Beluzzo: ''Centralização é a melhor solução para o câmbio'' 20/06/2011 - Folha de S.Paulo Centralizar o câmbio. Essa seria, na opinião do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, a melhor forma de enfrentar o problema dos custos do tsunami de dólares, que gera valorização do real e que abala a indústria brasileira. A solução, que significa concentrar no Banco Central todas as operações de câmbio, no entanto, é de difícil implantação e provocaria "desmaios no mercado financeiro", diz. O governo não tem força política para adotar uma medida tão drástica, constata o ex-integrante do governo Sarney e consultor informal de Lula. Aos 68 anos, Belluzzo está envolvido com a finalização de seu novo livro, ainda sem título, que mescla uma releitura de Karl Marx com um diagnóstico da crise atual do capitalismo. Os pontos de partida são sua tese de doutorado de 1975 ("Estudo sobre a Crítica da Economia Política") e suas anotações de professor na Unicamp. No início dos anos 80, ele dava aulas --assistidas na época pela estudante Dilma Rousseff-- sobre Adam Smith, Keynes e Marx. Nesta entrevista, o ex-professor da presidente fala da crise internacional e diz que os Estados foram capturados pelas finanças. E do seu livro, uma co-edição Unesp/Facamp. Ex-presidente do Palmeiras, ele se mostra indignado com a submissão dos governos à Fifa. "A despeito de eu adorar o futebol, acho que não se deve ceder a essa gente". E pede controle nas obras da Copa. "Se não, vai ser uma farra", diz. Confira a entrevista concedida à jornalista Eleonora de Lucena do Jornal Folha de S.Paulo. Folha - Por que Marx agora? Luiz Gonzaga Belluzzo - Minha tese de doutoramento termina com Marx e começa com a questão da sociabilidade numa economia capitalista. Abordei a questão do valor e do capital para mostrar que havia uma ruptura e uma descendência de Marx com os clássicos. Ele fez a crítica da economia política. Marx foi um discípulo e um seguidor de Hegel. O que me levou a olhar o Marx foi uma tentativa de esclarecer um debate da época. Essas ocasiões em que as certezas estabelecidas se dissipam se precisa voltar aos ombros dos gigantes. Não foi só Marx que voltou, mas também Keynes. Voltaram de uma maneira às vezes tópica e um pouco desajeitada. Marx é visto como um autor que fazia previsões terríveis e sombrias sobre as crises. Keynes é visto como propagandista dos déficits. Nada mais injusto com eles. Dava cursos de paradigmas de interpretação do capitalismo. Esse curso cuidava dos três paradigmas: o do equilíbrio, que começava com os clássicos (Adam Smith, Ricardo). Depois o paradigma da estabilidade, Keynes, e o paradigma da dinâmica contraditória, que ela o Marx. Esses trabalhos de agora são, em boa medida, transcrições corrigidas e transformadas em linguagem escrita das minhas aulas. Minhas aulas de 83. Muitas coisas delas estão aqui [aponta para o texto do novo livro]. Depois minha atenção foi despertada para a descoberta dos novos manuscritos de Marx. Eles surgiam na véspera do fim da URSS. Essa nova interpretação sobre eles contém exageros. Folha - No seu novo livro o sr. afirma que quando a crise é aguda, não há medida para salvar o capitalismo de si mesmo? O que foi feito em 2008 salvou? Belluzzo - Todos os princípios e regras que são considerados canônicos da política econômica acabam sendo violados quando se trata de uma crise desse tamanho. Marx ficava indignado com os limites do padrão-ouro. É preciso se libertar disso, diss ele. A moeda do capitalismo é expressão da coletivização das relações. Ela é o ente que dá unicidade. Na hora da crise, quando está se devastando tudo, os empregos estão sendo perdidos, ele escreve isso para o Engels: é preciso que o banco da Inglaterra aja de maneira adequada. Ele vai percebendo que a capacidade de resistência do capitalismo é maior e que é preciso que, na crise, o Estado se faça presente. Folha - Como está vendo essa