PSICOPATOLOGIA GERAL Prof. Octavio Domont de Serpa Jr. (IPUB/UFRJ) Cérebro, corpo, organismo e subjetividade Especificidade da Psiquiatria? Medicina Especial/Primeira Especialidade da Medicina Hiato Metodológico entre a Psiquiatria e o restante da Medicina: marca de nascença Dualismo Cartesiano Fim do século XVIII: localização cerebral tanto como determinação do lugar do cérebro onde a alma se articula com o corpo quanto busca de correspondência entre uma lista de faculdades mentais (tradição escolástica, empirismo inglês, ideólogos) e possíveis recortes do encéfalo. F.J.Gall (1758-1828) – anatomista do Sistema Nervoso ( Mémoire à L’Institut –1808; Anatomie et physiologie du système nerveux) Gall: pretensão de fundar um conhecimento do comportamento humano sobre o estudo de faculdades mentais (inatas) localizadas no córtex cerebral. Postulados: existência de faculdades inatas, independentes umas das outras e distintas de atributos gerais (memória, atenção, julgamento) Comportamento: jogo combinado de faculdades inatas, múltiplas, irredutíveis entre si. Postulados: existência de faculdades inatas; estas são independentes umas das outras; são distintas de atributos gerais (memória, atenção, julgamento); são plurais, irredutíveis à unidade. Comportamento: jogo combinado de faculdades inatas, múltiplas, irredutíveis entre si. Lista provisória de 27 faculdades, cada uma correspondendo a um território cortical, bilateral, divididas em três subgrupos de acordo com uma hierarquia: A) 1-10: faculdades comuns aos vertebrados (partes posteriores e inferiores do córtex cerebral e córtex cerebelar): instinto de propagação; amor à progenitura; apego e amizade; gosto pela rixa e combates; inclinação para o crime; inclinação para a astúcia; sentimento de propriedade e inclinação para o roubo; orgulho e amor pela autoridade; amor pela glória; inclinação para a circunspeção e previdência. B) 11-19: faculdades comuns aos vertebrados superiores (córtex da metade inferior dos lobos anteriores): memória das coisas e dos fatos; sentido das localidades e das relações no espaço; memória das pessoas; sentido das palavras e dos nomes; memória verbal; sentido da linguagem e da fala; sentido das cores; sentidos das relações de tons e talento musical; sentido das relações dos números; sentido da mecânica e da construção. C) 20-27: faculdades próprias à espécie humana (córtex da metade superior dos lobos anteriores): sagacidade comparativa; espírito metafísico e profundidade de espírito; espírito cáustico; talento poético; sentimento do justo e do injusto; talento da imitação, devoção; firmeza de caráter. Redescoberta do Cérebro: de 90 – década do cérebro Homem Neuronal (Changeux, 1983) Década Monismo: Materialismo/Fisicalismo/Reducionismo/ Eliminativismo Redescoberta do cérebro: versão intuitiva de um monismo fisicalista reducionista eliminativista Exclusão da subjetividade e abandono de aspectos contextuais: resultado de uma solução específica para o problema mente-corpo → teoria da identidade tipotipo Monismo não reducionista? Teoria da identidade “token-token” Superveniência: Pode haver uma relação entre duas classes de propriedades, mas que esta relação não precisa ser rígida, nomológica, termo a termo. Um mesmo conteúdo mental pode representar coisas muito diferentes para diferentes pessoas ou para uma mesma pessoa em diferentes contextos. Holismo Mental Localizacionismo ou Holismo Cerebral? A incorporação das contribuições das neurociências pela psiquiatria não pode deixar de levar em conta o aspecto. negativamente valorativo da condição patológica nem tampouco o seu caráter individual, organísmico e subjetivo. Goldstein, Sacks, Damasio, Edelman Damásio (2003) “a mente humana é a idéia do corpo humano”; “processos mentais estão escorados nas cartografias cerebrais do corpo, que são coleções de padrões neurais que retratam respostas a eventos que causam emoções e sentimentos” (p.12). importância das dimensões valorativa e contextual na elaboração de sua teoria naturalista da mente → “emoções provêm um meio natural para o cérebro e a mente avaliarem o ambiente – dentro e ao redor – do organismo e responderem adequada e adaptativamente” (p.54) Perspectiva organísmica de sua teoria: “o corpo e o cérebro formam um organismo integrado e interagem mutuamente de forma plena através das vias químicas neurais” (p.194); “devido à mediação do cérebro a mente está enraizado no corpo” (p.191). Edelman (2004) teoria geral do cérebro e teoria naturalista da mente. Cérebro como estrutura aberta, determinado em sua arquitetura mais fina epigeneticamente → contextualista e organísmico → experiência mental necessariamente corporificada. Holista (diferenciação com integração): “Estados neurais não “representam” uma dada imagem, conceito ou cena de um modo um-para-um. Em vez disso, dependendo do input, ambiente, estado corporal e outros contextos, diferentes estados neurais podem subjazer uma dada representação. As interações são relacionais e têm as propriedades de conjuntos polimorfos” (p.106). Emergentista: a experiência consciente não é causada pela atividade neural mas é uma propriedade simultânea dela → como o vivido consciente é uma propriedade simultânea – emergente – e não conseqüente – causado – da atividade neural, é o único meio de que dispomos para conhecermos os andamentos do funcionamento neural da qual emerge → justificado dotar de poder causal a atividade mental. Emergência -Como regras locais podem dar origem a propriedades globais? -Propriedades em um certo nível de organização que não podem ser previstas a partir de propriedades encontradas em níveis inferiores. -Criação de novas propriedades. -Comportamentos coletivos de amplos conjuntos nos quais interações de retro-alimentação positivas e negativas geram conseqüências nãoproporcionais (ou não lineares) - Emergência ontológica: emergência de algum novo nível de realidade - Emergência epistemológica: natureza ineliminável de alguma descrição e/ou explicação de nível superior - Emergência diacrônica: interessada na preditibilidade de novas propriedades → emergentes se não puderem ser previstas antes de sua primeira instanciação - Emergência sincrônica: interessada na redutibilidade de propriedades do sistema à sua microestrutura → emergentes se não redutivelmente explicáveis Hard Problem ou Explanatory Gap - como passar de uma descrição em terceira pessoa de processos cerebrais para uma descrição na primeira pessoa de experiências mentais conscientes, irredutivelmente subjetivas? - como desenvolver uma teoria do cérebro que fundamente uma explicação biológica da mente sem desprezar o caráter essencialmente subjetivo desta última? Neurophenomenology: a methodological remedy for the hard-problem (Varela, 1996) Hipótese de trabalho: reciprocal (mutual) constraints 1) Dados em primeira pessoa fenomenologicamente precisos obtidos por meio de metodologias na primeira pessoa produzem fortes constrangimentos na análise e interpretação de processos fisiológicos relevantes para a emergência do psiquismo 2) A análise neurocientífica fenomenologicamente enriquecida provoca revisões e refinamentos dos relatos fenomenológicos, assim como facilita para o sujeito tornar-se consciente (becoming aware) de aspectos previamente inacessíveis ou fenomenicamente indisponíveis de sua vida mental. Teoria enatista e Neurofenomenologia (Francisco Varela) - Embodied mind: inclusão corporal da mente; caráter necessariamente corporal da constituição da experiência mental - Ação corporificada: cognição depende dos tipos de experiência resultantes do fato de possuirmos um corpo com determinadas capacidades sensório-motoras, por um lado, e do fato de as próprias capacidades sensóriomotoras estarem embasadas num contexto biológico, psicológico e cultural mais amplo, por outro. Mente e mundo emergem simultaneamente como resultado da interação recíproca entre organismo e meio. Corporificação radical 1) como resultado das características gerais da “emergência” em sistemas complexos pode-se esperar que existam relações recíprocas ou de mão dupla entre eventos neurais e atividade consciente; e 2) os processos cruciais para a consciência se dão atravessam as divisões cérebro-corpo-mundo, em vez de serem eventos neurais restritos ao cérebro (Thompson & Varela, 2003, p.418) Uma melhor concepção de cérebro, corpo e ambiente seria a de sistemas mutuamente enraizados em vez de interna e externamente localizados com relação uns aos outros. Elementos neurais, somáticos e ambientais provavelmente interagem para produzir (via emergência como upward causation) processos globais organismoambiente, os quais por sua vez afetam (via downward causation) os seus elementos constituintes (Thompson & Varela, op.cit., pp. 423-424). Ciclo organísmico: processos homeodinâmicos básicos; dimensão valorativa/afetiva; senciência. Ciclo do acoplamento sensório-motor: atividade situada em contexto dos organismos vivos. Ciclo da interação intersubjetiva: intersubjetividade como intercorporeidade; capacidade de reconhecer intenções; comunicação linguística. The brain-in-a-vat experiment: cérebro em uma cuba mantido vivo por nutrição artificial e informado por eletrodos que aportam informações sobre o mundo Dennett (1981): versão deste experimento de pensamento → cérebro sem corpo; implante em um novo corpo, também conectado a um computador que roda um programa que é a cópia funcional do cérebro Moral da estória: não só o corpo é desnecessário para a experiência e cognição, como o próprio cérebro pode ser substituído por um software rodando em um hardware adequado → perspectiva funcionalista Concepção descorporificada da mente e concepção cerebralizada (corticalizada) da mente É pura e simplesmente um fato empírico que somos corporificados, que nossas percepções e ações dependem do fato de possuirmos um corpo, e que nossa cognição é modelada pela nossa existência corporal Porém, o próprio experimento do cérebro-em-umacuba demonstra que que percepção e ação requerem algum tipo de corporificação, na medida em que o experimento requer que o cérebro receba o que o corpo normalmente provê Para o cérebro existir fenomenologicamente na cuba, e não só fisicamente, é preciso replicar os sistemas corporais que sustentam habitualmente a nossa existência O corpo biológico (no que ele habilita ou impossibilita pela sua estrutura, postura e capacidade motora) é o corpo que que molda a maneira pela qual percebemos e pensamos sobre o mundo corpo considerado como princípio constitutivo ou transcendental → condição de possibilidade da experiência O corpo não é meramente um objeto de experiência; é também um princípio de experiência a noção de corporificação, de mente corporificada, visa re-situar as noções comuns de mente e corpo, que são derivações ou abstrações da primeira O corpo vivido não é nem espírito, nem natureza, nem alma nem corpo, nem interior nem exterior, nem sujeito nem objeto O corpo não é uma tela entre eu e o mundo, mas sim o que modela a nossa forma primearia de ser-no-mundo O corpo já se dá no-mundo e o mundo é dado como corporalmente revelado. Por isso não podem ser examinados de forma dissociada O corpo é operativo em toda percepção e ação; é o nosso ponto de vista e ponto de partida Body image sistema de experiências, atitudes e crenças nos quais o objeto intencional é o próprio corpo; afetado por fatores culturais e interpessoais Body schema sistema de processos quase-automáticos que regulam postura e movimento em serviço da ação intencional; consciência (awareness) corporal não-objetivante e préreflexiva Aspectos da corporificação que dependem do esquema corporal: capacidades corporificadas para ação correlatas dos provimentos (affordances) do mundo → “Eu posso” (Husserl) Forma de saber, ou saber fazer, não conceitual, pré-linguístico