
espanhol, art. 295, no qual se prevê o crime de administração desleal.
12
O art. 2.631 do Código Civil estabelecia que havendo uma determinada
operação por conta própria ou de terceiro um conflito de interesse com o
da sociedade, não se abstém de participar da deliberação do conselho
relativa a essa operação. Conforme FRANCESCO ANTOLISEI o tipo penal exige
a ocorrência de um interesse do administrador contrário ao da sociedade,
estabelecendo-se um contraste de posição entre o dirigente e a empresa,
sendo que o administrador continua a desenvolver a gestão e vale-se do
conhecimento que obteve no exercício de suas funções diretivas para
alcançar uma vantagem pessoal. No caso, ressalta ANTOLISEI há lesão aos
deveres de boa fé e de fidelidade, consistindo a ação delituosa em não se
abster de votar e decidir sobre a questão que encerra o conflito de
interesse, quando lhe caberia não participar da discussão e da decisão. O
crime se consumaria com a prolação do voto. (Manuale di Diritto Penale,
leggi complementari, i reati fallimentari e societari, Milão, Giuffrè,
1.959, p. 363 e seguintes. MARIO ROMANO(Profili penalistici del conflitto
di interesse dell’ amministratore di societá per azioni, Milão, Giuffrè,
1.967, p. 125) entende que na situação há um perigo para a sociedade em
face da presença de um interesse de cunho econômico pessoal em contraste
com o social, devendo o administrador renunciar ao interesse pessoal que
pode causar um dano patrimonial á empresa, cumprindo-lhe abster-se de
declaração de voto.
A diferença essencial entre os dizeres do revogado art. 2631 e o
novel art. 2634, ambos do Código Civil italiano, está em que a conduta
delituosa não se limita à prolação de voto, mas alcança, agora, também, a
comissão de atos de disposição de bens sociais, independentemente de
decisões do conselho no qual se profira voto.
6
administradores,
“Os
gerais
e
interesse
os
em
liquidantes,
conflito
com
os
que,
o
da
diretores
tendo
um
sociedade,
para o fim de procurar para si ou para outrem
injusto proveito ou outra vantagem, realizam
ou concorrem a deliberar atos de disposição
dos bens sociais, causando intencionalmente à
sociedade um dano patrimonial”.
Assim,
pode-se
dizer
que
na
descrição
típica
acima
transcrita, o ato de infidelidade em face da empresa deve
decorrer de, em um conflito de interesses concreto13, realizar
o administrador ou deliberar a execução de ato com vistas à
obtenção de proveito injusto ou qualquer outra vantagem para
si ou para outrem.
Esse ato deve consistir em uma disposição
de bens sociais e causar intencionalmente um dano patrimonial
à empresa.
Protege-se, portanto, como assinala AMATO, o patrimônio
social14,
mas
conflito
de
que
vem
interesse.
a ser
A
lesado em decorrência
existência
de
uma
de um
situação
de
conflito de interesse constitui, portanto, um pressuposto do
crime, conflito esse atual e não futuro ou eventual, além do
que relativo a interesses de cunho patrimonial, objetivamente
valoráveis. O conflito de interesses deve, assim, ter caráter
13
Conflito de interesses que, como assinalam ANTOLISEI (Manuale di
Diritto Penale, leggi complementari, i reati fallimentari e societari,
Milão, Giuffrè, 1.959, p. 363) e ROMANO (Profili penalistici Del
conflitto di interesse dell’ amministratore di societá per azioni, Milão,
Giuffrè, 1.967, p. 15), colhe seu significado na lei civil, art. 2.391 do
Código Civil italiano, tendo o Direito Penal caráter subsidiário.
14
AMATO, Astolfo di, Diritto Penale dell’ impresa, Milão, Giuffrè, 5ª
ed., 2.003, p. 174.
7
econômico,
aspectos
objetivamente
psicológicos
valorável,
ou
subjetivos,
não
se
como
prendendo
destaca
a
ENZO
MUSCO15.
Encontra-se limitada a infidelidade como hipótese penal
por diversos elementos componentes do tipo. De um lado há o
pressuposto, o conflito de interesses, que AMATO define como
incompatibilidade entre a vantagem da sociedade e aquela do
administrador, de outro se exige, também, nesta situação de
conflito econômico, a deliberação pela prática de atos ou a
efetiva execução de atos que constituam uma disposição de
bens sociais, decididos ou realizados com o fim de obter
injusto proveito ou qualquer outra vantagem.
A conduta relevante diz respeito, portanto, à prática de
atos ou à deliberação acerca de atos de disposição de bens
sociais, o que retira do aspecto penal, como bem observa
MUSCO, a decisão de não realizar uma determinada operação
vantajosa para empresa16, com o que prejudica a sociedade e
obtém vantagem pessoal ao realizar a operação em seu próprio
e exclusivo interesse.
De outra parte, a exigência dos atos serem de disposição
de
bens
sociais
“delimita
rigorosamente”
o
tipo
penal,
segundo AMATO, pois, exclui atos diversos da disposição de
15
MUSCO, Enzo, I nuovi reati societari, Milão, Giuffrè, 2.002, p. 142. Já
na vigência do art. 3.631 do Código Civil se destacava para a
caracterização do crime a objetividade e a atualidade do interesse
pessoal de cunho patrimonial, como se vê em MARIO ROMANO (Profili
penalistici del conflitto di interesse dell’ amministratore di societá
per azioni, Milão Giuffrè, 1.967, p.59).
16
MUSCO, Enzo, I nuovi reati societari, Milão, Giuffrè, 2.002, p. 143.