crise? Vai haver uma recaída? Belluzzo - É uma crise que tem três dimensões que não se compatibilizam. Tem velocidades diferentes em regiões diferentes. Não estamos diante de uma crise só econômico-financeira. Ela apenas exprimiu um processo longo de 30, 40 anos de deteriorização das normas e das regras que marcaram a economia do pós-guerra. Essa economia que eles chamam de neoliberal. O que aconteceu foi que os Estados foram progressivamente abandonando, a partir das décadas de 1960 e 1970, seus compromissos com os assalariados, os velhos e foram privatizando tudo, com a participação das burocracias. Não é que o Estado tenha saído da economia. O Estado tinha outra agenda. Isso foi acompanhado por uma perda de posição das classes médias de todo o mundo, sobretudo nos EUA. Essa crise foi acompanhada por um tremendo aumento do conservadorismo. Parece incrível que os deserdados da prosperidade americana tenham se voltado conta si mesmos. O exemplo disso é o Medicare. Preferem morrer a aceitar uma tutela do Estado em relação à sua saúde. É um exemplo de como não se realiza bem esse ideal que o Marx defende da liberdade. Ele pensou na liberdade numa economia avançada. Quando se resolve o problema da escassez, como de fato se resolveu. Nos EUA, há o problema do desemprego. Os desempregados bem educados estão aumentando. Imagina o potencial de conflito social e de incompreensão na sociedade. Isso tem um rebatimento político. É um pouco tenebrosa a figura das lideranças republicanas. Eu tenho medo do que eles falam. Não só porque são coisas estúpidas, mas por causa da completa incompreensão das soluções. É o caso agora da discussão do limite de endividamento. Isso houve com Roosevelt, mas o Roosevelt atropelou essa gente. Porque ele fez sua base social, os sindicatos etc. Hoje o Obama não tem. Essa resistência contra o Estado e a visão superindividualista são elementos muito fortes da vida social. E isso não se compadece com a necessidade de enfrentamento com a crise econômica. Isso está claro na fragilidade de controle do sistema financeiro, que começou com muito ímpeto e terminou com quase nada. Folha - No livro o sr. diz que os Estados foram capturados pelo poder social e político dos mercados financeiros. Como foi isso? Belluzzo - Usei isso para mostra a potência em que se transformou a finança e os seus gestores. Folha - Estão capturados? Belluzzo - Sim, com diferenças. Basta olhar um estudo que mostrou que a rentabilidade das carteiras dos parlamentares nos EUA é superior à média. A cada dia tem uma comprovação de que o Estado está completamente capturado e subordinado às finanças. E, provavelmente, sem que se mude, as relações entre governo as finanças e o setor dito real --essas coisas não são separáveis, mas a relação de poder entre as finanças e o resto da economia é imensa, se não conseguir juntar essas coisas que não deviam estar separas, nós vamos atravessar dias difíceis. Folha - A crise terá uma recaída? Belluzzo - Tem duas velocidades. A intervenção americana foi muito tempestiva e muito violenta. Eles conseguiram circunscrever a crise. A ruptura da queda de preços de ativos foi violenta, houve excessiva alavancagem e há a interdependência. Ele não tinham idéia do que iria acontecer depois do Lehman Brothers. Tiveram que estatizar a AIG rapidinho. Fizeram a estatização branca. Mas mantiveram isso dentro dos limites da propriedade das instituições. Dada a centralidade do sistema de crédito financeiro na economia capitalista hoje --que é socializado já em mãos privadas-- essa contradição vai se tornar mais aguda nos próximos anos. A crise está mais aguda e mais agressiva na Europa, que se imaginava que tivesse defesas mais adequadas. Mas entrou todo mundo na dança da globalização, da interligação dos mercados. Folha - O euro vai resistir? Belluzzo - Não me arrisco a responder. Haveria inconvenientes graves com a saída de algum país. Se a Grécia