DEVER DE LEALDADE DO ADMINISTRADOR DA EMPRESA E DIREITO PENAL MIGUEL REALE JÚNIOR A- Lealdade e conflito de interesses Os deveres de lealdade e de informação estatuídos nos artigos 155, 156 e 157 da Lei nº 6.404 de 1976, devem ter seu significado analisado para posteriormente examinar se tem cabença sua eleição como bens jurídicos a serem tutelados também pela lei penal. Segundo o art. 155 da Lei das Sociedades Anônimas o administrador deve servir com lealdade à companhia. Não especifica a lei o que venha a ser lealdade, a não ser pela forma negativa, ou seja, estabelecendo o que é vedado realizar como ofensa ao dever de lealdade. A conduta vedada no inciso I do art. 155 da referida lei, na verdade, já contem o comportamento depois descrito no inciso III, porém, a especificação indica o relevo que se pretende outorgar à circunstância de aquisição de bem ou direito de interesse da empresa para depois o revender a esta. No utilizar inciso de I, proíbe-se oportunidades que o administrador comerciais de que venha a tenha 1 conhecimento em razão do cargo em benefício próprio ou de outrem. E como espécie de privilégio no uso do cargo em benefício próprio, valendo-se de oportunidades surgidas de interesse da empresa, apresenta-se a hipótese prevista no inciso III, ou seja, a aquisição de bem ou direito que sabe necessário à companhia ou que pretenda adquirir para a revender com lucro. Na dicção do inciso I, o legislador, no entanto, exclui da conduta vedada a necessidade de que haja prejuízo à 1 companhia, pois o ato será ilícito ocorra ou não prejuízo . No entanto, na figura da aquisição de bem ou direito necessário à companhia para o revender exige-se o elemento intencional de visar à obtenção de lucro. Dessa sobrepor forma, aos os interesses interesses da 2 pessoais , e companhia a lealdade devem se está em respeitar essa ordem de valores, pois há lealdade à empresa que se dirige quando em hipótese de conflito de interesses decide-se prevalência em favor ao do interesse atendimento desse da sociedade, interesse dando-se em face de de usar as eventuais interesses próprios. O administrador está, portanto, vedado oportunidades que lhe surjam em vista do cargo de direção, devendo, para ser leal com a empresa, sobrepor o interesse 1 BULGARELLI, Waldirio, Manual das sociedades anônimas. 10ª ed., São Paulo, Atlas, 1.998, p. 182, considera que fez bem a lei por não distinguir entre aquelas práticas que darão prejuízo e outras que não, prevalecendo, então, a questão ética e não patrimonial. 2 CARVALHOSA, Modesto e LATORRACA, Nilton, Comentários à lei de sociedades anônimas, vol. 3, São Paulo, Saraiva, 2ª ed., 1.998, p. 254. 2 desta ao seu próprio, não lhe sendo permitido, sob pena de ilicitude, realizar negócio em seu benefício ou de outrem quando a oportunidade surgida deveria ser prioritariamente utilizada em favor da empresa, pois se era uma boa oportunidade a ponto de ser usada pelo administrador, que decide pelos atos da empresa3, deveria ele ter agido em função dos interesses societários e não em função de seu interesse particular4. No que tange à aquisição de bens, inciso III do art. 155 da lei de sociedades anônimas, é evidente que na revenda à empresa o valor superior ao de compra pelo administrador representa um prejuízo à empresa, pois o administrador, na defesa dos interesses da empresa que dirige, poderia ter viabilizado a compra pelo valor pelo qual adquirira. Não o fazendo, ao revender por preço superior, de um lado aufere um lucro, de outro causa um prejuízo à companhia. Como anota MODESTO CARVALHOSA, a ilicitude se configura mesmo se, pagando um sobrepreço, a companhia auferiu uma vantagem ao ter adquirido o bem ou direito por valor inferior àquele de mercado5. 3 CARVALHOSA, Modesto e LATORRACA, NILTON. idem, p. 259; CAMARGO VIDIGAL, Geraldo e SILVA MARTINS, Ives Gandra, Comentários à lei das sociedades anônimas, Rio de janeiro, Forense Universitária, 1.999.p. 482, que pondera não poder o administrador ao estar ciente de determinado negócio deixar de efetivá-lo em nome da companhia sob pena de violar o princípio da lealdade ao preterir o interesse da sociedade. 4 TOLEDO, Paulo Fernades Campos Salles de, Conselho de Administração na sociedade anônima: estrutura, funções e poderes, responsabilidade dos administradores, São Paulo, Atlas, 1.997, p. 58, considera que “não basta que o administrador deixe de aproveitar oportunidade de negócio. É preciso, igualmente, que ele não deixe de aproveitá-las, quando possam beneficiar a companhia”. 5 CARVALHOSA, Modesto, op. cit., p. 261. 3 Mas, inclusive na hipótese de não haver lucro por parte do administrador e, em contrapartida, prejuízo à empresa, o ato não deixa de ser ilícito, pois se enquadra na proibição constante do inciso I, ou seja, na utilização de oportunidade, sobrepondo-se o interesse particular do diretor ao societário6. Por outro lado, se houver conflito de interesses, o que se verifica, por exemplo, na hipótese de compra por parte do administrador para revenda à companhia, cabe ao administrador cientificar aos demais administradores7, bem como ao Conselho de Administração da situação de conflito, tornando-se impedido de intervir na operação, conforme determina o art. 156 da lei de sociedades anônimas, cientificando o impedimento existente e fazendo consignar em ata do Conselho de Administração a natureza e extensão do seu interesse. Os negócios entre a empresa e o seu administrador são sempre relevantes exatamente por envolverem em geral situações de conflito de interesses, nas quais se realça o respeito ou desrespeito ao dever de lealdade, cuja afronta pode redundar em nulidade do negócio. E essa relevância, seja em companhias abertas ou fechadas8, revela que os negócios 6 CAMARGO VIDIGAL, Geraldo e SILVA MARTINS, Ives Gandra, Comentários à lei das sociedades anônimas, op. cit., p. 483, entende que a desnecessidade de prejuízo aplica-se a todas as situações previstas nos incisos do art. 155, pois o evidente escopo do legislador foi o de traçar princípios de ordem ética cuja desobediência leva à deslealdade. Igualmente, ROMANO, Cristiano. Órgãos da sociedade anônima, São Paulo, RT, 1.982, p. 119, ao considerar que a ausência de prejuízo não descaracteriza o ilícito, pois, em qualquer hipótese, cria uma situação de perigo. 