8
bens sociais como deliberações acerca do aumento de capital
ou determinações sobre a estrutura interna da sociedade17.
Outro
limite
a
ser
destacado
refere-se
ao
dano
patrimonial, ao evento, pois, o ato de infidelidade apenas
será digno
de
tutela
penal
se
houver dano
patrimonial
à
empresa, com o que desempenha esse dado um papel seletivo
quanto à relevância penal, e se impede, como assinala MUSCO,
uma
excessiva
incriminação
no
campo
da
atuação
da
administração das empresas, para se restringir a ingerência
no plano da empresa, que deve ter em sua condução espaço
livre da intervenção penal18.
C- DESLEALDADE NO CONFLITO DE INTERESSES E INCRIMINAÇÃO
Em vista do descrito no item A,
administrador,
cuja
ilicitude
vem
sobre a infidelidade do
expressa
na
Lei
das
Sociedades Anônimas, cabe indagar se deve o Direito Penal
brasileiro, tal como o italiano, alemão e espanhol, também
trazer
para
o
seu
âmbito
a
deslealdade
do
dirigente
da
empresa que, em conflito de interesses, atua ou decide em seu
próprio favor e em prejuízo da sociedade. Se for positiva a
resposta, é de examinar quais os limites dentro dos quais
cumpre circunscrever a descrição típica.
17
AMATO, Astolfo di, Diritto Penale dell’ impresa, Milão, Giuffrè, 5ª ed.
2.003, p. 176.
18
MUSCO, Enzo, I nuovi reati societari, Milão, Giuffrè, 2.002, p. 145.
9
A legislação penal recorta das ilicitudes previstas
nas normas de direito societário algumas condutas apenas, na
linha
de
que
o
Direito
Penal
deve
ser
a
ultima
ratio,
subsidiário e, portanto, altamente seletivo, apenas trazendo
para seu âmbito as condutas que mais diretamente afrontam os
valores e os interesses que devem presidir a vida societária.
Em suma, resta examinar a eventual criminalização da
deslealdade do administrador, a infidelidade no conflito de
interesses, mesmo diante da diretriz lembrada de se erigir um
Direito Penal Mínimo, excluindo-se de relevo penal ações que
possam ser reprimidas por outros campos do Direito, reservado
o âmbito penal exclusivamente para os fatos mais gravemente
lesivos dos interesses gerais da sociedade.
A legislação penal brasileira, se não contempla a
figura
da
infidelidade
do
administrador,
incrimina,
no
entanto, como examinarei depois, a falsa informação, dando
relevo penal à conduta do administrador que faz essa falsa
informação em comunicação, parecer ou relatório ao público ou
à assembléia acerca do estado
econômico ou financeiro da
empresa.
Mas, a infidelidade do administrador de empresa, a
meu ver, mesmo diante do princípio da intervenção mínima deve
ser objeto de incriminação, pois, como assinala REQUIÃO, a
empresa deixou de ser apenas uma máquina de fazer lucros,
sujeita a valores de ordem ética, pelo que possui “graves
deveres
para
com
a
coletividade
em
cujo
meio
atua”
10
respondendo
às
exigências
do
bem
público
e
à sua
função
social19.
Mas, no mundo globalizado de hoje, em que o sucesso é
simplesmente traduzido pelo poder financeiro, e no qual se
esgarçam as relações sociais em um individualismo acendrado,
que
compromete
a
consideração
ao
outro,
a
honradez
e
a
honestidade deixam de ser valores básicos indiscutíveis, em
vista
do
que
a
lealdade
e
a
confiança,
nas
relações
de
trabalho e econômicas, apresentam-se como fundamentais para
salvaguarda da socialidade e da justiça20.
A vida das pessoas desenvolve-se, primordialmente, no
exercício profissional, que, na maioria das vezes, se dá no
seio de uma empresa. É na empresa que as pessoas se formam,
se realizam, se relacionam e é a empresa na qual se trabalha,
como
empregado
ou
dirigente,
o
meio
em
que
os
valores
positivos devem ser cotidianamente respeitados, fazendo-se da
honestidade e da lealdade um vetor definidor do agir concreto
e não apenas um distante e abstrato ideal de comportamento.
Só
a
valorização
da
lealdade
pode
ser
um
obstáculo
ao
degenerescente ambiente espiritual do início do século XXI.
Minimizado o valor da lealdade frente à empresa que
se
dirige,
aberta
está
a
porta
para
a
prevalência
do
19
REQUIÃO, Rubens, Curso de Direito Comercial, São Paulo, Saraiva, 1.998,
2ªed., p. 166 e seguinte.
20
MARTINS-COSTA, Judith, Comentários ao Novo Código Civil, v. V, tomo 1,
Rio de Janeiro, Forense, 2.003, p. 29, pondera que a confiança como
proteção jurídica e postulado ético na condição de pressuposto de toda
ordem jurídica, atua “como verdadeiro cimento da convivência coletiva”,
sendo uma necessidade que só tende a crescer na medida em que as relações
tornam-se distantes e impessoais.
11
aproveitamento,
da
banalização
da
honestidade
em
face
da
obtenção do sucesso financeiro a qualquer custo. Jamais a
lealdade e a confiança foram tão essenciais, em vista do
esvaecimento
do reconhecimento de tantas virtudes morais
frente à importância da posse de bens materiais. Ser fiel à
empresa e não prejudicá-la em
favor de benefício próprio
constitui, portanto, um valor primordial nos dias atuais,
para reafirmação dos valores da honestidade e da correção de
comportamento
a
serem
realçados
na
busca
desenfreada
de
sucesso econômico.