saísse com o dracma, haveria desvalorização, iria quebrar e contaminar o resto da Europa. Nesse caso, as soluções que estão dando são cada vez mais frágeis. O grau de intervenção que isso vai exigir é tão grande, que é assustador. Mas fazer depois pode ser muito mais doloroso, como foi no caso do Lehman. Folha - A Alemanha está advogando alongar o perfil da dívida, dar um calote. Belluzzo - Está querendo. O medo é que isso provoque uma retração dos mercados, por exemplo, em relação à economia espanhola. Às vezes a primeira reação diante do inevitável é a negação. Os spreads para a Espanha já aumentaram. A crise europeia é uma subseção da crise global, com suas peculiaridades. Folha - Quais? Belluzzo - Na formação do euro os países entraram em condições muito desiguais. O projeto do euro tinha uma perna só. Não tinham um sistema fiscal comum. Moeda única sem o Estado. A taxa de juros na Espanha era em torno de 16% e os prazos muito curtos. Com o euro, convergiram as taxas e os prazos. A Espanha tinha uma indústria bem inferior ao resto da Europa. A economia espanhola se apoiava no turismo e na construção civil. Antes da moeda única a Espanha foi muito beneficiada pelos fundos. Com o euro houve um salto da construção civil. A relação dívida das famílias em relação ao PIB é maior que a dos EUA. Os bancos não tiveram crise, mas o Estado teve. A Espanha cresceu na base do crédito das famílias. Todos geraram crédito para os alemães. Quem estava por trás eram os bancos alemães e franceses. Os processos foram parecidos. Os resultados foram diferentes. Há o problema da divida soberana dos Estados europeus. Folha - Os europeus estão indo para a rua protestar. Belluzzo - Vi hoje o pessoal em Barcelona protestando, em Portugal, na Grécia. Isso acontece porque estão sendo ferindo profundamente os direitos econômicos e sociais. E essa é uma construção penosa que os europeus levaram adiante ao longo de todo o século 20, sobretudo depois da guerra. Criaram um certo controle do capitalismo, criaram redes de proteção. O que há hoje é um fenômeno muito complicado para quem tem a memória disso. Minha formação é de uma pessoa reformista. Não dá para mexer na sociedade como se ela fosse um jogo de lego. Não é assim. Ajustar na Grécia significa cortar emprego, salário, direitos, sem garantia de sucesso. A economia pode entrar em recessão É preciso um consenso europeu, sem obrigar a fazer o impossível. Impossível é a Grécia conseguir passar de 12% de déficit para 3% em três anos Pode vender a Acrópole que não vai adiantar nada. Folha - A alternativa seria o calote? Belluzzo - O Estado precisa capitalizar os bancos. Fazer isso de uma maneira muito centralizada e começar a refinanciar a economia e refinanciar a divida. Os alemães e os franceses precisam botar a mãos nos bancos deles e mandar o resto às favas. Porque a crise vai se aprofundar. Folha - A crise vai se aprofundar? Belluzzo - Lá, vai. Porque os EUA vão ficar nesse chove não molha: crescimento baixo, com os empregos qualificados em baixa. O cidadão se forma na universidade. Ou não tem emprego ou não tem emprego à altura dele. Folha - Na Europa a crise vai se aprofundar mas os governos dificilmente vão impor perdas para os bancos como saída? Belluzzo - Na verdade é mudar a governança do sistema financeiro, como foi no pós-guerra, controlando os bancos. Era a repressão financeira, a imposição de limites, de regras de contingenciamento, de obrigatoriedade de dirigir o crédito para determinada direção. É preciso dar direção ao crédito. Se não fica nisso. O Estado socorre de forma muito decida, mas esse esforço se dissipa. Trocou papéis tóxicos por passivos no BC. Depois passou a regular o "quantative easing", passou a regular preços e rendimento dos títulos longos para dar fôlego a economia. Mas o crédito não cresce porque as famílias não podem tomar. Porque estão engasgadas com a dívida anterior. E as empresas têm