ISSN 1981-8874
A curicaca, Theristicus caudatus
(Ciconiiformes: Threskiornithidae)
no estado do Rio de Janeiro: revisão
dos registros e novas observações
9 771981 887003
Guilherme Alves Serpa, José Fernando Pacheco,
Luciano Moreira Lima, Ricardo Parrini, Leonardo
Savattone Pimentel, Marcos Felipe da Rocha Pinto,
Rafaela Dias Antonini, Henrique Rajão, Alfredo Heleno
de Oliveira, Davi Castro Tavares, Salvatore Siciliano,
Francisco Mallet-Rodrigues, Hermes Ribeiro da Luz, Luiz
Carlos Ribenboim, Bruno Rennó Soares & Norma Crud
RESUMO. A curicaca, Theristicus caudatus (Ciconiiformes: Threskiornithidae) no estado do Rio de Janeiro: revisão
dos registros e novas observações. É procedida uma compilação
dos registros presentes na literatura ornitológica – que se iniciam
em 1980 – e dos registros inéditos de Theristicus caudatus (Boddaert 1783) no estado do Rio de Janeiro. Esse trabalho evidencia
que a espécie antes conhecida de registros esporádicos, sobretudo
da região Norte e nos arredores da capital do estado, que se limitavam a pares ou indivíduos solitários, passou nos últimos dois
anos a ser encontrada mais frequentemente em grupos de três ou
mais indivíduos num número maior de localidades. São aqui apresentados também os primeiros documentos comprobatórios da
ocorrência da espécie no estado: fotografias obtidas a partir de
março de 2008 em vários pontos do território fluminense e um espécime taxidermizado de junho de 2009, procedente da Ilha do
Fundão, município do Rio de Janeiro. Por fim, discute-se a presença e a expansão local de Theristicus caudatus no contexto da
colonização recente do estado por aves de ambientes abertos do interior do Brasil.
INTRODUÇÃO
A curicaca, Theristicus caudatus (Boddaert 1783) é um grande representante da família Threskiornithidae (íbis, guarás, colhereiros) de coloração clara e asas largas, afeita aos campos
abertos e secos, incluindo campos queimados e pistas de aviação, onde forrageia em busca de artrópodes, anfíbios, pequenos
répteis e mesmo ratos (Hancock & Kushan 1992, Matheu & Hoyo 1992, Sick 1997). Sua distribuição é exclusivamente sulamericana, desde a Colômbia até a Terra do Fogo, abrangendo
grande parte do Brasil, como as regiões Sul e Nordeste (Sick
1997, Clements 2000). Por ser uma espécie tipicamente campestre, comum em áreas semi-abertas, cerrados, caatingas e bastante adaptável aos ambientes antropizados das cidades, pastos
e plantações, tem se beneficiado e expandido sua ocorrência por
regiões atingidas por desflorestamentos e onde avançam as monoculturas e a pecuária, como no Sudeste (Sick 1997, Sigrist
2006).
No estado do Rio de Janeiro, outrora predominantemente coberto por densas florestas da Mata Atlântica e palco das primeiras explorações zoológicas intensificadas a partir do início do século XIX no Brasil (Sick 1997), desconheciam-se registros ou
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mesmo relatos a respeito da curicaca até a década de 1980, quando tiveram início as primeiras observações da espécie em território fluminense, tratando-se ainda de registros nãodocumentados e escassamente divulgados pela literatura ornitológica até anos mais recentes (Nacinovic 1993, Pacheco & Parrini 1998, Alves et al. 2004, Mallet-Rodrigues et al. 2007, Alves
& Vecchi 2009, Maciel 2009, Mallet-Rodrigues & Noronha
2009). São dignos de nota que até o ano de 2004 apenas quatro
desses encontros eram conhecidos, todos reunidos por Pacheco
& Parrini (1998).
O escopo do presente trabalho é divulgar os mais recentes e inéditos registros da curicaca realizados pelos autores em oportunidades diversas no estado do Rio de Janeiro, incluindo os primeiros de forma documentada da espécie por intermédio de fotografias incluindo a obtenção de um espécime-testemunho, apresentando também uma compilação dos primeiros encontros divulgados pela literatura. Ainda através da análise dessa reunião de registros recentes os autores tencionam fazer considerações relacionadas à distribuição e ecologia de Theristicus caudatus em território fluminense.
MATERIAL E MÉTODOS
Foi efetuada uma extensa pesquisa na literatura ornitológica disponível para fins de compilação de todas as observações publicadas acerca da curicaca no estado do Rio de Janeiro. Os diversos registros inéditos ora divulgados foram reunidos de forma oportunística durante excursões ornitológicas realizadas em diferentes áreas
do território fluminense e, sempre que possível, obtida comprovação fotográfica por câmeras dos mais diversos tamanhos e modelos, com a exceção do exemplar morto encontrado em um desses registros.
Para fins de divisão e denominação das diferentes regiões ornitológicas do estado do Rio de Janeiro, os autores seguem a sugerida
por Pacheco & Parrini (2000).