Por essas razões entendo, que se deva criminalizar a
deslealdade do administrador que atua ou decide, em situação
de
conflito
de
interesses,
em
seu
próprio
favor,
menosprezando o interesse social e a importância da empresa
como centro criador de benefícios da coletividade e como
ambiente propício ao seu próprio desenvolvimento pessoal e
social. A empresa, portanto, é sujeito de direitos, credora
constante
da
lealdade
e
confiança
de
seus
dirigentes
e
empregados.
Pode-se argumentar em desfavor da incriminação que se
está a realizar a eticização do Direito Penal, impondo-se a
denominada ética dos negócios, mas como adverte FOFFANI, ao
examinar o tipo penal da corrupção do setor privado, efetuase
uma
necessária
“valorização
de
objetividades
jurídicas
supraindividuais e institucionais contra a patrimonialização
e individualização da proteção penal em matéria econômica21”.
21
FOFFANI, Luigi, La corrupción em el sector privado: la experiência
italiana y del derecho comparado, na Revista Penal, nº 12, La Ley, julho
de 2.003, p. 71.
12
No caso da infidelidade do administrador considero,
no entanto, que a elevação da confiança e da lealdade como
valores dignos de tutela penal, justifica-se pelos aspectos
éticos
de
caráter
institucional,
mas
a
conduta
a
ser
tipificada deve encontrar alguns limites no plano da efetiva
ou potencial lesão ao patrimônio da empresa.
Dessarte, entendo que o tipo penal deva ter limites,
incriminando-se, tão só, os atos e decisões, em situação de
conflito
de
interesses,
dos
quais
venha
a
ocorrer
dano
patrimonial ou perigo concreto de dano patrimonial.
limitar
Não
cabe,
a
conduta
todavia,
à
como
figura
sucede
comissiva,
na
lei
pois
a
italiana,
omissão,
consistente no descumprimento do dever de atuar em prol da
empresa
para
viabilizar
interesse
futuro
próprio,
também
constitui deslealdade que pode causar prejuízo patrimonial,
na perda de uma chance por parte da companhia que dirige.
A sanção a ser prevista, como substitutiva da pena
privativa de liberdade, há de ser a interdição temporária do
exercício de cargo ou função de direção de empresa comercial
de qualquer natureza, bem como de sociedade civil de fins
lucrativos.
Vítimas são os sócios e a empresa, seja esta última
sociedade anônima ou limitada, cabendo às vítimas o poder de
agir, na formulação de queixa-crime, pois, é possível, por
exemplo, a empresa entender não conveniente tornar público o
fato, razão pela qual a ação penal deve ser privada.
13
D-
a
corrupção
no
setor
privado:
figura
penal
específica
Em 22 de dezembro de 1.998, o Conselho da Europa
adotou diretriz constante de Ação Comum na área penal no
sentido da criminalização da corrupção no setor privado e
definindo, em seus artigos 2 e 3, as figuras típicas da
corrupção passiva e ativa22.
Segundo o art. 2, constitui corrupção passiva, no
setor privado, o ato intencional de, diretamente ou por meio
de terceiro, solicitar ou receber no exercício de atividades
empresariais
vantagens
para
para
si
ou
indevidas
terceiro,
ou
ou
de
aceitar
qualquer
promessa
natureza,
de
tais
vantagens, em troca de realizar ou deixar de realizar um ato,
descumprindo suas obrigações.
No art. 3, define-se corrupção ativa no setor privado
como prometer, dar ou oferecer, diretamente ou por meio de
terceiros, uma vantagem indevida de qualquer natureza a uma
pessoa, no exercício de suas atividades empresariais, para
22
NIETO MARTÍN, Adán, A corrupção no setor privado (reflexões a partir do
no
site
ordenamento
espanhol
à
luz
do
direito
comparado)
www.mundojuridico.adv.br, trad. Damásio de Jesus. O autor espanhol
pondera ser a corrupção sem dúvida um dos delitos característicos do
mundo globalizado, não sendo de estranhar que os órgãos supranacionais
tenham criado estratégias de ação comum contra a corrupção no setor
privado.
14
que
realize
ou
se
abstenha
de
realizar
um
ato
em
descumprimento de suas obrigações.
Nas justificativas da Ação Comum de 1.998 indica-se
que
o
objeto
da
proteção
penal
está
na
preservação
da
concorrência, devendo-se punir atos que comportem ou possam
comportar distorções na concorrência no âmbito do mercado
comum e que possam produzir danos econômicos a terceiros com
a adjudicação incorreta ou execução incorreta de um contrato.
Como observa FOFFANI, o objetivo político-criminal seria o da
proteção
da
concorrência,
cuja
distorção
compromete
a
23
abertura e a liberdade dos mercados .
Em 1.999, edita o Conselho da
Europa a Convenção
Penal sobre Corrupção, em cujos artigos 7 e 8 define-se,
igualmente, a corrupção passiva e ativa. Ademais, em novembro
de 2.002, o Parlamento Europeu aprovou Projeto de Decisão
Chave relativa à luta contra a corrupção no setor privado,
que
substituirá
a
Ação
Comum
de
1.998,
porém
ainda
não
apreciada pelo Conselho da Europa, mas cujos termos pouco
diferem dos estatuídos na Ação Comum.