caixa mas não investem porque olham para as famílias. Folha - E o dinheiro vem pra cá. Belluzzo - É. O Brasil está engolindo esse tsunami de dólares. Folha - Como está o governo Dilma? Belluzzo - Tem um problema de gestão de dívida publica, de apontar a direção, de que você não vai ficar na mão do mercado. Por isso eu defendo que se tenha um superávit fiscal parrudo. Para dizer para eles: não vem que não tem. Por outro lado, essa invasão de dólares está provocando duas coisas. Primeiro você vai aumentar brutalmente as reservas. Vai comprar dólar e vai esterilizar isso para evitar efeitos monetários da conversão de dólar para real. Você compra dólares com uma taxa de juros que tem um diferencial grande com a americana. O que impacta na dívida pública. Seria um custo muito menor se você impusesse limites a essa entrada, mas teria que ser muito duro. Folha - Por exemplo como? Belluzzo - Você tem que centralizar o câmbio, como diz o Chico Lopes. Tudo fecha no BC. Isso aconteceu na crise de 99. Fechar todas as operações no BC. Se você falar isso vai ter desmaios no mercado financeiro, que tem que abanar com leque. Folha - Mas o governo teria condições políticas de fazer isso? Ele também não é capturado pelo mercado como o sr. diz que são os outros governos? Belluzzo - Não vou dizer que está capturado, mas o embate é difícil. Porque você liberalizou a conta de capital. O nosso sistema financeiro é muito mais regulado. Tanto que nós não compartilhamos da festa, mas também não tivemos as desvantagens das dores. Saímos rapidamente. Se você olha o que está acontecendo com a indústria brasileira você fica preocupado. Por causa da valorização do câmbio. Tem gente que diz que podemos virar a Austrália, sem indústria. O que é uma afirmação patética. Não se pode comparar um país que tem 20 milhões de habitantes e que nunca teve indústria e que se especializou em commodities com um que tem 200 milhões e que tem uma economia urbana industrial bastante desenvolvida. Você imagina destruir toda a base industrial brasileira, onde estão os empregos, as relações com os serviços. Você olha a balança comercial setor por setor no agregado e no setorial. Desde 2005 se inverteu. Até 2005 tínhamos um superávit crescente. De repente inverteu porque a economia passou a crescer e a taxa de câmbio se valorizou. É um mergulho em que a curva vai ficando mais empinada. O que significa que a velocidade de aumento do déficit da indústria aumenta. E isso é muito sério. Você tem dois problemas. O choque de commodities é o mesmo fenômeno que houve na liquidez internacional. Deu essa explosão no preço das commodities. Todo mundo saiu daquilo que não tinha chance e, olhando o desempenho da demanda das commodities, deram um choque de preços. A especulação foi além. Ricardo Carneiro escreveu um bom artigo sobre isso para a revista da Cepal. O Brasil tem que absorver esse choque e, ao mesmo tempo, tem essa simultaniedade entre inflação e valorização do câmbio. Provavelmente se deva ter entre uma valorização, se tomar 2005, superior a 35%, o que é mortal. Folha - A indústria está sendo destruída por conta da taxa de câmbio? Belluzzo - Câmbio e porque a demanda doméstica está sendo alentada inclusive pelo crédito que é difícil controlar. Porque eles, bancos e as empresas, estão fazendo "funding" lá fora. O investimento direto é muito pequeno. Muito do que aparece em investimento direto é empréstimo intercompanhia. Eles estão fazendo arbitragem com a taxa de juros. Folha - Para fugir do IOF. Belluzzo - É só conversar com qualquer sujeito para ver que acontece isso. Folha - E o que Dilma deve fazer? Belluzzo - É a chamada saia justa. Folha - O que ela devia fazer além de centralizar o câmbio? Belluzzo - Não dá agora para fazer uma desvalorização abrupta porque isso impacta inflação e a economia brasileira é muito sensível a uma desvalorização dessas. Isso tem efeito na inflação e tem efeitos