7 PINHEIRO TORRES, Carlos Maria, O direito à informação nas sociedades comerciais, Coimbra, Almedina, 1.998, p. 45. 8 CARVALHOSA, Modesto e LATORRACA, Nilton, op. cit., p. 277. 4 entre administradores devem ser objeto sempre de informação aos sócios e aos órgãos societários9. B- Suborno Constitui, de outro lado, desvio de poder, segundo o § 2º do art. 154 da Lei nº 6.404/76, o administrador que, sem autorização estatutária ou da Assembléia Geral, venha a receber de terceiros qualquer modalidade de vantagem pessoal em razão do exercício do cargo. Comprovado o recebimento da vantagem é a mesma de propriedade da sociedade. Esse recebimento assemelha-se à corrupção, cada vez mais presente no setor privado, que no último item será examinada10, em face das recentes recomendações da Comunidade Européia e das atuais alterações ocorridas na legislação penal de vários países europeus. O conflito de interesses e a atuação desleal do administrador em face da empresa, no entanto, é conduta cuja ilicitude é restrita, no Brasil, ao campo do direito societário, sem haver obtido dignidade penal, o que será 9 CAMARGO VIDIGAL, Geraldo e SILVA MARTINS, Ives Gandra, Comentários à lei das sociedades anônimas, op. cit., p. 484, consideram que em havendo um conflito de interesses, o administrador está por um lado proibido de intervir e de outro não pode ficar silente acerca de seu interesse. 10 REQUIÃO, Rubens, Curso de Direito Comercial, São Paulo, Saraiva, 1.998, 2ªed., p. 168, que anota ser um dos problemas mais agudos na administração a peita ou suborno, sendo comum o amaciamento de diretores através de presentes ou mesmo de propinas secretas. Igualmente, TOSCANO, Augusto, Lei da sociedade anônima atualizada: comentada, Campinas, Coploa Livros, 1.998, p. 118; PAES, Paulo Roberto Tavares, Responsabilidade dos administradores de sociedades, 2ª. ed., São Paulo, RT, 1.997, p. 37, para o qual o administrador deve ser diligente, honesto e competente, sendo que a lei, no caso, combate a propina e supremacia do interesse pessoal. 5 objeto a seguir de apreciação, não sem antes referir à disciplina penal da deslealdade patrimonial na Itália. C- A lei italiana No Direito Italiano, o novo art. 2.634 do Código Civil, em vigor desde 16 de abril de 2.00211, revogando o art. 2.631 do mesmo crime de código12, introduz infidelidade alterações patrimonial, na que configuração vem agora do assim redigido: 11 A reforma da legislação atende a recomendações da União Européia no sentido de reforçar métodos preventivos e repressivos com relação aos ilícitos societários. A respeito, PIVETTI, Michele, L’infedeltá patrimoniale, no site www.diritto.it/articoli/penale/pivetti, que indica a adoção de figura semelhante no Código Penal alemão, §266 StGB, e no espanhol, art. 295, no qual se prevê o crime de administração desleal. 12 O art. 2.631 do Código Civil estabelecia que havendo uma determinada operação por conta própria ou de terceiro um conflito de interesse com o da sociedade, não se abstém de participar da deliberação do conselho relativa a essa operação. Conforme FRANCESCO ANTOLISEI o tipo penal exige a ocorrência de um interesse do administrador contrário ao da sociedade, estabelecendo-se um contraste de posição entre o dirigente e a empresa, sendo que o administrador continua a desenvolver a gestão e vale-se do conhecimento que obteve no exercício de suas funções diretivas para alcançar uma vantagem pessoal. No caso, ressalta ANTOLISEI há lesão aos deveres de boa fé e de fidelidade, consistindo a ação delituosa em não se abster de votar e decidir sobre a questão que encerra o conflito de interesse, quando lhe caberia não participar da discussão e da decisão. O crime se consumaria com a prolação do voto. (Manuale di Diritto Penale, leggi complementari, i reati fallimentari e societari, Milão, Giuffrè, 1.959, p. 363 e seguintes. MARIO ROMANO(Profili penalistici del conflitto di interesse dell’ amministratore di societá per azioni, Milão, Giuffrè, 1.967, p. 125) entende que na situação há um perigo para a sociedade em face da presença de um interesse de cunho econômico pessoal em contraste com o social, devendo o administrador renunciar ao interesse pessoal que pode causar um dano patrimonial á empresa, cumprindo-lhe abster-se de declaração de voto. A diferença essencial entre os dizeres do revogado art. 2631 e o novel art. 2634, ambos do Código Civil italiano, está em que a conduta delituosa não se limita à prolação de voto, mas alcança, agora, também, a comissão de atos de disposição de bens sociais, independentemente de decisões do conselho no qual se profira voto. 6 administradores, “Os gerais e interesse os em liquidantes, conflito com os que, o da diretores tendo um sociedade, para o fim de procurar para si ou para outrem injusto proveito ou outra vantagem, realizam ou concorrem a deliberar atos de disposição dos bens sociais, causando intencionalmente à sociedade um dano patrimonial”. Assim, pode-se dizer que na descrição típica acima transcrita, o ato de infidelidade em face da empresa deve decorrer de, em um conflito de interesses concreto13, realizar o administrador ou deliberar a execução de ato com vistas à obtenção de proveito injusto ou qualquer outra vantagem para si ou para outrem. Esse ato deve consistir em uma disposição de bens sociais e causar intencionalmente um dano patrimonial à empresa. Protege-se, portanto, como assinala AMATO, o patrimônio social14, mas conflito de que vem interesse. a ser A lesado em decorrência existência de uma de um situação de conflito de interesse constitui, portanto, um pressuposto do crime, conflito esse atual e não futuro ou eventual, além do que relativo a interesses de cunho patrimonial, objetivamente valoráveis. O conflito de interesses deve, assim, ter caráter 13 Conflito de interesses que, como assinalam ANTOLISEI (Manuale di Diritto Penale, leggi complementari, i reati fallimentari e societari, Milão, Giuffrè, 1.959, p. 363) e ROMANO (Profili penalistici Del conflitto di interesse dell’ amministratore di societá per azioni, Milão, Giuffrè, 1.967, p. 15), colhe seu significado na lei civil, art. 2.391 do Código Civil italiano, tendo o Direito Penal caráter subsidiário. 