Cumpre
realçar
que
na
Convenção
Penal
contra
a
Corrupção estatui-se ser o bem protegido “a confiança e a
lealdade que são necessárias para a existência de relações
privadas”, a indicar que o objeto de tutela é de caráter
supraindividual e institucional e não de cunho patrimonial.
23
FOFFANI, Luigi, La corrupción em el sector privado: la experiência
italiana y del derecho comparado, na Revista Penal, nº 12, La Ley, julho
de 2.003, p. 70.
15
No
direito
brasileiro
a
corrupção
na
forma
ativa
e
passiva limita-se ao setor público, em defesa do correto
desenvolvimento da Administração Pública, para proteção aos
princípios
que
administrativa.
legal
da
a
O
regem,
bem
corrupção
em
especial
juridicamente
passiva
é
o
da
o
da
moralidade
tutelado
pelo
lisura
correção
e
modelo
da
atuação do funcionário público, no exercício da função, além
da ofensa aos princípios da Administração Pública.
No direito europeu, bem
antes
mesmo das decisões da
Comunidade Européia, a Inglaterra, em lei sobre a prevenção
da corrupção de 1.906, punia a corrupção ativa e passiva no
setor privado. Em França, lei de 1.919 introduziu a figura da
corrupção de empregados e hoje consta do Código do Trabalho,
art.
152-6,
os
tipos
da
corrupção
passiva
e
ativa.
A
corrupção passiva apenas se tipifica se o recebimento de
vantagem
ocorre
sem
conhecimento
ou
autorização
do
empresário. Se há o consentimento o fato é atípico.
Mais recentemente, em cumprimento da diretriz da Ação
Comum destaca-se a legislação belga em cujo Código Penal se
introduziu o art. 504 bis em cujos parágrafos se tipificou a
corrupção passiva e ativa. Consideram DE LA CUESTA ARZAMENDI
e BLANCO CORDERO24 que o objeto de tutela é a lealdade e a
confiança, pois, se há autorização do empresário, empregados
e
administradores
que
recebam
vantagens
indevidas
não
praticam o crime de corrupção, fundado na deslealdade e abuso
de confiança.
24
DE LA CUESTA ARZAMENDI, José Luis e BLANCO CORDERO, Isidoro, La
criinalización de la corrupción en nel setor privado, na coletânea La
Madrid, Tecnos, 2.003,
ciência del Derecho Penal ante el nuevo siglo,
reimpressão, p. 268.
16
Na Alemanha, pouco antes da adoção da diretiva da Ação
Comum, em 1.998 introduziu-se, em 1.997, o § 299 StGB que
prevê a corrupção passiva e a ativa como um delito contra a
concorrência leal. A corrupção passiva pode ser praticada por
empregados
e
administradores
na
atividade
comercial
que
solicita, aceita promessa ou recebe vantagem para infringir
suas obrigações em prejuízo do competidor e da comunidade em
face do encarecimento dos produtos. Sujeito ativo do crime
de
corrupção
concorrência
ativa
para
é
o
competidor
favorecer,
por
meio
que
interfere
na
da
corrupção,
as
próprias vendas. Sendo um crime cujo objeto é a lealdade
concorrencial
é
indiferente
que
haja
o
conhecimento
e
25
autorização do empresário .
Na
Itália,
introduziu-se
2.002,
no
privado.
o
qual
Diz,
com
art.
se
a
reforma
2.635
prevê
então,
ao
a
dos
Código
figura
o art.
da
delitos
Civil,
societários
em
corrupção
2.635 do Código
abril
no
de
setor
Civil,
cuja
rubrica é infidelidade em razão de dádiva ou promessa de
favor,
que
serão
administradores,
punidos
diretores
com
pena
gerais,
de
até
três
auditores
anos
internos
“os
e
responsáveis pela revisão, que em vista de uma dádiva ou
promessa de favor realizem ou
omitam atos contrários aos
deveres de seu cargo causando dano à sociedade”. Estende-se a
25
Sobre a disciplina dessa matéria na Alemanha e em outros países
europeus consulte-se DE LA CUESTA ARZAMENDI, José Luis e BLANCO CORDERO,
Isidoro,
La criminalización de la corrupción en nel setor privado, na
coletânea La ciência del Derecho Penal ante el nuevo siglo,
Madrid,
Tecnos, 2.003, reimpressão, p. 266 e seguintes, bem como NIETO MARTÍN,
Adán, A corrupção no setor privado (reflexões a partir do ordenamento
espanhol à luz do direito comparado) no site www.mundojuridico.adv.br,
trad. Damásio de Jesus.
17
punição
àquele
que
promete
o
favor.
O
crime
é
de
ação
privada.
Reprime-se a má gestão, o desvio dos interesses e a
incorreta
condução
da
sociedade,
porém,
o
respeito
aos
deveres do cargo restam em segundo plano, pois, em primeiro
lugar o que se tutela é o patrimônio da empresa, tendo em
vista que a deslealdade, a corrupção, apenas tem relevo se
causar dano ao patrimônio da sociedade26.
Diante desse quadro das diversas posições assumidas na
legislação européia acerca da corrupção privada, é mister
indagar
se
deve
haver
a
criação
dessa
figura no
direito
brasileiro, e, em caso positivo, se a conduta típica é de ser
voltada para o aspecto da lesão à lealdade e confiança que
compromete a moralidade na administração da empresa e o bom
andamento da atividade empresarial, se a configuração típica
há de depender da ocorrência de prejuízo, ou se não passa de
uma forma de concorrência desleal.