financeiros também. Provavelmente com uma desvalorização desse tipo o mercado puxa a taxa de juros lá para cima, a dita taxa longa. Folha - Como seria essa centralização? Belluzzo - Tem que fechar o câmbio, tudo lá, todas as operações comerciais, financeiras. Isso daria ao BC mais controle sobre os preços e sobre as quantidades. O BC poderia controlar essa entrada e fazer com que os caras deixassem uma parte desse dinheiro lá fora. Barrar certas operações, não legitimá-las. Essa ideia de que você vai controlar, contornar isso facilmente, não vai, não. Tem a Receita Federal que pode cuidar desse assunto. A centralização entregaria ao banco central maior capacidade de regular direta e simultaneamente preços quantidades e prazos. Os agentes privados perderiam confiança no sucesso, hoje praticamente garantido, de proceder à chamada "arbitragem especulativa". Hoje o BC atua ex-post comprando e vendendo moeda estrangeira dos agentes privados. O câmbio é um preço muito importante para ser deixado aos caprichos do mercado. Que digam os chineses. Folha - E o governo federal tem coragem de fazer isso? Belluzzo - Não é um problema de coragem. É um problema de condição política. Acho que nesse momento não tem. Folha - Por quê? Belluzzo - Porque não tem força real pra fazer isso. Folha - Mas a presidente está bem avaliada. O integrante mais ortodoxo do governo saiu. O governo vai ficar mais heterodoxo? Belluzzo - Essa é uma visão pouco realista de qual é a relação de forças aqui. Folha - E qual é essa relação? Belluzzo - O apoio que o Lula teve estava relacionado com os ganhos que foram um pouco mais bem distribuídos do que foram na história. Puxaram esse pessoal para cima. Que não são uma nova classe média, mas que conseguiram emergir de uma situação de pobreza muito seria, o que foi muito bom. Mas não haveria por parte deles uma compreensão do que está envolvido. Como diz o [Theodor] Adorno muito bem, a liberdade se funda na compreensão. Eu não sei como eles se alinhariam no caso de uma disputa desse tipo. Infelizmente, no mundo inteiro. Veja os espanhóis "indignados". Você vê na manifestação deles que eles sabem o que eles não querem. Eles estão irritados porque acham que os governos foram ineptos. Folha - Mas quem ganhou lá foi a direita. Belluzzo - Porque eles não foram votar também. Folha - Provavelmente não votariam nos socialistas, pois eles fizeram as políticas de direita. Belluzzo - Porque fizeram? A Itália o que virou. Porque você perdeu toda a referência intelectual, política etc. Os caras se entregaram ao Berlusconi. O crooner de navio que se transformou num potentado. Essa cultura de massas não favorece. Você não tem debate aqui no Brasil. O debate é muito restrito. Porque as pessoas não lêem mais, não se aprofundam. Os jornais foram correndo atrás da imediatidade da internet. As coisas não têm consistência. Folha - Se o governo tomasse uma atitude mais ofensiva no trato dessas questões fundamentais. Belluzzo - Quem iria vocalizar, se exprimir de uma maneira mais clara? O mercado financeiro. Eles estão por toda parte. Eles falam até sobre tudo. São esses faladores. Tome as seções dos jornais. Comecei a participar desse debate nos anos 1970. Tem pouco que são acadêmicos. Todo o debate de conjuntura hoje está na mão dessa gente que --idiotas não são-- mas eles vocalizam os interesses das finanças. Folha - O governo fica refém? Belluzzo - É. Refém é uma palavra...Você fica com o risco grande de tomar certas decisões. Isso é muito claro. Certas decisões não são tomadas porque você tem essa barreira. Folha - Mas e o apoio popular do governo? Belluzzo - Vou te dar um exemplo do que o governo deveria fazer. A questão do combate à inflação é politicamente fundamental. Se a inflação acelerar os protagonistas aqui, às vezes agem contra seus próprios interesses. Se a inflação acelerar, quem vai perder são esses que são os menos bancarizados, têm menor capacidade