14 AMATO, Astolfo di, Diritto Penale dell’ impresa, Milão, Giuffrè, 5ª ed., 2.003, p. 174. 7 econômico, aspectos objetivamente psicológicos valorável, ou subjetivos, não se como prendendo destaca a ENZO MUSCO15. Encontra-se limitada a infidelidade como hipótese penal por diversos elementos componentes do tipo. De um lado há o pressuposto, o conflito de interesses, que AMATO define como incompatibilidade entre a vantagem da sociedade e aquela do administrador, de outro se exige, também, nesta situação de conflito econômico, a deliberação pela prática de atos ou a efetiva execução de atos que constituam uma disposição de bens sociais, decididos ou realizados com o fim de obter injusto proveito ou qualquer outra vantagem. A conduta relevante diz respeito, portanto, à prática de atos ou à deliberação acerca de atos de disposição de bens sociais, o que retira do aspecto penal, como bem observa MUSCO, a decisão de não realizar uma determinada operação vantajosa para empresa16, com o que prejudica a sociedade e obtém vantagem pessoal ao realizar a operação em seu próprio e exclusivo interesse. De outra parte, a exigência dos atos serem de disposição de bens sociais “delimita rigorosamente” o tipo penal, segundo AMATO, pois, exclui atos diversos da disposição de 15 MUSCO, Enzo, I nuovi reati societari, Milão, Giuffrè, 2.002, p. 142. Já na vigência do art. 3.631 do Código Civil se destacava para a caracterização do crime a objetividade e a atualidade do interesse pessoal de cunho patrimonial, como se vê em MARIO ROMANO (Profili penalistici del conflitto di interesse dell’ amministratore di societá per azioni, Milão Giuffrè, 1.967, p.59). 16 MUSCO, Enzo, I nuovi reati societari, Milão, Giuffrè, 2.002, p. 143. 8 bens sociais como deliberações acerca do aumento de capital ou determinações sobre a estrutura interna da sociedade17. Outro limite a ser destacado refere-se ao dano patrimonial, ao evento, pois, o ato de infidelidade apenas será digno de tutela penal se houver dano patrimonial à empresa, com o que desempenha esse dado um papel seletivo quanto à relevância penal, e se impede, como assinala MUSCO, uma excessiva incriminação no campo da atuação da administração das empresas, para se restringir a ingerência no plano da empresa, que deve ter em sua condução espaço livre da intervenção penal18. C- DESLEALDADE NO CONFLITO DE INTERESSES E INCRIMINAÇÃO Em vista do descrito no item A, administrador, cuja ilicitude vem sobre a infidelidade do expressa na Lei das Sociedades Anônimas, cabe indagar se deve o Direito Penal brasileiro, tal como o italiano, alemão e espanhol, também trazer para o seu âmbito a deslealdade do dirigente da empresa que, em conflito de interesses, atua ou decide em seu próprio favor e em prejuízo da sociedade. Se for positiva a resposta, é de examinar quais os limites dentro dos quais cumpre circunscrever a descrição típica. 17 AMATO, Astolfo di, Diritto Penale dell’ impresa, Milão, Giuffrè, 5ª ed. 2.003, p. 176. 18 MUSCO, Enzo, I nuovi reati societari, Milão, Giuffrè, 2.002, p. 145. 9 A legislação penal recorta das ilicitudes previstas nas normas de direito societário algumas condutas apenas, na linha de que o Direito Penal deve ser a ultima ratio, subsidiário e, portanto, altamente seletivo, apenas trazendo para seu âmbito as condutas que mais diretamente afrontam os valores e os interesses que devem presidir a vida societária. Em suma, resta examinar a eventual criminalização da deslealdade do administrador, a infidelidade no conflito de interesses, mesmo diante da diretriz lembrada de se erigir um Direito Penal Mínimo, excluindo-se de relevo penal ações que possam ser reprimidas por outros campos do Direito, reservado o âmbito penal exclusivamente para os fatos mais gravemente lesivos dos interesses gerais da sociedade. A legislação penal brasileira, se não contempla a figura da infidelidade do administrador, incrimina, no entanto, como examinarei depois, a falsa informação, dando relevo penal à conduta do administrador que faz essa falsa informação em comunicação, parecer ou relatório ao público ou à assembléia acerca do estado econômico ou financeiro da empresa. Mas, a infidelidade do administrador de empresa, a meu ver, mesmo diante do princípio da intervenção mínima deve ser objeto de incriminação, pois, como assinala REQUIÃO, a empresa deixou de ser apenas uma máquina de fazer lucros, sujeita a valores de ordem ética, pelo que possui “graves deveres para com a coletividade em cujo meio atua” 10 respondendo às exigências do bem público e à sua função social19. Mas, no mundo globalizado de hoje, em que o sucesso é simplesmente traduzido pelo poder financeiro, e no qual se esgarçam as relações sociais em um individualismo acendrado, que compromete a consideração ao outro, a honradez e a honestidade deixam de ser valores básicos indiscutíveis, em vista do que a lealdade e a confiança, nas relações de trabalho e econômicas, apresentam-se como fundamentais para salvaguarda da socialidade e da justiça20. A vida das pessoas desenvolve-se, primordialmente, no exercício profissional, que, na maioria das vezes, se dá no seio de uma empresa. É na empresa que as pessoas se formam, se realizam, se relacionam e é a empresa na qual se trabalha, como empregado ou dirigente, o meio em que os valores positivos devem ser cotidianamente respeitados, fazendo-se da honestidade e da lealdade um vetor definidor do agir concreto e não apenas um distante e abstrato ideal de comportamento. Só a valorização da lealdade pode ser um obstáculo ao degenerescente ambiente espiritual do início do século XXI. Minimizado o valor da lealdade frente à empresa que se dirige, aberta está a porta para a prevalência do 19 REQUIÃO, Rubens, Curso de Direito Comercial, São Paulo, Saraiva, 1.998, 2ªed., p. 166 e seguinte. 