Na Espanha, os penalistas
resistem à criação de
uma
figura penal de corrupção no âmbito privado, entendendo que
26
MUSCO, Enzo, I nuovi reati societari, Milão, Giuffrè, 2.002, p. 158;
FOFFANI, Luigi, La corrupción em el sector privado: la experiência
italiana y del derecho comparado, na Revista Penal, nº 12, La Ley, julho
de 2.003, p. 67, que ressalta estar a figura penal claramente orientada
para a defesa do patrimônio social, em uma opção reducionista frente à
diretiva européia. Considera FOFFANI que o tipo penal da corrupção resta
absorvido pelo delito de infidelidade patrimonial, convertendo-se em
pouco mais que um delito simbólico (p. 68).
Não pensa assim AMATO,
Astolfo di, Diritto Penale dell’ impresa, Milão, Giuffrè, 5ª ed. 2.003,
p. 179, que entende ser o interesse protegido o interesse social da
fidelidade da conduta na gestão, o bom andamento societário, mas sem
deixar de reconhecer que na corrupção privada, ao lado da lesão, à
imparcialidade e correção da ação administrativa, exige-se a ocorrência
de um prejuízo concreto.
18
outros ramos do direito suficientemente reprimem a ilicitude
dos
atos
de
deslealdade
decorrente
da
aceitação
ou
recebimento de vantagem para descumprir deveres do cargo ou
emprego na empresa27.
Primeiramente, filio-me à diretriz européia no sentido
da
necessidade
e
relevo
de
se
criminalizar
a
corrupção
privada, a cada passo mais presente na vida empresarial, seja
pela “comissão” ou qualquer outra vantagem como viagens, que
empregados ou dirigentes recebem na compra com sobrepreço, na
compra
de
elevadas
quantidades
de
um
produto
desnecessariamente, na não reclamação de vícios do produto
fornecido. Essas condutas, de elevado aspecto ético negativo,
ferem a instituição da empresa, as relações sociais e os
interesses coletivos, fundados na confiança e na lealdade, de
forma
mais
grave
do
que
a
figura
examinada
nos
itens
anteriores.
Torno a repetir o pensamento de FOFFANI, para o qual a
incriminação
da
corrupção
privada
pretende,
com
razão,
a
“valorização de objetividades jurídicas supraindividuais e
institucionais contra a patrimonialização e individualização
da proteção penal em matéria econômica”28.
27
DE LA CUESTA ARZAMENDI, José Luis e BLANCO CORDERO, Isidoro, La
criinalización de la corrupción en nel setor privado, na coletânea La
Madrid, Tecnos, 2.003,
ciência del Derecho Penal ante el nuevo siglo,
reimpressão, p. 286 e seguintes; NIETO MARTÍN, Adán, A corrupção no setor
privado (reflexões a partir do ordenamento espanhol à luz do direito
comparado) no site www.mundojuridico.adv.br, trad. Damásio de Jesus. Para
NIETO MARTÍN nem o legislador nem a doutrina reconheceram a obrigação de
incluir um delito com essas características, sendo a expressão corrupção
privada desconhecida nos dicionários de termos jurídico-penais espanhóis.
28
FOFFANI, Luigi. La corrupción em el sector privado: la experiência
italiana y del derecho comparado, na Revista Penal, nº 12, La Ley, julho
de 2.003, p. 71.
19
Por
outro
lado,
o
crime
de
corrupção
privada
é
pluriofensivo, mas tem por objeto primordial de tutela a
confiança e a lealdade. Ressalto que uma vez desrespeitadas a
confiança e a lealdade, compromete-se o correto andamento da
atividade administrativa da empresa, e, subsidiariamente, se
causa
um
dano
patrimonial
à
sociedade.
Eventualmente
se
conturba e distorce a concorrência.
A potencial conturbação da honesta concorrência é dado
que
pode
ocorrer
ou
não,
pois,
a
aquisição
de
quantia
superior à necessária por um fornecedor costumeiro ou até
mesmo em situação de monopólio natural não afeta qualquer
concorrente, mas afronta o dever de lealdade e a confiança
que devem reger as relações de emprego, mormente com relação
aos
dirigentes
da
empresa.
De
outra
parte,
mesmo
que
a
concorrência seja desvirtuada, pode o concorrente não ter
interesse
na
persecução
penal,
enquanto
a
empresa
do
administrador ou empregado corruptos remanesce ferida pelo
desrespeito aos valores da lealdade e da confiança.
No
direito
concorrência
brasileiro
desleal,
art.
há
195,
a
hipótese
X,
da
Lei
de
crime
de
nº
9.279/96,
consistente em ter o empregado recebido dinheiro ou promessa
de qualquer recompensa, para, faltando ao dever de lealdade,
proporcionar vantagem ao concorrente do empregador. É uma
forma restrita de corrupção, pois, limita-se à hipótese de
proporcionar benefício ao concorrente, enquanto a figura da
corrupção privada é muito mais ampla e compreende a obtenção
20
de
vantagem
ou
promessa
de
vantagem
para
descumprir
os
deveres de ofício de forma geral29, por exemplo, em favor de
qualquer fornecedor ou prestador de serviço, bem como ao
certificar em declaração a satisfatoriedade de um produto ou
a qualidade e competência de um antigo empregado.
Por outro lado, o aspecto do dano patrimonial à empresa
não é o mais relevante, apesar de muitas vezes presente na
corrupção
passiva
do
administrador
ou
empregado.
Na
configuração proposta pelo Conselho da Europa o prejuízo não
constitui elemento do tipo. Pode até mesmo haver a corrupção
passiva e não haver prejuízo á empresa, como na escolha de um
fornecedor
que
apresenta
o
menor
preço
de
mercado
à
companhia, mas que por fora dá ao administrador responsável
pela
compra
uma
vantagem
financeira,
em
retribuição
pela
opção feita.