de defesa. A classe média talvez consiga se defender melhor. Os de cima se virarão muito bem. Qual a decisão que ela deve tomar? Nesse momento o mais importante é tentar fazer regredir essa coisa da inflação. Porque se não... As lideranças sindicais estão sabendo disso. Se você começar um processo de indexação salário-preços, a gente sabe quem vai perder. É preciso que a base política do governo tenha sempre uma visão política mais ampla do que simplesmente negociar os salários. Folha - Então o sr. se alinha entre os que acham que o salário é um fator importante na inflação? Belluzzo - A indexação é. Você não tem inflação que sobreviva se você não contaminar o mercado de trabalho. Folha - Mas a inflação está em queda. No ano que vem tem a recomposição do salário mínimo. Há um certo terrorismo em relação a isso? Belluzzo - Não há terrorismo. Acho que tem que rediscuti essa questão [do reajuste do salário mínimo no ano que vem]. Olhando do ponto de vista das relação de forças. É interesse fazer com que esse terrorismo inflacionário retroceda, para que você possa avançar. Você ganha espaço, legitimidade. Essas são as condições do problema. Estou sendo realista. Folha - Então a primeira coisa seria a inflação? Belluzzo - Todo mundo está projetando um crescimento de 3,5%, 4%. Como uma situação como essa está muito bem. Você não pode deixar a economia resvalar. Folha- A puxada de freio de mão não foi demasiada? Belluzzo - Ninguém sabe. A economia já estava desacelerando um pouco. Os efeitos das medidas macroprudenciais foram subestimados. O problema da taxa de juros é o nível. Porque ela é alta assim? Se tem um histórico, não adianta discutir no ponto. A indexação dos títulos financeiros à Selic torna o manejo das taxas de juros extremamente danoso. Porque você contamina todos os outros. Folha - O sr. concorda com o que tem sendo feito na taxa de juros até agora no governo Dilma? Belluzzo - Dizer que eu concordo...Discordo do nível, mas concordo que numa situação como essa você tem que ter....A taxa de juros na china, que está superaquecida, subiu para 5,25%. Estão vindo de 10% para 8% [de crescimento]. É uma perda, mas não é muito. Sobrevivem bem. Pelas circunstâncias brasileiras você não vai crescer 10%. Folha - Por quê? Belluzzo - Porque há o limite da taxa de investimento. Caiu muito. Você teria que ter uma direção da economia em que o investimento crescesse bem mais rápido. Para criar capacidade. Precisa de uma governança do governo importante. Vamos crescer e está muito bom para o crescimento da população. Crescer 6, 7% é bem razoável. Ano passado crescemos bem, 7% e pouco. A taxa de investimento cresceu, mas não o suficiente. Folha - O que é possível fazer? Segurar a inflação... Belluzzo - Tem que escolher os objetivos. Persegui-los em sequência. Essa combinação câmbio valorizado e crescimento na média mais alto do que a economia global vai ter déficit em conta corrente evidentemente. Você está ajustando isso pelo crescimento. Está começando a crescer menos. Mas dada a valorização do câmbio não é suficiente para você reverter a situação da indústria. Talvez a velocidade com que cresçam as importações industriais seja um pouco menor e a inibição às exportações vai continuar porque a economia mundial não se move. Folha - Não há mercado. Belluzzo - Nossa especialização nas commodities é espantosa, o crescimento da receita de exportação das commodities. É o espelho da indústria. Indústria para baixo e as commodities para cima. Folha - Mas isso é bom para o país? Belluzzo - Ter essa especialização, não. Agora não vamos nos iludir. Essa diferença nos preços se mantém até com a desaceleração da China. Agora nós vamos ter um ciclo mais longo de preços bastante razoável de commodities para nós. Isso é um conforto para nós. Fora que daqui 4 anos vamos ter o Pré-Sal. Quando tivermos o Pré-Sal atuando vamos ter que ter cuidado com o excesso de dólares. Como