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Existe um total de oito registros de Theristicus caudatus em território fluminense citados na literatura, sendo o primeiro datado
de 13/08/1980 e a metade desses encontros efetuados apenas a partir do ano de 2003 (Tabela 1). Os registros inéditos são apresentados na Tabela 2, ilustrados em seguida por uma seleção de fotos
nas pranchas 1, 2 e 3 que representam os primeiros registros documentados conhecidos da espécie no estado do Rio de Janeiro. Os
encontros divulgados aqui pela primeira vez, no total de 26, são
pouco mais que o triplo dos registros já publicados, sendo interessante destacar que 23 deles aconteceram somente a partir do ano
de 2007. Um mapa é também apresentado plotando o somatório
desses registros nas diferentes regiões ornitológicas do estado (Figura 1) .
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Tabela 1 – Registros da curicaca, Theristicus caudatus, para o Estado do Rio de Janeiro existentes na literatura
Autores dos registros em campo: GSC, Gilberto Soares do Couto; JFP, José Fernando Pacheco; NCR, Norma Crud; RP, Ricardo Parrini
Tabela 2 – Registros inéditos da curicaca, Theristicus caudatus, no Estado do Rio de Janeiro
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Autores dos registros inéditos: AC, Adilei Cunha; AHO, Alfredo Heleno de Oliveira; BRS, Bruno Rennó Soares; DCT, Davi Castro Tavares; FEA, Fabio Espósito Altoé; FMR, Francisco Mallet-Rodrigues; GAS, Guilherme Alves Serpa; HR, Henrique Rajão; JFP, José Fernando Pacheco; JH, Juha Honkala; LCM, Luis Claudio Marigo; LCR, Luiz Carlos Ribenboim; LML, Luciano Moreira Lima; LPG, Luiz Pedreira Gonzaga; LSP, Leonardo Savattone Pimentel; MFR, Marcos Felipe da Rocha Pinto; NCR, Norma Crud; RDA, Rafaela Dias Antonini; SS, Salvatore Siciliano; VSA, Vânia Soares Alves
Prancha 1 – Os primeiros registros fotográficos de Theristicus caudatus realizados em território fluminense, no ano de 2008: no canto
superior direito um indivíduo com plumagem juvenil fotografado em março no Brejo da Kodak, em Resende (LCR); à esquerda, uma foto
obtida em abril em São Vicente de Paula, Iguaba Grande (JH); no canto inferior direito, também em abril, um exemplar fotografado na Reserva Ecológica de Guapiassu, em Cachoeiras de Macacu (LSP).
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Prancha 2 – Os registros fotográficos que constituem os primeiros documentados para o município do Rio de Janeiro e adjacências, realizados no ano de 2009: no alto à esquerda dois indivíduos fotografados em janeiro em Barra de Guaratiba (Fábio Espósito Altoé); no canto
superior direito, um exemplar fotografado em fevereiro na Ilha da Marambaia (Rafaela Antonini); os demais representando os registros efetuados em junho na Ilha do Fundão, sendo um exemplar abaixo à esquerda, quatro indivíduos da 2ª foto de cima para baixo à direita (AHO)
e duas curicacas na 3ª e na 4ª fotos de cima para baixo, à direita (GAS e Luis Florit, respectivamente).
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Prancha 3 – Registros fotográficos realizados em 2009 e 2010 na Região dos Lagos e Norte Fluminense: no canto superior direito uma foto obtida por aparelho celular de três curicacas em vôo em Arraial do Cabo (per LML) e no alto à esquerda, um indivíduo de Theristicus caudatus fotografado na Fazenda Bom Jardim, Macaé (MFR), ambas de março de 2009; na foto de baixo, um bando de oito indivíduos em vôo
sobre a Lagoa da Ribeira, Quissamã, em agosto de 2009 (DCT); na 2ª foto de cima para baixo, um exemplar fotografado em janeiro de 2010
na localidade de Barra do Furado, Quissamã (BRS).
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Apesar da reunião desses dados apontarem para observações
já em todas as regiões do território fluminense, os mesmos indicam uma maior concentração dos registros da curicaca nas regiões Norte, dos Lagos e do Grande Rio, sendo apenas três encontros efetuados nas regiões Setentrional e Meridional do Vale
do Paraíba e da Costa Verde (um em cada). Essa irregularidade
em sua distribuição parece mostrar uma preferência pela faixa litorânea do estado, sobretudo nas baixadas. De presença tímida
ainda entre os anos de 1980 e 2003, o acúmulo de registros de
Theristicus caudatus em diferentes áreas do estado do Rio de Janeiro nos últimos anos parece indicar uma rápida e progressiva
colonização do território fluminense acompanhada do aumento
populacional da espécie, resultando em seus primeiros registros documentados através de fotos a partir de março de 2008.