Assim, a corrupção privada, na forma passiva e ativa,
aproxima-se da corrupção na Administração Pública, posta a
confiança e
a
lealdade como
os
valores
centrais
a
serem
tutelados.
O
crime
condicionada,
deve
pois,
se
pode
prever
ocorrer
seja
de
eventual
ação
pública
interesse
da
29
DAMÁSIO DE JESUS, em nota à tradução citada de NIETO MARTÍN, no site
www.mundojuridico.adv.br,
afirma
equivocadamente
que
entre
nós
a
corrupção ativa e passiva no setor privado configuram os delitos de
concorrência desleal, definidos no art. 195, IX e X da Lei nº 9.279 de
1.996. No caso vítima é a empresa empregadora do empregado corrupto que
por dinheiro dá vantagem ao concorrente, que por sua vez é o agente
corruptor. Na hipótese examinada da corrupção privada, de acordo com as
legislações como a alemã, um produtor paga a um administrador ou
empregado para comprar o seu produto, com o que concorre deslealmente
frente ao outro produtor. Vítima é o concorrente do agente corruptor. São
hipóteses, portanto, totalmente diversas.
21
empresa em não promover a persecução penal, em vista dos
efeitos nocivos da publicidade da corrupção praticada por um
dirigente. Porém, manifestada a vontade de agir na apuração
do
fato,
a
ação
administrador
ou
penal
contra
empregado
o
agente
corrupto
corruptor
cabe
ser
de
e
o
alçada
pública.
Como já referi diversas vezes a corrupção passiva tem
como sujeito ativo qualquer empregado ou administrador da
empresa,
sendo
desnecessário,
como
faz
a
lei
italiana
estabelecer taxativamente sujeito ativo próprio.
Muitos
que,
com
razão,
fazem-se
críticos
da
classe
política, vista composta em geral por corruptos, no entanto,
no
seu
mister,
exercício
de
deliqüescência
atuam
desonestamente
cargos
dos
no
tomando
vantagens
setor
privado.
O
da
correção
no
valores
clima
no
de
exercício
profissional merece igual repúdio, seja no setor público como
privado. Por essas razões, considero conveniente criar-se a
figura
da
corrupção
privada
na
legislação
brasileira,
compreensivo o tipo penal da corrupção seja na empresa, como
nas
sociedades
civis,
como
forma
de
afrontar
o
mal
da
corrupção entranhado em nossa cultura, como assinala SÉRGIO
HABIB30.
E- o dever de informar
30
SÉRGIO, Habib, Brasil: quinhentos anos de corrupção, Porto Alegre,
Sergio Antonio Fabris editor, 1.994, p. 95, e que destaca (p. 91) ser na
empresa o mais das vezes onde se verificam condutas contarias aos
interesses individuais ou coletivos da sociedade.
22
Corolário do dever de lealdade é o dever de informar,
em especial, a informação a ser dada pelo administrador em
situação de conflito de interesses, que deve cientificar, de
forma
completa
aos
demais
dirigentes
e
ao
Conselho
de
Administração, acerca dos dados relativos a esse conflito.
Por essa razão a informação à sociedade, como ressaltam
CESARE PEDRAZZI e PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR não basta que
seja verdadeira, mas cumpre que seja razoavelmente completa31,
sem a omissão de dados essenciais de forma a permitir uma
decisão por parte dos órgãos diretivos com pleno conhecimento
de causa no interesse e na tutela dos interesses sociais. Se
há um direito amplo de ser informado por parte dos dirigentes
e sócios há, em contrapartida, um dever de informar da forma
mais completa, o que significa que a informação há de ser
isenta
de
qualquer
representação
falsa
da
realidade,
mas
também, exaustiva, ou seja, sem ocultação de qualquer dado
relevante, mormente tratando-se de situação de conflito entre
o administrador e a empresa que dirige.
O
dever
regulado
no
de
informar
art.
157
por
da
parte
Lei
de
do
administrador
Sociedades
vem
Anônimas,
estatuindo o § 1º, letra “a”, o dever de informar os valores
imobiliários
da
companhia
ou
de
sociedades
coligadas
que
tenha adquirido no exercício anterior.
Este
dever
de
informar,
que
incumbe
a
todos
os
administradores compreende, como ressalta MODESTO CARVALHOSA,
31
PEDRAZZI, Cesare, e COSTA JÚNIOR, Paulo José. Direito Penal das
sociedades anônimas, São Paulo, RT, 1973, p. 109; PINHEIRO TORRES, Carlos
Maria. O direito à informação nas sociedades comerciais, Coimbra,
Almedina, 1.998, p.207 e seguintes.
23
o “estado financeiro e o estado dos negócios”32, ou seja, “os
fatos
e
atos
relevantes,
nas
atividades
da
companhia”,
compreendendo-se nesta categoria a propriedade de ações ao
assumir e as alterações patrimoniais que ocorrerem ao longo
do exercício da administração.
O dever de informar, por conseguinte, concretiza o dever
de
lealdade,
especial,
e
da
os
relação
fatos
relevantes
negocial
entre
da
o
empresa,
e,
administrador
em
e
a
companhia, cumprem que sejam plenamente expostos aos demais
dirigentes e aos órgãos de direção, para que as decisões a
serem tomadas o sejam com plena ciência das circunstâncias em
todo o
seu
conjunto.