20 MARTINS-COSTA, Judith, Comentários ao Novo Código Civil, v. V, tomo 1, Rio de Janeiro, Forense, 2.003, p. 29, pondera que a confiança como proteção jurídica e postulado ético na condição de pressuposto de toda ordem jurídica, atua “como verdadeiro cimento da convivência coletiva”, sendo uma necessidade que só tende a crescer na medida em que as relações tornam-se distantes e impessoais. 11 aproveitamento, da banalização da honestidade em face da obtenção do sucesso financeiro a qualquer custo. Jamais a lealdade e a confiança foram tão essenciais, em vista do esvaecimento do reconhecimento de tantas virtudes morais frente à importância da posse de bens materiais. Ser fiel à empresa e não prejudicá-la em favor de benefício próprio constitui, portanto, um valor primordial nos dias atuais, para reafirmação dos valores da honestidade e da correção de comportamento a serem realçados na busca desenfreada de sucesso econômico. Por essas razões entendo, que se deva criminalizar a deslealdade do administrador que atua ou decide, em situação de conflito de interesses, em seu próprio favor, menosprezando o interesse social e a importância da empresa como centro criador de benefícios da coletividade e como ambiente propício ao seu próprio desenvolvimento pessoal e social. A empresa, portanto, é sujeito de direitos, credora constante da lealdade e confiança de seus dirigentes e empregados. Pode-se argumentar em desfavor da incriminação que se está a realizar a eticização do Direito Penal, impondo-se a denominada ética dos negócios, mas como adverte FOFFANI, ao examinar o tipo penal da corrupção do setor privado, efetuase uma necessária “valorização de objetividades jurídicas supraindividuais e institucionais contra a patrimonialização e individualização da proteção penal em matéria econômica21”. 21 FOFFANI, Luigi, La corrupción em el sector privado: la experiência italiana y del derecho comparado, na Revista Penal, nº 12, La Ley, julho de 2.003, p. 71. 12 No caso da infidelidade do administrador considero, no entanto, que a elevação da confiança e da lealdade como valores dignos de tutela penal, justifica-se pelos aspectos éticos de caráter institucional, mas a conduta a ser tipificada deve encontrar alguns limites no plano da efetiva ou potencial lesão ao patrimônio da empresa. Dessarte, entendo que o tipo penal deva ter limites, incriminando-se, tão só, os atos e decisões, em situação de conflito de interesses, dos quais venha a ocorrer dano patrimonial ou perigo concreto de dano patrimonial. limitar Não cabe, a conduta todavia, à como figura sucede comissiva, na lei pois a italiana, omissão, consistente no descumprimento do dever de atuar em prol da empresa para viabilizar interesse futuro próprio, também constitui deslealdade que pode causar prejuízo patrimonial, na perda de uma chance por parte da companhia que dirige. A sanção a ser prevista, como substitutiva da pena privativa de liberdade, há de ser a interdição temporária do exercício de cargo ou função de direção de empresa comercial de qualquer natureza, bem como de sociedade civil de fins lucrativos. Vítimas são os sócios e a empresa, seja esta última sociedade anônima ou limitada, cabendo às vítimas o poder de agir, na formulação de queixa-crime, pois, é possível, por exemplo, a empresa entender não conveniente tornar público o fato, razão pela qual a ação penal deve ser privada. 13 D- a corrupção no setor privado: figura penal específica Em 22 de dezembro de 1.998, o Conselho da Europa adotou diretriz constante de Ação Comum na área penal no sentido da criminalização da corrupção no setor privado e definindo, em seus artigos 2 e 3, as figuras típicas da corrupção passiva e ativa22. Segundo o art. 2, constitui corrupção passiva, no setor privado, o ato intencional de, diretamente ou por meio de terceiro, solicitar ou receber no exercício de atividades empresariais vantagens para para si ou indevidas terceiro, ou ou de aceitar qualquer promessa natureza, de tais vantagens, em troca de realizar ou deixar de realizar um ato, descumprindo suas obrigações. No art. 3, define-se corrupção ativa no setor privado como prometer, dar ou oferecer, diretamente ou por meio de terceiros, uma vantagem indevida de qualquer natureza a uma pessoa, no exercício de suas atividades empresariais, para 22 NIETO MARTÍN, Adán, A corrupção no setor privado (reflexões a partir do no site ordenamento espanhol à luz do direito comparado) www.mundojuridico.adv.br, trad. Damásio de Jesus. O autor espanhol pondera ser a corrupção sem dúvida um dos delitos característicos do mundo globalizado, não sendo de estranhar que os órgãos supranacionais tenham criado estratégias de ação comum contra a corrupção no setor privado. 14 que realize ou se abstenha de realizar um ato em descumprimento de suas obrigações. Nas justificativas da Ação Comum de 1.998 indica-se que o objeto da proteção penal está na preservação da concorrência, devendo-se punir atos que comportem ou possam comportar distorções na concorrência no âmbito do mercado comum e que possam produzir danos econômicos a terceiros com a adjudicação incorreta ou execução incorreta de um contrato. Como observa FOFFANI, o objetivo político-criminal seria o da proteção da concorrência, cuja distorção compromete a 23 abertura e a liberdade dos mercados . Em 1.999, edita o Conselho da Europa a Convenção Penal sobre Corrupção, em cujos artigos 7 e 8 define-se, igualmente, a corrupção passiva e ativa. Ademais, em novembro de 2.002, o Parlamento Europeu aprovou Projeto de Decisão Chave relativa à luta contra a corrupção no setor privado, que substituirá a Ação Comum de 1.998, porém ainda não apreciada pelo Conselho da Europa, mas cujos termos pouco diferem dos estatuídos na Ação Comum. Cumpre realçar que na Convenção Penal contra a Corrupção estatui-se ser o bem protegido “a confiança e a lealdade que são necessárias para a existência de relações privadas”, a indicar que o objeto de tutela é de caráter supraindividual e institucional e não de cunho patrimonial. 