Situada na região do Grande Rio, a capital fluminense, detentora de uma das avifaunas mais bem conhecidas entre as cidades brasileiras (Sick 1997) e matéria de quatro compilações
de sua avifauna (Sick & Pabst 1968, Sick 1983, Pacheco 1988,
Maciel 2009), só teve seu primeiro registro da curicaca conhecido em 1993 (Nacinovic 1993, Pacheco & Parrini 1998), moti-
vando sua inclusão na lista do município do Rio de Janeiro apenas em sua última publicação por Maciel (2009), baseada ainda
apenas em observações não documentadas da espécie. O registro fotográfico realizado em janeiro de 2009 em Barra de Guaratiba, seguido dos exemplares fotografados em junho do mesmo ano na Ilha do Fundão, representam os primeiros registros
documentados de Theristicus caudatus para o município do
Rio, acompanhado por um inédito espécime-testemunho, inédito também para o Estado. Um indivíduo morto foi encontrado pelos autores GAS e AHO, próximo a dois em atividade de
forrageamento nos gramados da Ilha do Fundão em
16/06/2009, e depositado na coleção do Laboratório de Ornitologia da UFRJ, recebendo o número de tombo UFRJ 0852.
Embora rivalize com as regiões Norte e dos Lagos em quantidade de observações de Theristicus caudatus, o Grande Rio ainda parece receber o afluxo de poucos indivíduos, em média dois a cada registro, sendo o número máximo de quatro exemplares observados em uma ocasião na Ilha do Fundão. Nas outras
duas regiões o número de curicacas avistadas alcança variações entre cinco e até oito indivíduos.
Figura 1 – Mapa do estado do Rio de Janeiro com as localidades de ocorrência de Theristicus caudatus: registros publicados (1-8)
conforme enumeração (Coluna R) constante da Tabela 1; registros inéditos (A-M) conforme enumeração (Coluna R) constante da
Tabela 2.
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Tabela 3 – Distribuição mensal dos registros da curicaca, Theristicus caudatus, nas diferentes regiões do estado do Rio de Janeiro.
Até o momento não há indícios substanciais de uma sazonalidade nos aparecimentos da curicaca no estado do Rio de Janeiro, uma
vez que seus registros encontram-se distribuídos ao longo de todas
as estações do ano nas diferentes regiões do território fluminense,
conforme mostra a Tabela 3. Da mesma forma, ainda não se pode
afirmar que a espécie se tornou residente no estado ou já se reproduziu, uma vez que ainda não foram encontrados sinais de nidificação ou mesmo ninhegos, sendo até o momento um único indivíduo
solitário com plumagem juvenil registrado por LCR no Brejo da
Kodak, que por ser situado na região Meridional do Vale do Paraíba, interior do estado, pode tratar-se de um vagante procedente da
região contígua do Vale em São Paulo. Como os dados das Tabelas
1 e 2 parecem indicar um expressivo aumento dos registros de Theristicus caudatus no estado a partir do ano de 2007, o tempo dirá se
a espécie chegará a populações residentes e reprodutivas em seu território.
A rápida e recente expansão de Theristicus caudatus em território fluminense, evidenciando um início de colonização do mesmo
pela espécie, é um tanto sintomático da situação ambiental do estado do Rio de Janeiro. Típica ave das áreas abertas e campestres do
interior do País, a curicaca tem encontrado nos pastos, monoculturas, áreas urbanas entre outros ambientes degradados do estado, novos habitats favoráveis para o seu ciclo de vida, quando antes ela
evitaria penetrar nas densas e portentosas florestas da Mata Atlântica que até poucos séculos atrás cobriam quase integralmente a paisagem do território fluminense. Situação semelhante tem sido verificada em partes do litoral de São Paulo (Santos e Cubatão: Silva e
Silva & Olmos 2007; Ubatuba: Dimitri Matoszko in litt.). Embora
um monitoramento de longo prazo dos registros locais da curicaca
seja a melhor recomendação, tudo parece indicar que a espécie seja
mais um elemento generalista do Brasil Central em franco processo de substituição de outra rica comunidade autóctone de aves, da
mesma forma que outras espécies oriundas de ambientes semelhantes que antes invadiram o estado do Rio de Janeiro e ora prosperam, como a gralha (Cyanocorax cristatellus) e o tucanuçu
(Ramphastos toco) (Pacheco 1993, Lopes 2008, Maciel et ali.
2009).
Agradecimentos
Agradecemos a Ana Beatriz Aroeira Soares, Claudia Bauer, Dimitri Matoszko, Fernando Mauro de Carvalho, Gilberto Soares do
Couto, Gloria Denise Castiglioni, Ildemar Ferreira, Janaína Arruda, Luis Claudio Marigo, Luiz Pedreira Gonzaga, Richard Raby e
Vania Soares Alves por fornecerem informações ou discutirem detalhes conosco acerca da presença da curicaca no estado do Rio de
Janeiro e estados vizinhos. Somos gratos também a Juha Honkala,
Fabio Espósito Altoé e Luis Florit pelo empréstimo de fotografias e
a Clarisse Cavalcanti pela preparação do mapa para compor este artigo.
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Correspondência para o primeiro autor:
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