E
a
veracidade
das informações
por
evidência coloca-se como pressuposto necessário à assunção de
decisões.
Esse
pressuposto
apenas
é
atendido
se
houver
informação correta representativa da realidade das condições
econômicas, do estado financeiro e do estado dos negócios,
correção
que
exige
não
haver
ocultação
de
qualquer
circunstância relevante, mormente com referência aos negócios
entre administrador e a própria empresa.
F- descumprimento do dever de informar: incriminação
Segundo
o
disposto
no
art.
177
do
Código
Penal,
incriminam-se os atos fraudulentos e abusivos na fundação e
administração de sociedades por ações, devendo-se destacar
para o exame da infidelidade o disposto no § 1º, inciso I, do
art. 177 do Código Penal.
32
CARVALHOSA, Modesto e LATORRACA, Nilton. op. cit., p. 286.
24
O caput do art. 177 do Código Penal diz respeito a
conduta desleal e fraudulenta dos fundadores da sociedade
anônima, enquanto os incisos do parágrafo primeiro referem-se
aos diretores, bem como ao liquidante e ao representante de
sociedade anônima estrangeira nos dois últimos incisos.
O
artigo
177
coloca-se
topologicamente
como
crime
contra o patrimônio, mas na condição de uma das formas do
estelionato.
O
estelionato,
conforme
já
manifestei
anteriormente,
33
constitui um polinômio , composto pelos elementos ardil ou
fraude, que induz ou mantém alguém em erro,
estabelecendo-se
no plano psicológico uma relação causal entre o ardil e o
erro, levando a pessoa à qual se dirige o ardil a praticar um
ato de disposição, que conduz à obtenção de uma vantagem
econômica ilícita de um lado e causa um prejuízo patrimonial
de outro34.
Na hipótese do art. 177 ressalta-se apenas o elemento
ardil, fraude com potencialidade de causar um erro ou engano,
não se exigindo para a configuração do delito a ocorrência do
prejuízo, bem como a obtenção da indevida vantagem.
33
Nosso Direito Penal Aplicado, São Paulo, RT, 1994, p. 102 e seguintes;
PUIG, Gustav. Cursillo sobre Derecho Penal Economico, Montevideu,
Faculdad de Derecho, 1990, p. 170; MARINI, Truffa, no Novissimo Digesto
Italiano, vol. XIX, p. 877; VICH, Carlos Almela, El delito de estafa y de
apropriación indebida, na Revista Semanal Técnico Jurídica de Derecho
Penal, nº35, 28/9 a 4/10 de 1998, Madrid, p. 660.
34
PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR assevera que há necessidade de duplo nexo de
causalidade, primeiramente meio fraudulento-engano, que, ao depois, devem
ser causa do proveito injusto e do respectivo dano. (Comentários ao
Código Penal, Parte Especial, vol. 2, São Paulo, Saraiva, 1988, p. 268).
25
Edita o art. 177, §1º, I, do Código Penal:
“Incorrem na mesma pena, se o fato não
constitui crime contra a economia popular:
I - o diretor, o gerente ou o fiscal de
sociedade
por
ações
que,
em
prospecto,
relatório, balanço ou comunicação ao público
ou à assembléia, faz comunicação falsa sobre
as
condições
oculta
econômicas
da
fraudulentamente,
sociedade,
no
todo
ou
ou
em
sobre
os
parte, fato a elas relativo”.
O
ardil,
destinatários,
fraude
público
ou
ou
engano
membros
que
da
recai
assembléia
com
potencialidade de produzir o fenômeno do erro, de caráter
psíquico, levando a um ato de disposição de forma a que se
caracterize uma agressão à liberdade psíquica do destinatário
da fraude, ao lhe causar um vício de consentimento35.
O ardil ou a fraude, como modificação total ou parcial
da realidade, devem ser aptos a enganar, a surpreender a boa
fé criando na psique do destinatário esta falsa representação
da realidade36como efeito da vitória do ardil ou fraude sobre
35
MARINI, op. cit., p. 866, ressalta que a incriminação do estelionato
visa tutelar a liberdade dispositiva do destinatário da fraude.
36
AZZALI, Prospettive negoziali del delitto di truffa, na Rivista
Italiana di Diritto e Procedura Penale, anno XLI, Milão, Giuffrè, abriljunho de 1998, p. 322 e seguintes; MARINI, op. cit. p. 873; SPOLANSKY,
La estafa y el silencio, Buenos Aires, 1967, p. 52; MAGALHÃES NORONHA,
Direito Penal, vol. 2, São Paulo, Saraiva, 13ªed., 1977, p. 389.
26
a resistência intelectiva da vítima, induzida
em erro e
provavelmente extraindo-lhe um ato de disposição37.
Mas, como se ressalta não é de se reconhecer qualquer
comportamento válido a produzir erro, pois este deve derivar
de um conjunto de fatores que deformam uma dada situação,
criando
uma
atmosfera
idônea
a
envolver
a
psique
do
destinatário.38
Igualmente, AZZALI39 considera que:
“Non vi è inganno, cioè, se esso
non incide, nella
maniera che si
definisce concludente in relazione
all’errore,
sulla
sfera
rappresentativa del soggetto cui è
rivolto, che solo per tanto ne è
vittima.”
Essencial, portanto, potencialidade de causação de um
erro
de
forma
concludente
na
esfera
representativa
do
destinatário do ardil ou fraude, razão pela qual se deve,
também, examinar, no caso concreto, as específicas condições
do
sujeito
passivo.