dizia o Celso Furtado, com a "chuva de dólares". Temos que administrar muito bem essa receita extra de moeda estrangeira para poder até ajudar na reindustrialização. Melhoria no sistema fiscal. Pensar em reformas nas várias direções e executar os programas prioritários, como na educação. A educação está em frangalhos. Tenho uma faculdade, fazemos um esforço enorme para dar uma base melhor para os alunos. Mas é gota no oceano. Folha - O sr. tem saudades do Palmeiras? Belluzzo - Da minha condição de presidente, nenhum pouco. Minha afeição pelo clube não diminuiu nenhum pouco. Ao contrário. Fico preocupado com o desempenho do time, com o término da obra. Essa é uma adesão incondicional. Não importa que você sofra os percalços, como aconteceu comigo e muitos outros. Mas você não abandona porque é uma coisa muito básica. O clube é um símbolo, é uma coisa afetiva. Não tem nada a ver com as dificuldades administrativas. Se eu não tivesse essa paixão pelo Palmeiras eu não teria sido candidato de jeito nenhum. Meu pai, que foi muito s anos diretor do clube, falou para mim: meu filho, aquilo é um mundo de serpentes. E eu me meti lá. Folha - Como ex-presidente do Palmeiras como o sr. avalia a relação do governo com a Fifa na negociação para a Copa? Belluzzo - Não consigo me conformar com essa submissão dos governos ao imperador barba roxa do sacro império românico germânico. Os governos em geral, por que precisam se submeter? O que eles estão fazendo é explorar essa paixão popular pelo futebol. E fica todo mundo alucinado que precisa fazer a Copa no Brasil. Você pega as pessoas mais sensatas para conversar... De repente virou um problema de orgulho nacional. Que diabo virou isso! Precisamos pensar em outras coisas. A despeito de eu adorar o futebol, acho que a gente não tem que ceder a essa gente. Por quê? Quem são eles? Estão lá encrencados com acusações gravíssimas de malversação de dinheiro, de corrupção etc. Folha - Esse modelo de ficar acima das leis, o governo não deveria aceitar? Belluzzo - Não. Folha - E essa construção desvairada de estádios com dinheiro público? Belluzzo - Isso precisaria ser muito bem cuidado porque você sabe como são essas coisas. Teria que ter uma pessoa muito séria e acima de qualquer suspeita, capaz de fazer a verificação das cotas, dos projetos. Se não, vai ser uma farra. Folha - Henrique Meirelles é essa pessoa? Belluzzo - Acho que sim. Eu não concordo com o Meirelles, mas acho que ele é uma pessoa séria. Isso é uma coisa espantosa. Que eles fiquem indicando que empresa você tem que usar. Que diabo é isso! É o sacro império romano que está acima das soberanias? Naquele tempo tinha as suseranias... Folha - Mudou alguma coisa na academia depois da crise? Belluzzo - O objetivo do livro é reiterar estou seguindo a minha trajetória acadêmica quase 40 anos depois. Vamos publicar também um livro sobre Keynes, vou fazer a introdução. É muito difícil. A academia hoje não favorece muito o pensamento desviante. Está muito burocratizada, pasteurizada. Todo muito atrás de seguir sua carreira, de fazer pontinhos na Capes, de fazer papers para publicar em revistas indexadas. Isso vai matando a ousadia. Vai tirando o impulso a divergir. Folha - Nada mudou depois da crise? Belluzzo - Tinha a ilusão de que a crise ocorria porque as teorias estavam erradas. Precisavam dizer outra coisa a respeito deles mesmos. Seria bom para os economistas estudar um pouco de psicanálise. O Marx é um pouco de psicanalista. Vai descobrindo do inconsciente da sociedade para a sua manifestação. Esse processo de libertação não ocorre. Folha - Na sua opinião, o Serra faria um governo melhor do que Dilma? Belluzzo - Me recuso a responder. Acho que o Serra economicamente pensa muito bem. É uma pena que eles, que deviam estar juntos, estão separados. É uma separação totalmente artificial. Provavelmente eles têm mais afinidades do que divergências. Luiz Gonzaga Belluzzo