23 FOFFANI, Luigi, La corrupción em el sector privado: la experiência italiana y del derecho comparado, na Revista Penal, nº 12, La Ley, julho de 2.003, p. 70. 15 No direito brasileiro a corrupção na forma ativa e passiva limita-se ao setor público, em defesa do correto desenvolvimento da Administração Pública, para proteção aos princípios que administrativa. legal da a O regem, bem corrupção em especial juridicamente passiva é o da o da moralidade tutelado pelo lisura correção e modelo da atuação do funcionário público, no exercício da função, além da ofensa aos princípios da Administração Pública. No direito europeu, bem antes mesmo das decisões da Comunidade Européia, a Inglaterra, em lei sobre a prevenção da corrupção de 1.906, punia a corrupção ativa e passiva no setor privado. Em França, lei de 1.919 introduziu a figura da corrupção de empregados e hoje consta do Código do Trabalho, art. 152-6, os tipos da corrupção passiva e ativa. A corrupção passiva apenas se tipifica se o recebimento de vantagem ocorre sem conhecimento ou autorização do empresário. Se há o consentimento o fato é atípico. Mais recentemente, em cumprimento da diretriz da Ação Comum destaca-se a legislação belga em cujo Código Penal se introduziu o art. 504 bis em cujos parágrafos se tipificou a corrupção passiva e ativa. Consideram DE LA CUESTA ARZAMENDI e BLANCO CORDERO24 que o objeto de tutela é a lealdade e a confiança, pois, se há autorização do empresário, empregados e administradores que recebam vantagens indevidas não praticam o crime de corrupção, fundado na deslealdade e abuso de confiança. 24 DE LA CUESTA ARZAMENDI, José Luis e BLANCO CORDERO, Isidoro, La criinalización de la corrupción en nel setor privado, na coletânea La Madrid, Tecnos, 2.003, ciência del Derecho Penal ante el nuevo siglo, reimpressão, p. 268. 16 Na Alemanha, pouco antes da adoção da diretiva da Ação Comum, em 1.998 introduziu-se, em 1.997, o § 299 StGB que prevê a corrupção passiva e a ativa como um delito contra a concorrência leal. A corrupção passiva pode ser praticada por empregados e administradores na atividade comercial que solicita, aceita promessa ou recebe vantagem para infringir suas obrigações em prejuízo do competidor e da comunidade em face do encarecimento dos produtos. Sujeito ativo do crime de corrupção concorrência ativa para é o competidor favorecer, por meio que interfere na da corrupção, as próprias vendas. Sendo um crime cujo objeto é a lealdade concorrencial é indiferente que haja o conhecimento e 25 autorização do empresário . Na Itália, introduziu-se 2.002, no privado. o qual Diz, com art. se a reforma 2.635 prevê então, ao a dos Código figura o art. da delitos Civil, societários em corrupção 2.635 do Código abril no de setor Civil, cuja rubrica é infidelidade em razão de dádiva ou promessa de favor, que serão administradores, punidos diretores com pena gerais, de até três auditores anos internos “os e responsáveis pela revisão, que em vista de uma dádiva ou promessa de favor realizem ou omitam atos contrários aos deveres de seu cargo causando dano à sociedade”. Estende-se a 25 Sobre a disciplina dessa matéria na Alemanha e em outros países europeus consulte-se DE LA CUESTA ARZAMENDI, José Luis e BLANCO CORDERO, Isidoro, La criminalización de la corrupción en nel setor privado, na coletânea La ciência del Derecho Penal ante el nuevo siglo, Madrid, Tecnos, 2.003, reimpressão, p. 266 e seguintes, bem como NIETO MARTÍN, Adán, A corrupção no setor privado (reflexões a partir do ordenamento espanhol à luz do direito comparado) no site www.mundojuridico.adv.br, trad. Damásio de Jesus. 17 punição àquele que promete o favor. O crime é de ação privada. Reprime-se a má gestão, o desvio dos interesses e a incorreta condução da sociedade, porém, o respeito aos deveres do cargo restam em segundo plano, pois, em primeiro lugar o que se tutela é o patrimônio da empresa, tendo em vista que a deslealdade, a corrupção, apenas tem relevo se causar dano ao patrimônio da sociedade26. Diante desse quadro das diversas posições assumidas na legislação européia acerca da corrupção privada, é mister indagar se deve haver a criação dessa figura no direito brasileiro, e, em caso positivo, se a conduta típica é de ser voltada para o aspecto da lesão à lealdade e confiança que compromete a moralidade na administração da empresa e o bom andamento da atividade empresarial, se a configuração típica há de depender da ocorrência de prejuízo, ou se não passa de uma forma de concorrência desleal. Na Espanha, os penalistas resistem à criação de uma figura penal de corrupção no âmbito privado, entendendo que 26 MUSCO, Enzo, I nuovi reati societari, Milão, Giuffrè, 2.002, p. 158; FOFFANI, Luigi, La corrupción em el sector privado: la experiência italiana y del derecho comparado, na Revista Penal, nº 12, La Ley, julho de 2.003, p. 67, que ressalta estar a figura penal claramente orientada para a defesa do patrimônio social, em uma opção reducionista frente à diretiva européia. Considera FOFFANI que o tipo penal da corrupção resta absorvido pelo delito de infidelidade patrimonial, convertendo-se em pouco mais que um delito simbólico (p. 68). Não pensa assim AMATO, Astolfo di, Diritto Penale dell’ impresa, Milão, Giuffrè, 5ª ed. 2.003, p. 179, que entende ser o interesse protegido o interesse social da fidelidade da conduta na gestão, o bom andamento societário, mas sem deixar de reconhecer que na corrupção privada, ao lado da lesão, à imparcialidade e correção da ação administrativa, exige-se a ocorrência de um prejuízo concreto. 