Assim
cumpre
ver
se
o
engano
tinha
37
AZZALI, op. cit., p. 327, MANCI, F.. La truffa nel Codice Penale
Italiano, Turim, 1930, p. 73; PEREZ MANZANO, Mersedes, no artigo “Acerca
de la imputación objetiva en la estafa”, nos Cuadernos de Doctrina y
Jurisprudencia, nº 1 e 2, Buenos Aires, p. 250 e seguintes. A Autora
considera que o tipo do estelionato exige uma contribuição fática da
vítima, que por erro pratica um ato de disposição; GALDINO DE SIQUEIRA,
entre nós, bem esclarece que “pelo erro criado pelo agente, o sujeito
passivo seja o próprio que disponha da coisa”, Tratado de Direito Penal,
Parte Especial, vol. 2, Rio, Konfino, 1951, p. 466;
38
SAMMARCO, G.. La truffa contrattuale, Turim, Giuffrè, 1970, p.99
39
op. cit. p. 327.
27
potencialidade objetiva de enganar, como diz GUSTAV PUIG,
sujeita esta subjetividade às condições pessoais da vítima40.
Sem dúvida, a correta avaliação do processo de vício do
consentimento
exige
vítima,
ser
para
a
análise
possível,
das
condições
conforme
MARINI,
pessoais
da
aquilatar
a
potencialidade da fraude para conduzir ao erro e ao ato de
disposição do seu destinatário41.
A Jurisprudência italiana, neste campo dos negócios, dá
especial
relevo
“dolo
ao
inicial”,
como
elemento
42
caracterizador do estelionato , cumprindo constatar se desde
o início a intenção do agente era o de, por meio do engano,
falsear a verdade, servindo-se da informação falsa por conter
representações
desconformes
da
realidade
ou
falhas
por
ocultação e omissão da realidade dos fatos.
Na hipótese trata-se de crime formal, cuja consumação
ocorre no momento mesmo da ação, ou seja, quando o diretor
faz em prospecto, balanço ou em comunicação à assembléia
afirmação falsa, de conteúdo inveraz ou quando oculta fato
relevante,
no
todo
ou
em
parte,
acerca
das
condições
econômicas que compreendem tanto o estado financeiro quanto o
estado de negócio.
O crime, portanto, pode se dar pela forma comissiva,
pela
prática
de
uma
falsidade
ideológica,
potencialmente
40
op. cit., p. 173.
op. cit., p. 874.
42
MAGGINI, Attilio. La truffa, Pádua, Cedam, 1988, p. 42. LICH, Carlos
Almela. op. cit., p.662, que entende deva o engano ser “antecedente,
causante y bastante”.
41
28
capaz
de
enganar
o
destinatário,
consistente
na
indevida
inserção de uma inverdade em prospecto, relatório, balanço,
prospecto ou comunicação, ou quando estes documentos ou a
comunicação silenciar acerca de dado relevante relativo às
condições econômicas da empresa. O tipo penal pode se dar,
portanto, na forma comissiva e na omissiva, sendo comunicação
o ato pelo qual se dá ciência ao público ou à assembléia de
algo que sucedeu, o que pode ocorrer com a inserção de dados
fictícios ou com a não consignação de dados relevantes43,
deixando-se de cumprir com o dever de informar com veracidade
e da forma mais completa.
Na forma omissiva, o engano resulta do silêncio acerca
de dado relevante relativo às condições econômicas, pois o
silêncio,
como
diz
SPOLANSKY,
significa
engano,
já
que
enganar significa suscitar um erro em outrem e o engano pode
realizar-se por meio de uma omissão, do silêncio44.
Objeto do silêncio deve ser, contudo, fato relevante, de
interesse fundamental, ponderando PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR
que, se a questão é pertinente à ordem do dia e não mero
capricho,
a
recusa
em
oferecer
informações
ou
o
próprio
silêncio “assumem valor de ocultação”45.
O fechamento de determinado contrato, por exemplo, pode
enquadrar-se na expressão condições econômicas da sociedade46,
43
RÉGIS PRADO, Luiz. Curso de Direito Penal, v.2, São Paulo, RT, 3ª ed.
P. 610.
44
SPOLANSKY, Norberto. op. cit., p. 67 e 72.
45
COSTA JR, Paulo José. Curso de Direito Penal, v.2, parte especial, São
Paulo, Saraiva, 2ªed. 1992, p. 154.
46
COSTA JR, Paulo José. op. ult. cit., p. 150. CARVALHOSA, Modesto. op.
cit., p. 285, entende que a expressão condições econômicas merece
29
pois
induz
decisões
os
membros
importantes
da
para
diretoria
a
vida
ou
da
demais
sócios
empresa,
a
decisões
baseadas no conteúdo das informações prestadas, que serão
viciadas,
fruto
de
engano
se
essas
informações
forem
inverídicas ou omissas.
Entendo, todavia, que sendo o Código Penal anterior à
lei
das
sociedades
anônimas,
não
se
faz
referência
à
comunicação apresentada ao Conselho de Administração, sendo
que o princípio da taxatividade exige que se acrescente à
figura penal a menção de que a informação falsa é relevante
se
dirigida,
também,
ao
Conselho
de
Administração
e
não
apenas aos sócios na Assembléia ou ao público.
São essas algumas considerações acerca de um tema que
merece, no Brasil, maior cuidado da Doutrina e do legislador.
interpretação ampla compreendendo também
negocial, o estado de negócios da companhia.
a
revelação
da
situação
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DEVER DE LEALDADE DO ADMINISTRADOR DA EMPRESA E