18 outros ramos do direito suficientemente reprimem a ilicitude dos atos de deslealdade decorrente da aceitação ou recebimento de vantagem para descumprir deveres do cargo ou emprego na empresa27. Primeiramente, filio-me à diretriz européia no sentido da necessidade e relevo de se criminalizar a corrupção privada, a cada passo mais presente na vida empresarial, seja pela “comissão” ou qualquer outra vantagem como viagens, que empregados ou dirigentes recebem na compra com sobrepreço, na compra de elevadas quantidades de um produto desnecessariamente, na não reclamação de vícios do produto fornecido. Essas condutas, de elevado aspecto ético negativo, ferem a instituição da empresa, as relações sociais e os interesses coletivos, fundados na confiança e na lealdade, de forma mais grave do que a figura examinada nos itens anteriores. Torno a repetir o pensamento de FOFFANI, para o qual a incriminação da corrupção privada pretende, com razão, a “valorização de objetividades jurídicas supraindividuais e institucionais contra a patrimonialização e individualização da proteção penal em matéria econômica”28. 27 DE LA CUESTA ARZAMENDI, José Luis e BLANCO CORDERO, Isidoro, La criinalización de la corrupción en nel setor privado, na coletânea La Madrid, Tecnos, 2.003, ciência del Derecho Penal ante el nuevo siglo, reimpressão, p. 286 e seguintes; NIETO MARTÍN, Adán, A corrupção no setor privado (reflexões a partir do ordenamento espanhol à luz do direito comparado) no site www.mundojuridico.adv.br, trad. Damásio de Jesus. Para NIETO MARTÍN nem o legislador nem a doutrina reconheceram a obrigação de incluir um delito com essas características, sendo a expressão corrupção privada desconhecida nos dicionários de termos jurídico-penais espanhóis. 28 FOFFANI, Luigi. La corrupción em el sector privado: la experiência italiana y del derecho comparado, na Revista Penal, nº 12, La Ley, julho de 2.003, p. 71. 19 Por outro lado, o crime de corrupção privada é pluriofensivo, mas tem por objeto primordial de tutela a confiança e a lealdade. Ressalto que uma vez desrespeitadas a confiança e a lealdade, compromete-se o correto andamento da atividade administrativa da empresa, e, subsidiariamente, se causa um dano patrimonial à sociedade. Eventualmente se conturba e distorce a concorrência. A potencial conturbação da honesta concorrência é dado que pode ocorrer ou não, pois, a aquisição de quantia superior à necessária por um fornecedor costumeiro ou até mesmo em situação de monopólio natural não afeta qualquer concorrente, mas afronta o dever de lealdade e a confiança que devem reger as relações de emprego, mormente com relação aos dirigentes da empresa. De outra parte, mesmo que a concorrência seja desvirtuada, pode o concorrente não ter interesse na persecução penal, enquanto a empresa do administrador ou empregado corruptos remanesce ferida pelo desrespeito aos valores da lealdade e da confiança. No direito concorrência brasileiro desleal, art. há 195, a hipótese X, da Lei de crime de nº 9.279/96, consistente em ter o empregado recebido dinheiro ou promessa de qualquer recompensa, para, faltando ao dever de lealdade, proporcionar vantagem ao concorrente do empregador. É uma forma restrita de corrupção, pois, limita-se à hipótese de proporcionar benefício ao concorrente, enquanto a figura da corrupção privada é muito mais ampla e compreende a obtenção 20 de vantagem ou promessa de vantagem para descumprir os deveres de ofício de forma geral29, por exemplo, em favor de qualquer fornecedor ou prestador de serviço, bem como ao certificar em declaração a satisfatoriedade de um produto ou a qualidade e competência de um antigo empregado. Por outro lado, o aspecto do dano patrimonial à empresa não é o mais relevante, apesar de muitas vezes presente na corrupção passiva do administrador ou empregado. Na configuração proposta pelo Conselho da Europa o prejuízo não constitui elemento do tipo. Pode até mesmo haver a corrupção passiva e não haver prejuízo á empresa, como na escolha de um fornecedor que apresenta o menor preço de mercado à companhia, mas que por fora dá ao administrador responsável pela compra uma vantagem financeira, em retribuição pela opção feita. Assim, a corrupção privada, na forma passiva e ativa, aproxima-se da corrupção na Administração Pública, posta a confiança e a lealdade como os valores centrais a serem tutelados. O crime condicionada, deve pois, se pode prever ocorrer seja de eventual ação pública interesse da 29 DAMÁSIO DE JESUS, em nota à tradução citada de NIETO MARTÍN, no site www.mundojuridico.adv.br, afirma equivocadamente que entre nós a corrupção ativa e passiva no setor privado configuram os delitos de concorrência desleal, definidos no art. 195, IX e X da Lei nº 9.279 de 1.996. No caso vítima é a empresa empregadora do empregado corrupto que por dinheiro dá vantagem ao concorrente, que por sua vez é o agente corruptor. Na hipótese examinada da corrupção privada, de acordo com as legislações como a alemã, um produtor paga a um administrador ou empregado para comprar o seu produto, com o que concorre deslealmente frente ao outro produtor. Vítima é o concorrente do agente corruptor. São hipóteses, portanto, totalmente diversas. 21 empresa em não promover a persecução penal, em vista dos efeitos nocivos da publicidade da corrupção praticada por um dirigente. Porém, manifestada a vontade de agir na apuração do fato, a ação administrador ou penal contra empregado o agente corrupto corruptor cabe ser de e o alçada pública. Como já referi diversas vezes a corrupção passiva tem como sujeito ativo qualquer empregado ou administrador da empresa, sendo desnecessário, como faz a lei italiana estabelecer taxativamente sujeito ativo próprio. Muitos que, com razão, fazem-se críticos da classe política, vista composta em geral por corruptos, no entanto, no seu mister, exercício de deliqüescência atuam desonestamente cargos dos no tomando vantagens setor privado. O da correção no valores clima no de exercício profissional merece igual repúdio, seja no setor público como privado. Por essas razões, considero conveniente criar-se a figura da corrupção privada na legislação brasileira, compreensivo o tipo penal da corrupção seja na empresa, como nas sociedades civis, como forma de afrontar o mal da corrupção entranhado em nossa cultura, como assinala SÉRGIO HABIB30. E- o dever de informar 30 SÉRGIO, Habib, Brasil: quinhentos anos de corrupção, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris editor, 1.994, p. 95, e que destaca (p. 91) ser na empresa o mais das vezes onde se verificam condutas contarias aos interesses individuais ou coletivos da sociedade. 22 Corolário do dever de lealdade é o dever de informar, em especial, a informação a ser dada pelo administrador em situação de conflito de interesses, que deve cientificar, de forma completa aos demais dirigentes e ao Conselho de Administração, acerca dos dados relativos a esse conflito. Por essa razão a informação à sociedade, como ressaltam CESARE PEDRAZZI e PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR não basta que seja verdadeira, mas cumpre que seja razoavelmente completa31, sem a omissão de dados essenciais de forma a permitir uma decisão por parte dos órgãos diretivos com pleno conhecimento de causa no interesse e na tutela dos interesses sociais. Se há um direito amplo de ser informado por parte dos dirigentes e sócios há, em contrapartida, um dever de informar da forma mais completa, o que significa que a informação há de ser isenta de qualquer representação falsa da realidade, mas também, exaustiva, ou seja, sem ocultação de qualquer dado relevante, mormente tratando-se de situação de conflito entre o administrador e a empresa que dirige. O dever regulado no de informar art. 157 por da parte Lei de do administrador Sociedades vem Anônimas, estatuindo o § 1º, letra “a”, o dever de informar os valores imobiliários da companhia ou de sociedades coligadas que tenha adquirido no exercício anterior. Este dever de informar, que incumbe a todos os administradores compreende, como ressalta MODESTO CARVALHOSA, 31 PEDRAZZI, Cesare, e COSTA JÚNIOR, Paulo José. Direito Penal das sociedades anônimas, São Paulo, RT, 1973, p. 109; PINHEIRO TORRES, Carlos Maria. O direito à informação nas sociedades comerciais, Coimbra, Almedina, 1.998, p.207 e seguintes. 23 o “estado financeiro e o estado dos negócios”32, ou seja, “os fatos e atos relevantes, nas atividades da companhia”, compreendendo-se nesta categoria a propriedade de ações ao assumir e as alterações patrimoniais que ocorrerem ao longo do exercício da administração. O dever de informar, por conseguinte, concretiza o dever de lealdade, especial, e da os relação fatos relevantes negocial entre da o empresa, e, administrador em e a companhia, cumprem que sejam plenamente expostos aos demais dirigentes e aos órgãos de direção, para que as decisões a serem tomadas o sejam com plena ciência das circunstâncias em todo o seu conjunto. E a veracidade das informações por evidência coloca-se como pressuposto necessário à assunção de decisões. Esse pressuposto apenas é atendido se houver informação correta representativa da realidade das condições econômicas, do estado financeiro e do estado dos negócios, correção que exige não haver ocultação de qualquer circunstância relevante, mormente com referência aos negócios entre administrador e a própria empresa. F- descumprimento do dever de informar: incriminação Segundo o disposto no art. 177 do Código Penal, incriminam-se os atos fraudulentos e abusivos na fundação e administração de sociedades por ações, devendo-se destacar para o exame da infidelidade o disposto no § 1º, inciso I, do art. 177 do Código Penal. 32 CARVALHOSA, Modesto e LATORRACA, Nilton. op. cit., p. 286. 24 O caput do art. 177 do Código Penal diz respeito a conduta desleal e fraudulenta dos fundadores da sociedade anônima, enquanto os incisos do parágrafo primeiro referem-se aos diretores, bem como ao liquidante e ao representante de sociedade anônima estrangeira nos dois últimos incisos. O artigo 177 coloca-se topologicamente como crime contra o patrimônio, mas na condição de uma das formas do estelionato. O estelionato, conforme já manifestei anteriormente, 33 constitui um polinômio , composto pelos elementos ardil ou fraude, que induz ou mantém alguém em erro, estabelecendo-se no plano psicológico uma relação causal entre o ardil e o erro, levando a pessoa à qual se dirige o ardil a praticar um ato de disposição, que conduz à obtenção de uma vantagem econômica ilícita de um lado e causa um prejuízo patrimonial de outro34. Na hipótese do art. 177 ressalta-se apenas o elemento ardil, fraude com potencialidade de causar um erro ou engano, não se exigindo para a configuração do delito a ocorrência do prejuízo, bem como a obtenção da indevida vantagem. 33 Nosso Direito Penal Aplicado, São Paulo, RT, 1994, p. 102 e seguintes; PUIG, Gustav. Cursillo sobre Derecho Penal Economico, Montevideu, Faculdad de Derecho, 1990, p. 170; MARINI, Truffa, no Novissimo Digesto Italiano, vol. XIX, p. 877; VICH, Carlos Almela, El delito de estafa y de apropriación indebida, na Revista Semanal Técnico Jurídica de Derecho Penal, nº35, 28/9 a 4/10 de 1998, Madrid, p. 660. 34 PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR assevera que há necessidade de duplo nexo de causalidade, primeiramente meio fraudulento-engano, que, ao depois, devem ser causa do proveito injusto e do respectivo dano. (Comentários ao Código Penal, Parte Especial, vol. 2, São Paulo, Saraiva, 1988, p. 268). 25 Edita o art. 177, §1º, I, do Código Penal: “Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular: I - o diretor, o gerente ou o fiscal de sociedade por ações que, em prospecto, relatório, balanço ou comunicação ao público ou à assembléia, faz comunicação falsa sobre as condições oculta econômicas da fraudulentamente, sociedade, no todo ou ou em sobre os parte, fato a elas relativo”. O ardil, destinatários, fraude público ou ou engano membros que da recai assembléia com potencialidade de produzir o fenômeno do erro, de caráter psíquico, levando a um ato de disposição de forma a que se caracterize uma agressão à liberdade psíquica do destinatário da fraude, ao lhe causar um vício de consentimento35. O ardil ou a fraude, como modificação total ou parcial da realidade, devem ser aptos a enganar, a surpreender a boa fé criando na psique do destinatário esta falsa representação da realidade36como efeito da vitória do ardil ou fraude sobre 35 MARINI, op. cit., p. 866, ressalta que a incriminação do estelionato visa tutelar a liberdade dispositiva do destinatário da fraude. 36 AZZALI, Prospettive negoziali del delitto di truffa, na Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, anno XLI, Milão, Giuffrè, abriljunho de 1998, p. 322 e seguintes; MARINI, op. cit. p. 873; SPOLANSKY, La estafa y el silencio, Buenos Aires, 1967, p. 52; MAGALHÃES NORONHA, Direito Penal, vol. 2, São Paulo, Saraiva, 13ªed., 1977, p. 389. 26 a resistência intelectiva da vítima, induzida em erro e provavelmente extraindo-lhe um ato de disposição37. Mas, como se ressalta não é de se reconhecer qualquer comportamento válido a produzir erro, pois este deve derivar de um conjunto de fatores que deformam uma dada situação, criando uma atmosfera idônea a envolver a psique do destinatário.38 Igualmente, AZZALI39 considera que: “Non vi è inganno, cioè, se esso non incide, nella maniera che si definisce concludente in relazione all’errore, sulla sfera rappresentativa del soggetto cui è rivolto, che solo per tanto ne è vittima.” Essencial, portanto, potencialidade de causação de um erro de forma concludente na esfera representativa do destinatário do ardil ou fraude, razão pela qual se deve, também, examinar, no caso concreto, as específicas condições do sujeito passivo. Assim cumpre ver se o engano tinha 37 AZZALI, op. cit., p. 327, MANCI, F.. La truffa nel Codice Penale Italiano, Turim, 1930, p. 73; PEREZ MANZANO, Mersedes, no artigo “Acerca de la imputación objetiva en la estafa”, nos Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia, nº 1 e 2, Buenos Aires, p. 250 e seguintes. A Autora considera que o tipo do estelionato exige uma contribuição fática da vítima, que por erro pratica um ato de disposição; GALDINO DE SIQUEIRA, entre nós, bem esclarece que “pelo erro criado pelo agente, o sujeito passivo seja o próprio que disponha da coisa”, Tratado de Direito Penal, Parte Especial, vol. 2, Rio, Konfino, 1951, p. 466; 38 SAMMARCO, G.. La truffa contrattuale, Turim, Giuffrè, 1970, p.99 39 op. cit. p. 327. 27 potencialidade objetiva de enganar, como diz GUSTAV PUIG, sujeita esta subjetividade às condições pessoais da vítima40. Sem dúvida, a correta avaliação do processo de vício do consentimento exige vítima, ser para a análise possível, das condições conforme MARINI, pessoais da aquilatar a potencialidade da fraude para conduzir ao erro e ao ato de disposição do seu destinatário41. A Jurisprudência italiana, neste campo dos negócios, dá especial relevo “dolo ao inicial”, como elemento 42 caracterizador do estelionato , cumprindo constatar se desde o início a intenção do agente era o de, por meio do engano, falsear a verdade, servindo-se da informação falsa por conter representações desconformes da realidade ou falhas por ocultação e omissão da realidade dos fatos. Na hipótese trata-se de crime formal, cuja consumação ocorre no momento mesmo da ação, ou seja, quando o diretor faz em prospecto, balanço ou em comunicação à assembléia afirmação falsa, de conteúdo inveraz ou quando oculta fato relevante, no todo ou em parte, acerca das condições econômicas que compreendem tanto o estado financeiro quanto o estado de negócio. O crime, portanto, pode se dar pela forma comissiva, pela prática de uma falsidade ideológica, potencialmente 40 op. cit., p. 173. op. cit., p. 874. 42 MAGGINI, Attilio. La truffa, Pádua, Cedam, 1988, p. 42. LICH, Carlos Almela. op. cit., p.662, que entende deva o engano ser “antecedente, causante y bastante”. 41 28 capaz de enganar o destinatário, consistente na indevida inserção de uma inverdade em prospecto, relatório, balanço, prospecto ou comunicação, ou quando estes documentos ou a comunicação silenciar acerca de dado relevante relativo às condições econômicas da empresa. O tipo penal pode se dar, portanto, na forma comissiva e na omissiva, sendo comunicação o ato pelo qual se dá ciência ao público ou à assembléia de algo que sucedeu, o que pode ocorrer com a inserção de dados fictícios ou com a não consignação de dados relevantes43, deixando-se de cumprir com o dever de informar com veracidade e da forma mais completa. Na forma omissiva, o engano resulta do silêncio acerca de dado relevante relativo às condições econômicas, pois o silêncio, como diz SPOLANSKY, significa engano, já que enganar significa suscitar um erro em outrem e o engano pode realizar-se por meio de uma omissão, do silêncio44. Objeto do silêncio deve ser, contudo, fato relevante, de interesse fundamental, ponderando PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR que, se a questão é pertinente à ordem do dia e não mero capricho, a recusa em oferecer informações ou o próprio silêncio “assumem valor de ocultação”45. O fechamento de determinado contrato, por exemplo, pode enquadrar-se na expressão condições econômicas da sociedade46, 43 RÉGIS PRADO, Luiz. Curso de Direito Penal, v.2, São Paulo, RT, 3ª ed. P. 610. 44 SPOLANSKY, Norberto. op. cit., p. 67 e 72. 45 COSTA JR, Paulo José. Curso de Direito Penal, v.2, parte especial, São Paulo, Saraiva, 2ªed. 1992, p. 154. 46 COSTA JR, Paulo José. op. ult. cit., p. 150. CARVALHOSA, Modesto. op. cit., p. 285, entende que a expressão condições econômicas merece 29 pois induz decisões os membros importantes da para diretoria a vida ou da demais sócios empresa, a decisões baseadas no conteúdo das informações prestadas, que serão viciadas, fruto de engano se essas informações forem inverídicas ou omissas. Entendo, todavia, que sendo o Código Penal anterior à lei das sociedades anônimas, não se faz referência à comunicação apresentada ao Conselho de Administração, sendo que o princípio da taxatividade exige que se acrescente à figura penal a menção de que a informação falsa é relevante se dirigida, também, ao Conselho de Administração e não apenas aos sócios na Assembléia ou ao público. São essas algumas considerações acerca de um tema que merece, no Brasil, maior cuidado da Doutrina e do legislador. interpretação ampla compreendendo também negocial, o estado de negócios da companhia. a revelação da situação 30